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Os limites da legislação e da tecnologia de avaliação e controle

CAPÍTULO I O Acontecimento do ponto de vista médico-sanitário

3. Os limites da legislação e da tecnologia de avaliação e controle

A afirmativa da existência de uma epidemia em curso é um fato controverso, pois, tratam-se, na verdade, a princípio, de duas mortes que, ao servirem de casos índices, revelam numerosos casos de alteração hematológica que isoladamente não significam doença, mas que potencialmente indicam o comprometimento da saúde dos trabalhadores, especialmente em situação de exposição a produtos químicos. Dessa reflexão, o excesso de leucopenia é preocupante e os 216 casos definidos como benzenismo e notificados como tal, referiam-se a trabalhadores

provavelmente intoxicados pelo benzeno, mas não necessariamente sintomáticos.

Desse modo, caracterizava-se a existência de uma epidemia de intoxicação pelo benzeno uma vez que se registrara um número de casos muito superior ao que era esperado nos ambulatórios dos sindicatos dos trabalhadores (cerca de 40 casos/ano). Do ponto de vista médico-sanitário, é uma epidemia cuja transitoriedade do aumento de casos é dado, não pelo surgimento agudo dos mesmos, mas como resultado de uma busca ativa de casos e de um boom de reconhecimento dos casos de leucopenia por exposição ao benzeno, uma condição até então pouco conhecida (Entrevista 02, Anexo 6).

A leucopenia, uma alteração hematológica tomada como indicador de efeito do benzeno no organismo humano, é o sinal de alerta para a possibilidade de evolução de doenças hematológicas graves e fatais, como a que acometera o médico e o operador e que requerem medidas de controle urgentes para prevenir o surgimento de outras mortes.

Sobre esse aspecto, três desafios de ordem técnica estavam colocados para o controle da epidemia: em primeiro lugar, o de afirmar que havia contaminação pelo benzeno no ar do Polo, definindo sua magnitude. Para tanto, depende-se da disponibilidade tecnológica das empresas para avaliar o ambiente de trabalho, que é, então, praticamente inexistente, tendo sido desenvolvido ao longo dos anos que sucederam a epidemia. Apesar das resistências das empresas em admitir a contaminação ambiental, após o estudo da DRT estas passam a implantar sistemas de monitoramento, especialmente a Nitrocarbono e a COPENE, nos anos subsequentes à epidemia, e, mais tarde, as demais seguiram tais procedimentos.

O segundo desafio é afirmar que o benzeno no ar é causa suficiente para produzir a leucopenia encontrada nos trabalhadores expostos diretamente, ou não, a este produto e afirmar que além de contaminar, o mesmo causava efeitos severos, como lesões medulares, levando ao óbito trabalhadores do Polo. Sobre isso, é então necessário suplantar os limites do saber médico

sobre o assunto, abrindo o debate com os hematologistas, estes desconhecedores ou desatentos à relação causal entre exposição ao benzeno e alterações hematológicas (Entrevista 05, Anexo 6).

Do ponto de vista epidemiológico, é então necessário definir e caracterizar o que é o suspeito e o que é o caso de leucopenia por exposição ao benzeno, esclarecendo-se se a leucopenia decorre da exposição ao benzeno ou é relacionada a outros fatores. Ou seja, estabelecer o nexo causal entre doença e exposição. A dificuldade para estabelecer esse nexo decorre, contudo, do fato de que as fontes de exposição não se apresentam claramente identificáveis e mensuráveis, pois, como visto, o estado no Polo é de quase inexistência de monitoramento ambiental.

Sobre isso, os 800 a 1.000 diagnósticos de alterações hamatológicas (leucopenias e leucocitoses) ocorridos em 1991, poderiam ser interpretadas referindo-se a outras condições fisiológicas ou patológicas e não o benzenismo propriamente dito (Entrevista 05, Anexo 6). Para o nexo causal era necessária a comprovação de que as condições de trabalho eram favoráveis ao surgimento das doenças, o que não era difícil atestar. Mas, os serviços de saúde, de uma maneira geral, tanto os públicos como os privados, não estavam aptos para atestar os casos, pois poucos médicos sabiam sobre a possível associação do benzeno com o problema hematológico (Entrevista 01, Anexo 6).

Enquanto as pesquisas da FJS e da DRT perseguem uma resposta sistematizada e orientada pelo método epidemiológico, sanitaristas e médicos do trabalho do SUS sustentam a hipótese de leucopenia por benzeno contra a interpretação de médicos vinculados às empresas:

o Dr. (fulano) achava que eu devia ser presa porque eu estava fazendo alarde público, estigmatizando pessoas, porque recebiam o rótulo de leucopênico e passava a ficar fora do mercado de trabalho… Houve também a tentativa de descaracterizar os diagnósticos, a questão racial de definir que a leucopenia era uma questão dos negros… (Entrevista 05, Anexo 6).

Ainda segundo os entrevistados, os técnicos dos órgãos públicos de saúde e segurança do trabalho procuram então usar o bom senso, aplicando o raciocínio lógico, pois para eles, o benzeno nas plantas petroquímicas é um fato evidente: o vazamento é visto a olho nu,

os trabalhadores limpavam as mãos com o produto. Contudo, as empresas não controlavam essa situação e o desconhecimento sobre o efeito nocivo do produto é generalizado, incluindo o meio médico. Por que então não se atribuir o nexo causal ? Por que pensar que o problema era idiopático ou fisiológico, quando também essas condições eram difíceis de serem comprovadas? Sobre tais questões pode-se pensar que, tomar os casos como idopáticos, raciais ou fisiológicos poderia significar expor os trabalhadores a riscos futuros de doenças graves. Por um lado, o estado de desgaste pelo tempo de uso dos equipamentos levavam aos vazamentos recorrentes, indesejáveis também para os empregadores, pois tratava-se de matéria prima perdida. Por outro, era difícil definir o nexo das doenças com o benzeno porque havia outros produtos a conformar um verdadeiro coquetel químico despejado no ar.

Além disso, a avaliação da contaminação do indivíduo valorizava o fenol urinário, um indicador biológico de exposição de limitações então já conhecidas para revelar uma exposição peculiar. O uso do hemograma como indicador biológico de efeito não era habitual, enquanto que o fenol urinário tradicionalmente utilizado, era limitado como indicador biológico de exposição, especialmente para a situação do Polo. Embora considerado apropriado, ainda que com limites, para exposições em caráter contínuo, esse não era o caso do que ocorria nas empresas do Polo. O tipo de exposição ao benzeno, pontual e grosseira, que se observava no COPEC, era passível de ser vista a olho nu (Entrevistas 01, 04 e 05, Anexo 6). Caracterizava-se, contudo, como recorrente, não contínua, o que poderia não permitir um nível de fenol urinário elevado, ainda que a exposição ocorresse (Entrevista 05, Anexo 6).

Essas condições deixavam os técnicos em situação de fragilidade para tomar decisões quanto ao diagnóstico e a implantação de medidas de controle. Por essa razão, foi estabelecido pela SESAB e DRT um "Protocolo de investigação clínica e epidemiológica para indivíduos expostos ao benzeno” em outubro de 1991, o qual definiu o hemograma como indicador biológico de efeito, em lugar do fenol urinário, uma vez uniformizados os métodos de coleta para o exame. O protocolo ressaltava a importância do controle ambiental de exposição para evitar tomar a alteração hematológica no indivíduo como o primeiro sinal de alerta.

Mas, face à inespecificidade das alterações hematológicas, que podem estar presentes em várias condições clínicas, as instituições optam por tomar a pessoa como a melhor referência. Assim, adotam-se a série histórica do hemograma de cada trabalhador e as condições ambientais da exposição a mielotóxicos, para definir caso de benzenismo, considerando as alterações potencialmente relacionadas ao benzenismo descritas na literatura (na série eritrocitária, série leucocitária, plaquetária, estudo de medula óssea e estudos adicionais) (DRT/MTb, 1991).

Desse procedimento, abandonam-se os critérios meramente quantitativos da legislação para a definição de caso de benzenismo. Vale lembrar que a legislação trabalhista brasileira considerava como caso confirmado de benzenismo, desde 1987, conforme a Circular 287/87 do INAMPS e a 03/87 do INPS, o trabalhador exposto ocupacionalmente ao benzeno que apresentasse contagem de células sangüíneas com valores da série branca iguais ou inferiores a 4.000 leucócitos e/ou 2.000 neutrófilos (INSS, 1993). A circular definia ainda, como caso suspeito de benzenismo, aquele trabalhador, que exposto ao benzeno, apresentasse leucócitos entre 4.001 e 5.000 leucócitos/dl e 2.001 e 2.500 neutrófilos/dl, ressaltando-se a importância das alterações quantitativas e qualitativas na sua série histórica, bem como a presença de manifestações clínicas tais como: astenia, irritabilidade, cefaléia, alterações de memória, dificuldades de atenção, concentração e intelecção, infecções freqüentes, com as quais poderiam ser considerados casos confirmados (INSS, 1993).

O uso de um protocolo mais criterioso para o diagnóstico, em lugar da contagem simples de células, logo diminui os casos de alterações hematológicas tendo o benzeno na relação causal (Entrevista 05, Anexo 6). Esse protocolo veio a reduzir as diferenças de interpretação da leucopenia em operários no meio médico, encontrando-se um ponto comum de definição diagnóstica.

O terceiro desafio é o de superar a legislação referente ao limites de tolerância para o uso do benzeno. No nível ambiental, a concentração de 8 ppm desse produto no ar já havia sido criticada por organismos internacionais e modificada em vários países. Isso porque o desenvolvimento de alteração hematológica por exposição ao benzeno é dependente da suscetibilidade individual, de modo que, mesmo a exposição a mínimas quantidades do produto pode afetar a saúde dos trabalhadores,

tornando qualquer limite inaceitável para a exposição ocupacional. Contudo, a adoção na lei do parâmetro de 8 ppm respaldava as empresas a não assumirem a responsabilidade sobre o problema que se instalara no Polo. Ao nível ambiental, a legislação trabalhista brasileira definia, na ocasião, na Norma Regualmentadora-15 da Consolidação das Leis Trabalhistas-CLT (1977), como limite de tolerância (LT), concentrações ambientais de benzeno até 8 ppm, quando, desde 1987 o National Institute for Ocupational Safety and Health (NIOSH) recomendava que nenhum trabalhador deveria ser exposto a uma concentração acima de 1 ppm. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por sua vez, já enfatizava, desde o final da década de 60, o controle do benzenismo como um dos principais problemas de saúde ocupacional na atualidade (DRT/MT, 1991).

No entanto, o problema que se enfrentava, a contaminação do ar no Polo, não era apenas pelo benzeno, mas por um conjunto de substâncias tóxicas, algumas delas igualmente cancerígenas. Isso dificultava a avaliação ambiental, requerendo uma série de ajustes nos métodos implementados, uma vez que não se "tinha como medir só o benzeno (…) porque sempre se

media um 'pool' de substâncias no ar", as quais também necessitavam ser

controladas (Entrevista 05, Anexo 6).

Face à epidemia, técnicos do CESAT, da DRT e da Fundacentro afirmam a necessidade de estudá-la, dimensioná-la e controlá-la, enfrentando os desafios políticos de fazer com que as empresas entendessem e assumissem responsabilidades. Sendo o Sindiquímica o principal interessado no reconhecimento da causa ocupacional da leucopenia, este encontra nos técnicos dos órgãos públicos e dos sindicatos uma aliança necessária para conquistar as mudanças na situação do ambiente de trabalho no COPEC. Contando com as experiências do movimento sindical de Cubatão que vivenciara situação semelhante e liderara o processo de denúncias dos casos e das posturas das empresas e órgãos governamentais no estado de São Paulo, o Sindiquímica atua então como o principal protagonista dessa história (Entrevistas 06, 03, 05, 01, 02, 04; Anexo 6), denunciando casos, articulando ações.

Dessa aliança, que se estabelece em nível nacional, surgem grupos de trabalho que constróem novas pautas para o debate da saúde do trabalhador no Brasil, produzindo

impacto na legislação pertinente, a qual é modificada, passando a adotar parâmetros renegociados entre as esferas do governo, dos empregados e dos empregadores.