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CAPÍTULO II Epidemia na Cobertura Jornalística

1. Epidemia na narrativa jornalística

1.1. Evento inusitado: Morte de um médico do trabalho

A morte do médico do trabalho da empresa Nitrocarbono é o primeiro evento noticiado pelos jornais entre os dias 24 e 26 de julho. Essa morte, causada por aplasia medular, leva o problema da doença ocupacional no Polo Petroquímico de Camaçari a público, ao atrair a atenção dos quatro jornais de Salvador que, em consonância, publicam sobre o fato. O que há de inusitado na morte de um médico do trabalho? Trata-se de um profissional responsável pelo cuidado à saúde dos empregados da empresa Nitrocarbono. Um sujeito que detém um saber diferenciado sobre o corpo, a saúde e a doença no trabalho. Ocupa pois um lugar social de cura, da proteção à saúde e à vida, da prevenção da doença. Aquele que lá estava, em uma empresa do Polo, para cuidar da saúde dos operários, tornara-se vítima letal de uma doença ocupacional.

Ao morrer um agente de cura, um corpo socialmente diferenciado, suspeita-se da falência de seu saber, do seu domínio sobre os modos de prevenção, do seu papel de guardião da força de trabalho e da saúde do trabalhador. Suspeita-se também da falência do sistema perito que protege contra os riscos industriais, um "sistema de excelência técnica ou

competência profissional que organiza grandes áreas dos ambientes materiais e social em que vivemos hoje" (Giddens,1991; 35).

Diante dessas suspeitas, o trabalhador sente-se desprotegido. A doença e a morte que acometeram o médico, prenunciam uma situação de tamanha gravidade, que transcende ao controle do conhecimento técnico e científico disposto na empresa em poder de profissionais especializados, quanto menos àqueles dos trabalhadores, abalando a sua confiança no sistema de controle ambiental e de sua saúde. Uma confiança já interrogada pelo movimento sindical desde o final da década de 80 (BRASIL, 1986).

O reconhecimento dos sinais e sintomas da doença no seu próprio corpo passa então a preocupar os trabalhadores do COPEC, os quais se movem em busca dos exames e da informação. É nesse momento, em que o conhecimento técnico-científico e a relação de confiança entre empresas e trabalhadores sobre questões de segurança e saúde são postos

em cheque, que os jornais assumem o lugar de um saber/poder para informar aos trabalhadores, sua principal audiência, acerca dos acontecimentos. De um lugar autorizado procura, na fala dos especialistas e dos diferentes sujeitos sociais, encontrar a verdade sobre as mortes e casos de leucopenia e relatar os eventos que se desdobraram no entorno da epidemia. Dirigentes do Sindiquímica são os primeiros atores a se pronunciar, denunciando a relação causal entre doença, morte e exposição ao benzeno. Desta denúncia, desde as primeiras notícias, todos os jornais trazem a fala direta ou indireta desse sindicato que se revela, ao longo da narrativa, como o principal protagonista da estória, atuando como vigilante persistente dos acontecimentos.

Em diálogo aberto com o público, a partir desse evento, a mídia impressa constrói sua narrativa, noticiando com regularidade os acontecimentos. As perguntas centrais às quais os jornais intentam responder dizem respeito à causa da morte do médico e ao número crescente de trabalhadores contaminados pelo benzeno.

O enredo é então conformado, articulando, em seqüência, eventos referentes ao surgimento de casos de doença e morte entre trabalhadores petroquímicos do Polo Petroquímico de Camaçari e às ações e reações dos diferentes sujeitos sociais envolvidos: trabalhadores, governo, empresas e outros setores da sociedade. Estes buscam definir a existência da relação causal entre os casos e a exposição ao benzeno nas empresa, dimensionar o problema, explicá-lo e apontar soluções. Todos os jornais informam os efeitos nocivos do benzeno sobre o organismo humano, mas os eventos tornados notícia variam, de modo que uns são enfatizados e outros silenciados nas diferentes agências, em um movimento de perguntas e respostas, em que as notícias ressoam entre os mesmos. Perguntas que, muitas vezes, se apresentam sob a forma de afirmação/provocação ou acusação e respostas que são silêncios, contra-argumentos ou simplesmente novos acontecimentos.

Isso pode ser visto, desde o momento da morte do médico, quando se evidenciam distintos destaques nos jornais. Na seqüência desse evento, os jornais TB e JB destacam a ação do Sindiquímica de responsabilizar civil e criminalmente a empresa Nitrocarbono, onde o médico trabalhava (26/07/90), enquanto os jornais AT, CB e JB destacam que esta empresa nega que os casos sejam decorrentes de exposição ao benzeno e afirma que faz o controle ambiental (31/07/90). Desses três últimos jornais, apenas o JB noticia também, no mesmo dia, a contra-reação do referido sindicato, refutando a posição da empresa e

afirmando que "não há monitoramento ambiental", enquanto AT publica uma matéria dando voz à empresa, em que esta afirma que "o controle é realizado".

Implanta-se desde esse momento, no diálogo entre os jornais, a dúvida sobre a relação causal entre as mortes e os casos de leucopenia com a exposição ao benzeno, em torno da qual as narrativas serão tecidas, seja para afirmá-la, seja para refutá-la. Uma dúvida que vai significar o apoio à versão da empresa, e encontra sustentação no saber/poder médico, bem como na fragilidade governamental para avaliar a exposição tanto do meio ambiente, quanto a do corpo dos operários.

Colocada essa dúvida, três jornais silenciam sobre o assunto durante os meses de agosto e setembro, permanecendo apenas a TB noticiando os acontecimentos. Esse jornal divulga então a reação do governo frente ao ocorrido: a realização de um Seminário organizado pelo CESAT para discutir riscos químicos à saúde dos trabalhadores (TB, 11/08/90; TB, 14/08/90; TB, 15/08/90) e acompanha as denúncias do Sindiquímica acerca da existência de novos casos, do sigilo imposto pelas empresas e das atitudes da DRT (TB, 24/09/90; TB, 29/09/90).

Dando continuidade à cobertura dos eventos, na expectativa de mais um fato a produzir impacto em seu público, o jornal TB, sai na frente dos demais e, em 21/09/90, declara que se encontra internado outro doente grave, um operador, vítima de leucemia mielóide aguda. Tal fato vem a sustentar a suspeita da gravidade e magnitude do problema. Em resposta, a curva numérica do noticiário, já em egressão, volta a progredir, principalmente quando o operário morre, no mês de outubro. Essa morte é noticiada em 24/10/90 pela TB, em consonância com todos os jornais (JB, 23/10/90; TB, 24/10/90; AT, 26/10/90; CB, 27/10/90).

O drama dos trabalhadores do Polo é então trazido ao público, quando, ao lado das notícias sobre as mortes, o jornal CB (27/10/90) mostra o pânico que se instala entre os operários do COPEC e a TB traz a denúncia do Sindiquímica acerca das recomendações de silêncio feitas pela empresa Nitrocarbono à família do operador, como um código de ética próprio da mesma para tratar do assunto (TB, 24/09/90). Um código de ética que acentua o estigma da doença ocupacional, no qual, ambos, empregadores e empregados silenciam para resguardar o pacto estabelecido para o trabalho sob risco. Para a empresa,

o sigilo significa, nesse momento, a proteção da sua imagem pública, a qual se faz encobrindo a grave realidade de saúde dos operários do Polo.

Os jornais movem-se então para encontrar a reação do governo, que admite a necessidade de agir (TB, 24/10/90; TB, 26/10/90; TB, 29/10/90; AT, 24/10/90; AT, 26/10/90). Uma ação governamental que se fará sob pressão sindical, conforme anunciado no jornal TB (TB, 26/10/90). O Sindiquímica chamara a imprensa para divulgar os resultados da inspeção da DRT, que revelara a existência de 73 trabalhadores contaminados na referida empresa, o que leva o sindicato à decisão de responsabilizá-la civil e criminalmente (TB, 26/10/90). Segundo a TB, evidenciado o caráter epidêmico da leucopenia, é sob pressão que a DRT notifica a empresa e determina o afastamento de trabalhadores, além de tomar a decisão de fiscalizar outras empresas, conforme noticiado pelos jornais AT e TB de 27 a 30/10/90.

A indignação toma conta do setor trabalhista que, para além do consumo de sua força de trabalho no cotidiano do COPEC, vê a sua saúde afetada e a sua vida ameaçada. O Sindiquímica organiza então uma manifestação de protesto dos trabalhadores na porta da empresa Nitrocarbono, noticiada por todos os jornais em 31/10/90. Contudo, essas notícias diferenciam-se quanto aos motivos apontados para explicar o fato. Segundo o jornal AT (31/10/90), os trabalhadores fazem uma assembléia de sete horas de duração em protesto contra a transferência da data da reunião da DRT com a empresa. No jornal CB (31/10/90), o protesto é contra a empresa e a DRT, que não divulgaram a lista dos 22 trabalhadores que estavam com leucopenia. O jornal TB (31/10/90) aponta que o protesto é contra a morosidade da DRT na adoção de medidas para deter a contaminação. Finalmente, o Jornal da Bahia, no mesmo dia, diz que os operários cruzam os braços para exigir o afastamento dos 22 funcionários pela DRT e a presença do delegado.

Sobre isso, afirma-se que a manifestação é pacífica (TB), mas que os trabalhadores estão determinados a só retornar ao trabalho após a DRT afastar os 22 funcionários (TB) e após a garantia de que esses seriam licenciados pela empresa (CB). Os trabalhadores negociam com os técnicos da DRT e os gerentes da empresa a divulgação, em 24 horas, da relação dos funcionários com suspeita de contaminação a serem afastados (AT).

A publicização da situação de risco da saúde dos trabalhadores do Polo repercute de tal modo que os jornais acompanham com regularidade os acontecimentos, mantendo-se

atentos às ações e reações da empresa, da DRT e do sindicato trabalhista e suas ressonâncias no âmbito do Governo Federal.

Em resposta à cobertura da mídia, a Nitrocarbono publica, nos jornais CB e TB, uma nota de esclarecimento, matéria paga em que oferece ao público a sua versão do ocorrido (CB e TB, 01/11/90). Nesta, a empresa responde explicitamente às notícias divulgadas pela imprensa, esclarecendo que processa o benzeno, dentre outras substâncias de toxicidade conhecida, mas que pratica medidas adequadas de monitoramento ambiental, admitindo a possibilidade de emissões de resíduos capazes de interagir no ambiente, o que determina maior risco para a saúde dos trabalhadores. Contudo, afirma que os empregados são submetidos a rigorosos exames periódicos para o acompanhamento de sua saúde. Questiona, portanto, as denúncias do Sindiquímica e da imprensa sobre a existência de vários empregados com eventuais problemas de saúde. Contudo, coloca-se aberta ao diálogo com a sociedade e os órgãos governamentais, estando “consciente da

importância do homem e do meio ambiente (…) integrados ao desenvolvimento econômico”.

Desse modo, ao alinhar imprensa e Sindiquímica, a empresa explicita sua insatisfação com a conduta da mídia, mostrando-lhe que sua postura a alia com o sindicato dos trabalhadores, não sendo favorável às empresas, bem como que a credibilidade de suas declarações é questionável. Empresa e Sindiquímica deixam, desde esse momento, explícitos seus horizontes de expectativa para com a situação. Enquanto a primeira tenta esvaziar as denúncias, o segundo exige a definição de responsabilidades por parte da primeira e também do governo.