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Da criança à crianção: a literatura para crianças e jovens de Cecília Meirelles e Sophia de Mello Breyner Andresen

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Academic year: 2021

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(Agosto, 2018)

Tese de Doutoramento em Estudos Portugueses

Da Criança à Criação: Literatura para a Infância e a Juventude de

Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen

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Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Estudos Portugueses, realizada sob a orientação científica da

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AGRADECIMENTOS

À minha família, ao meu pai, meu modelo em todos os aspetos e meu inspirador, à minha mãe, pela perseverança, aos meus quatro irmãos e suas famílias. Ao Chao, meu irmão mais novo, pelo sacrifício e por ter tomado conta dos pais durante a minha ausência; ao Chote e à minha cunhada pelos procedimentos todos até à minha partida e pela felicidade e alegria que deram aos nossos pais.

Ao Governo da Tailândia, através da Comissão Superior de Educação, Office of the Civil Service Commission, à Embaixada do Reino da Tailândia em Lisboa, Senhor Embaixador Chakorn Suchiva, Senhor Embaixador Krairawee Sirikul e ao pessoal da Embaixada, principalmente o Senhor Greeta Aimsakul e à sua família.

Ao departamento de Línguas Ocidentais da Faculdade de Letras da Universidade de Chulalongkorn; a Assoc. Prof. Nuengrudee Lohaphon, antiga e atual chefe do Departmanto; e aos meus futuros colegas pela compreensão.

À minha orientadora, Professora Doutora Silvina Rodrigues Lopes, pela inspiração que me despertou, pela confiança e pelo “espaço potencial”, pela disponibilidade e pelas palavras de encorajamento.

Ao Professor Doutor Arnaldo Saraiva, por me apresentado Cecília Meireles nas suas aulas, pelas indicações bibliográficas; ao Prof. Dr. Abel Barros Baptista, pela generosidade; ao Prof. Dr. Gustavo Rubim; ao Prof.ª Dr.ª Maria Manuela Parreira da Silva.

Às minhas primeiras professoras de Português e suas famílias: Dr.ª Ermelinda Galamba de Oliveira, Conceição Galamba, Dr.ª Joana de Vasconcelos, Dr.ª Teresa Vasconcelos, pelo empréstimo de livros sobre Sophia, a mãe Maria Augusta Azeredo, filhos e netos.

Às famílias portuguesas que sempre me receberam com grande amizade e hospitalidade, agradecimentos especiais aos Dutra, Serra, Melo e Chaves.

Às minhas amigas portuguesas: Ana Lúcia Melo, pela amizade, carinho e disponibilidade para as nossas sessões psicanalíticas e reflexões filosóficas, durante a minha permanência em Torres Vedras e especialmente à Luísa Dutra, pela amizade e insubstituível apoio nas condições logísticas favoráveis à realização deste trabalho.

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A todos os amigos tailandeses e asiáticos: Srª Nisan and Mr. Egil Skogby pelo amor e carinho incluindo as boas memórias que me ofereceram na Noruega; à Tassanee Norma, pela generosidade e compreensão; à Srª. Janjira Somprasong e marido; à Rebecka Tan, pela amizade e cumplicidade que partilhamos em Portugal; aos amigos estrangeiros/ amigos de Portugal com quem me cruzei em 1989 em Coimbra (Ayano, Catherine, Gabrielle, Nadia e Rohit, a este pelo envio de livros); Dr. Nuno Caldeira da Silva e família, cônsul honorário português em Chiang Mai; aos estudantes tailandeses com quem travei amizade na Europa, Bencharassamee Rujraweehiran, Kamonwat Uncharoen, Pattaraporn Kidphonjaroen, Phakajira Sricharoen, Dr. Jayakorn Vongkulbhisal, Dr. Piemsak Hongjamrassilp, Dr. Rathapon Saruthirathanawora, Siwa Leeyawattananupong, Somphon Vidhidharm.

Aos amigos em Torres Vedras; aos Srª Pensri e Sr. Phaithoon Phattana, Maria Virgínia Melícias, Ana Maria Nobre e todas as senhoras do espaço Serena Idade, Catarina de Lemos Falcão e Patrícia Silva.

Aos meus colegas, Alexandre Sukuma, Donzília Filipe e Gregório Tchikola A todas e todos muito obrigada por me terem acompanhado neste percurso

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DA CRIANÇA À CRIAÇÃO: LITERATURA PARA A INFÂNCIA E A JUVENTUDE DE CECÍLIA MEIRELES E SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

FROM CHILD TO CRIATION: CHILDREN´S AND YOUTH LITERATURE OF CECÍLIA MEIRELES AND SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

PRALOM BOONRUSSAMEE

RESUMO

Com o presente trabalho propomo-nos contribuir para a reflexão sobre o conceito de literatura para a infância e juventude. A especificidade do uso da linguagem nos textos dirigidos a crianças constitui um dos problemas debatidos. Nesse domínio, esta investigação propõe-se compreender a importância que as autoras estudadas dão à linguagem que usam, e o modo como as ideias de literatura para a infância que defendem se expressam nas respectivas obras. Estabelecendo uma aproximação da escrita de Cecília Meireles e de Sophia de Mello Breyner Andresen, examinaremos a criação literária focando-nos no recurso ao elemento jogo à luz da teoria do brincar e do conceito de espaço potencial de D.W. Winnicott e do conceito de jogo de J. Huizinga. Orientadas pela intenção didática, ambas as poetas potenciam nas respetivas obras a linguagem poética. A valorização da sonoridade, ritmo e rima de Cecília e a utilização do elemento maravilhoso concretizado pela linguagem narrativa figurada de Sophia revelam a resignificação das formas das tradições orais inspiradoras. A inventividade parte principalmente da adequação da natureza abstrata das mensagens, à competência linguístico-literária dos leitores sem infantilização da linguagem. Os recursos expressivos permitem apresentar a nova conceção da infância como fase em que o ser tem imaginação criativa capaz de descobrir e assimilar as experiências postas à disposição. Ambas apresentam convergências temáticas no que diz respeito à conceção da infância como fase da vida em que o ser é dotado de imaginação criadora, à valorização do brincar/ jogo infantil e à religação da criança-homem à natureza. Com as suas obras, iniciam as crianças na poesia e na literatura.

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ABSTRACT

This dissertation aims to contribute to the reflection on the concept of Children´s and Youth Literature. The specificity of the use of the language in the texts directed to children constitutes one of the problems debated. In this field, this research intends to understand the importance that the authors studied give to the language they use, and the way in which the ideas of children´s literature that they defend are expressed in the respective works.In approaching the writings of Cecilia Meireles and Sophia de Mello Breyner Andresen, we examine the literary creation focusing on the game element in the light of the theory of play and the concept of potential space of D.W. Winnicott and game concept of J. Huizinga. Guided by didactic intention, both poets leveraged on poetic language in their works. Cecelia’s valorisation of sonority, rhythm and rhyme and Sophia’s utilization of the wonder element implemented by figurative narrative language reveal the reframing of the forms inspired by oral traditions. Their inventiveness stems mainly from the sufficiency without infantilizing the language to the linguistic-literary competence of readers and the abstract nature of messages. The expressive resources allow us to present the new conception of childhood as beings with creative imagination capable of discovering and assimilating the experiences made available. Both present thematic convergences regarding the conception of childhood as beings with creative imagination, of the valorization of child play and the reconnection of the child-man to nature. With their works, they start children in poetry and literature.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura para a infância e juventude, Poesia infantil, Cecília, Sophia

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Índice

Introdução 2

Metodologia 5

Brincar, jogo e brinquedo 6

A poesia e a educação da infância 10

Constituição do corpus 13

Parte I - Cecília Meireles 14

Capítulo I – A experiência como fundamento da escrita literária para a infância e

juventude 15

1. Evocação da infância 15

1.1 A poesia e ligações com Portugal 16

2. Pensamento da infância nas práticas destinadas a crianças 18

3. Livros para crianças e infância autobiografada 21

4. A literatura infantil e o “livro descoberto” 24

Capítulo II - Ligação, separação e inventividade 29

1. Poesia: a solução 29

1.1 Sonoridade, ritmo e rima 29

2. De “impôr” a “pôr à disposição” 43

2.1 O brincar 46

2.1.1. Nostalgia criativa: o brincar e as vozes 46

2.1.2. Experiências lúdicas e experiências seletivas em Olhinhos de Gato,

Giroflé, giroflá e “Figurinhas II” 49

2.1.3. O brincar, o jogo e a brincadeira infantil e a representação da infância 57

2.1.4. Devaneios: entre o eu e o outro 61

2.1.5. O brincar, o jogo e a brincadeira infantil: futilidade ou seriedade? 66 2.2 Natureza assombrada: da reflexão do tempo de infância à (re)ligação da

criança (homem) à natureza. 70

2.2.1 Da reflexão 70

2.2.2 (Re)ligação da infância à natureza 74

2.2.2.1 Aproximação 78

2.2.2. Captação pelos sentidos, a procura e o encontro 79

2.2.3 A alegria da contemplação 84

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2.3 Outros temas 89

Parte II – Sophia de Mello Breyner Andresen 108

Capítulo III – A experiência como fundamento da escrita literária para a infância e

juventude 109

1. Evocação da infância 109

2. Dimensão interventiva e função didática da arte 110

3. Problematização da literatura para a infância e juventude 114

Capítulo IV – Ligação, separação e inventividade 117

1. O culto da oralidade: opção consciente 117

1.1 A narrativa poetizada 121

2. Pôr à disposição 126

2.1 A natureza da infância e a infância na natureza 127

2.2 Evocação da infância 130

2.3 A natureza 131

2.4 Injustiça e desigualdades sociais 136

2.5 A justiça 143

2.6 Vida e viagem 144

2.7 A amizade e o amor 147

2.8 Arte, poesia e poeta 150

2.9 Transmissão da sabedoria 152

Conclusão 159

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1

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2

Introdução

Pretendemos estabelecer no nosso trabalho uma aproximação da escrita para a infância e juventude nas obras de Cecília Meireles e de Sophia de Mello Breyner Andresen, no que diz respeito ao recurso ao jogo, ao brincar e ao brinquedo dirigidos à infância, tendo em vista a (re) ligação da criança à natureza, numa perspetiva iniciada por Jean-Jacques Rousseau.

A investigação debruça-se, em primeiro lugar, sobre textos autobiográficos das escritoras, procurando estabelecer a importância da auto-ficcionalização da infância na escrita de ambas para o público mais jovem, nomeadamente nos textos que interligam certas vivências lúdicas a certas ligações com pessoas e lugares. Procederemos em seguida à descrição analítica do percurso de cada autora enquanto escritora de livros para crianças; serão apresentadas, neste ponto, as ações cívicas em que participaram em outras áreas ligadas às questões da infância, bem como, e principalmente, a reflexão em torno do conceito e das particularidades da literatura para a infância e juventude (autor, texto e leitor), sublinhando as considerações sobre a relação da criança com a poesia e o lugar desta na obra das autoras. Sublinha-se que para ambas as autoras a poesia nasce na infância e essa memória permanece ao longo da vida, sendo, por conseguinte, o contacto das crianças com a poesia uma base essencial da educação como desenvolvimento das capacidades criadoras.

O argumento central da nossa investigação vem da conjugação da leitura de textos sobre a escrita literária para a infância das duas autoras com a leitura dos livros que escreveram nesse campo à luz de teorias e conceções do brincar, jogo e brinquedo. Pretendemos mostrar a utilização do elemento jogo na criação, quer na representação da infância, quer na religação desta e do homem à natureza. A valorização desses elementos ocorre em ambas as escritoras, quer através do recurso a eles na escrita, quer através da sua tematização, que constitui igualmente um apelo à poesia e à literatura como experiências fundamentais do humano. Mostraremos, por outro lado, como certas diferenças a nível temático e de recursos expressivos correspondem a maneiras diferentes de conceber a infância e de se relacionar com ela.

A nossa reflexão e leitura multidisciplinar assume como importante base de apoio a leitura de Olhinhos de Gato e de Giroflé, giroflá, de Cecília Meireles, onde se

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3 referem as múltiplas modalidades do jogo praticadas na infância, no seu longo percurso de “brincar”, e no recurso a elas para conseguir comunicar com a infância escrevendo. Em relação à obra de Sophia, a relevância do “brincar” na efabulação da maior das suas narrativas não é tão imediatamente notória, surgindo a infância sobretudo através da construção de personagens que exemplificam comportamentos infantis e/ou que se relacionam com a tradição oral para a infância. No entanto, em Os

ciganos, um conto inacabado, o recurso ao jogo de vertigem chama a atenção para

uma forma de construção relacionada com o brincar.

A investigação sobre a literatura para a infância e juventude e o seu lugar no sistema literário teve nas últimas décadas um grande incremento, quer em Portugal e no Brasil, quer a nível mundial. Essa investigação contribuiu para a construção de um campo de estudos inovadores e para a sua institucionalização. Em Portugal, integra-se nesse campo específico a reflexão de autores consagrados da literatura nacional, como é o caso do poeta Manuel António Pina, também ele autor de livros para crianças. Salientamos ainda a produção académica nessa área, realizada em conferências, colóquios e teses universitárias. Dentre as questões pertinentes desse campo, que têm sido alvo de debate, dá-se conta nesta tese de aspetos considerados relevantes para o seu objeto de estudo. Também no Brasil, se regista um grande dinamismo da produção e da problematização deste modo de constituição da literatura, colocado em relação com o que seria este conceito, sem ignorar as suas relações com outros campos de estudos, que também contemplam a questão de infância.

Dado que a compreensão da infância se reparte por vários domínios de estudo, como a Psicologia, a Sociologia e a Pedagogia, as suas contribuições teóricas e conceituais são indispensáveis para a compreensão da literatura dirigida à infância, contribuindo para novas práticas criadoras e novas teorias, no que toca ao corpo textual entendido como trabalho de linguagem. Essa linguagem não ignora que há ideias que o precedem, vindas da literatura e dos hábitos, mas que a escrita enquanto tal não pretende ser ilustração já feita, mas criaação de algo novo.

A natureza da literatura para crianças – tópico de debate e discussão constante dentro e fora do campo da sua produção nos dois países de expressão portuguesa e em parte partilhando as mesmas tradições literárias – não se pode explicar sem se ter noção do aparecimento da literatura e da função socializadora que lhe foi atribuída enquanto produto cultural. Se por um lado o conceito de infância favoreceu o

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4 surgimento da problematização da literatura para a infância, o facto de esta muitas vezes se não libertar da finalidade inicial, dificulta por outro lado o seu conhecimento e reconhecimento social enquanto forma de arte. Dirigir-se à criança como um ser em formação e com uma compreensão específica da realidade, leva alguns criadores a negligenciar a dimensão literária, adotando uma linguagem pueril e infantilizante, bem como menosprezando as capacidades da criança e a possibilidade de as estimular através da solicitação da imaginação. Nas discussões e debates em torno da designação da concepção deste modo de escrita literária, as reações contra a atitude negligente e redutora da escrita para a infância constituem um dos aspetos decisivos de que se dará conta na presente tese.

O conceito de literatura para a infância e juventude permanece por definir, o que, o nosso entender, tem não só a ver com o conceito de infância, que não é delimitável, e com a função que se atribui aos livros para crianças, mas também com a própria impossibilidade de delimitar o conceito de literatura. O presente trabalho propõe-se contribuir para a reflexão sobre esse problema a partir do estudo de obras em que fique evidente que a “função educativa” da literatura para a infância não pode consistir na inculcação de conhecimentos e comportamentos, mas sim no desenvolvimento das capacidades de leitura de que a imaginação e o raciocínio são constituintes imprescindíveis.

Na aproximação da criação destinada à infância das duas escritoras, Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen, dar-se-á especial relevância à preocupação com o destinatário e aos meios de estabelecer a comunicação com eles, sem os ignorar e desvalorizar. Ambas as escritoras são poetas, com vasta produção literária em verso e em prosa e ocupam um lugar consagrado nas literaturas nacionais. Nasceram e foram educadas em contextos socioculturais diferentes, porém partilharam as mesmas tradições literárias peninsulares, com que contactaram na infância. Moldaram conceções da infância a partir da sua própria infância e das vivências lúdicas que convocam na escrita para o público mais novo. Elas são um exemplo de que é a qualidade dos textos que determina o seu lugar “dentro” ou “à margem” do sistema literário, e não um conjunto de regras ou tipo de linguagem a que se devessem conformar. Ambas deixaram considerações sobre a literatura para a infância e juventude, bem como reflexões sobre o ato criativo encarado como um desafio que atravessa o seu percurso de escritoras, no qual se cumprem motivações

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5 sociais que passam pela investigação de novas formas, a partir das memórias da infância e da valorização da dimensão lúdica que elas evocam. Esse desafio dá lugar a propósitos de aprendizagem para comunicar com a infância, os quais constituem, muitas vezes, pontos de partida para uma re-aprendizagem da infância, num sentido universalizante e, ao mesmo tempo, pretextos para a evocação de memórias.

Metodologia

Através dos textos autobiográficos e de elementos da biografia, traçaremos o percurso literário das duas poetas enquanto escritoras de livros para crianças: a visão e as reflexões de cada uma sobre a comunicação com a infância, a natureza dos seus destinatários e as exigências do conhecimento psicológico que se lhes colocam como desafio. Analisaremos as questões que mais as preocupam, nomeadamente, a da linguagem escrita e a solução adotada na comunicação com destinatários específicos que são as crianças.

No caso de Cecília Meireles, daremos atenção às suas ações ligadas à questão da infância, principalmente, a educação e a literatura, presentes em textos de várias naturezas, sobretudo em Problemas da literatura infantil e nos textos recolhidos e recentemente editados em Crônicas de educação 1-5. Desses textos, salientaremos o seu conceito de literatura para a infância e juventude e a defesa deste como parte da literatura universal, bem como a defesa da fusão de ciência e arte na escrita.

Em relação a Sophia, daremos particular atenção às suas ações cívicas no campo político e cultural do seu tempo e às suas narrativas para crianças como uma forma de intervenção que consiste em contribuir para a cultura através da atenção à formação desde a infância, atribuindo à escrita poética, tal como à restante arte, uma função didática desfuncionalizadora, isto é, que impede que a formação seja formação para a função. Integram-se, nessa perspetiva, as suas considerações sobre os livros infantis, sobre a relação com o exterior na iniciação à cultura e outras questões em torno da relação autor-texto-leitor. A nossa análise incidirá sobre depoimentos da autora, metatextos, textos extraliterários e a antologia Primeiro livro de poesia, para além de outros textos dispersos.

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6 A apresentação das preocupações atrás referidas serve de base para acompanhar o jogo como ato criativo na obra das duas escritoras. O percurso de Cecília abrange um período mais amplo, desde a publicação de Criança meu amor, em 1923, à edição de Ou isto ou aquilo, em 1964, e a sua escrita reparte-se em três géneros. Pretendemos fazer uma apresentação sucinta, para uma visão global da sua escrita, sobre as tendências e recorrências no tratamento temático e o uso de recursos expressivos. Em relação à obra de Sophia, que aqui se carateriza no conjunto, incluindo os dois últimos títulos editados postumamente, pelo culto do conto de fadas, salientamos o recurso à linguagem narrativa figurada em A Fada Oriana (1958), O

Cavaleiro da Dinamarca (1964) e O Rapaz de Bronze (1965).

Brincar, jogo e brinquedo

Para uma análise interpretativa do corpus, focaliza-se o brincar e o jogo enquanto atos criativos das duas escritoras na comunicação literária com a infância e o lugar dos mesmos enquanto comportamentos da realidade vivencial humana na construção textual, mais precisamente na representação da infância. Para concretizar a nossa proposta de análise e reconhecendo a polissemia e a multiplicidade de abordagens do jogo, recorremos à teoria do brincar de Winnicott (1896-1971), no campo psicanalítico e ao conceito de jogo proposto por Huizinga (1872-1945), no campo filosófico. Sendo provenientes de dois campos de estudo distintos, ambos valorizam o brincar/ jogo e o brincar/jogo infantil.

Winnicott desenvolve a teoria do brincar a partir dos conceitos de fenómenos transicionais e de objetos transicionais, dois termos introduzidos pelo pediatra/ psicanalista para descrever um conjunto de experiências do bebé na fase da evolução psíquica. Nesta fase da passagem da fusão com a mãe à separação desta, o psicanalista atribui à mãe suficiente boa,1 enquanto meio ambiente, um papel vital. Segundo ele, ao atender à necessidade biológica do bebé, da dedicação completa à adaptação gradativamente reduzida, a mãe está a iniciar o bebé a “develop a capacity to

1

Termo utilizado por Winnicott para designar o principal responsável pelos cuidados do bebé e que pode ser a mãe biológica ou um substituto desta.

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7 experience a relationship to external reality, or even to form a conception of external reality.”2

Com se verifica, a primeira relação com o mundo, mais precisamente com o outro, que neste caso é a mãe, indica que a capacidade do homem de se relacionar com a realidade externa não é inata, mas resulta do trabalho do meio ambiente. Fazem parte fundamental desta relação os elementos a ilusão e a desilusão.

Para lidar com a angústia, que é possível surgir nesta fase, o bebé utiliza um objeto concreto que descobre no mundo real. Neste investe a sua fantasia, vendo-o como o seio da mãe na sua ausência. O uso do objeto que Winnicott chama objeto transicional apresenta-se com o aspeto paradoxal, pois “symbolizes the union of the two separate things, baby and mother, at the point in time and space of the initiation of their state of separateness.”3

Com a passagem do tempo, o objeto transicional “loses meaning, and this is because the transitional phenomena have become diffused, have become spread out over the whole intermediate territory between ‘inner psychic realty’ and ‘the external world as perceived by two persons in common’, that is to say, over the whole cultural field.”4

Para Winnicott, o brincar é derivado dessa primeira experiência criativa e desenvolve-se em várias fases. A categorização do brincar torna este termo mais abrangente e vemos que brincar faz parte da vida humana. O psicanalista atribui a origem da criação artística ao brincar e considera a experiência estética com a arte como uma das formas mais evoluídas do brincar.

Todas ocorrem no mesmo espaço, localizável se utilizamos o conceito de espaço potencial que, no início, fica entre o bebé e a mãe: “I realized, however, that

play is in fact neither a matter of inner psychic nor a matter of external reality.”5 Esse espaço conceitual constitui a terceira área da vida humana. É a área de experiência criativa, área de brincar, área de imaginação que segundo o psicanalista “is a highly variable factor (from individual to individual), whereas the two other locations –

2

D. W. Winnicott, Playing and reality (London: Routledge, 1997), 11.

3

Idem, “The location of cultural experience,” in ibid., 96-97.

4

Ibid., 5.

5

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8 personal or psychic reality and the actual world – are relatively constant, one being biologically determined and the other being common property.”6

A relação entre o objeto transicional e o livro enquanto artefacto entende-se se atendermos às palavras de Rudnytsky: “The intermediate quality of transitional objects between fantasy and reality foreshadows that works of arts, which likewise partake simultaneously of reality and illusion.”7

No campo filosófico, Huizinga defende que o jogo é mais antigo do que a cultura, refere, mais precisamente que a cultura tem origem no jogo. Examina o elemento jogo em várias formas de manifestações culturais entre as quais inclui a poesia no sentido lato. Tal como Winnicott, o filósofo valoriza o elemento jogo no conhecimento do mundo. No seu exame, o jogo que conota originariamente de “futilidade” passa a ser encarado como algo “útil”. Se a “utilidade” sugere a realidade do dia a dia, o jogo é algo que não está distante da realidade. O jogo aparece assim em Huizinga com valor, mais precisamente com uma função na construção social como a raiz da cultura.

Define o jogo como atividade livre que não tem nada a ver com a vida quotidiana e que se desenvolve no tempo e no espaço. O jogo é governado por um ambiente próprio e com uma ordem temporária. Todos os jogos têm as suas regras que podem ser explícitas ou implícitas. Ao contrário de que se costuma conceber “play is not serious”, Huizinga propõe que “play is non-seriousness”. Para ele “the contrast between play and seriousness proves to be neither conclusive nor fixed.”8

Tal como Winnicott, que atribui a origem da arte e a experiência artística à primeira experiência criativa do ser humano, Huizinga, embora foque o exame do elemento jogo nas manifestações culturais, valoriza o brincar/ jogo infantil. Para elucidar a discussão, serve-se das caraterísticas do brincar/jogo infantil que na sua perspetiva, tal como o brincar dos animais, partilha as do jogo em geral. Dentre elas são de realçar a seriedade, ou o não afastamento da realidade e o predomínio da imaginação, principalmente no faz de conta das crianças: “We know, however, that in

6

Ibid., 103.

7

Peter Lang Rudnytsky, introduction to Transitional objects and potential spaces: Literary uses of D.W. Winnicott, ed. Peter Lang Rudnytsky (New York: Columbia University Press, 1993), xii.

8

J. Huizinga, Homo ludens: A study of the play-element in culture (Boston: The Beacon Press, 1955), 5.

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9 child-life performances of this kind are full of imagination. The child is making an image of something different, something more beautiful, or more sublime, or more dangerous than what he usually is.”9

Quanto à relação do jogo com a poesia, o filósofo aponta a função lúdica da poesia, identifica o espaço lúdico da criação poética e o caráter ilógico da linguagem poética, que distingue da linguagem do dia a dia:

Poiesis, in fact, is a play-function. It proceeds within the play/ground of the mind, in a

world of its own which the mind creates for it. There things have a very different physiognomy from the one they wear in “ordinary life”, and are bound by ties other than those of logic and causality. If a serious statement be defined as one that may be made in terms of waking life, poetry will never rise to the level of seriousness. It lies beyond seriousness, on that more primitive and original level where the child, the animal, the savage and the seer belong, in the region of dream, enchantment, ecstasy, laughter.10

Observa o autor que enquanto outras formas de manifestações culturais já não estão na esfera lúdica onde nascem, a poesia nasce nessa esfera e nela permanece11.

A observação de Huizinga sobre as caraterísticas agonísticas nos primórdios da criação poética - à semelhança da criação poética com competição - e da linguagem poética permite-nos conhecer o universo literário. Tal como o espaço lúdico, que é governado por regras deliberadamente estabelecidas pelo poeta, o universo literário distingue-se do mundo real. A linguagem poética usa vários recursos linguísticos, designadamente figuras, imagens, as quais a distinguem da linguagem do dia a dia e fazem com que não seja acessível para todos. Enquanto a linguagem referencial tem limitações, a linguagem literária tem maior capacidade na concretização do abstrato:

This art-language differs from ordinary speech in that it employs special terms, images, figures, etc., which not everybody will understand. The eternal gulf between being and idea can only be bridges by the rainbow of imagination. The word-bound concept is always inadequate to the torrent of life. Hence it is only the image/making or figurative word that can invest things with expression and at the same time bathe them in the luminosity of ideas: idea and things are united in the image.12

9 Ibid., 13-14. 10 Ibid., 119. 11

As outras formas mencionadas são a religião, ciência, direito, guerra e política que na sua perspetiva “gradulally lose touch with play, so prominent in the earlier phases, the fuction of the poet still remains fixed in the play-sphere where it was born.

12

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10 A utilização de recursos linguísticos, principalmente de imagens, dá ao texto a plurissignificação de sentido. Daí a variabilidade da qualidade da experiência com o texto literário, o que se prende intimamente com a competência de várias naturezas dos leitores. Para compreensão do nível mais profundo é necessário um trabalho de descodificação – ou seja, a interpretação, o que implica a imaginação. Desse modo, a experiência com o texto poético, com representação por imagens, é descoberta, não imposta, como a faz a linguagem referencial ou didática, tal como sucede com o objeto transicional, que é descoberto e apropriado pelo bebé. A experiência pode ser significativa para um e não para outro. Tem que ser o leitor quem descobre e que assimila. Os textos criam espaço potencial, espaço conceitual, proposto por Winnicott:

Winnicott´s concept of the transitional object not only lends itself to the interpretation of content images in narratives, but also to the text itself. Both author and reader can claim the text as transitional object. Small children do indeed appropriate a book as object – loving it, adding to it, mutilating it.13

A partir dessas considerações, vemos que a representação por imagens é outro nível de representação, superior à representação mimética. Como vemos, o caráter ilógico da linguagem poética não a impede de ser escolhida para ser o veículo da transmissão da experiência como ideias, noções abstratas e valores. Desempenha um papel importante na sociedade arcaica. A função inicial é utilitária, não estética:

In archaic culture the language of poets is still the most effective mean of expression, with a function much wider and more vital that the satisfaction of literary aspirations. It puts ritual into words, it is the arbiter of social relationships, the vehicle of wisdom, justice and morality.14

A poesia e a educação da infância

Segundo Huizinga, a poesia, tal como o mito e a lenda, tem originariamente funções lúdicas: “Poetry, in its original culture-making, is born in and as play - sacred

13 Hunt, ob. cit., 94. 14

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11 play, no doubt, but always, even in its sanctity, verging on gay abandon, mirth and jollity.”15

A poesia assemelha-se ao jogo tanto em termos da estrutura exterior, as caraterísticas formais, como da interior. O seu espaço carateriza-se pela ordem e ambiente próprios resultantes de arranjos e da manipulação de elementos estruturantes da língua. Por isso, para o filósofo, é possível dar à poesia a mesma definição dada ao jogo. Descritas as carateristicas do jogo, Huizinga aponta como caraterísticas da criação poética nos seguintes termos:

The rhythmical or symmetrical arrangement of language, the hitting of the mark by rhyme or assonance, the deliberating disguising of the sense, the artificial and artful construction of phrases-all might be so many utterance of the play spirit.16

Quanto à estrutura interna, para o filósofo, na criação artística a atividade mental do poeta, em qualquer que seja o género, é guiada pela atitude lúdica na criação de tensão provocando um efeito nos leitores: “In the turning of a poetic phrase, the development of a motif, the expression of a mood, there is always a play-element at work.”17

As afinidades da poesia com o jogo examinadas por Huizinga permitem-nos vislumbrar a potencialidade pedagógica/ valores pedagógicos da poesia e a possibilidade de ela ser utilizada com as crianças na fase da aquisição da linguagem. Se a configuração da poesia torna a experiência com ela mais difícil do que a com a narrativa, a mesma estimula a perceção sensorial de quem a lê. A reflexão de Bordini sobre a natureza da criação poética confirma a nossa observação:

O poeta é conduzido pelos limites gráficos e pelo próprio reducionismo da linguagem, a recortar os elementos do mundo a ser criado e a dispô-los no arranjo mais econômico para o efeito intencionado. Surgem, por isso, pontos vazios, lacunas em que a voz silencia. Tais vazios serão preenchidos automaticamente pelo leitor, uma vez que sua perceção o habituou aos quadros completos. O preenchimento dessas lacunas se faz mobilizando os conteúdos anímicos, dados da memória e operações intelectuais, afetivas e volitivas, sem muita consciência do sujeito em relação a tal processo.

Esse caráter inacabado do mundo ficcional, portanto, mesmo que a criança não o perceba, a incita a construir o seu imaginário e a acioná-lo e transformá-lo, colaborando para que ela se reconheça como um ser que pensa, que sofre ou se alegra,

15 Ibid., 122. 16 Ibid., 132. 17 Ibid, 132.

(20)

12

que deseja e que possui um acervo de lembranças com as quais pode enfrentar situações problemáticas novas. 18

Como vemos, a reflexão da estudiosa sugere a distinção do universo literário do universo do mundo real e indica-nos que a leitura da poesia aciona a atividade mental, requer mais esforço do que a leitura da narrativa. A poesia cria o espaço potencial, proporcionando a experiência que tem que ser “descoberta” pelos leitores. Cria, por isso, leitores ativos, não passivos.

É de não esquecer a relação estreita do jogo com a música, que na opinião de Huizinga é mais estreita do que a do jogo com a poesia:

Play, we found, was so innate in poetry, and ever form of poetic creation utterance so intimately bound up with the structure of play that the bound between them was seen to be indissoluble. The same is true, and in even higher degree, of the bond between play and music.19

Esta ligação sugere a comunicabilidade da poesia com ritmo e musicalidade com o mundo da emoção das crianças. Embora estejam ainda na fase de aquisição da linguagem, o que implica limites em termos da competência linguística e literária, as crianças já são sensíveis aos elementos sonoros estruturantes da poesia. Estes quando estão arranjados artisticamente podem provocar um efeito sonoro e rítmico prazeroso capaz de as atrair e divertir.

Os recursos linguísticos da poesia se, por um lado, dão um caráter ilógico e fantasioso à linguagem poética afastando as crianças da realidade, por outro, respondem às exigências psicológicas delas. Sendo linguagem do mito, a personificação, que é instrumento da metáfora e da alegoria, consegue, por exemplo, falar com a mente infantil, idêntica à do homem criador do mito, caraterizada pela perceção subjetiva do mundo e dos fenómenos da vida. Paradoxalmente, o seu caráter ilógico não a impede de ser utilizada para comunicar o que é sério: a transmissão de noções abstratas como ideias, filosofia de vida e valores ético-morais, enquanto a não literalidade da linguagem poética incentiva a fantasia e a imaginação. Quando é apresentada às crianças em formação, a linguagem poética é uma iniciação à poesia e à literatura.

18

Maria da Glória Bordini, Poesia infantil (São Paulo: Ática, 1991), 35-36.

19

(21)

13

Constituição do corpus

Dividimos o trabalho em duas partes, a primeira é dedicada à criação literária de Cecília Meireles e a segunda à de Sophia de Mello Breyner Andresen. Cada parte é composta por dois sub-capítulos: “Experiência como fundamento da escrita para a infância e juventude” e “Ligação, separação e inventividade”, respetivamente. Procuraremos, no segundo sub-capítulo, demonstrar a repercussão das ligações com as tradições literárias do fundo comum e de que modo ambas se relacionam com as formas inspiradoras das quais resulta a inventividade. Neste mesmo capítulo demonstraremos quais são as experiências do mundo comuns e divergentes que as autoras “põem à disposição” dos leitores e com que processos criativos os põem a brincar formando leitores ativos, que iniciam, em simultâneo, na poesia e na literatura. A criação literária para a infância e juventude de Cecília Meireles reparte-se em três géneros: narrativo, lírico e dramático. São categorizados dois livros didáticos,

Criança meu amor (1923) e Rute e Alberto resolveram ser turistas (1945); duas

narrativas autobiográficas, Olhinhos de Gato (1938) e Giroflé, giroflá (1956); dois livros de encomenda, Rui – pequena história de uma grande vida (1949) e A festa das

letras (1937) e um livro de poesia, Ou isto ou aquilo (1964). Do corpus constará Criança meu amor, Ou isto ou aquilo, A festa das letras (1937) e O menino atrasado

(1966). Para salientar a importância das experiências lúdicas na infância de Cecília e a repercussão das mesmas na sua criatividade adulta, parece-nos essencial a leitura e a resignificação de Olhinhos de Gato e de Giroflé, giroflá, ambas narrativas autobiográficas não destinadas à infância mas sobre a sua infância.

Para além das narrativas muito estudadas como A Menina do Mar (1958), A

Fada Oriana (1958), A noite de Natal (1959), O Cavaleiro da Dinamarca (1964), O Rapaz de Bronze (1965), A floresta (1968), propomos a leitura de dois contos pouco

estudados de Sophia: O Anjo de Timor (2003) e Os ciganos (2013). Incluímos dois contos recriados dos contos tradicionais japoneses: A árvore e O espelho ou o retrato

(22)

14

(23)

15

Capítulo I – A experiência como fundamento da escrita

literária para a infância e juventude

1. Evocação da infância

Cecília Meireles nasceu em 7 de novembro de 1901 no Rio de Janeiro, ficando órfã desde cedo, pois perdeu o pai três meses antes de nascer e a mãe aos três anos. Foi criada pela avó, viúva do lado materno, de origem açoriana, D. Jacinta Garcia Benevides, a quem deve a educação e o primeiro contacto com a poesia, bem como com as tradições populares portuguesas. Com fortes ligações com a terra de onde emigrou, a ilha de São Miguel, a avó é recordada pela neta como uma pessoa que “sabia muitas coisas do folclore açoriano, e era muito mística, como todos os de S. Miguel.”20 A sua avó então torna-se uma das duas contadoras de histórias que a influenciará nos seus escritos, sendo a outra chamada de Pedrina, a criada da mãe falecida, que é referida como uma pessoa que “sabia muito do folclore do Brasil, e não só contava histórias, mas dramatizava-as, dançava, e sabia adivinhações, cantigas, fábulas, etc..”21 Com ambas, Cecília manteve ligações afetuosas mais fortes como provam as evocações nostálgicas presentes na sua poesia e prosa, com destaque especial para os textos voltados para o público infantil.

A infância, segundo os depoimentos de Cecília, foi marcada pelo ambiente de morte, silêncio e solidão. Além dos pais, Cecília perdeu os três irmãos ainda crianças. Essas ausências, incluindo a do seu avô materno, são recordadas em vários trechos de

Olhinhos de Gato, a primeira narrativa autobiográfica das suas memórias de infância.

Com as experiências recorrentes da morte, Cecília conheceu muito cedo a “noção ou sentimento da transitoriedade de tudo”22 que segundo a declaração da própria constituiu um dos elementos formadores da sua personalidade. O silêncio e a solidão são encarados pela autora como duas condições positivas, pois aproximaram-na relativamente cedo de leituras variadas, formando assim um ambiente favorável e

20

Apud Darcy Damasceno, introdução geral à Cecília Meireles. Obra poética (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977), 61.

21

Ibid.

22

(24)

16 contribuidor para a criação literária. Esta é descrita por Cecília da seguinte forma: “não [era] mais do que o desenrolar natural de uma vida encantada com todas as coisas, e mergulhada em solidão e silêncio tanto quanto possível.”23 Graças ao amor e à dedicação da avó, a infância não deixou de ser uma fase mais feliz da vida da autora. O ambiente de ternura e as vivências com a diversidade das formas das tradições orais que inspiram os primeiros textos para o público mais pequeno estão registados em Olhinhos de Gato:

Se há uma pessoa que possa, a qualquer momento, arrancar da sua infância uma recordação maravilhosa, essa pessoa sou eu. Já principiei a narrativa dessa infância num pequeno livro de memória, aparecido numa revista portuguesa, como o título

Olhinhos de Gato. Mas há muito para contar.24

1.1 A poesia e as ligações com Portugal

As ligações de Cecília com Portugal, principalmente com os Açores, começam na infância, configurando-se, cremos, como a fase mais marcante da existência da poetisa, e perduraram ao longo da sua vida. Não se dissociam das ligações com a avó da origem açoriana e dos seus primeiros contactos com as tradições orais por esta transmitidas.

As ligações com a sua raiz portuguesa vieram a ser reforçadas pelo casamento aos 20 anos com Fernando Correia Dias, artista português natural de Penajóia, residente no Brasil, com quem teve três filhas. Segundo Arnaldo Saraiva, trata-se de um “relacionamento sentimental artístico-literário muito fecundo para os dois” dado que Correia Dias tinha “boas relações com muitos e importantes escritores e artistas de Portugal e do Brasil.”25 Com o marido, Cecília visitou Portugal pela primeira vez em 1934. Durante esta estada, fez duas conferências nas universidades de Lisboa e Coimbra: “O Brasil e a sua educação” e “Notícia da poesia brasileira”; e uma exposição intitulada “Batuque, samba e macumba”. De regresso ao Brasil, com

23

Cf. ibid., 57-68.

24

Apud Darcy, introdução, ob. cit., 58.

25

Arnaldo Saraiva, Correia Dias, esquecido e inesquecível - Artista de Portugal e do Brasil (Viseu: Câmara Municipal de Lamego, 2012), 53.

(25)

17 “triunfo absoluto” sobre o público português, como opinou Arnaldo Saraiva, Cecília ampliou e intensificou os contactos com o meio literário lusitano.

No decénio de 40, um dos períodos produtivos da poetisa, Cecília mantinha contactos com várias figuras do meio artístico-literário português. De algumas dessas relações, quer de nível interpessoal quer de nível profissional, Cecília deixou como vestígios (testemunhas) cartas e poemas a elas dedicadas. Segundo Domingues:

Algumas cartas dessa fértil correspondência que já vêm sendo estudadas no Brasil e em Portugal apontam a relevância desses documentos para uma compreensão mais abrangente das relações de Cecília Meireles com escritores portugueses.26

Uma amizade mais duradoura e fecunda foi a de Armando Côrtes-Rodrigues, poeta e etnólogo dos Açores, que deixou volumosa correspondência de dezoito anos com Cecília 27. Com o poeta/etnólogo, Cecília não só partilhou interesses em comum nos assuntos ligados às tradições populares, mas também conseguiu estreitar laços afetivos com a terra dos antepassados já estabelecidos pela avó. A convite do amigo açoriano, Cecília chegou a visitar pela primeira e única vez São Miguel, a terra ancestral, em 1951, depois da morte da avó. O seu discurso radiofónico à chegada à ilha foi fundamental porque nos mostrou essas ligações íntimas:

Se me perguntarem o que me traz aos Açores, apenas posso responder: a minha infância. A minha infância: o romanceiro e as histórias encantadas: a Bela Infanta e as Bruxas; as cantigas e as parlendas, o sentimento do mar e da solidão; a memória dos naufrágios e a pesca da baleia; os laranjais entristecidos e a consciência dos exílios. (…).

(…) Minha vinda a estas ilhas é como um regresso, uma visita familiar, um acto de ternura. Não desejaria que me recebessem como a uma escritora brasileira, por mais que me seja cara a terra onde nasci e onde tenho vivido: mas como a uma criança antiga que a poesia de S. Miguel nutriu, numa infância de sonho, no regaço de uma avó dolorida, heróica e nobremente sentimental.28

Cecília adotou e cultivou algumas formas da tradição literária portuguesa. Arnaldo Saraiva, na sua apresentação de Cancioneirinho de Moledo da Penajóia

26

Ana Maria Domingues de Oliveira, “Diálogo com a tradição portuguesa,” in Ensaios sobre Cecília Meireles, org. Leila. V. B. Gouvêa (São Paulo: Humanitas/ Fapespe, 2007), 188.

27 As cartas de Cecília a Armando Côrtes-Rodrigues, entre 29 de janeiro de 1946 a 3 de março

de 1964, estão reunidas no livro A Lição do poema: cartas de Cecília Meireles a Armando Côrtes-Rodrigues, organizado por Celestino Sachet.

28 Palavras proferidas ao microfone da emissão do Clube Asas do Atlântico, do Aeroporto de

Santa Maria, em 23 de novembro de 1951, in Vítor de Lima Meireles, Cecília Meireles; aspectos para uma biografia (Ponta Delgada: EGA, 1998), 79.

(26)

18 (2012), uma composição de Cecília elaborada durante a sua visita a Penajóia, terra natal do marido, disse: “Cecília tinha o gosto do popular que herdara da avó açoriana, e, naturalmente, o gosto da poesia popular, que, tal como Pessoa, por várias vezes imitaria”.29 Alguns estudiosos da poesia ceciliana apontam as ligações de Cecília ao lirismo português e observam a proximidade temática das suas produções poéticas com as de alguns autores portugueses30. Esta proximidade explica a boa receção da obra da poetisa pelo público português, que conquistou relativamente mais cedo do que o brasileiro.

No que diz respeito à escrita para o público mais pequeno, a poesia das tradições orais que lhe foram transmitidas na infância repercutem-se nos primeiros textos poéticos reunidos em Criança meu amor (1923), bem como ao longo do seu percurso literário como escritora de livros para crianças.

2. Pensamento da infância nas práticas destinadas a crianças

Formada em Educação, Cecília começou logo após a conclusão do curso da Escola Normal, em 1917, a sua atividade profissional de professora do ensino primário. Paralelamente às atividades de docente e à carreira literária, que estreou em 1919 com o Espectro, Cecília empenhou-se em várias questões relacionadas com a infância, designadamente a educação, a literatura infantil e a promoção da leitura.

Organizou com o marido, Correia Dias, a primeira biblioteca infantil no Brasil, em 1934, a qual continuou a dinamizar sozinha depois da morte do marido, nesse mesmo ano, após o regresso de ambos da primeira visita de trabalho a Portugal. As experiências da organização da biblioteca e algumas das visões de Cecília sobre a comunicação com a infância (autor, texto e leitor) figuram em assuntos de debate e reflexões nas páginas dos jornais brasileiros nos decénios de 30 e 40 e seriam reiteradas em Problemas de literatura infantil, título de referência para estudiosos da literatura infantil, tanto em Portugal como no Brasil.

29

Saraiva, ob, cit., 61.

30 Estudando as relações da poesia ceciliana com a lírica portuguesa, Maria Domingues de

Oliveira aponta muitas proximidades poéticas entre a obra de Cecília Meireles e a produção medieval, toda, até à contemporaneidade, dando como exemplos as afinidades temáticas da poesia de Cecília com a de David Mourão-Ferreira e Natércia Freire.

(27)

19 Cecília colaborou, entre 1930 a 1933, na coluna “Comentário” da Página de Educação do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, escrevendo diariamente sobre problemas de educação31. Entre 1941 e 1943, escreveu a coluna “Professores e estudantes” do jornal A Manhã do Rio de Janeiro.32 A sua colaboração com esse jornal foi, a partir de 1942, dominada por questões relativas ao folclore.33

Segundo Leodegário A. de Azevedo Filho, estudioso responsável pelo planeamento da série Cecília Meireles - Obra em prosa, as crónicas da primeira fase evidenciam “o espírito de luta de Cecília em defesa dos princípios sustentados no famoso Manifesto dos Pioneiros da Educação da Escola Nova, enquanto as da segunda fase tratam de 'tema rico e variado'”.34 O critério de organização distinto do adotado, nos 4 volumes precedentes, permite o acompanhamento do amadurecimento da ideia pedagógica de Cecília Meireles. De entre 95 crónicas, nessa fase mais madura, conseguimos localizar uma dezena de crónicas relacionadas com a infância, o que nos mostra, como observa um dos seus editores, que Cecília está “sempre atenta à educação da infância, na família e na escola”.35

Dentre os 14 núcleos temáticos presentes em Crônicas de educação 1, 2, 3 e 4, neste capítulo, concentramo-nos nas crónicas em que são debatidas as questões sobre a educação da infância, da adolescência e da juventude. Sobre a educação, Cecília dirigiu as suas mensagens aos pais e aos educadores. Segundo a educadora/cronista, tanto de uns como de outros, exige-se um comportamento modelar e um trato com compreensão e respeito para com a infância. Compete à família a criação de uma atmosfera física e moral favorável à educação doméstica e aos educadores o cuidado de tratar os educandos com igualdade, evitando quaisquer práticas preconceituosas, sobretudo para com as crianças humildes. Atendendo à introdução da renovação do ensino fundamentado nos princípios da Escola Nova, a autora chamou a atenção para o trabalho de aproximação dos pais aos professores, do lar à escola, vendo nele a

31

As crónicas da primeira fase estão selecionadas e reunidas em Crônicas de educação 1, 2, 3 e 4, distribuídas em 14 núcleos temáticos.

32

As crónicas escritas entre 9 de agosto de 1941 a 29 de janeiro de 1942, estão selecionadas e organizadas cronologicamente em Crônicas de educação 5, quinto volume da série/coleção. A partir de 1942, a publicação é dominada pelas questões relativas ao folclore.

33 Leodegário A. de Azevedo Filho, “[Professores e estudantes],” in Crônicas de educação 5

(Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001), 1.

34

Ibid.

(28)

20 maneira de conseguir uma organização do ensino mais unificado e consistente. Sob o ponto de vista de quem conhecia a realidade do ensino básico brasileiro, e com um tom compreensivo, Cecília deixou para os profissionais dessa área algumas sugestões práticas, bem como algumas formas de aproximação e cooperação entre o lar e a escola. Não deixou, evidentemente, de criticar algumas antigas práticas e tratos, quer conscientes quer inconscientes, dos educadores e das escolas, que revelavam a falta de compreensão e respeito pelas crianças. Criticou também algumas propostas de atividades escolares inadequadas, que não beneficiavam as crianças. Apelou ao respeito pela diferença individual da criança.

São muitas as crónicas sobre a infância nas quais Cecília deixou transparecer a sua admiração e encanto por esta fase humana e pelo universo infantil. As peculiaridades do ser são refletidas do ponto de vista humanístico, mais do que do pedagógico ou do psicológico. Pondo em contraste, constantemente, a infância com a idade adulta, o “ser criança” e o “ser adulto”, Cecília exalta a primeira criticando algumas atitudes e antigas práticas dos adultos assumidas perante a infância. A partir das suas reflexões, conseguimos vislumbrar a atualidade e a realidade das crianças brasileiras do seu tempo de que se serviu como ponto de partida para os seus debates e discussões. O recurso às suas experiências empíricas ou a simples cenas infantis do dia-a-dia mostra o olhar atento, observador e questionador de Cecília sobre o ser criança, levando o público a refletir sobre a natureza da infância, desde as caraterísticas mais simples e visíveis às mais complexas, contudo observáveis, como, por exemplo, a perceção, o pensamento e a imaginação. Com a sua contemplação reflexiva, constante e contínua, Cecília atuou como porta-voz das crianças brasileiras do seu tempo.

Estão agrupadas sob o núcleo temático “Adolescência, juventude e educação 15” crónicas nas quais Cecília debateu as caraterísticas da “alma da adolescência”, de uma fase transitória, e dirigiu sugestões aos responsáveis pela educação e ensino sobre o tratamento dos adolescentes e dos jovens. Neste espaço, relativamente menor quando comparado com o dedicado às questões sobre a infância, um pouco por todas as crónicas, tal como fez quando se debruçou sobre esse tema, a autora sublinha a necessidade de conhecer e de compreender a juventude e tratar dela com respeito.

Segundo Cecília, a alma da adolescência é a alma em transição durante a qual a personalidade se vai formando. Nesta fase marcada pelas hesitações, incertezas,

(29)

21 inquietude, e naturalmente por problemas derivados do crescimento, os jovens precisam obter dos adultos orientação, compreensão e tolerância, além de carinho e delicadeza.

3. Livros para crianças e infância autobiografada

Paralelamente à criação poética, numerosos textos jornalísticos sobre a educação, folclore e viagens, Cecília escreveu cerca de seis livros para crianças e algumas peças de teatro. Embora em número bastante reduzido, comparando com a vastidão da sua poesia e prosa, estes escritos não deixam de ter relevância na totalidade da sua produção literária fértil e multifacetada.

Entre a escrita do seu primeiro livro, Criança meu amor (1923) e a do último,

Ou isto ou aquilo (1956), uma coletânea de poemas infantis, Cecília deixou,

entretanto, três títulos de encomenda e alguns pequenos textos dramáticos. Todos indicam que o nome de Cecília está associado à área da educação e à da literatura. Na lista de títulos encomendados, temos: A festa das letras (1937), do qual é coautora com o médico Josué de Castro; Ruy – Pequena história de uma grande vida (1949), biografia para jovens; e O menino atrasado (1966), uma peça de teatro para a infância.

Através das cartas dirigidas ao amigo açoreano, sabemos que Cecília escreveu, nos decénios de 40 e 50, o período mais fecundo da sua produção literária, algumas peças para teatro de fantoches e teatro de marionetas.36 O menino atrasado (1966) é

uma das duas únicas peças editadas. A outra é A Nau Catarineta (1946), peça folclórica para teatro de marionetas. Ambas terão sido escritas no decénio de 40 porque na missiva a Armando Côrtes-Rodrigues, Cecília escreveu “Parece que o teatro de bonecos vai recomeçar e querem montar a minha Nau Catarineta.”37

36

Na carta a Armando Côrtes-Rodrigues, 17 janeiro 1947, Cecília menciona uma peça intitulada Grão de areia e uma peça que ia escrever para o teatro de fantoches. Na carta LIII alude a uma peça intitulada O Ás de ouros.

37

Celestino Sanchet, org, A Lição do poema: cartas de Cecília Meireles a Armindo Cortês-Rodrigues, 1901-1964 (Ponta Delgada: Instituto Cultural, 1998), 102.

(30)

22 Publicado para integrar a “Coleção pedagógica” da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais, Problemas da literatura infantil (1951) reúne três conferências proferidas pela autora sobre a literatura infantil, com alguns pontos desenvolvidos e ampliados. Cecília dirigiu a obra aos responsáveis pela educação da infância – os pais, os substitutos dos pais, os educadores de infância, os bibliotecários e os interessados nas questões de promoção de leitura na infância – deixando-lhes muitas sugestões práticas para a promoção do gosto das crianças pela leitura domiciliária e na escola. A autora também se dirige aos bibliotecários e pais, relativamente à organização do ambiente da biblioteca infantil e à ministração e seleção de obras a integrarem a biblioteca.

Cecília autobiografou também a sua infância em duas narrativas: Olhinhos de

Gato e Giroflé, giroflá. A primeira, que saiu em folhetim na revista “Ocidente”, de

Lisboa, no ano de 1938, conta a sua vida dos três aos seis anos, depois da morte da mãe. A orfandade precoce obrigou-a a viver sob a tutela da avó Jacinta Benevides que se tornou a responsável principal pela sua educação e cuidados. O título vem do nome da personagem infantil protagonista, Olhinhos de Gato, que é a própria autora, por ter olhos azuis esverdeados parecidos com os olhos dos gatos. Para os restantes adultos e adultas com quem convivia e que marcaram a sua infância, Cecília adotou o mesmo critério denominando-os ora pelo traço físico ora pela personalidade dominante. Sabe-se através duma carta dirigida a Armando Côrtes-Rodrigues quem é cada pessoa referida na narrativa. Vemos, simultaneamente, os indícios do tempo de silêncio e solidão e a afirmação, pela própria Cecília, sobre as boas recordações guardadas desse tempo:

A minha infância estava metida naquelas flores, nas flores dos tapetes, no relógio de parede, nas gavetas, no guarda-vestidos onde havia roupas de família cheias de barbatanas, rendas, vidrinhos. Eu tive uma infância incomparável. A Maria Maruca era uma criada portuguesa, criada por minha Avó mas não açoriana. Dentinho de Arroz era minha ama seca (pagem) – ela, com outras mulatinhas e negrinhas, tinha sido criada de minha Mãe. Foi pessoa adorável, cheia de suavidade. De fato, era copeira, mas depois ficou como ama. Chama-se Pedrina. Eu a adorava tanto que quando morreu – longe de nós, e eu sabia uns 14 anos – minha Avó nem me disse nada. E nunca me disse nada, para não me entristecer. E eu sabia, e também não lhe disse nada, até o fim. Có era uma Maricota, pessoa de cor, que foi governanta da Mamãe, e depois de sua morte ficou sendo costureira. (…)

Orelha Peluda era meu padrinho. Um anjo.38

(31)

23 Esta obra é um título imprescindível para a compreensão da produção literária de Cecília Meireles, para quem a infância constitui uma fonte inesgotável de criação. A autora regista a atmosfera em que cresceu, a educação doméstica oferecida pela avó e as vivências sensoriais diversificadas com que se encantou.

A propósito da edição de Giroflé, giroflá, Cecília menciona o teor do mesmo ao amigo açoreano: “Hoje, aparece um livrinho novo: Giroflé, giroflá, que são umas saudosas lembranças de meus tempos de infância. (…).”39 Com o título retirado duma canção de roda infantil, a coletânea reúne sete textos narrativos que se seguem por esta ordem: “Tempo do Giroflé”, “Josefina”, “Paraíso”, “Julieta”, “Estrela”, “Reino de solidão” e “Odisseia”. Em cada um desses textos, sem nenhuma ligação entre si, Cecília recorda nostalgicamente, pela voz da narradora adulta omnisciente em “Tempo do Giroflé”, o tempo de liberdade e sem preocupações da infância e o mesmo acontece na narrativa “Paraíso”. Em “Josefina”, a partir da história da morte prematura duma menina desamparada, a autora interroga a brevidade da vida. “O Reino de Solidão” revela um teor de grande dimensão autobiográfica: o tempo de pequena da autora, na fase da descoberta do mundo. Este texto distingue-se dos restantes porque não é um texto de reflexão como “Tempo do Giroflé” ou “Paraíso”, nem uma história de amizade ou de experiências marcantes como os restantes textos. A presença deste último, que é uma crónica, pode levar ao questionamento sobre o género da obra que para Sadlier (2007) “desafia uma classificação genérica.”40

Segundo Azevedo Filho:

(a) linguagem de suas crónicas não se reduz a linguagem jornalística apenas, por ser essencialmente literária. Mesmo quando recorre à memória, facilmente se percebe que a imaginação criadora percola pelo tecido memorialístico, abrindo espaços por onde se infiltra a ficção, que penetra nos interstícios do texto, guiada por suas mãos de fada.41

39 Ibid., 3 de março de 1947, 222. 40

Darlene J. Sadlier, “ABC de Cecília Meireles,” in Ensaios sobre Cecília Meireles, org. Leila V. B. Gouvêa (São Paulo: Humanitas/ Fapespe, 2007), 239.

41

Leodegário A. de Azevedo Filho, introdução à Crônicas em geral (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998), x.

(32)

24 A linguagem poética das crónicas de Cecília Meireles talvez explique o surgimento de Janela Mágica (1983), que reúne a seleção de 21 crónicas42, e Escolha

o seu sonho (1964), que reúne 45 crónicas “extraídas dos programas “Quadrante” da

rádio Ministério da Educação e Cultura e “Vozes da cidade” da Rádio Roquette Pinto. A primeira seleção é indicada para o público jovem porque traz consigo uma ficha na qual se lê “Orientação de leitura (para uso do aluno)”.

4. A literatura infantil e o “livro descoberto”

A conceção de Cecília Meireles sobre a literatura infantil mostra o seu posicionamento como porta-voz das crianças, a função didática atribuída aos livros infantis e a valorização da literatura das transmissões orais. Antes da publicação de

Problemas da literatura infantil (1951) e já com Criança meu amor (1923) editada, a

autora aborda alguns aspetos da comunicação com a infância nas páginas da imprensa brasileira. Em oito crónicas publicadas na “Página de educação” do Diário de

Notícias do Rio de Janeiro, entre 1930 a 1933, com as quais visa consciencializar a

sociedade brasileira do seu tempo para a importância dos livros infantis na educação, Cecília reflete sobre as três questões principais da comunicação com a infância: autor, texto e leitores. Num parágrafo que a seguir transcrevemos, Cecília aponta de que modo as especificidades dos leitores condicionam toda a comunicação: o perfil do autor, o modo expressivo a ser utilizado e a matéria a ser tratada no texto:

Escrever para crianças tem de ser uma ciência e uma arte, ao mesmo tempo. (…) Escrever para crianças tem de ser uma ciência, porque é necessário conhecer as íntimas condições dessas pequenas vidas, o seu funcionamento, as suas características, as suas possibilidades – e todo o infinito que essas palavras comportam – para escolher, distribuir, graduar, apresentar o assunto. (…)Tem de ser uma arte porque, ainda quando atendendo a tudo isso, se não estivéssemos diante de alguém que tenha o dom de fazer de uma pequena e delicada coisa uma completa obra de arte, não possuiremos o livro adequado ao leitor a que se destina.43

42

De entre 21 crónicas, 5 são de Escolha o seu sonho (“Escolha o seu sonho”, “Compensação”, “O fim do mundo”, “Brinquedos incendiados”, “Da solidão”), 12 de Inéditos, 1 de Quadrante 2, 2 de Seleta em prosa e verso de Cecília Meireles, e 2 de Vozes da cidade. O livro traz consigo orientação de leitura (para uso do aluno).

43

“Literatura infantil [I],” in Crônicas de educação 4, apresentação e planeamento editorial de Leodegário A. de Azevedo Filho (Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ Fundação Biblioteca Nacional, 2001), 119-120.

(33)

25 A partir da sua visão é possível deduzir que se exige do autor, se não possui a formação ou as experiências empíricas, os conhecimentos sobre as especificidades dos destinatários, pois esses constituem-se como pré-requisitos, ou seja, são o ponto de partida para a escrita da obra: vão determinar a escolha do modo de expressão adequado ao nível de compreensão dos destinatários e a própria matéria que será do interesse destes. Quanto aos conhecimentos em si, entende-se que Cecília se refere aos traços psicológicos do ser em desenvolvimento, designadamente à perceção subjetiva do mundo, à capacidade cognitiva e à esfera da vida ainda limitada. Dirigir-se à infância, para Cecília, é fazer-Dirigir-se chegar duma maneira percetível à compreensão possível dos leitores.

Continua a refletir, porém, que “a segunda condição – que pressupõe o artista – é ainda mais indispensável do que a primeira – que requer o técnico.” Esta perspetiva mostra-nos o caráter literário atribuído ao livro infantil. Critica a atitude simplista do escritor que se reflete na adoção de determinado registo de linguagem. Ciente das limitações vocabulares do ser em desenvolvimento, Cecília não as vê como restritivas. Este trecho deixa vislumbrar a sua visão sobre a iniciação da infância à poesia, que é possível fazer sem que essas limitações a impeçam. Segundo a educadora/jornalista:

simplicidade não quer dizer banalidade. Pode-se fazer um livro extremamente simples – porque há que atender aos recursos limitados de vocabulário, de primeira idade – mas repleto, ao mesmo tempo, desse aroma de poesia que devia ser alimento contínuo da infância.44

Nesta perspetiva, as especificidades dos leitores são encaradas, pelo contrário, como um desafio. Nesta mesma obra, Cecília afirma que só existe uma literatura, literatura geral, na qual se integra a literatura pertencente ao âmbito infantil. Ao contrário da definição generalizada, Cecília propõe:

São as crianças, na verdade, que o delimitam, com a sua preferência. Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que para elas se escreve. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas lêem com utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil a priori, mas a posteriori.45

44

Crônicas de educação 1, apresentação e planeamento editorial de Leodegário A. de Azevedo Filho (Rio de Janeiro: Nova Fronteira / Fundação Biblioteca Nacional. Crónicas de educação, 2001), 117.

45

Idem, “Literatura geral e infantil,” in Problemas da literatura infantil. 3.ª ed. (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984), 20.

Referências

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