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Giroflé, giroflá e “Figurinhas II”

2.1.5. O brincar, o jogo e a brincadeira infantil: futilidade ou seriedade?

Em O menino atrasado assistimos a duas visões da infância: a negativa e a positiva, ambas intimamente ligadas a duas conceções distintas sobre o jogo: a primeira, a desvalorização e a segunda, a valorização.

Motivado pela solidão, o menino-protagonista junta-se à caminhada rumo a Belém. Por chegar tarde, é proibido pelo porteiro de entrar na festa (“Saia daqui, / volte pra casa. / Quem vai a festa / não se atrasa”122). Diz-lhe este que a casa está cheia, que o menino não traz nenhum presente para o Menino Jesus (“Veio com as mãos abanando! / Que trouxe para lhe dar?”123), e, por último, que “Criança pequena / não é gente; / vá para a cama / que é lugar quente.”124 Embora a sua entrada seja sucessivamente recusada pelo porteiro, o menino não desiste, decidindo ficar a espreitar o ambiente da festa à porta até que o Menino Jesus ouve as suas súplicas e intervém mandando o porteiro abrir a porta para o menino entrar.

Neste episódio de confronto entre o menino e o porteiro, que representa o confronto entre o mundo da criança e o mundo do adulto, respetivamente, Cecília mostra, através de uma série de comportamentos e atitudes do segundo, a falta de compreensão de um adulto perante o mundo da infância e a visão negativa sobre o brincar/ jogo infantil. A primeira frase do porteiro dirigida ao menino, se por um lado mostra o profissionalismo no exercício da sua função, por outro reflete a

122

O menino atrasado, ob. cit., 24.

123

Ibid.

124

67 incompreensão do adulto em relação à noção de tempo da criança. Esta incompreensão reflete-se também na sua crítica ao menino por não trazer um presente para oferecer. Sendo ainda criança, o menino não conhece o verdadeiro estatuto do Menino Jesus. Por isso é o único do grupo de pessoas presentes que não se preocupou em procurar e trazer uma prenda para Lhe oferecer. No seu estado de desenvolvimento, ainda egocêntrico e ingénuo, o menino pensa que qualquer um deve gostar de brincar.

Como se verifica, quer no monólogo quer nos diálogos de Cecília, a palavra “menino” na locução “Menino Jesus” é iniciada por letra minúscula no cantar (monólogo) do menino atrasado e por maiúscula nos falares (diálogos) das personagens adultas. Só quando o menino apreende o estatuto divino do Menino Jesus o “m” surge em maiúscula: “Menino Jesus / do meu coração! / Eu não tenho nada. / Seja meu irmão.” 125

Se no início o porteiro é capaz de ter razão alegando o atraso do menino como motivo para não deixá-lo entrar, já ao dizer “Criança pequena não é gente” mostra uma atitude depreciativa concreta sobre a infância. Para ele, o ser-criança não merece um tratamento respeitoso, é um ser à parte, desvalorizado. Nesse sentido, os comportamentos anteriores do porteiro não podem ser considerados meros reflexos de uma falta de compreensão, testemunhando, na verdade, uma falta de vontade em querer compreender. Esta atitude reenvia o leitor para a conceção negativa da infância do pré-romantismo, que é alvo da crítica da autora do texto, e explica igualmente a desvalorização do jogo infantil.

A partir da enumeração dos jogos-brincadeiras que lhe são familiares, o menino considera a sua capacidade de entreter uma criança a sua especialidade. Assim, o presente dele não pode ser subvalorizado/subestimado perante os presentes materiais, levados pelo povo, pois é igualmente adequado a um “menino” recém- nascido: “Ó senhor porteiro, / eu sei muitas artes / de entreter crianças: / pião, papagaio, / gude, amarelinha / cantigas e danças.”126.

Se o menino considera o brincar importante no seu universo, já o porteiro despreza-o, considerando-o uma atividade fútil, uma perda de tempo: “Vá para casa

125

Ibid., 27.

126

68 depressa! / Não lhe digo isso outra vez! / Então pensa que o Menino / é assim como vocês? / Este é o Rei da Humanidade, / não vai como vocês vão / perdendo o tempo nas ruas / com papagaio e pião!”127.

Esta forma como a peça parece terminar, vem a ser censurada pelo Menino Jesus que reconhece o estado de inocência do menino:

Quem foi que chamou por mim? Ouvi, levantei-me e vim.

Quem disse que me quer bem? Eu lhe quererei também.

Quem quer ser o meu irmão? Estende-me a sua mão. 128

Deduz-se deste gesto que o Menino Jesus aceita ser seu companheiro de brincadeira, criticando e desvalorizando em simultâneo os comportamentos e atitudes do porteiro – ou seja, do adulto, perante a infância e o brincar infantil. À sua voz reage o menino:

Eu comecei a dormir e comecei a sonhar que Jesus tinha saído do seu lugar.

E comecei a correr e comecei a cantar. Vamos embora depressa, vamos brincar.129

Nesta situação, em que a comunicação é impossível por causa do preconceito do porteiro e da sua má disposição, é de notar a imagem transmitida da infância. O uso do “atrasado” como traço descritivo do menino no título da peça é, nesse sentido, 127 Ibid., 25. 128 Ibid., 29. 129 Ibid., 29.

69 sugestivo porque anuncia o motivo do conflito. O menino é, neste contexto, a vítima do vestígio da conceção negativa da infância que Cecília procura combater.

Quer de um ponto de vista pessoal, o da escritora, quer do da educadora de infância, Cecília revela a mesma visão: a valorização do brincar infantil. Deve-se este ponto de vista à sua própria infância, como já vimos, o tempo em que atividades lúdicas fizeram parte das experiências culturais providenciadas pelo meio familiar. Em relação ao tratamento temático, revela-se, pela maneira como as atividades infantis são representadas, educadora infantil com saberes científicos e atitude observadora destas atividades infantis e a valorização desta realidade dos seus mais pequenos leitores.

A literatura infantil não é o único espaço literário em que Cecília deixa transparecer a valorização do brincar/ jogo infantil. Nas suas crónicas sobre a infância, conseguimos localizar as suas reflexões sobre a mesma matéria. Ali, não só defende o brincar na primeira fase da vida humana, como também incita o público a reconhecer esta necessidade e a criar um ambiente favorável à expressão do mundo interior da infância. A sua voz está patente na seguinte transcrição:

A criança do mundo objetivo não representa a sua própria expressão íntima. (…) Pudor de se revelar, impossibilidade, muitas vezes, de o fazer, devido à carência de elementos que a manifestam – num caso e noutro, ausência propícia para que ela tenha oportunidade de se definir.

É preciso criar uma atmosfera especial, que facilite a expansão da alma infantil, para que, então, nosso olhar atinja o recesso profundo da sua personalidade.130

Quanto à criação de um ambiente favorável ao brincar da criança é aconselhada nos contextos familiar, educativo e psicanalítico. Nos primeiros dois campos, cujo trabalho visa o desenvolvimento da infância, aquele traduz-se na organização do espaço e no uso de materiais auxiliares de brincadeira. Relativamente ao último, a psicoterapia já conheceu a sua importância na psicanálise de crianças com o trabalho de Melanine Kleine: a capacidade ou incapacidade de brincar como denominador da saúde psíquica da criança; a observação dos comportamentos lúdicos dos pacientes infantis; o brincar com valor terapêutico. Por seu turno, Winnicott sublinha a criação de condições físicas e emocionais para a descoberta do self.

130

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2.2 Natureza assombrada: da reflexão do tempo de infância à