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Capítulo III – Ligação, separação e inventividade

2. Pôr à disposição

2.4 Injustiça e desigualdades sociais

Com este tema, as noções abstratas e realidades próximas, mas talvez não imediatamente reconhecíveis pelos leitores, a autora leva as crianças a conhecer para além dos valores básicos como o bem e o mal, à semelhança de outros valores presentes também nos contos maravilhosos, um dos valores mais defendidos na criação literária em verso e em prosa: a responsabilidade perante os outros.

Na transmissão de uma consciência ético-moral visando a adoção por parte das crianças de atitudes e comportamentos desejáveis, a preocupação com a capacidade de abstração dos destinatários é evidente. Comprova-se pelo recurso a elementos do conto de fadas, do conto maravilhoso e das fábulas em A Fada Oriana, A floresta e O

Rapaz de Bronze, através da incorporação de elementos do maravilho tradicional tais

como a fada, o anão e o Rapaz de Bronze respetivamente. Acresce a este facto a construção de um grupo de personagens com perfil moral claramente distinto, recorrendo à estruturação pela visão maniqueísta, visão do mundo utilizada nos contos maravilhosos. Segundo Coelho: “o maniqueísmo que divide as personagens em boas e

234

Ibid., 30.

235

137 más, belas e feias, poderosas ou fracas, etc., facilita à criança a compreensão de certos valores básicos da conduta humana ou convívio social.”236

Em A Fada Oriana, onde convergem muitos valores morais, designadamente o bem e o mal, a promessa, a responsabilidade perante os outros o incentivo à caridade, a divisão das personagens é patente no capítulo de abertura: “Há duas espécies de fadas: as fadas boas e as fadas más. As fadas boas fazem coisas boas e as fadas más fazem coisas más.”237 Os primeiros valores ético-morais básicos, o bem e o mal, são representados simbolicamente pelo elemento maravilhoso tradicional com perfis morais distintos marcados claramente por dois atributos básicos conhecidos dos leitores: boa e má.

A Fada Boa, personagem principal, Oriana, assume-se como responsável pelos outros. Esta noção abstrata é ilustrada por uma série de ações dedicadas ao universo da sua proteção composto por seres humanos, animados e por elementos naturais. A imagem do mundo marcado por desigualdades sociais é sugerida pela construção de personagens tipo, pelas diferentes condições de vida dos seres humanos que vivem neste universo: o lenhador, o moleiro e a velha, por oposição às do homem “muito rico”. De um lado temos a maioria, do outro a minoria. O bem instaura a harmonia e minimiza as desigualdades sociais. O mal identifica-se com a concentração em si, aqui sugerida simbolicamente pela alusão mítica, à lenda de narciso. Ao contrário do bem, o mal destrói a harmonia estabelecida, instaura o caos e piora ainda mais a situação miserável dos seres à margem da sociedade reinada por desigualdades sociais e pela concentração em si.

Através da situação narrativa simbolizada, Sophia mostra através da sua personagem a luta constante entre as forças do bem e do mal como parte da condição humana. Oriana é seduzida por três vezes pelas forças do mal. Da primeira vez, ele é encarnado pelo bando de andorinhas e surge duma maneira tão evidente que Oriana, estando consciente da sua obrigação, consegue resistir à sedutora tentação. Recusando o convite das andorinhas, Oriana torna-se se alvo de humilhação por parte delas: “Oriana, não mereces ter asas. Tu não amas o espaço e desprezas a liberdade.”238 Da

236

Coelho, ob. cit., 33.

237

A Fada Oriana, ob. cit., 7.

238

138 segunda vez, pelo contrário, surge disfarçado e, pouco e pouco, gradativamente, a força do bem desvia-a do seu caminho. Oriana deixa-se seduzir pelo Peixe, falso amigo, cujas palavras lisonjeiras alimentam a vaidade da fada. Até ganhar consciência do engano, castigada pela fadas do bem, perde as qualidades com as quais se pode definir como pertencendo ao bem. Inicia uma viagem pela floresta e na cidade para se redimir do mal, o que lhe permite conhecer o sofrimento humano. Mesmo assim, Oriana não recupera imediatamente o estatuto de fada boa. O mal surge pela terceira e última vez, duma maneira insidiosa e com toda a sua força, mas Oriana recusa-o imediatamente, não aceitando as três propostas aqui descritas por mais sedutoras que sejam.

Como se verifica, qualquer que seja a forma como se apresenta, quer seja evidente quer seja disfarçado, o mal é tão tentador que é capaz de desviar em qualquer momento o ser humano do caminho do bem. Sophia ainda mostra uma outra convicção: quer fazendo bem quer fazendo mal, o ser humano tem um preço por pagar. É de reparar ainda que para sugerir a natureza do desenrolar dos acontecimentos, Sophia serve-se do ritmo narrativo. O ritmo lento corresponde ao desvio gradativo do caminho do mal e a concentração em si, dos quais os seres humanos, muitas vezes, não têm noção. O mesmo ritmo sente-se na descrição da viagem de Oriana, também com carga simbólica, para recuperar o que perdeu. O ritmo rápido, pelo contrário, é utilizado para descrever o momento inesperado em que Oriana salva a vida da Velha. O ato heróico dela remete às palavras da Rainha da Fadas que põe como condição quando a castigou para recuperar o estatuto destituído, “quando te esqueceres de ti a pensar nos outros.”239

Em A floresta, as desigualdades sociais são apresentadas com a sua raiz. Nesta narrativa de longa extensão, a autora condena a hipocrisia, o egoísmo. Estas atitudes são vistas como as que agravam as desigualdades. A caridade, pelo contrário, minimiza-as. Com a mesma carga simbólica como em A Fada Oriana, a floresta representa o mundo co-habitado pelo mal e pelo bem representados respetivamente por dois grupos de personagens que estão envolvidas na viagem do tesouro através do tempo e do espaço, da sua forma original em ouro até à transformação em forma de pedras. Pertencem ao grupo do bem os frades, os anões, Isabel, e Cláudio, professor

239

139 de música. Todos reconhecem as duas faces do tesouro e querem livrar-se depressa entregando-o todo a uma pessoa só. Frei João a quem o Chefe dos bandidos confia o ouro roubado confia ao anão:

- Queridos irmãos anões – disse o frei João – não deveis chorar. - Estamos muito velhos e desejamos mais o outro mundo do que este. (…) Infelizmente não nos foi possível cumprir a promessa que fizemos ao capitão. Por isso vamos deixar aquele oiro nas vossas mãos: procurai, procurai bem, pois haveis de encontrar a quem o dar.240

O anão confia o seu despero a Isabel: a sua incapacidade de “descobrir nenhum homem que fosse inteiramente bom”: “Nós, os anões, não sabíamos o que havíamos de fazer àquele oiro tão pesado e tão incómodo, os anos iam passando e não conseguíamos descobrir nenhum homem que fosse inteiramente bom.”241 Isabel, personagem infantil modelar indica o nome do seu professor de música:

- Dá o tesouro ao meu professor de música. É um homem extraordinário. Chama-se Claúdio e tem vinte e três anos. Passa o dia a tocar violino. E também faz versos. E diz sempre: “A fortuna, a glória, o dinheiro não contam. Só a verdade e a beleza é que nos dão felicidade”. É um poeta.242

Este recusa logo, dizendo:

Isso não. Ficaria preso ao dinheiro como tu. Ficaria cheio de dúvidas e problemas. Teria de fazer muitas contas. Seria uma grande complicação. O dinhero é um veneno se se toma em grandes doses. Tenho medo que o teu oiro enveneno a minha vida.243

Porém quem acaba por beneficiar de todo o tesouro mal ganho dos Bandidos é o Doutor Máximo cuja qualidade, a paixão pela ciência, outro valor eufórico transmitido no conto, é relatada pelo professor de música: “Ele é um homem apaixonado pela ciência. Além disso diz que quando puder transformar as pedras em oiro há-de enriquecer os pobres.”244

240

A floresta, ob. cit., 51.

241 Ibid., 52. 242 Ibid., 54. 243 Ibid., 58. 244 Ibid., 58-59.

140 Se na mão do bem o tesouro aparece com um poder benéfico comum, neste caso é decidido consensualmente para apoiar as experiências científicas do Doutor Máximo de que beneficiam os pobres, na mão do mal aparece com o seu poder corruptor, ou seja como raiz dos vícios humanos de todos os tempos.

Sabem do sucesso da experiência científica, o presidente da Academia das Ciências, o reitor da universidade e o presidente da câmara, visitam o Doutor Máximo no seu laboratório para congratulá-lo pelo sucesso da experiência. Representando os detentores da autoridade, embora nada façam nem critiquem a intenção do Doutor Máximo em enriquecer os pobres da cidade, demonstram uma atitude hipócrita. Mostram-se mais preocupados com a formalidade de que com a finalidade da experiência. Depois de terem visto a descoberta individual não institucional, fazem entre eles o comentário: “É uma bela ação! Muito original! Mas é esquisito!”245

A intenção do Doutor Máximo de minimizar as desigualdades sociais é censurada pelo grupo de banqueiros, de negociantes e de homens importantes. Representando o poder económico, este grupo aproxima-se do Doutor Máximo para lhe oferecer negócios dos quais vão poder tirar os seus lucros.

- Agradeço – respondeu o doutor -, mas sou um sábio, não sou um homem de negócios. Fiz a minha descoberta por amor à ciência e não por amor à fortuna. Na próxima quinta-feira vou distribuir o meu oiro todo aos pobres desta cidade. E, mais tarde, quando fizer outras experiências, espalharei o oiro pelos pobres de outras cidades. Assim irei remediando as desigualdades do mundo. 246

Como não conseguem o seu objetivo e ficam descontentes por não conseguir convencer o Doutor Máximo a interromper a experiência científica para ajudar os pobres, vêem no Doutor Máximo uma ameaça aos seus interesses: “- Este homem é um doido perigoso.”247 Conspiram para destruir o local do trabalho.

Ao pôr em paralelo o roubo dos bandidos no passado e o “novo tipo do roubo” dos detentores do poder económico no presente, Sophia não só está a sugerir a perenidade dos vícios humanos, mas também a das desigualdades sociais. Com o passar do tempo, essas duas realidades, não só permanecem mas tornam-se mais

245 Ibid., 64. 246 Ibid., 65. 247 Ibid., 65.

141 graves. Se “(…) o homem muito bom nunca apareceu”,248 como diz o anão, não falta a quantidade dos pobres.

Desfilaram homens, mulheres, velhos e crianças. Vinham descalços, vestidos de farrapos, os seus olhos brilhavam nos rostos pálidos e magros e tinham um ar de paciência e de esperança. Parecia impossível que numa cidade tão rica e tão bonita pudessem existir tantos miseráveis. E eram tantos que desfilaram ao pôr do sol.249

Enquanto o roubo do passado, o crime do capitão dos bandidos, é motivado pela pobreza, o do tempo moderno é motivado pela ganância e pelo egoísmo. Confessa o capitão dos bandidos aos frades antes de morrer:

- (…). Agora eu queria poder apagar o mal que fiz. Queria poder voltar atrás e viver a minha vida de outra maneira. Os crimes que pratiquei, pratiquei-os todos por amor à riqueza. Quando eu era pequeno era pobre e corria descalço nas ruas. Comecei então a invejar a fortuna dos ricos. Invejava os sacos cheios de oiro, os fatos de veludo, as jóias, as casas opulentas. (…).250

A imagem da pobreza nos tempos modernos também se manifesta nas palavras decisivas do Doutor Máximo ao receber a visita de sete negociantes “ricos” e “poderosos”: “Na próxima quinta-feira vou distribuir o meu oiro todo aos pobres desta cidade. E, mais tarde, quando fizer outras experiências, espalharei o oiro pelos pobres de outras cidades. Assim irei remediando as desigualdades do mundo.”251

Em A noite de Natal, é através de Joana que Sophia expressa a sua indignação contra duas questões sociais: a injustiça e as desigualdades sociais. Tomando consciência da “pobreza” do amigo, a personagem infantil modelar que representa a fraternidade não está alienada, expressa imediatamente uma atitude não conformativa.

- Isso não pode ser, Gertrudes.

- Mas é assim mesmo – disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.

Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era “assim mesmo”.252

Daí que decida oferecer ao seu amigo aquilo que está ao seu alcance e no momento preciso: 248 Ibid., 50. 249 Ibid., 71. 250 Ibid., 47. 251 Ibid., 65. 252

142

“Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é a Noite de Natal.” (…)

“Hoje”, pensou Joana, “tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.”253

Em O Rapaz de Bronze, narrativa alegórica com predomínio do lúdico, Sophia

mostra aos leitores através do simbolismo floral em vez de animais como é habitual nas fábulas, a hierarquização nas relações sociais humanas, transmitindo valores ético-morais necessários nos convívios sociais. A autora inicia a narrativa com a imagem do mundo representado por um jardim descrito como um espaço maravilhoso composto pela diversidade e diferença e com a organização e divisão do jardim em partes:

Era uma vez um jardim maravilhoso, cheio de grandes tílias, bétulas, carvalhos, magnólias e plátanos.

Havia nele roseirais, jardins de buxo e pomares. E ruas muito compridas, entre muros de camélias talhadas.

E havia nele uma estufa cheia de avencas onde cresciam plantas extraordinárias que tinham, atada ao pé, uma placa onde o seu nome estava escrito em latim.

E havia um grande parque com plátanos altíssimos, lagos, grutas e morangos selvagens. E havia um campo com trigo e papoilas, e um pinhal onde entre mimosas cresciam urzes e fetos.254

No capítulo seguinte, numa introdução breve da personagem floral principal, Sophia deixa vislumbrar em primeiro lugar a influência do meio social na passagem de valores, neste caso concreto, a atitude discriminatória que é vista como raiz da injustiça e das desigualdades sociais.

Ora num dos jardins de buxo havia um canteiro com gladíolos.

Os gladíolos são flores muito mundanas. E aqueles gladíolos achavam que o lugar mais chique do jardim era esse jardim de buxo onde eles moravam.

- Os jardins civilizados – diziam eles – são sempre jardins de buxo.255

É esta atitude sobre si próprio que o Gladíolo recém-nascido, personagem floral através da qual Sophia critica os seres humanos, herda do meio ao qual

253

Ibid., 24-26.

254

O Rapaz de Bronze, ob. cit., 9.

255

143 pertence. Tem a presunção de ser uma espécie superior aos outros. Diz ele: “- Que sorte eu ser um gladíolo! Que sorte eu estar na moda, que sorte eu ir ser colhido!”256 Estas atitudes revelam-se na vida comunitária: nas relações de amizade com as outras flores e nos convívios sociais. A amizade do Gladíolo pelas outras flores do jardim baseia-se mais na classe e na aparência do que na essência. A seleção dos convidados para a festa baseia-se também neste critério.

As atitudes e comportamentos assumidos pelo Gladíolo são criticados pelo Rapaz de Bronze, a quem Sophia dá a voz. Desempenha este a voz da sabedoria que o inicia à vida comunitária. Como veremos até ao dia da festa, o Gladíolo fica sujeito a uma série de regras imposta pelo Rapaz de Bronze que antes de lhe dar a autorização chama-lhe a atenção para o reconhecimento da diversidade, para o respeito pela diferença e para o tratamento por igualdade.

- Todas as flores são bonitas – disse o Rapaz de Bronze.

- Mas há algumas flores que não são bem flores – disse o Gladíolo.

- Todas as flores são flores – respondeu o Rapaz de Bronze muito zangado. - Ah? O Tojo e a Urze também são flores? – perguntou a Begónia.

- O Tojo e a Urze – disse o Rapaz de Bronze – são flores maravilhosas porque todas as flores são maravilhosas. Mas um Tojo e um Nardo são diferentes e é por isso que o mundo é tão bonito. Eu sou o rei do jardim. Quero que sejam convidadas todas as flores.

(…).257

2.5 A justiça

Este valor grego, eufórico,ao qual a autora é fiel, presente também em Contos

Exemplares, está em dois contos: A Fada Oriana e Anjo de Timor. No primeiro,

através da voz do espelho secular em casa do Homem Rico, Sophia representa a luta dos homens pela justiça como uma realidade perene. Embora seja breve e quase impercetível, no trecho que transcrevemos é possível sentir a indignação da autora desencadeada pelo ambiente político que marcava a atualidade da política nacional da época. Disse o espelho:

256

Ibid., 16.

257

144

(…) Vi os ministros, os conselheiros e os homens importantes com o seu nariz comprido, a sua cara de caso com o seu ar solícito. (…) E vi as multidões das revoluções que passavam, desesperadamente, partindo tudo, à procura de justiça. Vivi, vi, vi.258

É com a mesma consciência do mundo que Sophia elabora Anjo de Timor, conto de breve extensão em que recorre ao mito da estrela messiânica e à alusão bíblica259. Escrito na sequência do massacre ocorrido, em Díli, em 1995, e editado no Natal do mesmo ano, o conto está repleto de referências históricas, políticas e culturais. O conta mostra a “responsabilidade de Sophia perante os outros” funcionando assim como manifestação da solidariedade da contista/poeta para com o povo e o seu apelo, no contexto político internacional, pela restauração da paz, justiça e liberdade em nome da ex-colónia de Portugal. A mensagem é expressa no fim do texto: pelo Anjo de Timor:

Menino Deus, Princípio da Paz, Deus Todo-Poderoso, lembra-te do povo de Timor que por ti foi confiado à minha guarda. Senhor, escuta as suas preces, vê o seu sofrimento. Libertai-o do seu cativeiro, dai-lhe a paz, a justiça, a liberdade e a plenitude da Vossa graça. Glória a ti, Senhor!260