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Capítulo III – Ligação, separação e inventividade

2. Pôr à disposição

2.7 A amizade e o amor

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O Cavaleiro da Dinamarca, ob. cit., 10.

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148 Nas várias narrativas, é possível identificar o tema da amizade ora em menor ora em maior dimensão. Se o brincar sozinho “na” e o brincar “com” a natureza permite ao ser infantil o conhecimento do mundo físico natural, o brincar partilhado com outro ser prepara-o para uma relação de amizade. Esta, por sua vez, gera a confiança que conduz à aprendizagem sobre a realidade do mundo do outro. A amizade é sempre pura e pode desenvolver-se a partir da diferença ou da afinidade. A amizade fundamenta-se na confiança e conduz sempre à aprendizagem da realidade do outro. É uma abertura de horizontes. A autora condena a amizade baseada na aparência em vez da baseada na essência e a amizade falsa como em O Rapaz de

Bronze ou em A Fada Oriana.

Em A Menina do Mar, o Rapaz da Terra é visto no início pela Menina do Mar e pelos três amigos como intruso. Ele só entra na área do brincar deles depois de conquistar a confiança dela e dos três amigos. Até à separação e ao reencontro encontram-se por várias vezes. Através dele, a Menina do Mar conhece três coisas de origens distintas representativas da terra apresentadas com características visíveis e invisíveis: a rosa encanada perfumada como elemento da natureza, o fósforo de produção humana e o vinho proveniente da natureza com transformação humana.

Em A floresta, o encontro de Isabel com o anão, produto da sua imaginação realiza-se no lugar onde Isabel constrói a casa do anão. As relações de amizade deles começam num ambiente de desconfiança das duas partes e desenvolvem-se sob uma condição imposta pelo anão “que a Isabel não contaria a ninguém que conhecia um anão.”266 Depois da conquista da confiança do anão, que demorará um ano, ambos se

tornam grandes amigos. A área de brincadeira de Isabel passa a ser a área de aprendizagem. Através deste elemento sobrenatural, ela passa a conhecer o lado oculto da floresta.

Em A noite de Natal, assiste-se à amizade das duas crianças oriundas de meios sociais diferentes: Joana do mundo privilegiado e Manuel do mundo menos privilegiado mas sagrado. Sophia mostra a capacidade intuitiva duma criança através dos gestos sucessivos de Joana, que podem ser lidos como os seus primeiros atos de fraternidade: “Parece um amigo. É exatamente igual a um amigo.”267 A sua intuição

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A árvore (Lisboa: Figueirinhas, 1985), 32.

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149 motivadora da aproximação é correspondida por Manuel que lhe responde: “O teu jardim é muito bonito.”268 Trata-se de mais uma amizade que não se baseia no interesse mas na partilha de uma atitude valorativa perante a natureza física e a imaginação.

No conjunto de narrativas, são vários os tipos de amor tratados. Em A Menina

do Mar, primeira invenção literária, a amizade e o amor motivam a viagem sem

retorno do Rapaz da Terra ao fundo do mar. A rosa, símbolo do amor, é uma das três coisas representativas da terra que ele mostra à Menina do Mar, sua amiga. A amizade que Joana (A noite de Natal) trava intuitivamente com Manuel faz com que ela, encarnando o espírito de Natal, não possa ignorar a falta de bem-estar do amigo. O seu amor ao próximo é ilustrado por uma série de atos inconformados e corajosos na Noite de Natal: por exemplo, a saída sozinha à noite com medo de escuridão, no meio do frio e sem norte para entregar o presente do Natal ao amigo: “Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é A Noite de Natal.”269

Em A árvore, conto japonês recriado, partindo da verdade sobre um elemento da natureza, Sophia mostra aos leitores o amor pela natureza dum povo que se manifesta na luta pela preservação duma árvore secular da qual é obrigada a livrar-se: “Os japoneses têm um grande amor e uma grande respeito pela Natureza e tratam todas as árvores, flores, arbustos e musgos com o maior cuidado e com um constante carinho.”270 Com laços indissociáveis com a árvore apresentada como um bem comum com valor afetivo e espiritual e com espírito comunitário, o povo procura soluções para prolongar a sua presença física. Sophia descreve a reação do povo à primeira solução: “Houve choros, lamentações, gemidos.”271 Desde o seu abatimento, a árvore sofre várias alterações formais, todas decididas consensualmente pelo povo que pensa no interesse e benefício da comunidade. A segunda transformação do tronco da árvore num navio traz modificações à comunidade porque o navio permite novas formas de recreio, a economia e o estreitamento das relações dos seus membros: “Daí em diante a vida do povo daquela terra passou a ter uma vida muito

268 Ibid., 10. 269 Ibid., 24. 270

A árvore, ob. cit., 9.

271

150 mais animada e variada e quase todos se tornaram muito mais ricos.”272 Até conseguir a solução que garanta a presença da árvore na memória, a transformação do cerne num biwa, o povo vê o seu espírito comunitário desafiado.

Em A floresta, é na boca do Doutor Máximo que Sophia faz transparecer a valorização do amor pela ciência e a condenação do amor pela fortuna:

- Agradeço – respondeu o doutor - mas sou um sábio, não sou um homem de negócios. Fiz a minha descoberta por amor à ciência e não por amor à fortuna. Na próxima quinta-feira vou distribuir o meu oiro todo aos pobres desta cidade. E, mais tarde, quando fizer outras experiências, espalharei o oiro pelos pobres de outras cidades. Assim irei remediando as desigualdades do mundo.273