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Capítulo III – Ligação, separação e inventividade

2. Pôr à disposição

2.1 A natureza da infância e a infância na natureza

Em Sophia, observa-se a tendência para representar espaços naturais de infância nos espaços lúdicos das personagens. Por um lado, tal correnponde à tentativa de atender ao interesse dos leitores, apelo a vivências próximas, e por outro a um pretexto para evocar as memórias dos espaços, incluindo a atmosfera e sensações neles vividas. Porém, através da criação de situações lúdicas em algumas narrativas, a autora consegue a caraterização das personagens infantis modelares, mais precisamente quanto aos seus perfis psíquicos. Para além disso, como veremos, deixa transparecer, consciente ou inconscientemente, a conceção da infância e a do brincar/ jogo infantil, ambas estreitamente ligadas.

Em Sophia, as crianças são vistas como seres dotados de imaginação criadora, não mimética, enquanto a atividade lúdica é a forma de conhecer o mundo físico natural, não uma atividade fútil. O brincar/ jogo infantil como expressão do imaginário está patente em A floresta e em A noite de Natal e latente em O Rapaz de

Bronze. Nas duas primeiras obras é com o brincar de construção, de Isabel (A floresta)

e de Joana (A noite de Natal), que a autora evidencia a riqueza interior adquirida no meio doméstico. Embora de forma breve, a autora faz referência à influência das leituras de contos das tradições orais, quanto ao modo como enriquecem o imaginário infantil e se exteriorizam nas brincadeiras.

Inspirada pelas histórias lidas na infância, Isabel constrói a casa do anão num sítio solitário num bosque, servindo-se de resíduos naturais encontrados no local.

216 Veja-se Clara Crabbé Rocha. Os contos exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen,

128

Ajoelhou-se em frente da árvore e com muito cuidado para não fazer cair os telhados e as paredes que tinha construído, estendeu o tapete no chão da casa. Em cima do tapete pôs a cama com o colchão, a almofada e o cobertor. Ao lado pôs a mesa e a cadeira.

Depois, com pedaço de musgo e pequenas pedras, tapou muito bem todos os buracos.217

A longa descrição do trecho não só mostra a seriedade do brincar infantil mas também uma outra caraterística, que aqui é fundamental já que evidencia a capacidade criadora não mimética de Isabel: o predomínio de símbolos, a flexibilidade e a combinação de resíduos da natureza com os de produção humana.

Em A noite de Natal, a descrição do brincar, com materiais auxiliares das brincadeiras de Joana e de Manuel, permite-nos vislumbrar a imaginação criativa de ambos. Oriundos de meios sociais distintos, ela do meio mais privilegiado e ele menos, ambos partilham muitas afinidades que os unem e a partir das quais desenvolvem uma relação de amizade fecunda para ambos na evolução emocional. Veja-se o local de brincar de Joana que remete à evocação do espaço de infância de Sophia:

No jardim debaixo do cedro muito antigo, “com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se existissem, poderiam morar naquelas casa. E fazia uma casa maior e mais complicada para o rei dos anões.218

O trecho seguinte visa sugerir a condição social menos favorecida de Manuel mas a partir dos materiais auxiliares da sua brincadeira vemos a sua capacidade criativa:

Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a parte.219

Em O Rapaz de Bronze, o brincar/ jogo infantil não é patente mas latente. A festa das flores, situação narrativa, lembra-nos, com todas as caraterísticas, o faz de

217

A floresta, ob. cit., 16.

218

A noite de Natal, ob. cit., 7.

219

129 conta das crianças e o entusiasmo com que todas as flores encaram e materializam a imaginação criadora das crianças.

Sophia serve-se aliás da seriedade, caraterística comum do brincar/ jogo infantil e do jogo de nível elevado, como manifestação cultural, para criticar os humanos. Partindo do desejo de diversão do Gladíolo, a festa é concebida imitando as dos homens. Na sua organização, tenta-se investir todos os elementos lúdicos vistos e descodificados pelo Gradíolo, ou seja ser fiel ao modelo. Porém à medida que a preparação avança e com participação de membros da comunidade, as flores mostram-se mais criativas e inovadoras, pois na tentativa de fidelidade ao modelo, em vez de procurar a artificialidade das festas dos homens, retornam à natureza buscando nela novos elementos para os substituir.

A festa das flores acaba por ficar mais bela, mais sagrada do que a dos homens. A festa em O Rapaz de Bronze, no nível mais elevado, é uma expressão da imaginação e da criatividade e encerra uma função social na formação grupal.

Quer num conto quer noutro o brincar/ jogo infantil não é uma atividade fútil, mas é a expressão da imaginação criadora e pode aproximar-se da criação poética, que é o brincar do poeta. Ambas as atividades são o modo de chegar à verdade, o modo de conhecer o mundo no Romantismo em que se valoriza a intuição e a emoção mais do que a razão, caraterística do Iluminismo.

Situando Os ciganos no conjunto de narrativas, observamos que neste conto inacabado, não há situação de brincadeira mas sim um brincar de arame praticado pelos dois jovens ciganos. Com esta modalidade de brincar em que, ao contrário do que sucede com as das restantes narrativas, a natureza e os seus elementos não participam, Sophia está a sugerir, na nossa opinião, que o espírito de Ruy se encontra numa fase de transição, o qual é distinto do espírito infantil e sugere o afastamento do homem da natureza. Paradoxalmente, a ausência do brincar no jardim, espaço afetivo da infância, sugere a importância do mesmo na vida humana. Ao testemunhar e contemplar hipnoticamente o jogo praticado por dois ciganos, Ruy parece conseguir libertar-se parcialmente da tensão até então vivida no seio familiar: “Ruy parou e

130 encostou-se a um pinheiro a olhar. Jamais na sua vida tinha visto beleza igual à do rapaz e da rapariga do arame.”220

2.2 Evocação da infância

Para Sophia, a sua infância constitui uma fonte inesgotável de inspiração da criação literária para adultos e para crianças. A evocação das sensações vividas nesse tempo traduz-se na construção de personagens infantis na fase de encantamento e de descoberta do mundo. Com a liberdade concedida pela família e liberdade interior, todas elas, solitárias, têm a capacidade de se entreter. Através do brincar interagem com a natureza física. Esse tempo identifica-se com o tempo da liberdade, da proximidade e dos convívios intensivos e alegres com a natureza física. O brincar e a aprendizagem confundem-se, é a expressão de liberdade, da imaginação e da criatividade.

A relação alegre da autora com a praia da Granja é transfigurada em A Menina

do Mar nas relações do Rapaz da Terra com os espaços naturais circundantes e

familiares. Na passagem abaixo transcrita, através do ritmo narrativo, Sophia transmite aos leitores a sedução que a natureza física exerce sobre si:

Então foi brincar para as rochas. Começou por seguir um fio de água muito claro entre dois grandes rochedos escuros, cobertos de búzios. O rio ia dar a uma grande poça de água onde o rapazinho tomou banho e nadou muito tempo. Depois do banho, continuou o seu caminho através das rochas. Ia andando para o lado sul da praia, que era um lado deserto para onde nunca ia ninguém. A maré estava muito baixa e a manhã estava linda. As algas pareciam mais verdes do que nunca e o mar tinha reflexos lilases. O rapazinho sentia-se tão feliz que às vezes punha-se a dançar em cima dos rochedos. De vez em quando encontrava uma poça boa e tomava outro banho. Quando ia já décimo banho, lembrou-se que deviam ser horas de voltar para casa. Saiu da água e deitou-se numa rocha a apanhar sol. «Tenho que ir para casa», pensava ele, mas não lhe apetecia nada ir-se embora. E, quando assim estava deitado, com a cara encostada às algas, aconteceu de repente uma coisa extraordinária: ouviu uma gargalhada muito esquisita, parecia um pouco uma gargalhada de ópera dada por uma voz de "baixo”.221

220

Os ciganos, ob. cit., 22.

221

131 O brincar carateriza-se, no início, pela atitude contemplativa e a seguir pelo espírito exploratório. Os verbos de movimento, como “seguir”, “andar”, “continuar”, e o comportamento lúdico como “dançar” sugerem a liberdade usufruída pela personagem humana. Até sair da água e deitar-se, a personagem parece saborear insaciavelmente a sensação de alegria de quem está mergulhado na natureza, vivendo o tempo exterior que é o ciclo da natureza e o tempo interior. O uso de “ter que” sugere o contragosto, o não querer abandonar o espaço natural, de brincar, de liberdade e de alegria:

Seguindo uma estrutura linear semelhante a A Menina do Mar, o conto A

floresta abre com uma breve descrição de um espaço privado cuja riqueza e

diversidade dos elementos aí existentes apelam e favorecem o espírito explorativo de Isabel, a personagem principal: “Era uma vez uma quinta toda cercada de muros. Tinha arvoredos maravilhosos e antigos, fontes, jardins, pomares, bosques, campos e um grande parque seguido por um pinhal que avançava quase até ao mar.”222

Isabel vive neste espaço a sensação de liberdade que se traduz numa relação intensa e ativa, não contemplativa, com o extenso espaço físico descrito pormenorizadamente na forma, cor e feitio. Num ritmo poético e pelo emprego de verbos de ação e de movimento, designadamente “percorrer”, “apanhar”, “esmagar”, “colher”, “ trepar”, “comer”, “subir” e “caminhar”, Sophia mostra o modo de apreensão do mundo duma criança. Os contactos diretos com os elementos da natureza proporcionam a Isabel uma diversidade de experiências sensoriais concretas: Todos os dias ela percorria a quinta. No Outono apanhava castanhas esmagando com o pé os ouriços verdes. No Inverno colhia violetas e camélias. Na Primavera trepava as cerejas para comer as primeiras cerejas doces, escuras e vermelhas. E também subia às árvores onde todos os anos havia ninhos, ninhos redondos feios de ervas, folhas secas e penas e que tinham lá dentro quatro ovos verdes sarapintados de castanho. Caminhava entre o trigo que era como um doce mar, aéreo e leve. Às vezes passava horas a ler sob o caramanchão onde as flores lilases das glicínias pendiam em grande cachos perfumados rodeados de abelhas. Ou caminhava devagar na luz verde do parque escutando o rumor das altas copas dos plátanos. E conhecia o lugar onde, escondidos entre ervas e folhas, cresciam os morangos selvagens.223

2.3 A natureza

222

A floresta, ob. cit., 7.

223

132 A natureza constitui o tema recorrente no conjunto da produção literária de Sophia. Falar da infância, é falar das relações intensas e próximas que se mantém com a natureza física e do seu fascínio com o mar entre outros espaços marcantes dessa fase da formação da filosofia-de vida e da criatividade artística. Com o tratamento do tema da natureza na literatura dirigida à infância, Sophia transmite a imagem da natureza como facilitating environment, incentivando os leitores a descobrirem a sua beleza e mistério e a olharem de uma maneira criativa para a realidade física. Esta imagem encontra-se principalmente em A Menina do Mar e em A floresta, duas narrativas cujos espaços fictícios são inspirados em dois lugares da infância, a praia e a quinta, sendo evocados pormenorizadamente.

Numa linguagem descritiva rica de imagens visuais, Sophia mostra aos leitores de que modo a natureza providencia condições físicas que incitam o espírito explorativo do ser na descoberta do seu meio, com a capacidade de se encantar e a curiosidade pelo desconhecido. Sophia constrói personagens infantis modelares que mantêm uma relação próxima e alegre com a realidade física. A sua construção do espaço com função pragmática e a tendência para criar o cenário de brincadeira sugere simultaneamente o modo de apreensão da realidade física da infância e a valorização do brincar/jogo infantil.

Em A Menina do Mar, a praia e o mar por serem espaços de brincadeiras das personagens conotam a sensação de liberdade e de alegria. O mundo marítimo, no imaginário da persnagem humana é apresentado com a sua beleza e mistério:

Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos. Mas durante a maré alta os rochedos estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo de longe até quebrarem na areia com barulho de palmas. Mas na maré vazia as rochas apareciam cobertas de limos, de búzios, de anémonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal se via.224

Pela utilização recorrente de “Há”, nas suas narrativas dirigidas ao mesmo público, o mundo marinho apresenta-se com grande riqueza e muita cor:

Quando a maré está vazia brincamos nas rochas, quando está maré alta damos passeios no fundo do mar. Tu nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos-

224

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marinhos suspensos na água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia branca, lisa.225

Em A floresta, a natureza é uma das três fontes de conhecimento de Isabel, sendo as outras duas os convívios (i) com o pessoal da casa - a cozinheira e o jardineiro ambos identificados com a sabedoria, o anão, ser sobrenatural com sabedoria secular – e (ii) com a arte encarnada pelo professor de música, Cláudio. Um pequeno bosque que fica perto da casa desperta o seu imaginário, fornecendo-lhe a área de brincar e os materiais que lhe permitem a fusão com o mundo:

Com cascas de plátano, paus e pedras fez muros e telhados à roda do tronco. Depois cobriu os telhados com musgo para proteger a casa da chuva e do frio. Foi buscar canas e cortou-as todas em pedaços iguais com a tesoira de podar as flores que foi pedir emprestada ao jardineiro. E atando com ráfia as canas fez uma porta que se podia abrir e fechar.226

A sedução que os espaços abertos exercem sobre as personagem e o aspeto prazeroso do brincar sempre se confundem. Em A Menina do Mar, por exemplo, o brincar partilhado do Rapaz da Terra e da Menina do Mar é interrompido não pela vontade deles, mas pelo ciclo da natureza, a maré alta. A breve descrição do estado psicológico das personagens nesse momento, quer do Rapaz da Terra, quer dos seus amigos, como veremos a seguir, sugere que eles não estão nem no espaço físico, nem no mundo da imaginação, mas numa outra área onde os dois se encontram ou a área que Winnicott designa por “área intermediária”, a área de brincar ou área de experiência e de imaginação.

A natureza aparece também como algo de reconfortante. Em A Fada Oriana, narrativa elaborada com consciência ecológica e intencionalidade moralizante, a árvore, um elemento da floresta abandonada, representa a natureza-mãe. No momento de aflição, esta abria-se, confortava e restituía forças a Oriana que a procurara após dias física e espiritualmente cansativos numa tentativa de pagar pelo mal que tinha feito. Num gesto de gratidão, Oriana dirige as suas palavras:

- Obrigada, árvore. Apesar de eu já não ter asas, tu viste que eu era uma fada. Quando eu cheguei ao pé de ti vinha triste e cansada, mas tu deste-me a tua paz e cobriste-me

225

Ibid., 15-16.

226

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com as tuas folhas. (…) Mas tu cobriste os meus olhos com as tuas folhas e enquanto eu dormia a minha tristeza desfez-se. Esta manhã é tão verde e tão azul! E eu estou contente porque tenho a certeza de que há um remédio!227.

A noite, por exemplo em A noite de Natal, é alvo da contemplação de Joana que se entrega ao devaneio da noite mágica enquanto espera a hora de jantar. A sua disposição de alma é descrita “foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes. (…) Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava em nada. Olhava a imensa felicidade da noite no alto céu escuro e luminoso, sem nenhum sombra.”228

Em Anjo de Timor, o Liurai enquanto espera o sinal de Deus, entrega-se também à linguagem da natureza. Até conhecer a paz espiritual eterna, encontra, graças à sua atitude criativa perante a natureza física, a paz em seu redor. Esta é favorecida pelo sossego e silêncio da noite. É através do ritmo do discurso narrativo que os leitores partilham o poder apaziguante, relaxante que a natureza e os seus elementos exercem sobre o ser humano: “Escutava os barulhos da noite, o suspiro do vento nas árvores, a voz do mar ao longe, respirava os perfumes da noite – cheiro da terra, aroma das flores, aroma do sândalo. Cheiro distante do mar.229

Em O Rapaz de Bronze, a magia da noite é transmitida através do olhar de Florinda, a única figura humana convidada para a festa das flores. Conta-a às amigas mas ninguém acredita: “Isso foi um sonho. As flores não falam, nem dançam e as estátuas não se mexem.”230 Explica-lhes Florinda: “De noite é tudo diferente.”231

Se em todas as narrativas todos os protagonistas infantis se singularizam pela relação próxima e alegre que mantêm com o mundo físico natural, o mesmo não se verifica em Os ciganos. Neste fragmento do conto inacabado, o ambiente familiar em que vive Ruy tira-lhe a liberdade interior, não lhe permitindo olhar criativamente o mundo externo. No jardim, o seu espaço familiar, a natureza revela-lhe a fase amigável e reconfortante, mesmo assim Ruy não consegue usufruir desta alegria

227

A Fada Oriana, ob. cit., 74.

228

A noite de Natal, ob. cit., 15.

229

O Anjo de Timor, Diário de Notícias, 29 de Dezembro de 1991.

230

O Rapaz de Bronze, ob. cit., 44.

231

135 gratuita. O jovem anseia por outro espaço fora do muro longe das normas familiares vistas como uma ameaça do seu ser:

Era o fim dum dia de primavera. Ruy sentia-se ao mesmo tempo feliz e infeliz. A leveza do ar, a cor vermelha do poente, o brilho e a frescura das árvores, o perfume das flores, a doçura quebrada da luz parecia prometer-lhe uma felicidade maravilhosa. Mas ele não sabia nem como nem quando nem onde a poderia agarrar. Parecia-lhe que, algures no vasto mundo. Se estava a preparar uma festa incrível a que ele não poderia assistir. Porque a festa se passa fora dos muros e ele estava preso dentro dos muros.232

Em O Rapaz de Bronze, narrativa com representação alegórica com predominância do lúdico sobre o didático-moral, Sophia transmite aos leitores a relação que os homens devem estabelecer com a natureza física representada como espetáculo do mundo. A autora critica o afastamento dos homens da natureza na procura da artificialidade. Perdendo auto-estima por não ter sido apreciado como os seus antepassados, o Gladíolo, para se divertir, quer organizar uma festa igual à da dona da casa. Pede a autorização do Rapaz de Bronze que, à noite, exerce a soberania no jardim. Estas críticas são patentes num diálogo entre os dois em que O Rapaz de Bronze tenta, embora sem sucesso, encorajar o Gladíolo a olhar para a realidade física com uma perspetiva mais criativa, ou seja entreter-se com o que a natureza lhe oferece. Com os seus ciclos, esta proporciona aos homens experiências sensoriais diversificadas. É através da perceção dos dois sobre a “festa” que os leitores poderão deduzir a distinção entre o que é artificial e o que é natural. Num lado, temos a festa “organizada” pelo Gladíolo e no outro temos “festas” gratuitamente oferecidas pela natureza. A procura de uma festa “organizada” é a procura do que é artificial, é afastar o que é natural:

- Uma festa igual às dos homens? Mas para quê? Nós não precisamos de mais festas. Para nós tudo é uma festa: é uma festa o orvalho da manhã, é uma festa a luz do sol, é uma festa a brisa da tarde, é uma festa a sombra da noite. As flores não precisam de outras festas. E eu também não.233

Partindo da iniciativa do Gladíolo, a festa das flores, com a censura e intervenção do Rapaz de Bronze, acaba por envolver toda a comunidade composta