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Capítulo II Ligação, separação e inventividade 1 Poesia: a solução

1.1 Sonoridade, ritmo e rima

2.1.1. Nostalgia criativa: o brincar e as vozes

A evocação das memórias de infância de Cecília está intimamente ligada aos momentos afetivos e lúdicos por ela vividos e às vozes de duas figuras familiares: a avó e Pedrina. Essas duas senhoras são as principais responsáveis pelos cuidados de Cecília, na altura da sua infância, e pela provisão de experiências culturais, nas quais se incluem o primeiro contacto com a poesia, bem como com algumas formas das tradições orais de Portugal, incluindo as dos Açores, e as do Brasil. Se essas vozes são ouvidas diariamente nos momentos de distração nos seus primeiros anos, confundem- se com a poesia, a par da alegria e do jogo-brincadeira infantil. São apreciadas e voltam a ser recordadas constantemente num tempo posterior, na vasta criação literária que recorre à infância como uma fonte inspiradora inesgotável.

As vozes da avó e de Pedrina, que são recordadas amplamente em Olhinhos de

Gato, já surgem transfiguradas em Criança meu amor: em “Vovozinha” e

“Lembrança”, respetivamente. Nestes dois textos, Cecília aproveita dois momentos afetivos da infância para fazer chegar aos leitores atitudes e comportamentos exemplares, mais precisamente a gratidão, que é um dos valores preconizados em

47 Em “Vovozinha”, a frase de abertura indica que este texto é uma memória de infância da autora e o uso do diminutivo “zinha” no título denota um grande carinho pela figura evocada, a avó: “Quando eu era pequena, muito pequenina, a avozinha cantava uma coisa assim: (…)”.86

Como os restantes minitextos narrativos e poéticos que compõem a antologia, estes versos tematizam situações familiares na esfera da vida infantil – neste caso concreto, o momento afetivo e lúdico em que prevalece a interação avó-neta mediada pela poesia popular. A quadra proferida pela avó, cujo conteúdo sugere que deveria ter causado medo na criança, provoca-lhe, afinal, o efeito oposto, o que mostra uma relação de proximidade e ternura, de forte afeto, entre as duas: “E eu ria, ria muito, porque a vovozinha era muito engraçada, cantando isso.” O momento lúdico providenciado pela avó em “Vovozinha” é reconhecido como uma dádiva merecedora da retribuição da menina: “Quando eu crescer, vovozinha, eu te darei uma porão de anéis, feitos de estrelas, para enfeitares as mãos… (…).”87

“Lembrança”, como o próprio título sugere, conta uma memória da autora, o que se confirma logo na primeira frase do texto pelo emprego do verbo “escurecer”, no pretérito mais que perfeito, tempo verbal que nos remete para um passado longínquo, o tempo da infância. Esta distância temporal reforça-se no segundo parágrafo: “Foi há muito tempo… há muito tempo…”88 A transcrição de um trecho da ronda infantil mostra de que modo o episódio da infância permanece vivo na memória da adulta: “Vamos passear na floresta! / Enquanto o lobo não vem!”89 Neste texto, ao contrário do que acontece em “Vovozinha”, a canção de roda que se ouve ao longe aparece como um dilema para a criança: abandonar a ama doente indo conviver com outras crianças lá fora ou ficar a fazer-lhe companhia? Para manifestar um gesto de gratidão para com a ama, uma atitude exemplar que se pretende inculcar nos leitores, consegue resistir ao apelo da brincadeira: “- Quando estou doente, tu não me deixas, nunca. Também agora eu não te quero deixar… (…).” O desejo reprimido, no entanto, deixa o seu eco no refrão que fecha a narrativa e que reforça uma vez mais a memória

86

In Criança meu amor, ob. cit., 87.

87 Ibid.. 88 Ibid., 91. 89 Ibid..

48 viva desse momento lúdico evocado: “Vamos passear na floresta, / Enquanto o lobo não vem!”90

Outro dos quatro textos poéticos reunidos em Criança meu amor, “Cantilena”, Cecília mostra com a simulação da situação de brincar com a boneca, de que modo as experiências culturais oferecidas pelo meio enriquecem o mundo psíquico duma criança e permanecem na sua memória. A brincadeira de boneca do sujeito inspira-se nos resíduos da memória de infância e de uma forma da tradição oral, a canção de embalar que marca o seu dia-a-dia. Com ela estabelece a nova relação transfigurando- a nos jogos-brincadeira em tempo posterior: embalando a sua boneca representada como seu interlocutor e confidente.

Este texto, na nossa opinião, mostra duas caraterísticas da poesia infantil de Cecília: a preocupação com o quotidiano infantil e o brincar como matéria de interesse dos leitores e o culto da poesia das tradições orais. Cecília busca as reminicências de infância para a criação destinada às crianças que é a sua brincadeira enquanto adulta. Cultiva a poesia das tradições orais, com a qual estabelece a nova relação, criando o seu próprio estilo, sendo uma delas a canção de embalar, uma das formas mais familiares aos leitores. Tal como o sujeito poético, no texto que passaremos a transcrever, Cecílila passa de recetora passiva do património comum, com a sua criação individual, a ser uma voz transmissora ativa:

Bonequinha, bonequinha, Dorme, dorme sossegada, Dorme, dorme, filha minha!

Bonequinha muito amada, Oxalá que embalem crianças Como tu és embalada!...

De palavras mansas, mansas, Faço a minha cantilena, Com pedaços de lembranças

Dos meus tempos de pequena… Era assim, a mesma toada

90

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Que eu dormia, bem serena…

Bonequinha muito amada, Ninguém no mundo adivinha Como tu és embalada!

Dorme, dorme, filha minha, Dorme, dorme sossegada, Bonequinha, bonequinha, Bonequinha muito amada!...91