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Capítulo III – Ligação, separação e inventividade

3. Problematização da literatura para a infância e juventude

1.1 A narrativa poetizada

Escritos em prosa, os contos de Sophia possuem ritmo e tom poético. Como observa Silva, o ritmo não é uma qualidade exclusiva da poesia, mas também da prosa:

No texto em prosa, o ritmo resulta da estrutura das frases e tem portanto uma matriz linguística; no texto em verso, o ritmo resulta primordialmente do esquema de acentos (ictos), do número de sílabas ou da combinação de pés longos e breves, que carateriza um determinado verso e deriva por conseguintes de um conjunto de convenções translinguísticas, isto é, pertencentes ao sistema modelizante secundário. 202

Em Sophia, o ritmo e o tom poético resultam da adequação do nível de linguagem à competência linguística dos leitores. Cultivando a representação por imagens, que é um dos recursos estilísticos inspiradores, Sophia torna a mensagem formadora acessível aos leitores, evitando a infantilização da linguagem e introduzindo particularidades estilísticas. Observa Matos a propósito da inventividade na sua relação com a narrativa da área do mito:

201 Fernando Pinto do Amaral, “As escolhas de Sophia. Assombro e inteireza em algumas

histórias para crianças,” in XVII Encontro de Literatura para Crianças. Contado às crianças, Ana Gaiaz (coord.), (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006), 57.

202

Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria e metodologia literárias (Lisboa: Universidade Aberta, 2004), 591.

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Dir-se-ia que a contadora, através das suas “variações e divagações”, transfigura e amplia certos recursos estilísticos presentes nos contos tradicionais, introduzindo outros elementos inerentes ao seu discurso poético. 203

A mesma autora observa as caraterísticas sintáticas dos discursos: “São contos de frases geralmente curtas, pontuadas por marcadores coordenativos que vão ritmando a narrativa e entusiasmado a criança leitora/ ouvinte.”204 Mota referiu o polissíndeto, uma das figuras recorrentemente utilizadas, que confere continuidade e fluidez aos discursos. Em termos de sintaxe, Gomes não só aponta para o efeito rítmico produzido para o mesmo: “estruturas frásicas e discursivas aparentemente elementares.”205 Este ainda especifica a utilização recorrente de figuras retóricas de construção designadamente a anáfora, o polissíndeto, a aliteração e a assonância. Segundo Gomes, é notável a adequação do discurso ao nível da competência linguística dos destinatários. Permitimo-nos ilustrar as observações de Gomes com alguns trechos retirados de A Menina do Mar, Anjo de Timor e Os ciganos.

No trecho que transcrevemos, Sophia serve-se da estrutura anafórica para transmitir aos leitores a intensidade do desejo da Menina do Mar em conhecer a terra depois de viver pela primeira vez experiências sensoriais com as coisas que não fazem parte da sua realidade no mundo marinho: a experiência olfativa com a rosa, o fósforo e o vinho:

É bom é alegre. Agora já sei o que é a terra. Agora já sei o que é o sabor da primavera, do verão e do outono. Já sei o que é o sabor dos frutos. Já sei o que é a frescura das árvores. Já sei como é o calor de uma montanha ao sol. Leva-me a ver a terra. Eu quero ir ver a terra. Há tantas coisas que eu não sei. O mar é uma prisão transparente e gelada. No mar não há primavera nem outono. No mar o tempo não morre. As anémonas estão sempre em flor e a espuma é sempre branca. Leva-me ver a terra.206

Em Os ciganos, é através da utilização da redundância das expressões “que o mandava”, da palavra “quando” e do polissíndeto que a autora passa aos leitores o ambiente pesado no seio familiar e o estado de tensão vivido pelo jovem Ruy:

203

M. Luísa Sarmento Matos, Os itinerários do maravilhoso. Uma leitura dos contos para crianças de Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto: Porto Editora, 1993), 88.

204

Ibid.

205

João António Gomes, “Sophia de Mello Breyner Andresen e a sua obra para crianças e jovens”, Malasartes, 14, 2005, 3.

206

123

Estava preso pelas ordens que o mandavam levantar quando tinha sono e que o

mandavam deitar quando não tinha sono, que o mandavam estar quieto quando queria

correr e que o mandavam estudar quando queria cismar, e que o mandavam para a sala conversar com tias e primos quando ele só queria estar sozinho, deitado na relva, cismando à sombra da tília, no fundo do jardim.207

Ainda em Os ciganos, o estado de tensão é sugerido pela anáfora e pelo paralelismo. A rima no fim das primeiras quatro linhas faz com que a passagem abaixo transcrita evoque um poema:

Foge! Foge destes homens que são o seu amargo destino. Foge destes homens que dominam o peso do seu próprio corpo. Foge destes homens que dominam os espaços e os momentos. Foge destes homens cujos movimentos não conhecem laços.

Foge destes homens que vencem o terror. Foge destes homens que jogam com a morte.

Mas Ruy seguiu os ciganos.208

Martins, no trabalho centrado nas narrativas para diferentes públicos, analisa a utilização e o valor dos processos repetitivos presentes em todos os contos estudados. Segundo a estudiosa, estes processos “para além de criarem um ritmo na escrita, apoiam sobretudo a memória e a compreensão da leitura por parte das crianças e dos adultos menos treinados nos processos de descodificação textual”.209

Vejamos por exemplo dois diálogos retirados de O Rapaz de Bronze, nos quais a exemplaridade dirigida aos homens é realçada com a figura de construção redundância. No primeiro excerto deparamo-nos com a repetição da palavra “festa”, no singular e no plural, apresentada com duplo sentido, sendo o literal dito pelo Gladíolo e o figurado pelo Rapaz de Bronze.

- Preciso de te pedir um favor. Quero que me dês licença para eu organizar uma festa:

uma festa aqui no jardim, uma festa de flores igual às festas dos homens.

“- Uma festa igual às dos homens? Mas para quê? Nós não precisamos de mais festas. Para nós tudo é uma festa: é uma festa o orvalho da manhã, é uma festa a luz do sol, é

207

Andresen, e Pedro Sousa Tavares, Os ciganos (Porto: Porto Editora, 2012), 18, grifo nosso.

208

Ibid., 24, grifo nosso.

209

Marta Martins, Ler Sophia – Os valores, os modelos e as estratégias discursivas nos contos de Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto: Porto Editora, 1995), 64.

124 uma festa a brisa da tarde, é uma festa a sombra da noite. As flores não precisam de

outras festas. E eu também não.210

No diálogo seguinte entre o Rapaz de Bronze e a Comissão de Organização do Grande Baile das Flores, a expressividade do discurso é reforçada pelo mesmo processo. É com a palavra “flor”, elemento do mundo natural com carga simbólica, que Sophia inculca nos leitores a atitude que se deve assumir no estar no mundo, nas relações sociais, criticando a discriminação ou a hierarquização social e valorizando em vez disso o tratamento por igual. Assiste-se à repetição por quatro vezes da expressão “Todas as flores”, por parte do Rapaz de Bronze, voz da sabedoria e da autoridade, que representa a atitude exemplar, e a utilização por duas vezes de “algumas flores” ditas pelo Gladíolo e pela Tulipa que representam a atitude censurável. É com “Todas as flores”, a atitude exemplar proferida pelo Rapaz de Bronze que Sophia inicia e fecha o diálogo, utilizando o verbo ser na terceira pessoa do singular e do plural também que está presente em todas as frases simples com a mesma estrutura como elemento de ligação.

- Temos de escolher as flores mais bonitas, as mais célebres, as de melhor qualidade” - Mas há algumas flores que não são bem flores”.

- Todas as flores são bonitas – disse o Rapaz de Bronze.

- Mas há algumas flores que não são bem flores – disse o Gladíolo.

- Todas as flores são flores – respondeu o Rapaz de Bronze muito zangado. - Ah? O Tojo e a Urze também são flores? – perguntou a Begónia.

- O Tojo e a Urze – disse o Rapaz de Bronze – são flores maravilhosas porque todas

as flores são maravilhosas. Mas um Tojo e um Nardo são diferentes e é por isso que o

mundo é tão bonito. Eu sou o rei do jardim. Quero que sejam convidadas todas as

flores. (…).211

Em A noite de Natal, Joana fica a conhecer a pobreza através de Manuel, realidade até então desconhecida no seu mundo privilegiado e protegido. Mas a compreensão dessa realidade é transmitida por Gertrudes, a cozinheira que é vista por Joana como alguém que “Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens. (...).”212 Nos dois diálogos entre as duas personagens, na noite de Natal, Sophia põe em

210

O Rapaz de Bronze (Porto: Porto Editora, 2012), 20-21, grifo nosso.

211

Ibid., 28-29, grifo nosso.

212

125 justaposição o limitado conhecimento do real de Joana com a vasta experiência de vida de Gertrudes.

Sophia dá a voz a Gertrudes, personagem caracterizada pela simplicidade de linguagem que evidencia a noção de pobreza a propósito da celebração familiar do Natal - festa bem conhecida das crianças/leitores que inevitavelmente a associam à receção de presentes. A palavra “verdade” com duplicidade de sentido, escolhida para provocar ambiguidade é distribuída ao longo do diálogo. Marca o fim da pergunta de Joana que inicia o diálogo, é retomada por Gertrudes no meio do diálogo, desta vez a fim de contrastar com o antónimo “a fantasia”, e por último é retomada pelas duas personagens. Marca o fim da frase de ambas.

- Gertrudes, aquilo que dissestes antes do jantar é verdade? - O que é que eu disse?

- Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes.

- Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore de Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza. - Mas então o Natal dele como foi?

- Foi como nos outros dias. - E como é nos outros dias? - Uma sopa e um bocado de pão. - Gertrudes, isso é verdade? - Está claro que é verdade. (...).213

Na mesma narrativa, no capítulo “a estrela”, Sophia utiliza repetidamente o verbo “caminhar” com duplo sentido, literal e figurado, neste caso com a conotação de “avançar”, “não desistir” para descrever a viagem da Joana. A caminhada solitária duma criança, à noite, tem carga simbólica.

“Tenho medo”, pensou ela. Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada. “Será possível que eu chegue até lá?”, pensou Joana.

Mas continuou a caminhar. (…)

“Tenho frio”, pensou Joana. Mas continuou a caminhar. (…) “Para que lado ficará a cabana?”, pensou ela. (…)

“Como é que hei-de encontrar o caminho?” perguntava ela.

213

126

E levantou a cabeça.

Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava. “Esta estrela parece um amigo”, pensou ela.

E começou a seguir a estrela. (…).214

O mesmo verbo é utilizado para acentuar a exemplaridade do Cavaleiro da Dinamarca. Durante a viagem de regresso, da pequena casa dos lenhadores até casa, surge uma série de contratempos de vária ordem, no entanto nada o desencoraja de avançar para cumprir a promessa feita à família. A viagem durante a noite pela floresta coberta de neve era difícil, correspondendo às palavras de advertência do velho da pequena aldeia de lenhadores que o avisara sobre o estado do tempo, a escuridão e o perigo dos animais selvagens. Numa certa altura, o herói hesita entre “voltar para trás”, “continuar para a frente”. Viajou no meio da neve, perdeu-se na treva da noite e não conseguiu localizar o rio. Descreve Sophia: “E o Cavaleiro entre silêncio e treva continuou a caminhar para a frente. Caminhava ao acaso, levado por pura esperança, pois nada via e nada ouvia. As ramagens roçavam-lhe a cara e caminhava sem norte e sem oriente.”215