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A educação republicana em Condorcet

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

TIAGO ANDERSON BRUTTI

A EDUCAÇÃO REPUBLICANA EM CONDORCET

Ijuí 2014

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TIAGO ANDERSON BRUTTI

A EDUCAÇÃO REPUBLICANA EM CONDORCET

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, vinculado ao Departamento de Humanidades e Educação da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Educação nas Ciências.

Linha de pesquisa: Teorias pedagógicas e dimensões éticas e políticas da educação

Área de concentração: Filosofia

Orientador: Paulo Evaldo Fensterseifer

Ijuí 2014

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B913e Brutti, Tiago Anderson.

A educação republicana em Condorcet / Tiago Anderson Brutti. – Ijuí, 2014. –

128 f. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí e Santa Rosa). Educação nas Ciências.

“Orientador: Paulo Evaldo Fensterseifer”

1. Educação republicana. 2. República. 3. Sentimentos morais. I. Fensterseifer, Paulo Evaldo. II. Título.

CDU:

37(091)

37:17

Catalogação na Publicação

Aline Morales dos Santos Theobald CRB10/1879

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TIAGO ANDERSON BRUTTI

A EDUCAÇÃO REPUBLICANA EM CONDORCET

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, do Departamento de Humanidades e Educação da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Educação nas Ciências.

COMISSÃO JULGADORA

Prof. Dr. Paulo Evaldo Fensterseifer

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Prof. Dr. Claudio Boeira Garcia

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Profa. Dra. Adriana Mattar Maamari

Universidade Federal de São Carlos Prof. Dr. José Pedro Boufleur

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Profa. Dra. Helena Copetti Callai

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Prof. Dr. Clemente Herrero Fabregat

Universidad Autónoma de Madrid

Aprovada em: 22 de abril de 2014

Local de defesa: Campus de Ijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de exprimir sentimentos de reconhecimento e admiração a alguns dentre os muitos cidadãos que, investidos de suas responsabilidades institucionais e sociais, estiveram presentes nos diferentes momentos dedicados à elaboração desta tese.

Recordo especialmente Elso e Eronilda - minhas principais referências familiares - cidadãos brasileiros e italianos que cultivaram em mim a crença na potência emancipadora da educação.

Agradeço aos doutores Paulo Evaldo Fensterseifer e Claudio Boeira Garcia, pela orientação desde os primeiros passos da pesquisa, sobretudo pelo espírito de exame, tolerância e confiança no meu ânimo e lucidez.

À Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências e ao Grupo de Pesquisa em Teorias Pedagógicas e Dimensões Éticas e Políticas da Educação, pelas boas relações, infraestrutura e outros recursos oferecidos no âmbito do Curso de Doutorado.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo atendimento dispensado aos doutorandos bolsistas incluídos no Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUP Cursos Novos), especialmente pelo financiamento do Projeto de Pesquisa “Educação: Intergênese dos Campos Epistêmico, Ético-Político e Pedagógico na Aprendizagem das Ciências” e do estágio na Universidade Autônoma de Madri, através do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), sob a co-orientação do doutor Clemente Herrero Fabregat.

À Universidade de Cruz Alta, ao Centro de Ciências Humanas e Sociais e ao Curso de Direito, por terem confiado a mim o exercício de atividades na Academia. Muito obrigado, companheiros de docência e bravíssimos alunos, particularmente pela amabilidade, atenção, tolerância, e pelos belos momentos de interlocução e distração.

Por terem aceito generosamente o convite para avaliar a tese e pelas valiosas sugestões que apresentaram, gostaria de identificar, entre os doutores que ainda não foram nominados, os professores José Pedro Boufleur, Adriana Mattar Maamari e Helena Copetti Callai.

Aos meus companheiros de doutoramento e aos interlocutores presentes na entrevista de admissão, na banca de qualificação do projeto, nos seminários de tese e nas bancas de qualificação e defesa final, pelas importantes orientações e contribuições.

Gostaria, enfim, de dirigir aos meus irmãos, sobrinhos, tios, primos e amigos os meus melhores desejos, por compartilharem comigo afetividades e ideias.

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A Educação Republicana em Condorcet

RESUMO

As principais teses de Condorcet acerca da forma de governo republicana, da instrução pública e do exercício da cidadania, expostas à época das revoluções havidas nos Estados Unidos da América e na França, ao final do século 18, foram examinadas, neste texto, com o propósito de evidenciar a atualidade desses enunciados no contexto das sociedades republicanas e democráticas do século 21, em particular das instituições educacionais. A investigação, de base bibliográfica, constitui um esforço hermenêutico de revisitar a literatura em torno de textos do autor e de importantes comentadores. Ela se estrutura da seguinte maneira: o primeiro capítulo explicita ideias morais de Condorcet e as associa, sobretudo, a temas tais como a verdade na esfera pública, princípios racionais e direitos naturais; o segundo analisa narrativas e argumentos político-normativos do autor relativos à configuração de república e de suas instituições; o terceiro explana sua proposta de instrução pública, salientando que ela favorece o exercício da cidadania; o quarto enfatiza a atualidade de aspectos da obra de Condorcet nos cenários político e educacional do Brasil. Dentre as proposições matriciais presentes em textos do filósofo, foram elucidadas as que seguem: os âmbitos da moral, da política e da educação, a rigor, são indissociáveis; os sentimentos morais, ao serem racionalmente cultivados, asseguram uma interdependência entre a felicidade individual e a felicidade pública; a república e o exercício da cidadania exigem uma opinião pública ilustrada; ao contrário do que ocorre no caso de um despotismo político, a instrução pública e a instituição do cidadão republicano asseguram a independência do indivíduo, a igualdade, a liberdade e o bem-estar comum; a instrução compete ao poder público e não deve associar o cultivo da moral ao ensino de uma doutrina religiosa ou ideológica; o laicismo, estimulado entre os cidadãos nas instituições republicanas, garante na esfera pública o predomínio de um espírito público, ao invés de consagrar um espírito de facção, partido ou seita; a educação republicana deve conceder aos cidadãos condições de conhecer elementos das ciências e das artes, bem como direitos e deveres aos quais estão obrigados; deve estimular o respeito à lei, assim como o gozo de direitos tais como os de transformar a lei e resistir à opressão; deve corresponder às possibilidades abertas pelos progressos e pela perfectibilidade dos homens, assim como desvelar e desenvolver talentos e profissões; deve, além de transmitir definições, valores e rotinas de aplicação técnica, estimular o exercício da cidadania e, pela redução das desigualdades sociais, favorecer uma organização social mais equânime e livre; deve reconhecer e respeitar as diferenças nas capacidades de aprendizagem, bem como evitar hierarquias escolares discriminadoras; os indivíduos devem ser preparados para que continuem aprendendo depois de sair da escola, a fim de que possam reconhecer seus deveres e os motivos pelos quais devem cumpri-los; a desigualdade de riquezas constitui um problema nodal para a efetivação de princípios e direitos declarados inegociáveis e imprescritíveis. Em outros termos: a investigação, desse modo articulada, ateve-se à explicitação de conceitos-chave de Condorcet, tais como os de república, instrução pública, espírito público, cidadania e sentimentos morais, com o propósito de pensar elementos e justificativas da educação republicana atual.

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The Republican Education in the View of Condorcet

ABSTRACT

The main theses of Condorcet in respect of the republican form of government, public instruction and citizenship, exposed at the time of the revolutions in the United States and France, at the end of the 18th century, were examined in this text with propose to demonstrate the relevance this statements in the context of the republican and democratic societies of the 21st century, particularly in educational institutions. This research uses a bibliographic’s base and devolepment a hermeneutical effort to revisit the literature around the Condorcet’s texts and important commentators. It is structured as follows: the first chapter explains the moral ideas of the author and associates their, especially about issues such as truth in the public sphere, rational principles and natural rights; the second chapter examines narratives and political-normative arguments to think about the configuration of the republic and its institutions; the third one explains the proposes of the public instruction, highlighterning the exercise of citizenship; the fourth chapter emphasizes the relevance of aspects of the Condorcet’s work in the Brazil’s political and educational scenarios. Among the propositions present in the texts of Condorcet, are explained as the following: strictly speaking, the areas of morality, politics and education are inseparable; the moral sentiments can be rationally cultivated, and ensure interdependence between individual happiness and public happiness; the republic and the citizenship require an illustrated public opinion; contrary to what occurs in the case of a political despotism, the public instruction and the institution of the republican citizen shall ensure the independence of the individual, equality, freedom and the common welfare: the instruction is for the government and should not involve the cultivation of the moral teaching of a religious or ideological doctrine and the secularism, stimulated, this way, among the citizens, in republican institutions, ensuring the dominance in the public sphere of a public spirit, instead of devoting a spirit of faction, party or sect; the republican education should garanties to the citizens the knowledge of the sciences and arts, as well as the rights and obrigations as required; should stimulate the respect of the law, as well as enjoyment of rights such as to change the law and to resist the oppression; it must correspond to the possibilities opened up by progress and the perfectibility of man, as well as awaken and development talents and professions; in addition as at definitions, values and routines of technical application, the republican education should encourage citizenship, through a reduction of social inequalities, favoring a more equal and free social organization; it must recognizing and respect differences in learning abilities and avoid discriminating the school’s hierarchies; the individuals must be prepared to learning on after leaving school, them can recognize their obrigations and the reasons why should fulfill them; the inequality of wealth is the major problem for the realization of principles and rights declared nonnegotiable and imprescriptible. In other words: this research, articulated this way, explanes the key concepts of Condorcet, such as the republic, public instruction, public spirit, citizenship and moral sentiments, for the purpose of thinking elements and justifies of the current republican education.

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SUMÁRIO

Introdução: INSTRUÇÃO PÚBLICA REPUBLICANA... 009

Capítulo 1 - SENTIMENTOS MORAIS E PRINCÍPIOS REPUBLICANOS... 020

1 Racionalidade Comum e Sentimentos Morais... 021

2 Princípios Racionais e Direitos Naturais... 030

3 Inconveniência de Enganar o Povo... 041

Capítulo 2 - REVOLUÇÕES SOCIAIS E REPUBLICANISMO... 052

1 O exemplo das Repúblicas dos Estados Unidos e da França... 052

2 Igualdade, Liberdade e Bem-Estar Comum... 061

3 Legislação, Despotismo e Laicismo... 067

Capítulo 3 – INSTITUIÇÃO DO CIDADÃO E EDUCAÇÃO REPUBLICANA... 077

1 Instrução Pública e Educação... 078

2 Conhecimentos Elementares e Graus de Instrução... 088

3 Formação Moral e Exercício da Cidadania... 095

Capítulo 4 – ASPECTOS ATUAIS DA EDUCAÇÃO REPUBLICANA... 106

Considerações Finais... 115

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I n t r o d u ç ã o

INSTRUÇÃO PÚBLICA REPUBLICANA

Este estudo explicita teses referenciais de Condorcet acerca da forma de governo, do modo de exercício do poder público, bem como da instrução pública republicana, com o propósito de evidenciar que, para o autor, moral, república e instrução são assuntos que se vinculam; e que, ao contrário do que ocorre num despotismo político, a instrução pública e a instituição do cidadão asseguram a independência do indivíduo, a igualdade, a liberdade e o bem-estar comum. Evidencia, mais que isso, que argumentos de Condorcet se afinam ou prenunciam elementos políticos e educacionais distintivos das novas repúblicas estabelecidas ao final do século 18. Tais aspectos permitem, por um lado, destacar a originalidade das instituições republicanas daquele século e, por outro, considerar a relevância de enunciados do autor no contexto de debates acerca da educação republicana1 contemporânea. Em resumo: são examinados aspectos importantes dos ideários de república e de instrução pública advogados pelo filósofo, aspectos que desafiam instituições políticas e educacionais atuais e que, resguardadas as diferenças, foram amplamente debatidos no contexto das revoluções havidas nos Estados Unidos da América e na França2. A investigação, desse modo articulada, ateve-se à explicitação de conceitos-chave inscritos no edifício teórico e argumentativo do autor com o propósito de pensar justificativas práticas e morais da educação republicana atual.

1 A expressão “educação republicana” será empregada ao longo do texto, sobretudo no último capítulo, com o

sentido de configuração de ensino articulado pela república para a instrução dos cidadãos. A expressão “instrução pública”, por sua vez, é empregada por Condorcet - especialmente nas “Cinco memórias sobre a instrução pública” (1791) e no “Relatório e projeto de decreto sobre a organização geral da instrução pública” (1792) - para indicar um programa de ensino estendido igualmente a todo o povo e sob a responsabilidade, mas não o absoluto controle, do poder público. Termos tais como instrução pública, instrução republicana, educação pública, ensino, escolarização, educação formal e educação institucional, independentemente dos graus em que se classifiquem ou dos estatutos a que correspondam, equivalem, no limite das premissas e dos propósitos desta tese, à educação republicana, instituída ou licenciada pela república e, na medida dos princípios e direitos que aqui serão destacados, assemelhada ao projeto de instrução pública apresentado por Condorcet.

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Garcia pondera a esse respeito: “Em tempos de radicais embates e transformações políticas nas estruturas e justificações da sociabilidade humana não é irrelevante considerar que, desde o século 18, a recorrência aos termos república e democracia e a ideia jurídico-normativa de que é obrigação da república garantir a instrução universal de seus cidadãos não tenham sido objetos de contestação programática; que divergências significativas se estabeleceram na disparidade de significações e de formas com que diferentes sociedades conceberam e ordenaram, desde aí, suas instituições e atividades educacionais” (2009, p. 192). Todorov, por sua parte, indaga sobre qual base intelectual e moral, com o enfraquecimento das utopias, queremos construir uma vida comum: “Para nos comportarmos como seres responsáveis, precisamos de um plano conceitual que possa fundamentar não somente nossos discursos, o que é fácil, mas também nossos atos [...] Durante os três quartos de século que precedem 1789 produziu-se uma grande reviravolta que, mais do que qualquer outra, é responsável por nossa presente identidade. Pela primeira vez na História, os seres humanos decidem tomar nas mãos seu destino e colocar o bem-estar da humanidade como objetivo principal de seus atos. Esse movimento emana de toda a Europa [é justo acrescentar: dos Estados Unidos] e não apenas de um país, exprime-se através da filosofia e da política, das ciências e das artes, do romance e da autobiografia” (2008, p. 9-10).

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A obra de Condorcet, em seu conjunto, tem sido analisada sob diferentes perspectivas, especialmente a partir do final do século 20. Leitores atuais, informados pelos argumentos do republicanismo do século 18, não hesitam em evocar textos do autor em relação às grandes questões contemporâneas da moral, da política, da educação e de suas instituições, do laicismo e do exercício da cidadania, ainda que não os retomem com a pretensão de torná-los chave explicativa para tudo. Condorcet, na opinião de tais leitores, exprime responsabilidade para com a república e a educação republicana. Sua vida e obra constituem um exemplo de trajetória intelectual marcada pelo rigor e pela liberdade.

Entre os principais comentadores da obra de Condorcet aqui referidos, destaco Albertone (1983), Badinter e Badinter (1988), Kintzler (1984), Coutel e Kintzler (1994), Coutel (2004) e Silva (2004). Albertone, ao organizar o livro “Reflexões e notas sobre a educação”, recuperou escritos de Condorcet a respeito da educação produzidos entre 1773 e 1782. Kintzler relacionou a obra do autor com a de seus contemporâneos no livro “Condorcet: a instrução pública e o nascimento do cidadão”. A comentadora analisou a correlação entre instrução pública e política na obra do filósofo. Um dos méritos desse livro é reconhecer uma perspectiva própria para o autor no cenário da Ilustração. Badinter e Badinter escreveram a biografia “Condorcet: um intelectual em política”, permitindo-nos conhecer o autor em seu contexto histórico. Coutel, juntamente com Kintzler, introduziram o livro “Cinco memórias sobre a instrução pública3”, correlacionando a instrução com o ideário republicano de Condorcet. Coutel descreveu no livro “Condorcet: instituir o cidadão” princípios republicanos e enfatizou a importância do exercício da cidadania e da instrução pública na obra do autor. Silva, por seu turno, no texto “Instrução pública e formação moral: a gênese do sujeito liberal segundo Condorcet”, mostrou com rigor a proposta do filósofo para o ensino público da moral, revelando a força de seu argumento favorável a uma formação racional e universalista.

O texto “Cinco memórias” estabelece, no essencial, as diretrizes do “Relatório e projeto de decreto sobre a organização geral da instrução pública4”, projeto que Condorcet apresentou à Assembleia Nacional, em nome do Comitê de Instrução Pública, mas que foi rechaçado no tumultuoso ano de 1792. Ao analisar, na primeira obra, a natureza e os objetivos da instrução pública, o filósofo distingue educação e instrução, distinção relevante para se compreender o espírito desses textos. Tal diferença será examinada ao detalhe no primeiro item do último capítulo. O “Relatório e projeto” descreve uma lei geral para a organização da

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Originalmente: “Cinq mémoire sur l’instruction publique”. Essa obra será indicada abreviadamente como “Cinco memórias”.

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instrução pública na nação francesa. O “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano5” (1794), por sua vez, foi escrito quando seu autor estava na clandestinidade. Nesse livro, Condorcet, além de explicitar reflexões e juízos a respeito do gênero humano, de forma retrospectiva e prospectiva, também encontra na discussão sobre a instrução pública um de seus eixos temáticos.

As obras “Esboço”, “Cinco memórias”, “Relatório e projeto”, “Escritos sobre a instrução pública6”, bem como uma coleção de textos do autor, compilada sob o título “Escritos político-constitucionais”, foram publicadas no Brasil nos últimos anos. Em nosso país, alguns livros, teses, dissertações e artigos abordam diretamente a obra de Condorcet para analisar sua proposta de instrução pública7. Outros estudos relacionam a obra do filósofo com a de outros autores8. Poucas pesquisas tem se dedicado a analisar a filosofia moral de Condorcet, mas isso, como ressalta Silva (2004), não se deve a uma ausência de escritos aprofundados do autor sobre o tema, porquanto são muitas as considerações morais contidas no próprio “Esboço” ou nas “Cinco memórias”.

Os filósofos das luzes buscavam, em geral, interpretar livremente a condição humana e o mundo social do qual participavam. Eles, não obstante, entendiam ser imprescindível ir modificando as configurações desse mundo que os comovia e, em certos aspectos, os desapontava. Para compreender esse movimento filosófico, há que se distinguir os sentidos das palavras Ilustração e iluminismo9: a primeira diz respeito a um amplo movimento

5 No original: “Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain”. Doravante, essa obra será

referida, simplesmente, como “Esboço” ou “Esquisse”.

6 Tradução brasileira para as “Reflexões e notas sobre a educação”, uma coleção de textos e notas de Condorcet

organizada pela pesquisadora italiana Manuela Albertone.

7 Menciono a tese “Aspectos lúdicos da perfectibilidade política em Condorcet” (1999) e o livro “Instrução

pública e formação moral: a gênese do sujeito liberal segundo Condorcet” (2004), ambos de Sidney Reinaldo da Silva; e as dissertações: “A arte social em Condorcet: luzes e democracia” (1994), de Sidney Reinaldo da Silva; “A instrução pública e os princípios de igualdade, liberdade e humanidade em Condorcet” (2002), de Adriana Mattar Maamari; “Condorcet: luzes da razão e instrução pública” (2007), de minha autoria; “Igualdade, liberdade e instrução pública em Condorcet” (2007), de Rodison Roberto Santos; e “Autonomia e racionalidade: os fundamentos da filosofia e do pensamento pedagógico de Condorcet” (2008), de Fábio de Barros Silva.

8

Refiro o livro “Ilustração e história: o pensamento sobre a história no Iluminismo francês” (2001), de Maria das Graças de Souza; a tese “A república e a democracia em Thomas Paine” (2007), de Adriana Maamari; e a dissertação “Duas escolas, duas expressões do Iluminismo: Rousseau e Condorcet: o futuro que o passado ousou projetar” (2010), de Robson Pereira Calça.

9

O texto “Dilemas da moral iluminista”, de Rouanet (2007), opera com uma distinção similar a essa. Ainda sobre o iluminismo, Cassirer (1994) realça que esse modo de pensar “não acredita mais no privilégio nem na fecundidade do ‘espírito de sistema’: vê neste não a força, mas o obstáculo e o freio da razão filosófica” (p. 10). A filosofia já não significa “um domínio particular do conhecimento situado a par ou acima das verdades da física, das ciências jurídicas e políticas, mas o meio universal onde todas essas verdades formam-se, desenvolvem-se e consolidam-se” (p. 10). Fortes (2004) assinala que as luzes são caracterizadas pela valorização do homem e por “uma profunda crença na razão humana e nos seus poderes”, e que “revalorizar o homem significa antes de tudo encará-lo como devendo tornar-se sujeito e dono do seu próprio destino, é esperar que cada homem, em princípio, pense por conta própria” (p. 9). O universo “deixava de ser visto como manifestação de uma transcendência no limite absolutamente incompreensível e se convertia em um campo de exploração a

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intelectual cujo auge se deu no percurso do século XVIII em torno de filósofos como Voltaire, Rousseau e Kant, enquanto que a segunda pode ser entendida como a designação de um movimento cultural não reduzível ao conjunto do que foi pensado e ensinado pelos pensadores mais proeminentes do período.

O iluminismo, na opinião de Cassirer (1994), não se destaca da soma e da sucessão cronológica das opiniões ilustradas, isso porque o que singulariza esse movimento está, de modo geral, na arte e na forma de conduzir um debate de ideias. A filosofia já não mais significa um domínio particular do conhecimento situado a par das verdades da física, das ciências jurídicas e políticas, mas o meio universal onde todas essas verdades são formadas, desenvolvidas e consolidadas.

Comprometidos em descobrir e propagar verdades e em expulsar os preconceitos dos lugares nos quais eles mais se refugiavam, isto é, nos governos, nas escolas, nas igrejas e nas corporações, esses filósofos investiram contra os abusos dos regimes políticos e das confissões religiosas proclamando a independência da razão, advogando o direito inegociável à liberdade de opinião e de iniciativa, e oferecendo outras compreensões e conceitos para combater uma ordem social assentada sobre a autoridade dos preconceitos e das superstições. Cingidos dessa postura crítica e revolucionária, esses homens de espírito e ação empregaram a filosofia e o talento de escrever:

“[…] desde o gracejo até o patético, desde a compilação a mais erudita e a mais vasta até o romance ou o panfleto do dia [...] acariciando os preconceitos com habilidade para desferir-lhes golpes mais certeiros [...] poupando o despotismo quando este combatia os absurdos religiosos, e o culto quando este se dirigia contra a tirania [...] mas sempre unidos para mostrar a independência da razão, a liberdade de escrever como o direito, como a salvação do gênero humano; dirigindo-se com uma infatigável energia contra todos os crimes do fanatismo e da tirania; perseguindo na religião, na administração, nos costumes, nas leis, tudo aquilo que trazia o caráter da opressão, da crueza, da barbárie; ordenando, em nome da natureza, aos reis, aos guerreiros, aos magistrados, aos sacerdotes, respeitar o sangue dos homens […] tomando, enfim, como grito de guerra: razão, tolerância, humanidade” (1993, p. 143-44).10

ser submetido livremente à capacidade de julgar, comparar, pesar, avaliar, juntar ou separar” (p. 18). O filósofo comenta, ainda, que “um novo objeto de estudos começa a se desenhar no horizonte: o próprio homem”, e que “uma nova ‘ciência’ começa a se impor: a História”. Com o estudo do seu passado, os homens percebem “que a massa de conhecimentos adquiridos pode ser utilizada e posta a serviço do seu próprio bem-estar”. Emerge daí, “como um corolário necessário de todas estas descobertas, um novo mito, um novo ideal, uma nova ideia reguladora, ou seja, a ideia de Progresso” (p. 20).

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Tradução: “[...] depuis la plaisanterie jusqu’au pathétique, depuis la compilation la plus savant et la plus vaste, jusqu’au roman, ou au pamphlet du jour [...] caressant les préjugés avec adresse pour leur porter des coups plus certains [...] ménageant le despotisme quand ils combattaient les absurdités religieuses et le culte quand ils s’élevaient contre la tyrannie [...] mais toujours réunis pour faire regarder l’indépendance de la raison, la liberté d’écrire comme le droit, comme le salut du genre humain, s’élevant avec une infatigable énergie contre les crimes du fanatisme et tous ceux de la tyrannie, poursuivant dans la religion, dans l’administration, dans les mœurs, dans les loix tout ce qui portait le caractère de l’oppression, de la dureté, de la barbárie, ordonnant au

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A proposta de instrução pública de Condorcet contempla temas essenciais para a atual educação republicana, tais como princípios, direitos, deveres, atribuições dos cidadãos, sentimentos morais e propósitos político-jurídicos das instituições educacionais. A instrução pública é instituída pela república para cumprir a tarefa de promover uma interação social mais justa, equânime e livre. Graves crises políticas e guerras11 entre os povos devem ser recordadas na instrução não mais do que para persuadir os cidadãos, mediante o relato de tantos sofrimentos, da importância de resistir à opressão imposta por homens e regras divorciados de critérios e propósitos favoráveis à felicidade pública e individual.

A vida e a postura ética de Condorcet12 são avessas à crença conforme a qual a

nom de la nature aux rois, aux guerriers, aux magistrats, aux prêtres de respecter le sang des hommes [...] prenant enfin pour cri de guerre raison, tolérance, humanité” (2004, p. 386-387). Não sigo, em outras citações, o padrão de mostrar o texto original em nota de rodapé, isso porque, nesses casos, só disponho de textos em outras línguas, ou porque não seria prudente arriscar uma transcrição de textos disponíveis no portal Gallica, da Biblioteca nacional da França, os quais, no geral, mantém a grafia do século 18, não sendo de fácil decifração.

11 A esperança de Condorcet na renúncia das nações ao direito de declarar guerra é acompanhada de uma

proposta para a instituição de um Tribunal que julgue em nome de todas as nações. O texto “Da influência da revolução da América sobre a Europa” (1786) propõe que esse Tribunal jurisdicione as diferenças que possam surgir entre as nações a respeito da remissão de criminosos, da execução de leis de comércio, da violação de territórios, da interpretação de tratados, das sucessões etc. Os diferentes Estados se reservariam o direito de executar as sentenças desse Tribunal ou, eventualmente, de apelar à força. Também se faria necessário, advoga Condorcet, um código destinado a exigir regras de utilidade geral a serem observadas no período de guerra, seja entre os beligerantes, seja entre eles e os neutros.

12 Marie-Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet, ou simplesmente Condorcet, como hoje o

reconhecemos, nasceu em 17 de setembro de 1743 em Ribemont, na Picardia. Órfão de pai logo ao nascer, sua mãe lhe ofereceu aos 8 anos de idade um preceptor jesuíta. Aos 11, ingressou no Colégio dos Jesuítas de Reims. Posteriormente, no Colégio de Navarra, em Paris, Condorcet apresentou, aos 16 anos, com singular fortuna, uma tese de matemática na presença de D’Alembert, Clairant e Fontaine. Seus precoces dotes matemáticos lhe permitiram apresentar na Academia de Ciências, com apenas 22 anos, seu elogiado “Ensaio sobre o cálculo integral”, e publicar, com 26 anos, o “Ensaio de análises”. Condorcet ingressou em 1769 na Academia de Ciências, da qual passou a ser secretário vitalício em 1776. D’Alembert foi quem lhe apresentou, na capital da França, os intelectuais da Ilustração, com os quais contribuiu na redação de verbetes para a “Enciclopédia”. Em 1782, ingressou na Academia Francesa, da qual chegou também a ser nomeado secretário vitalício. Em 1786, casou-se com Sophie de Grouchy, jovem de extraordinária formação ilustrada e de ideais republicanos, leitora de Smith, Voltaire e Rousseau, e tradutora dos textos de Smith e Paine. O talento de Condorcet e sua paixão pelo bem-público lhe designaram um lugar importante no grande movimento que se iniciava: a revolução Francesa. Aceitou, em 1790, mesmo ano em que nasce sua única filha, Louise Alexandrine, as funções de membro da municipalidade de Paris. Nesse mesmo ano, o filósofo fundou com Sieyès a Sociedade de 1789 e dirigiu o Jornal da Sociedade de 1789. Em 1791, foi nomeado comissário da Tesouraria. Depois da fuga do rei, Condorcet anunciou sua demissão declarando-se a favor da instituição da república. Foi eleito deputado por Paris na Assembleia Legislativa, ainda nesse ano, tendo sido designado, desde os primeiros momentos, como membro do Comitê de Instrução pública, em cujo nome leu o “Relatório e projeto de decreto sobre a organização geral da instrução pública” (1792). Republicano de tendências moderadas, se opôs à pena de morte decretada contra Luís XVI de Bourbon e defendeu os deputados girondinos caídos em desgraça. Sua postura independente desvelada em sua crítica à proposta de Constituição do jacobino Hérault lhe valeu a condenação à morte, imposta pela Convenção, à pedido de Chabot, por suposta traição. Foragido da justiça, a partir desse momento, Condorcet se refugiou na casa de madame Vernet, amiga que lhe brindaria amparo durante cinco meses, apesar de também correr perigo de vida. Escreveu, na clandestinidade, sua obra mais conhecida, o “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano” (1794). Ao ser decretado que toda pessoa que desse asilo a um proscrito seria condenada à morte, Condorcet abandona seu refúgio, suscita suspeitas e é feito prisioneiro em Bourg-la-Reine, local onde aparece morto em sua cela por motivos jamais esclarecidos.

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realidade do mundo sempre escapa aos propósitos sociais que os cidadãos se autorizam a cultivar. Examinadas à luz dos séculos que se passaram e, até mesmo, da época que as recebeu pela primeira vez, de certo modo “fracassaram” as generosas apostas do filósofo relativas aos destinos da humanidade, mas não perderam força os parâmetros políticos e educacionais por ele advogados, tanto que muitas de suas apostas político-educacionais ainda constituem um bom exemplo para pensar justificativas práticas e morais de instituições republicanas.

O exercício da recordação recebe de Condorcet um lugar fundamental no plano da instrução pública. O autor reivindica o gozo de princípios e direitos na perspectiva de uma universalidade atemporal, porém seus textos, a rigor, se reportam a complexas questões sociais e responsabilidades políticas historicamente situadas. Interpretar esses textos, cujas teses possam ainda incidir em nosso tempo, constitui uma atividade que exige mediações, sem as quais se esvanecem evidências compartilhadas em nosso próprio contexto13. Dentre as

13 Os temas consciência histórica e interpretação de textos, tal como são desenvolvidos, respectivamente, por

Gadamer (1998) e Ricoeur (1990), lançam luzes para responder à pergunta acerca do legado de Condorcet para as atuais instituições políticas e educacionais republicanas. Gadamer (1998) vincula a consciência histórica à consciência da historicidade daquilo que consideramos presente e ao reconhecimento da relatividade de qualquer opinião. Essa consciência difere na modernidade do modo pelo qual anteriormente o passado se apresentava a um povo ou a uma época; a consciência moderna passou a questionar com mais intensidade uma tradição fechada sobre si mesma e a reconhecer a possibilidade de uma múltipla relatividade de pontos de vista; a consciência histórica já não escuta “beatificamente” a voz que lhe chega do passado, mas, ao refletir sobre a mesma, recoloca-a no contexto em que se originou, a fim de ver o significado e o valor relativos que lhe são próprios. O conhecimento histórico não pretende simplesmente explicar um fenômeno concreto como caso particular de uma regra geral; esse conhecimento só se utiliza de conhecimentos gerais para compreender o fenômeno histórico em sua singularidade e unicidade; o que lhe interessa não é saber como os homens, os povos, os Estados, se desenvolvem em geral, mas, sim, como este homem, este povo, este Estado, veio a ser o que é, ou seja, como todas essas coisas puderam acontecer e encontrar-se aí. Ricoeur (1990), por sua vez, caracteriza a ação de interpretar textos como uma atividade que se distancia tanto do autor quanto dos leitores que, interpelados diante do texto, passam a interpretá-lo. O que se saberia do amor, do ódio e dos sentimentos morais se não fossem referidos à linguagem e articulados pela literatura? O autor, através dessa indagação, destaca que a compreensão humana está ligada aos sinais de humanidade depositados nas obras de cultura; que aquilo que justamente poderia nos parecer mais contrário à subjetividade, a textura do texto, agora aparece como o próprio “medium”, indispensável, em que os homens compreendem a si mesmos. O texto corresponde a uma mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos e, nesse caso, compreender é, também, compreender-se diante do texto; não se trata de impor ao texto sua própria capacidade finita de compreender, mas de expor-se ao texto e receber dele um si mais amplo, ou seja, uma proposição de existência respondendo, da maneira mais apropriada possível, à proposição de mundo. O texto passa a ser, nos marcos dessa compreensão, mais que um caso particular de comunicação inter-humana, senão que o próprio paradigma do distanciamento na comunicação. Ou seja, o distanciamento no texto não constitui simplesmente um problema para a interpretação, senão que uma condição da interpretação. A interpretação, para Ricoeur (1990), corresponde à réplica desse distanciamento fundamental constituído pela objetivação do homem em suas obras de discurso, comparáveis à sua objetivação nos produtos de seu trabalho e de sua arte. A escrita, nesse sentido, torna o texto autônomo em relação à intenção do autor, ou seja, o que o texto significa não coincide mais com aquilo que o autor quis dizer. O texto, tal como acontece no ato de ler, deve poder descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa nova situação. As exposições precedentes acrescentam razões para que se reconheça a contingência e, na mesma medida, as potencialidades compreensivas das iniciativas de dizer, explicar e traduzir seja o que for que possa ter acontecido no mundo humano. As indiciações de mundo aqui explicitadas assumem, de antemão, a convicção segundo a qual de fato são selecionados, motivadamente ou não, os rastros através dos quais são constituídos os diversos enredos narrativos.

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ideias do autor que possibilitam enfrentar questões contemporâneas, merecem destaque: a reflexibilidade antidogmática; a resistência ao despotismo no âmbito da política; o movimento do laicismo etc.

Condorcet considera que a humanidade empreendeu longas jornadas antes que princípios disseminados pela filosofia das luzes pudessem ser exercidos e proclamados publicamente. A atividade de interpretar e recordar histórias acerca de acontecimentos, sentimentos e ações que viabilizaram essa proclamação estimula, dessa maneira, que os cidadãos compreendam a fragilidade das condições que a sustentaram e quanto devem se empenhar para apoiá-la, garanti-la e expandi-la nos espíritos e ações das presentes e das futuras gerações. Pensando assim, o autor reconhece que os homens normalmente impõem uma ordem própria à natureza, não estando, portanto, estritamente condicionados às primeiras sensações e necessidades.

Ao relacionar a racionalidade comum com a busca da felicidade pública e de verdades, bem como com a crítica de acontecimentos sociais, Condorcet assinala que a história da humanidade é marcada por um desvelar contínuo de verdades e de conquistas sociais, numa marcha que pode retardar, suspender ou, até mesmo, retroceder a um estado de ignorância e servidão. O filósofo qualifica a razão como uma capacidade constitutiva e distintiva da espécie humana, que articula sua sensibilidade natural com a memória e a reflexão. Entendida desse modo, a razão consiste na faculdade de se estabelecer conceitos e proposições de modo discursivo. Esse modo do pensamento humano coincide com a faculdade de distinguir, por exemplo, o verdadeiro do falso, a justiça da injustiça, e de convencer argumentativamente acerca da validade de tais distinções.

Para Condorcet, as soluções frequentemente propostas não decorrem unicamente de uma dedução de princípios primeiros, mas de uma adaptação deles caso a caso às condições e ao momento em que foram formulados. No texto “Sobre a escolha dos ministros” (1790), por exemplo, o autor raciocina sobre a maneira de designar os ministros e hipotetiza um sistema de garantias adaptado ao regime da monarquia constitucional. Entretanto, alguns anos depois, em 1793, o plano de Constituição preparado pelo filósofo não só é concebido em termos rigorosamente republicanos como é escrito tendo o olho na situação política corrente. No caso da escravidão dos negros, Condorcet não se limitou à denúncia - à diferença de autores precedentes - senão que sugeriu como afrontar concretamente a questão da desigualdade através de uma razão argumentada ou arrazoada.

Condorcet argui que os progressos do espírito humano correspondem a movimentos compreensivos que partem de erros em direção a verdades, da servidão à liberdade, da

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desigualdade à igualdade social. Esses movimentos implicam, por assim dizer, um recuo dos limites da inteligência humana e um afastamento dos preconceitos. A história dos progressos do espírito humano também abrange a dos erros gerais, que são consequência da atividade reflexiva dos homens, fruto de uma desproporção existente entre aquilo que eles conhecem e aquilo que acreditam precisar ou desejam conhecer:

As operações do entendimento que nos conduzem ao erro ou nele nos retém, desde o paralogismo sutil, que pode surpreender o homem o mais esclarecido, até os sonhos da demência, não pertencem menos do que o método de raciocinar corretamente, ou aquele de descobrir a verdade, à teoria do desenvolvimento de nossas faculdades individuais; e, pelas mesmas razões, a maneira pela qual os erros gerais se introduzem entre os povos, se propagam, se transmitem, se perpetuam, faz parte do quadro histórico dos progressos do espírito humano14 (2013, p. 26-27).

Coutel (2004) comenta, a esse respeito, que Condorcet toma os homens numa história individual e comum que, nos seus diversos momentos, pode estar ou não orientada ao bem-estar comum, à busca da felicidade e de verdades; que a perfectibilidade faz dessa orientação responsabilidade dos homens; que a decadência está no horizonte de toda instituição política que não recorde seus princípios e sua natureza; e que a história humana, por essa perspectiva, corresponde ao que o homem faz dela. É no horizonte dessa compreensão da condição humana que Coutel situa o propósito da instituição do cidadão e do exercício da cidadania:

A instituição do cidadão, em um regime democrático, pressupõe a definição, mas também a aplicação de princípios gerais, expressados nos direitos naturais e imprescritíveis. Porém, de agora em diante, defendendo-os, é necessário recordar os fundamentos filosóficos, pois a liberdade, a igualdade, a segurança, a propriedade ou ainda a presunção de inocência são suscetíveis de graves contra-sentidos ou mal-entendidos. Os preconceitos passados podem voltar a aparecer em quem pretende defender esses direitos. É necessário também precisar a que comprometem esses direitos concretamente. Desprezar esses princípios seria voltar a ceder ante o oportunismo, quer dizer, à má maneira de tratar dos objetos políticos [...] A

14 Original desse fragmento do “Esboço”: “Les opérations de l’entendement qui nous conduisent à l’erreur ou qui

nous y retiennent depuis le paralogisme subtil qui peut surprendre l’homme le plus éclairé, jusqu’aux rêves de la démence n’appartiennent pas moins que la méthode de raisonner juste ou celle de découvrir la vérité à la Théorie du développement de nos facultés individuelles. Et par la même raison, la manière dont les erreurs générales s’introduisent parmi les peuples se propagent, se transmettent, se perpétuent, fait partie du tableau historique des progrès de l’esprit humain” (2004, p. 242). Recorro, para ilustrar o roteiro da tese, a citações diretas e indiretas da obra de Condorcet, apresentando em nota de rodapé os respectivos trechos na língua original, isso nos casos em que disponho de textos editados e de boa qualidade. São usadas edições clássicas dos principais textos de Condorcet publicados na França, especialmente a edição crítica “Tableau historique des progrès de l’esprit humain: projets, esquisse, fragments et notes (1772-1794)”, dirigida por Jean-Pierre Schandeler, Pierre Crépel e pelo grupo Condorcet (Éric Brian, Annie Chassagne, Anne-Marie Chouillet, Charles Coutel, Michèle Crampe-Casnabet, Yvon Garlan, Christian Gilain e Nicolas Rieucau).

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instituição do cidadão deve prevenir esses perigos inspirando-se em princípios precisos (2004, p. 17).

Para melhor defender o gozo de princípios e direitos constituintes das instituições da república e da educação republicana, é importante que os cidadãos recordem e se contraponham à ignorância, à dependência política e à extrema desigualdade social. As instituições políticas e educacionais republicanas não estão asseguradas de uma vez por todas. Elas podem ter, enquanto artifício humano, enfraquecida sua força e, por essa razão, carecem de uma contínua rediscussão e reafirmação moduláveis às circunstâncias em que estamos inscritos.

Esta investigação expõe elementos de teor conceitual e histórico que estão nas origens de questões centrais ao debate republicano e educacional de nossos dias. Os textos de Condorcet referenciais para evidenciar relações que o autor estabelece entre os temas da república, da instrução pública e dos sentimentos morais foram os que seguem: “Escritos sobre a instrução pública” (1773-1782), “Reflexões sobre a escravidão dos negros” (1781), “Influência da revolução da América sobre a Europa” (1786), “Cartas de um burguês de Novo Hampshire a um cidadão da Virgínia sobre a inutilidade de dividir o poder legislativo em vários corpos” (1787), “Ideias sobre o despotismo” (1789), “Sobre a admissão do direito de cidadania às mulheres” (1790), “É conveniente enganar o povo?” (1790), “Cinco memórias sobre a instrução pública” (1791), “Relatório e projeto de decreto de organização geral da instrução pública” (1792), “Advertência aos espanhóis" (1792), “A nação francesa a todos os povos” (1793), “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano” (1794), bem como uma coleção de textos do autor publicada entre 1847 e 1849 em 12 volumes sob o título “Obras de Condorcet”.

O capítulo inicial explicita reflexões do filósofo acerca dos sentimentos morais e dos princípios republicanos. Condorcet admite que os sentimentos morais, dos quais a compaixão e a humanidade são exemplos, são passíveis de investigação racional. Esses sentimentos, ao serem cultivados, asseguram uma interdependência da felicidade individual e da felicidade pública. O autor recomenda que se busque incessantemente a verdade em todos os raciocínios e ações; pensa a política e a instrução pública à luz dos acontecimentos históricos e de suas ideias a respeito da condição humana e de sua potencialidade moral; assevera que a configuração de república e de instrução pública não se separa do cultivo da racionalidade comum e dos sentimentos morais; acentua que as instituições republicanas favorecem uma

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convivência recíproca entre os cidadãos e fragiliza a força de hábitos mais grosseiros que nos familiarizariam com a violação de princípios racionais e de direitos naturais15.

O segundo capítulo explicita elementos do imaginário político e educacional de Condorcet. Animado ante as possibilidades desencadeadas pelos eventos revolucionários ao final do século 18, Condorcet avalia que as repúblicas dos Estados Unidos da América e da França constituíram exemplos virtuosos de como se pode combater a tradição do despotismo e estimular o cultivo do laicismo na esfera pública. O movimento do laicismo, pensado como o cultivo do espírito público, deve ser difundido entre os cidadãos nas instituições políticas e educacionais como modo de impedir na esfera pública o predomínio de um espírito de facção, partido ou seita. Constitui um dever de cidadania combater a promoção de qualquer monopólio político ou religioso no campo da instrução pública. Condorcet consente em evitar o sucesso de facções políticas e religiosas nessa instância republicana. Ao lado disso, ao denunciar a desigualdade de riquezas e de gênero, bem como desigualdades étnicas e religiosas, o autor pretende convencer seus leitores da importância de se efetivarem princípios e direitos declarados inegociáveis e imprescritíveis. Isso ocorre, por exemplo, nos textos “Reflexões sobre a escravidão dos negros” e “Sobre a admissão do direito de cidadania às mulheres”.

O capítulo três, por sua vez, articula os temas expostos nos capítulos anteriores com considerações de Condorcet acerca da república e da instrução republicana. Para o filósofo, a instituição do cidadão deve ser permanente, mas não uniformizadora; a instrução republicana deve despertar e desenvolver talentos e profissões; além de transmitir definições, valores e rotinas de aplicação técnica, ela deve estimular o exercício da cidadania e a redução das desigualdades sociais.

O último capítulo evidencia aspectos do atual debate republicano sobre a educação, relacionando-o com os principais enunciados de cada um dos capítulos e explicitando as estreitas relações que Condorcet estabelece entre os temas moral, política e educação republicana. Questiona-se, sobretudo, de que maneira o autor poderia contribuir para esse

15

Condorcet, de acordo com Silva (2004), entende que os homens se identificam moralmente à medida que se aproximam: “a agregação social cria uma interdependência da felicidade. A essa tendência liga-se a própria civilização, que resulta da alteração das condutas, da necessidade de abandonar hábitos grosseiros e modificar inclinações hostis. Entre os elementos civilizadores, destacam-se o comércio, a hospitalidade e a formação de alianças para a defesa mútua ou a produção de algum outro benefício comum, como a caça, a defesa, por exemplo. Da análise dos sentimentos de benevolência, que permitem a integração dos indivíduos em comunidades cada vez maiores, surgem as ideias morais mais sofisticadas” (p. 69). Uma instrução adequada deve promover o desenvolvimento equilibrado da sensibilidade e da racionalidade, tornando o indivíduo capaz de se preocupar não apenas consigo mesmo, com o interesse de sua família e de sua nação, mas também com o destino de toda a humanidade.

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debate. Temas tais como: bem-estar comum; economia política; formação moral e profissional; inclusão social; talentos; radicalidade e moderação política; igualdade e diferenças; e perfectibilidade, por exemplo, são ainda reconhecidos como questões centrais da política e da sociedade republicana.

As considerações finais, por sua vez, ressaltam que a república e o exercício livre da democracia exigem uma opinião pública ilustrada pelo acesso universal à educação republicana. Considera que merecem destaque, por sua atualidade, as seguintes ideias de Condorcet: as diferenças nas capacidades de aprendizagem devem ser respeitadas, desde que não definam hierarquias escolares discriminadoras; os indivíduos devem ser preparados para que continuem aprendendo depois de sair da escola, a fim de que possam reconhecer seus deveres e os motivos pelos quais devem cumpri-los; a instrução pública proposta pelo autor é tomada como instituidora da república e do cidadão republicano: é através dela que a república aspirada pode tornar-se efetiva.

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C a p í t u l o I

SENTIMENTOS MORAIS E PRINCÍPIOS REPUBLICANOS

O poder público constituído por uma república deve ser integrado por cidadãos que se comprometam com diretrizes e ações favoráveis ao bem-estar comum. Pensando desse modo, Condorcet atribui à república e à sociedade política a obrigação de, nesse cenário, instruir cada cidadão a cultivar sentimentos, tais como os de compaixão e humanidade, decisivos para se assegurar o bem-comum em condições sociais de igualdade e liberdade. Em outros termos, as instâncias do poder público devem favorecer a moralidade, isso para que cada cidadão concentre seus interesses não apenas em si mesmo, na sua família ou na sua nação, mas, também, nos destinos de toda a humanidade.

As primeiras ideias morais16 encontram sua origem na sensibilidade natural dos homens, isto é, na sua capacidade de sentir prazeres e dores diante de ações e objetos apresentados aos sentidos e reunidos na memória. A razão, entendida como modo de pensar próprio dos homens, permite não só exercitar como, também, investigar essa sensibilidade humana. Ela torna possível - admite Condorcet (2013) - um aprimoramento indefinido das ciências, das artes e da moral. O cultivo de sentimentos morais, para o autor, pode ser estendido de cada homem e de cada povo à humanidade, não estando restrito ou resultando simplesmente de boas relações contratuais. O “Esboço” descreve o sentimento de amor à humanidade como uma:

[...] compaixão terna, ativa, por todos os males que afligem a espécie humana, aquele de um horror por tudo aquilo que, nas instituições públicas, nos atos do governo, nas ações privadas, acrescentava novas dores às dores inevitáveis da natureza17 (p. 157).

A sensibilidade constitutiva do homem inclui a capacidade de juízo para aprovar ou reprovar ações e objetos. Essas sensações de aprovação ou reprovação estão ligadas aos

16 Ideias morais são distinguíveis de regras estabelecidas por religiões ou sistemas filosóficos. Recorre-se, no

caso das ideias morais, a uma análise crítica de sentimentos naturais. Alengry (1971) indica que Condorcet reprova na religião a incerteza, a intolerância, os cálculos interessados e as tentativas de dominação. A moral teológica lhe parece perigosa porque ela poderia pretender extrair somente da religião os motivos de conduta e porque os sacerdotes normalmente se autorizavam a ditar deveres antes de os julgar e os ensinar. Isso parecia à Condorcet incompatível com a razão comum e o interesse geral dos homens.

17

Do original: “[...] compassion tendre, active pour tous les maux qui affligent l’espèce humaine, d’une invencible horreur pour tout ce qui dans les institutions publiques, dans les actes du gouvernement, dans les actions privées, ajoutait des douleurs nouvelles aux douleurs inévitables de la nature” (2004, p. 391).

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interesses gerais dos cidadãos e à ordem segundo a qual normatizamos o meio social. Condorcet pondera que as justificações de uma conduta virtuosa não estão alicerçadas originariamente no temor de punições, senão que implicam um ânimo ou disposição para agir em favor do bem-estar comum.

1 RACIONALIDADE COMUM E SENTIMENTOS MORAIS

Impulsos, paixões e necessidades a que porventura estivermos condicionados ou submetidos naturalmente nos recordam o pertencimento às outras espécies, sejam elas capazes ou não de instaurar seu próprio ambiente participando da construção de um sistema social de mundo. Ocorre que, por assim dizer, a artificialidade das necessidades e ações humanas pode ser considerada natural, no sentido de que os homens normalmente impõem uma ordem própria na natureza. O modo de ser científico instituído pelos homens torna-os artífices de uma maior intervenção no curso dos acontecimentos naturais. O pensamento humano, culturalmente disseminado e, também, condicionado, não se detém frente a uma natureza abstrata destituída de valores morais. Em outros termos, coube aos homens inventar condições artificiais e bases axiológicas para constituir um mundo comum.

Condorcet considera improvável ocorrer que, numa sociedade política, um ato injusto ou criminoso não acabe ferindo os sentimentos de alguém pela reprovação. O autor desse ato teria, portanto, normalmente, a consciência de ter feito sofrer um de seus iguais. Se a sensibilidade natural ainda lhe restasse intacta, o próprio autor deveria sofrer com essa ação injusta ou criminosa. A instrução pública republicana poderia reforçar os meios mais eficazes de conservar essa sensibilidade natural.

A sensibilidade e a capacidade de discernir e articular sensações são dados distintivos dos homens. Essas sensações são acompanhadas de prazer e dor e podem ser transformadas em sentimentos duráveis, sejam eles prazerosos ou penosos. Esses sentimentos também podem ser experimentados pelos sentidos ou pela recordação de prazeres e dores de outros seres sensíveis. Condorcet estima, no “Esboço”, que é da articulação dessas capacidades com a de formar e combinar ideias que afloram relações de interesse e dever “às quais a própria natureza liga a porção mais importante, a mais preciosa de nossa felicidade, e os mais dolorosos de nossos males18” (2013, p. 20).

Mesmo as mais abstratas de nossas ideias devem sua origem às sensações naturais. Caracteriza nossa espécie sua condição sensível e a capacidade de formar raciocínios e

18 Extraído do original: “[…] auxquelles la nature même attache la portion plus importante, la plus prétieuse du

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adquirir ideias morais. Segundo Condorcet, na medida em que analisamos nossos próprios sentimentos, descobrimos, através das capacidades de sentir prazer e dor, a origem das ideias morais: “o fundamento das verdades gerais que, resultando dessas ideias, determinam as leis do justo e do injusto; e os motivos de conformar nossa conduta a isso, extraídos da própria natureza de nossa sensibilidade, daquilo que se poderia chamar nossa constituição moral19” (2013, p. 150).

Sentimentos produzidos pelos homens, tais como a compaixão e a humanidade, só podem se desenvolver e não se corromper se forem continuamente cultivados20. A maioria dos homens só encontra na vida comum deveres simples e fáceis de cumprir, daí que, para Condorcet, os sentimentos morais neles se debilitariam “se, ao colocar sob seus olhos as ações dos outros homens, não se exercitasse pelos movimentos que desperta neles, pelos juízos que são obrigados a fazer, esse sentimento íntimo tão pronto, tão delicado, naqueles que o cultivaram, tão lento, tão grosseiro em quase todos os outros21” (2008, p. 161).

Condorcet admite que a moral está vinculada inicialmente à sensibilidade dos homens, assim como o restante de suas ideias. No entanto, para o autor, nossa sensibilidade adquire no exercício público da razão um sentido capaz de ser compartilhado e expandido. A sensibilidade, sem o cultivo da racionalidade comum, não garantiria uma moral independente, uma vez que os sentimentos podem ser corrompidos e manipulados. Em outros termos: ainda que encontre suas raízes na sensibilidade, a moralidade não é inata, não representando um órgão ou sentido interno especial do homem22.

19 Original de fragmento do “Esboço”: “[…] le fondement des vérités générales qui, résultant de ces idées,

déterminent les lois immuables, nécessaires du juste et de l’injuste; enfin, les motifs d’y conformer notre conduit, puisés dans la nature même de notre sensibilité, dans ce qu’on pourrait appeler, en quelque sorte, notre constitution morale” (1988, p. 223).

20

Considerei a palavra “cultivar”, oriunda do latim “cultivare”, ou seja, da ação de preparar e cuidar da terra para que produza, apropriada para sinalizar o sentido de “exercício de sentimentos e ações que possam tornar cada cidadão menos embrutecido e mais racional nos julgamentos que elabora. O termo exala, ainda, os sentidos de “dedicar-se à”, “aplicar-se ao desenvolvimento de”, “desenvolver-se” e “aperfeiçoar-se”. Não apresenta, por essa via, o significado de mera reprodução de um determinado modo de ser ou pensar. Para Condorcet, as ideias morais não decorrem simplesmente dos sentimentos, senão que estão mediadas por uma racionalidade humanista e crítica.

21 Extraído das “Cinco memórias”: “[...] si, en mettant sous leurs yeux les actions des autre hommes, on

n’exerçait point, par les mouvements qu’ils sont alors forcés de faire, ce sentiment intime si prompt, si délicat dans ceux qui l’ont cultive, si lent, si grossier dans presque tous les autres” (1994, p. 186).

22 A título de comparação, para D’Alembert os princípios da moral ligam-se ao bem-estar do todo e das partes

que compõem a sociedade. Para ele, a natureza permite aos homens conhecer regras morais por uma espécie de inspiração e as apreciar pelo prazer interior que sentem ao segui-las. A própria natureza, desse modo, conduziria a multidão pelo encanto da impressão, impulso que lhe seria conveniente. O sábio, mais que um cidadão comum, poderia penetrar os fins das regras morais: “Enquanto os outros homens limitam-se aos sentimentos que a natureza lhes proporcionou para com os semelhantes, também o sábio procura e percebe a íntima união desses sentimentos com seu próprio interesse” (1994, p. 14). Para Shaftesbury (1996) e Hutcheson (1996), a sensibilidade constitutiva do homem inclui uma capacidade de juízo para aprovar ou reprovar ações e objetos; as sensações de aprovação, agradáveis ou não, estão ligadas aos interesses gerais da própria espécie; a virtude

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A espécie humana, para Condorcet, não sobreviveria caso não exercesse a faculdade de se compadecer. Sem cultivar esse sentimento, nenhuma família poderia ser formada e manter-se estável. A humanidade compartilha esse sentimento moral primitivo com outras espécies de animais, particularmente aquelas exteriormente semelhantes a ela, como certos mamíferos. A sensibilidade, entendida desse modo, constitui a base não só do conhecimento, isto é, das sensações, da memória, da imaginação e das ideias abstratas, mas, também, da coesão social. A dor dos seres sensíveis causa mal-estar num indivíduo não corrompido, assim como a satisfação da necessidade e o alívio da dor alheia causam prazer em quem os promove. Entretanto, a sensibilidade pode ser distorcida e mesmo a compaixão pela dor do

implica uma disposição para o bem-estar comum; e as justificações da conduta virtuosa não estão alicerçadas originariamente no temor de punições. Esses filósofos, a partir de diferentes argumentos, compartilham com Condorcet da convicção segundo a qual está entre nossas possibilidades efetivas cultivar sentimentos e normalizar ações de tal modo que se privilegie o bem-estar comum. Shaftesbury descreve o sentido moral como a capacidade humana de formar noções gerais sobre os objetos apresentados aos sentidos, tanto dos seres exteriores como das ações e afecções tais como a compaixão, a gentileza e a gratidão, trazidas à mente por reflexão. Assim como os objetos sensíveis expressam imagens de corpos, cores e sons em movimento diante da visão ocular, também os objetos morais e intelectuais, repletos de formas e imagens, atuam na mente em todas as ocasiões, mesmo quando ausentes os objetos reais que instigaram os sentimentos. Um indivíduo bom ou virtuoso tem suas inclinações e afecções, disposições da mente e temperamento convergentes com o bem da sua própria espécie, ou com aquele sistema no qual está inserido e do qual participa. Os atributos da retidão, integridade ou virtude caracterizam aqueles indivíduos que se mantêm dispostos ao exercício de um sentimento reto e íntegro não só com relação a si próprios, mas também para com a sociedade. A ausência de tais atributos resulta em depravação, corrupção e vício. O filósofo avalia que ninguém pode ser pervertido ou mal exceto pela deficiência ou fraqueza das afecções naturais, ou pela violência do egoísmo, ou por motivos que são claramente não naturais. Para Shaftesbury, o interesse privado e o bem de cada um se conciliam com o trabalho para o bem geral. Se uma criatura deixar de promover esse bem, a virtude, ela estará em falta para consigo mesma, porquanto deixou de promover a sua própria felicidade e bem-estar. A virtude coincide com o bem-comum e também alicerça a felicidade de cada criatura em particular. O homem descobre por si mesmo que o despertar das paixões, mobilizado em favor do mérito e da dignidade, e empregado em proveito do afeto social e da simpatia humana, é motivo de deleite, permitindo uma satisfação muito maior nas esferas do pensamento e do sentimento do que tudo o que possa ser feito em termos de sentidos e de apetite comum. Hutcheson, por sua vez, acentua que o prazer oriundo das nossas percepções sensíveis oferece a primeira ideia de bem natural (felicidade) e que o interesse pessoal (amor por si mesmo) nos estimula a alcançar objetos suscetíveis de prazer (imediatamente bons) ou que promovam outros objetos agradáveis (vantajosos). O autor distingue a instância da moral do bem ou mal naturais. Bens naturais como saúde, força e sagacidade não provocam necessariamente aprovação e boa vontade em relação àqueles que os expressam. As sensações de aprovação e de boa vontade afloram, contudo, de bens morais tais como honestidade, generosidade e sinceridade. Normalmente respeitamos e nos compadecemos por aqueles afetados por males naturais, tais como dor, pobreza e morte, contudo condenamos aqueles que expressam qualidades percebidas como moralmente más, tais como insídia, crueldade e ingratidão. As noções de bem ou mal naturais não despertam, pois, desejo de bem público, mas sim o que é bom individualmente. A sensação de prazer, contudo, é anterior à vantagem ou interesse, ou seja, não percebemos prazer em objetos porque é de nosso interesse, mas objetos ou ações são vantajosos ou intentados de acordo com o amor por si mesmo porque deles recebemos prazer. A virtude está numa razão composta da quantidade de bem e o número de pessoas que dele desfrutam. Já o mal moral, ou vício, está numa razão composta do grau de infelicidade e do número de sofredores. A melhor ação, desse modo, é aquela que produz a maior felicidade para o maior número e a pior é aquela que ocasiona infelicidade. É boa aquela ação em que os efeitos bons preponderam sobre os maus ao serem úteis para muitos e perniciosos para poucos. Hutcheson pondera, contudo, que a importância moral da dignidade das pessoas pode compensar os números, assim como os graus de felicidade ou infelicidade, pois obter um bem insignificante para muitos e um mal imenso para poucos pode ser mau, enquanto que um bem imenso para poucos pode preponderar sobre um pequeno mal para muitos.

Referências

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