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Pascal

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H U B E R T O R O H D E N

P A S C A L

O HOMEM QUE APELOU DA

RAZÃO PARA O CORAÇÃO E DE ROMA PARA DEUS

SEGUNDA EDIÇÃO

UNIÃO CULTURAL EDITORA LTDA. S. PAULO

1956

Terceira Edição

Alvorada Editora e Livraria Ltda 1981

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"Minhas Cartas foram condenadas

em Roma, mas o que nelas condenei

está condenado no céu —

apelo para o teu tribunal, Senhor

Jesus!"

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Índice

Advertência 05

Vida e Obra de Huberto Rohden 06 Prefácio para a Terceira Edição 08 Tomando Perspectiva 10

Tabela Cronológica dos Principais Fatos da Vida de Pascal 18 Lampejos de Gênio 19

Os Eremitas de Port-Royal 21 Encontro Pessoal com Deus 23 Conflito Entre Duas Humanidades 28 Defendendo Jesus Contra os Jesuítas 32 Em Torno das "Lettres Provinciales" 34

Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas 37

Nas Trincheiras Inimigas. O que Ensinavam os Casuístas 40

Regulamentação Burocrática do Amor de Deus - Pró e Contra Pascal 49 A Casuística em Nossos Dias 52

"Meu Reino não é Deste Mundo" 55

Pascal e a Humanidade — O Seu Livro "Pensées" 58 As Razões do Coração que a Razão Ignora 63

Tragédia Metafísica do Homem 65

Cristianismo Político-Hierárquico — Ou Cristianismo Espiritual-Místico? 70 Diluindo-se em Deus 74

Texto da orelha da 2ª edição 80

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Advertência

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental — mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento.

Crear é a manifestação da Essência em forma de existência — criar é a transição de uma existência para outra existência.

O poder Infinito é o creador do Universo — um fazendeiro é um criador de gado.

Há entre os homens gênios creadores embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.

Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.

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Huberto Rohden, Vida e Obra

Nasceu em Tubarão, Santa Catarina, Brasil. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em Universidades da Europa — Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália).

De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor. Publicou mais de 60 (sessenta) obras sobre ciência, filosofia e religião, editadas pela Editora Vozes (Petrópolis), União Cultural (São Paulo), Editora Globo (Porto Alegre), Livraria Freitas Bastos (Rio de Janeiro), Fundação Alvorada e outras editoras. Vários livros de Huberto Rohden foram traduzidos em outras línguas, inclusive o Esperanto; alguns existem em Braille, para institutos de cegos.

Um registro de suas brilhantes palestras foi preservado por alguns de seus alunos em forma de gravações – muitas delas estão à disposição na internet.

Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e dirigiu o movimento mundial Alvorada, com sede em São Paulo.

De 1945 a 1946 teve uma Bolsa de estudos para Pesquisas Científicas, na Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática, Metafísica e Mística.

Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões Comparadas, cargo esse que exerceu durante cinco anos.

Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de guerra, do inglês para português. Ainda na American University, de Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos, sendo então, seu presidente honorário, o senhor Nereu Ramos.

Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o

Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yoga por Swami Premananda, diretor hindu desse ashram.

Pelo fim da sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado para fazer parte do corpo docente da nova Universidade Internacional Christian University (ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões Comparadas; mas, devido à guerra na Coreia, a Universidade japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado professor de filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não tomou posse.

Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada, com a finalidade de manter cursos permanentes, em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho. Dirigiu casas de Retiro Espiritual (ashrams) em diversos Estados do Brasil.

Em 1969, Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências com grupos de yoguis na Índia.

Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de

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Nos últimos anos de sua vida, Rohden residiu na capital de São Paulo, onde permanecia alguns dias da semana, escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos definitivos. Três dias da semana costumava passá-los no ashram, em contato com a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário modelo.

Quando estava na capital, ministrava palestras e horas de meditação regularmente na sede da instituição Alvorada. Rohden frequentava, periodicamente, a editora Alvorada responsável pela editoração de seus livros, dando-lhe inspiração e orientação cultural.

Fundamentalmente, toda a obra educacional e filosófica de Rohden divide-se em quatro grandes segmentos:

1) a sede central da Instituição (Centro de Autorrealização Alvorada), em São Paulo, com a finalidade de ministrar cursos e horas de meditação;

2) o ashram, situado a 70 quilômetros da capital, onde são dados, periodicamente, os Retiros Espirituais, de 3 dias completos;

3) a Editora Martin Claret, de São Paulo, que difunde, através de livros e cassetes, a Filosofia Univérsica;

4) um grupo de dedicados e fiéis amigos, alunos e discípulos, que trabalham na consolidação e continuação da sua obra educacional.

A zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras, em estado consciente, foram: “Eu estou a serviço da Humanidade”.

Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de fé e trabalho, somente comparado aos dos grandes homens do nosso século.

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Prefácio para a Terceira Edição

Por longos anos esteve esgotado e fora de circulação este livro. Cogitava-se mesmo de não mais reeditá-lo porque trata, em boa parte, de um assunto polêmico que parece superado em nosso tempo.

Trata-se de polêmicas satíricas que o grande gênio, Blaise Pascal, manteve contra a poderosa ordem religiosa dos jesuítas, e dos teólogos em geral, no século 17.

Pascal é universalmente considerado como um cristão genuíno e autêntico, um católico de pura catolicidade, como poucos.

E como se compreende que ele tenha combatido violentamente a poderosa ordem eclesiástica da Companhia de Jesus? Como é que um católico autêntico - para não dizer, um santo —, soube apelar de Roma para o tribunal de Jesus?

Como se depreende de todo o livro das Cartas Provinciais, Pascal não confunde catolicismo com catolicidade, isto é, não identifica a teologia eclesiástica e clerical com o puro Evangelho do Cristo; ele é 100% Cristo-evangélico, mas nada católico-clerical. À primeira vista, a polêmica parece visar somente os jesuítas, quando na realidade gira em torno de toda a teologia eclesiástica, em que Pascal não vê a continuação da mensagem do Cristo. E como ele tinha tido na noite de 23 de novembro de 1654 a sua misteriosa revelação da cristicidade genuína, Pascal defende o seu grande ideal crístocêntrico contra todas as deturpações e falsificações desse ideal pela teologia clerical.

Pascal, o exímio cientista e filósofo, viveu os melhores anos de sua vida na austeridade do mosteiro de Port-Royal, onde sua irmã Jacqueline era madre superiora, e juntamente com ela, não admitia qualquer amesquinhamento da mensagem do Cristo pelo laxismo moral da época. Seguia a orientação supostamente ascética do bispo herege Jansênio (jansenismo), que queria uma pura catolicidade contra o catolicismo liberal que dominava a época.

Estranhamente, o livro das Cartas Provinciais foi condenado por Roma, mas a pessoa de seu autor nunca foi anatematizada, porque toda a França católica venerava Pascal como um santo, como ele era, de fato, embora não canonizado. Basta dizer que ele deu a sua casa para hospital, num período em que os hospitais de França estavam repletos de doentes, e ele mesmo levava uma vida de monge, num mosteiro.

Pascal não se revoltou, propriamente, contra a Ordem dos Jesuítas, mas viu nos membros desta Ordem, a personificação da deturpação da pureza do Evangelho do Cristo, a quem ele dava obediência e lealdade incondicional. Daí a veemência e a sátira da sua luta...

Este fenômeno não se limita à França e ao século 17, mas repete-se e continua desde o quarto século em que Constantino Magno contaminou com a política da Igreja Romana a pureza do Evangelho do Cristo... O Mestre disse a Pilatos que o reino dele não é “deste mundo”, mas é o “reino da verdade” — e todos os que são discípulos do Cristo não podem identificar a mensagem do Cristo com nenhuma espécie de doutrina teológica engendrada pelos homens; há uma diferença essencial entre o reino dos céus que não é deste mundo, embora esteja no mundo, e quaisquer outros reinos que se orientam por princípios humanos deste mundo, sobretudo pela política financeira de certa teologia.

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De maneira que a polêmica de Pascal não é uma atitude anacrônica fora de época. Hoje, mais do que nunca, a mensagem do Cristo está ameaçada pela deturpação dos homens, na política, no cinema, na literatura, na arte, em toda a vida social da cristandade. Pode a maneira dessa deturpação ser mudada, mas a deturpação continua a ser a mesma e é cada vez mais perversa e sorrateira.

Hoje o Cristo é mais atraiçoado pelo beijo de Judas do que pela violência das palavras — “Aquele a quem eu beijar, esse é o tal, prendei-o!”

Tornamos, pois, a reeditar este livro, na intenção de alertar os leitores sinceros contra o perigo perene de falsificações da mensagem do Cristo — seja por Judas Iscariotes, seja por Caifás ou Pilatos. Todos os nossos livros, algumas dezenas, têm a mesma finalidade, reconhecida ou combatida.

Neste ocaso do século 20, em que vivemos, é de imperiosa necessidade distinguir o trigo do joio, por mais que eles se pareçam, externa-mente; a cinza de Babel da camuflagem se discrimina cada vez mais nitidamente, em puros brancos ou puros pretos.

Se for necessário apelar do intelecto para a razão, ou de Roma para Deus, façamo-lo com a coragem e honestidade de Pascal.

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Tomando Perspectiva

O racionalismo agnóstico nunca perdoará a um dos maiores vultos da ciência o "crime" de ter apelado da razão para a fé; de ter declarado em público e raso a falência da filosofia intelectualista em face dos problemas centrais da vida humana.

Se um espírito medíocre tivesse assumido semelhante atitude, lançá-la-iam os agnósticos à conta de "fraqueza intelectual"; mas, quando essa atitude é a de um espírito que assombrou o mundo com a potência do seu gênio, é enorme a perplexidade dos que não crêem na existência de realidades espirituais.

Na impossibilidade de negar a grandeza intelectual do autor dos "Pensées", resolveram muitos dos seus inimigos tachá-lo de "anormal c patológico". É possível que eles tenham razão; resta apenas saber o que é que se entende por "homem normal". Mais ou menos todos os grandes gênios da humanidade foram considerados loucos pelos "homens normais" do seu tempo; e o maior de todos foi por seus contemporâneos chamado "louco", "aliado de Belzebu", "possesso do demônio"...

Conta-se que, numa ilha longínqua, vivia um povo singular que tinha por elegante coxear e gaguejar. Certo dia apareceu nessa ilha um homem de outras terras onde não reinavam esses costumes, andando normalmente com as duas pernas. Enorme foi a gargalhada com que os ilhéus receberam esse "homem anormal". E, quando ele quis explicar a esses "homens normais" que o modo de andar dele era natural e o coxear deles é que era desnatural, foi pior a vaia, porque, além de não saber coxear, nem sabia gaguejar... E o "homem anormal" deu-se pressa em abandonar a ilha dos "homens normais", porque tinha amor à sua vida...

Quem é, nesta pequenina ilha cósmica do nosso planeta, homem normal: aquele que considera o mundo material como fenômeno principal ou único — ou aquele que admite como suprema realidade um mundo espiritual?

(1) Seguindo o costume geral, Pascal chama "razão" o que, em terminologia mais exata, chamamos "inteligência". A verdadeira razão nunca está em conflito com a fé.

***

"Pascal é uma vítima do Cristianismo", afirma Nietzsche, em tom dolente.

É uma grande verdade: Pascal é uma vítima, do Cristianismo — não no sentido em que o entendia o pretenso super-homem germânico, mas em outro sentido, bem mais heróico e trágico do que Nietzsche queria. Depois da sua definitiva conversão, a tal ponto penetrou Pascal no mistério do Cristo que teve a sua grande experiência religiosa, o seu encontro pessoal com Deus. Viu de relance o abismo da miséria humana e a infinita pureza e santidade de Deus. Viu que só Deus pode purificar o homem impuro. Desde então foi Pascal o grande descrente da impotência humana e o grande crente da onipotência divina. E esta intuição profunda e intimamente vivida o levou a tremendos conflitos com outra orientação religiosa da época. Desde então andou ele pelo mundo cristão do seu tempo como um enigma, um paradoxo ambulante, herege e santo ao mesmo tempo. Pascal, o abnegado asceta, o ardente discípulo do Cristo, o entusiasta da fé, o fervoroso católico, o impávido defensor da Igreja — vê condenado em Roma o mais sincero documento da sua espiritualidade; mas ele, sobranceiro a todas as misérias humanas que possam enfear o corpo da Igreja, continua a amar ardentemente a alma divina da Igreja do Cristo. Quanto mais os homens reduzem o Cristo vivo dos séculos a um esquálido Ecce-homo, tanto mais ama e adora Pascal esse

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Cristo maltratado na forma da sua Igreja imortal. A Igreja não são para ele, os homens que casualmente a representam, neste ou naquele período histórico; a Igreja é para ele uma realidade infinitamente superior a todas as grandezas e a todas as misérias humanas. Ele sabe que as potências do inferno não prevalecerão contra ela, ainda que os elementos humanos do corpo da Igreja falhem deploravelmente. A Igreja de Deus subsiste e subsistirá sempre, não por causa dos homens, mas a despeito dos homens. A realidade divina da Igreja começa, para Pascal, lá onde terminam as realidades humanas, para além das entidades jurídicas e hierárquicas; para além da ordem das coisas visíveis e organizáveis; para além de tudo quanto constitui o corpo humano da sociedade eclesiástica — é lá que começa a alma divina da Igreja.

É neste sentido, com uma fé inabalável na divindade da Igreja, que Pascal escreve estas memoráveis palavras: "Roma condenou as minhas Cartas; mas o que nelas condenei está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!"

O que da parte de outros seria um protesto, quase uma apostasia, nos lábios de Pascal é uma sublime profissão de fé na alma divina e imortal da Igreja (1).

(1) Ver o livro do autor: "Problemas do Espírito", capítulos "Corpo e alma da Igreja" e "Harmonia espiritual da humanidade".

***

Pascal será sempre um dos maiores enigmas e paradoxos da história espiritual da humanidade. É possível que os séculos futuros cheguem a compreendê-lo melhor do que nós.

Ele é, a bem dizer um crente descrente... Um dogmático cético...

Um homem que possui a Deus com grande plenitude — e não cessa de o procurar dia e noite, no deserto da sua enorme vacuidade...

Um homem eminentemente racional — 'mas que crê mais nas razões do coração que a razão ignora do que nas razões que a razão conhece...

Pascal sente-se feliz na posse da fé cristã — mas a sua vida espiritual é uma perene agonia metafísica...

Mártir da sua própria espiritualidade — vive ele o delicioso tormento do Infinito...

Dono de uma poderosa inteligência — só encontra satisfação em imolar o intelecto e a liberdade na ara da graça divina...

Pascal é o grande e impávido paladino da onipotência da graça.

Há homens que não chegam a uma fé integral e uma tranquilidade interior, porque as janelas de sua alma, obstruídas pelo orgulho ou pela luxúria, não permitem a entrada da luz divina da fé. Mas a vida de Pascal é uma vida de grande pureza e humildade, vida de sincera compaixão e caridade, vida de solitude e oração — e, no entanto, é o seu mundo espiritual uma grande noite, noite estrelada, é verdade, mas uma treva imensa, ligeiramente iluminada pelos astros longínquos e silenciosos... As belezas espirituais de que estão repletas os "Pensées" de Pascal parecem antes ser as longínquas visões do seu grande e doloroso ideal do que o reflexo de uma felicidade profundamente possuída. Pois, não é que o anseio de ideais inatingidos nos torna, muitas vezes, mais eloquentes do que a posse tranquila da realidade?

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Discípulo devotado de Agostinho, herdou Pascal toda a inquietude metafísica do grande pensador e místico africano, mas não lhe herdou, na mesma medida, a paz de espírito que o filho de Mônica gozou depois da sua conversão.

Tão intensa era a sua fé que pediu a Deus dez anos de saúde para poder escrever uma grande apologia do Cristianismo; mas Deus como ele diz resignadamente, só lhe deu quatro anos de enfermidade; e, assim, só temos da planejada obra um esboço, que, mesmo nessa forma fragmentária, é um dos maiores monumentos da literatura cristã de todos os séculos.

***

Muito se tem escrito sobre a estranha mentalidade religiosa de Pascal. Por que andava a sua tão sincera fé cristã sempre enlutada de tristeza e dor? Por que não chegou a desabrochar em esplêndida flor de jubilosa alegria e felicidade?

Não o sabemos — nem ele o sabia...

Queria ele, o insigne matemático e geômetra, ter das supremas realidades do mundo espiritual uma demonstração física, uma clareza matemática, em vez de uma certeza espiritual?

"Crer" não passava, para ele, de um "querer-crer", de um sincero e ardente desejo de fé. Quase que poderia dizer com aquele homem do Evangelho: "Creio, Senhor - ajuda a minha incredulidade!"

Crer é para Pascal uma doce e querida necessidade, mas não deixa, afinal de contas, de ser um jogo de azar, como ele o descreve nos "Pensées". É arriscar uma partida, que pode sair bem e pode sair mal. Em todo caso, acha ele, é melhor crer do que não crer. O homem que joga no "crer" arrisca (1), na pior das hipóteses, uns

poucos anos ou decênios de vida terrestre - ao passo que o homem que joga no "descrer" expõe-se ao perigo de perder uma vida eterna. Ora, em qualquer hipótese, é preferível expor-se à possibilidade de uma perda temporal a arriscar uma perda eterna.

Conclusão: é necessário crer, mesmo que, humanamente, não se possa ter plena certeza das realidades invisíveis de que fala a fé. Vale a pena arriscar o finito pelo Infinito. O intelecto, (que Pascal chama razão) só atinge o finito, mas o coração adivinha o Infinito. E as razões do coração que a razão ignora não são menos razoáveis que as que a razão conhece. E, ainda que fossem irracionais ou suprarracionais, nem por isto devia o homem deixar de se guiar por essas razões do coração, porquanto a razão (o intelecto) não é a suprema instância nesse eterno litígio em torno dos problemas centrais da vida humana.

(1) Dizemos "arrisca" porque Pascal não concebe o monstruoso paradoxo do homem que crê na vida eterna e vive como se vida eterna não houvesse. Pascal é de uma sinceridade absoluta consigo mesmo, de uma lógica retilínea que não pactua com a política curvilínea de certos cristãos penumbristas e acomodatícios. "Ou se é cristão — ou se é pagão", diz ele. Não se pode ser semicristão e semipagão. Ou crer e viver a sua fé — ou então não crer! Esse totalitarismo espiritual o levou ao tremendo conflito com os "casuístas" contra os quais escreveu as suas "Lettres Provinciales".

O intelecto é um aspecto parcial do ser humano - o coração é a totalidade panorâmica do nosso ser. Como poderia Deus, a plenitude infinita, ser objeto de uma faculdade tão finita como é a nossa inteligência?

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Menos finita que a inteligência, ainda que não infinita, é a faculdade compreensiva do coração, que é a razão espiritual. Verdade é que nem ele compreende a Deus, esse Deus incompreensível, mas adivinha-o, pressente-o, experimenta-o, vive-o, em quase imediata propinquidade. Entre o intelecto e Deus existe uma parede maciça, opaca — mas entre o coração e Deus parece medeia apenas um tenuíssimo véu, quase transparente, que a cada momento pode romper e revelar Deus face a face.

Por isto, é o coração mais amigo da fé que a inteligência. A inteligência trilha estradas e veredas multiformes para encontrar a Deus, no vasto cenário da Natureza externa e interna — o coração espera-o pacientemente na antecâmara do santuário, escutando, em profundo silêncio, o esvaído eco de vozes que julga perceber por detrás do misterioso véu que lhe oculta o sancta-sanctorumt da Divindade...

A fé é, para a inteligência, uma peregrina estranha; fala uma linguagem que a inteligência não entende, e, não raro, entende às avessas...

Para o coração, porém, é a fé amiga íntima, quase uma irmã; elas se entendem, porque falam uma linguagem, se não idêntica, ao menos muito parecida uma com a outra. Verdade é que mesmo para o coração tem a fé as suas misteriosas reticências, os seus grandes enigmas, os seus profundos abismos, as sua excelsitudcs, cujos cumes se perdem para além das nuvens; mas, para o coração, não tem esses mistérios o caráter hostil que sempre lhes descobre ou atribui a inteligência. Crer é, para o coração, uma doce necessidade, um delicioso tormento, uma tormentosa delícia - delícia, por causa daquilo que existe para além do véu, tormento por causa deste véu...

A inteligência, nos domínios do mundo espiritual, após longas jornadas, chega invariavelmente a um "ponto morto", à beira de um abismo que não consegue transpor, uma vez que ela é essencialmente "bandeirante a pé", que abre o seu caminho andando, com o auxílio de penosos e complicados silogismos, saltando de pedra em pedra, da premissa maior para a menor, e daí para a conclusão para atravessar a torrente dos fenômenos transitórios. A marcha da inteligência é um movimento descontínuo, feito de passos sucessivos; é uma longa cadeia de elos concatenados; se faltar um desses elos, não pode a inteligência prosseguir na marcha; chegou a um "ponto morto".

O coração, porém, tem movimento contínuo, não anda — voa, transpõe precipícios, sem necessidade de pontes silogísticas; de um jato está dooutro lado, não se sabe como... Nas jornadas do coração só se vê o ponto de partida e o termo de chegada, nada, porém, se sabe do trajeto intermediário, nada do modo como ele realizou esse movimento. Consta o quê do fato, não consta o seu como...

A inteligência é analítica — o coração é intuitivo... Aquela marcha — este voa...

A inteligência sente-se nos domínios da ciência — o coração encontra seu clima no mundo da mística...

***

Entretanto, como dizíamos, por maior que seja a afinidade entre as razões do coração e visões da fé — um homem como Pascal, que possuía em altíssimo grau a

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ciência das matemáticas e um apuradíssimo senso da objetividade imediata, não podia deixar de sofrer acerbamente a sua fé, preciosamente porque a vivia profundamente.

Uma grande realidade espiritual vivida é por força um grande sofrimento. Quem não sofre a sua fé não a vive.

Só uma fé dolorosamente sofrida é uma fé realmente vivida.

A fé não é um teorema matemático que possa ser integralmente demonstrado, sem deixar margem para o contrário. Se das coisas espirituais tivéssemos evidência matemática — que mérito haveria em crer? Por que teria Jesus dito: "Quem crer será salvo — quem não crer será condenado"? Se do crer ao não crer vai um abismo tão profundo como a distância entre o céu e o inferno, não é isto prova de que a fé não pode ser um simples ato da inteligência, como as verdades da física ou matemática?

Para que haja fé é necessário que haja margem para o contrário. O crer supõe a possibilidade do não-crer.

Eu não creio que duas vezes dois é igual a quatro - isto eu sei.

O que, em última análise, leva o homem a crer, ou a não crer é a sua vontade, e não a inteligência. Esta prepara apenas o caminho, mas não dá o passo último e decisivo para a fé.

Em última análise, o homem crê porque quer crer.

Este seu querer não é ulteriormente analisável. O querer é, por assim dizer, um ato hermeticamente fechado em si mesmo, indevassável, inescrutável. Não tem explicação fora de si mesmo. Gira sobre seu próprio eixo. É independente, autônomo. Quero — porque quero! É certo que há motivos externos para esse querer, motivos que atuam sobre a minha decisão e escolha; mas não há motivos rigorosamente determinantes. Sejam quais e quantos forem os motivos externos que sobre mim atuem, em última análise, nenhum deles, nem a soma de todos eles determina o caráter do meu ato volitivo. E, em face de todos os motivos pró e contra, tenho a consciência nítida de poder responder com um sim ou com um não a toda essa ofensiva dos motivos externos. Eu é que sou o dono e árbitro único do meu ato volitivo. Sou o único possuidor da chave para abrir e fechar a porta da minha vontade.

E isto não é ilusão da minha parte, como querem os deterministas. Se a consciência me ilude — quem me pode desiludir? A consciência é a última instância, o Supremo Tribunal; mia sentença é inapelável! Se não posso confiar na minha consciência — em quem é que hei de confiar? Se quisermos viver e pensar, temos de pensar, temos de admitir necessariamente que a nossa consciência seja condutora, e não sedutora — a não ser que queiramos arvorar a desordem, o caos e a mentira, em supremos fatores do Universo e fazer de Deus o rei dos tira-nos e impostores!

A minha consciência me diz que sou livre nos atos volitivos do Eu — logo, sou livre! Falou a suprema instância! Sentença inapelável!

O livre-arbítrio é a quintessência do ser humano. É o homem mesmo no mais profundo quê da sua natureza. A liberdade do querer nos faz propriamente homens; exime-nos, liberta-nos dessa mesma cadeia de casualidades férreas que entretece todos os fenômenos do Universo, sem excetuar a nossa própria inteligência. No livre-arbítrio está a Carta-Magna da minha nobreza humana, a minha maior semelhança com Deus.

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Pela inteligência sou apenas transformador — pela vontade sou creador. O ato livre produz algo do nada, algo que antes não existia, e agora existe.

Por isto, se um homem crê, quando tem a possibilidade de não crer, é ele o autor responsável por sua fé.

É absurdo afirmar "não posso crer". Querer crer é poder crer!

Há no Cristianismo bastante luz, escreve Pascal, para que o homem de boa vontade possa aceitar as trevas que nele existem — mas há também no Cristianismo bastante trevas para que o homem de má vontade possa negar toda a luz que nele existe.

Quem se decide pela luz, quando podia decidir-se pelas trevas (mistérios) do Cristianismo, pratica um ato livre e bom — quem se decide pelas trevas, quando podia decidir-se pela luz, comete um ato livre e mau.

Por isto, cada um é responsável pela sua escolha. A consciência lhe diz que é livre.

Mas, por que é bom decidir-se pela luz, e mau decidir-se pelas trevas? Por que o crer é bom, e o descrer é mau?

É porque o crer subordina a parte ao todo - e o descrer sacrifica o todo pela parte. É esta a razão ontológica da crença e descrença. Sendo o crer mais do coração que da inteligência, é algo de panorâmico, total, compreensivo — ao passo que o descrer, inspirado pela inteligência, é algo de parcial, estreito, unilateral. Sacrificar o todo pela parte é desordem e insinceridade - subordinar as partes ao todo é ordem e retitude. Por isto mesmo, os frutos naturais do crer são harmonia, justiça, bondade, caridade, paz felicidade - ao passo que os filhos do descrer são geralmente, injustiça, violência, crueldade, exploração, desassossego.

***

Quando as potências do Infinito empolgam o homem, torna-se ele ou poeta ou santo. Poeta, artista, cientista, pensador, orador, quando o Infinito consegue atingir-lhe apenas asfaculdades periféricas: a inteligência, a fantasia... O sentimento; santo, apóstolo, herói cristão, talvez mártir, quando o Infinito se apodera da zona central do seu Eu, do íntimo quê do seu espírito.

O poeta impressiona pelo que diz — o santo impressiona pelo que é. A influência daquele é verbal — a influência deste é existencial.

O poeta, quanto mais arrebatado pelo Infinito, tanto mais eloqüente se torna — o santo, quanto mais identificado com o Infinito, tanto mais silencioso se faz. Não se distrai com fogos de artifício. Não lhe apraz produzir e contemplar na câmara escura as cores fantásticas do espetro solar. Tem só um desejo, profundo, sublime, veemente: viver integralmente o seu ideal, submergir no Infinito, perder-se em Deus. Nada mais o interessa. Todo o mais são sombras vagas, longínquas, quase irreais. E como ele sabe de experiência pessoal que os grandes obstáculos dessa integração em Deus são o culto da matéria e o culto unilateral do intelecto, torna-se ele antimaterialista e anti-intelectualista, reprimindo os excessos da matéria pela ascese e os demandos do intelecto pela mística.

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Pascal passou por todas estas alturas e profundezas. E, quanto mais vazio se tornava ele do Eu, tanto mais se enchia de Deus. Na razão direta dessa "desegoficação" e dessa "cristificação" corre o crescimento do silêncio interior. Silenciosas são as grandes profundezas do mar, silenciosas as grandes alturas das montanhas. Silencioso é o homem que empreendeu a grande jornada da periferia para o centro do próprio Eu...

A vida de Pascal acabou em grande silêncio. Poucos homens da história terão tido vida mis solitária e sem grandes eventos externos do que o eremita de Port-Royal. "Fugi do mundo - escreve ele — e espero que o mundo fugirá de mim." Mas é este o estranho paradoxo das coisas humanas: quando fugimos da sociedade; das honras e glórias, estas coisas correm ao nosso encalço, como se tivessem confiança em nós — mas, quando as procuramos, elas nos abandonam, porque não creem em nós. .

Onde quer que exista um grande foco de espiritualidade, para lá se voltam os espíritos, mesmo que esse poderoso astro se oculte por detrás de espessas nuvens - o heliotropismo das almas adivinha o sol a qualquer distância e através de qualquer obstáculo...

***

Tão pouco interessava a Pascal a celebridade, que nem mesmo sistematizou, nem deu nome à estupenda obra que os pósteros, depois de sua morte, compilaram de mais de um miIheiro de farrapos de papel, a que puseram o nome de "Pensées".

Essa obra fragmentária é um alimento e uma medicina para os incrédulos e cépticos do nome espiritual. No fundo, tanto os "Pensées" como as "Lettres Providenciales" são uma tremenda ofensiva do homem-cristal contra o homem-argila, possivelmente uma ofensiva do "Pascal convertido" contra o "Pascal não convertido". Nada combatemos tanto nos outros como aquilo que nós mesmos fomos um dia e cuja infelicidade sentimos dolorosamente. Nos casuístas e nos incrédulos vê Pascal o seu próprio Eu antigo, profano, amorfo, sua falta de forma de atitude espiritual definida - e vibrou tremendos golpes contra seu pseudo-Eu, que, nesse tempo, felizmente, já era um ex-Eu...

Pascal não tolera em si nem nos outros o homem-argila, o homem-molusco, o homem-mingau, o homem-furtacor, penumbrista, acomodatício, político, esses seres neutros e incolores que Dante descreveu no 3º cântico do "Inferno" e dos quais diz o seu mentor Virgílio: "Não são anjos nem demônios esses homens; não os acolheu o céu, para que não lhe empanassem o brilho, e não os engoliu o inferno, por que não eram dignos dele"...

Por esta mesma razão também se revoltou Pascal contra toda e qualquer espécie de autorredenção pelagiana, por mais bem camuflada que ela se apresentasse e por mais poderosos que fossem os seus "piedosos" defensores... Para Pascal só existe uma teorredenção, uma Cristo-redenção.

***

Eram inevitáveis os sofrimentos da vida de Pascal. Não são senão a sombra que todo o ser creador projeta atrás de si, quando se aproxima da Luz increada, sombra que tanto mais se avoluma e tanto mais negra se torna, quanto mais perto de

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Deus se acha a alma. Os homens que estão relativamente longe de Deus têm sombras pequenas e difusas; e os que se acham a distância enorme, lá onde mal chega a luz divina, esses nem percebem as sombras da sua humana imperfeição e insuficiência, não porque as sombras sejam insignificantes, mas porque grande é a distância a que se acham e fraquíssima a luz que os atinge...

Quanto mais perto da Luz, tanto maior e espessa é a sombra...

Só quando o homem submergir plenamente no oceano da Luz divina, acabarão todas as sombras...

Nesta vida, porém, é inevitável que a alma sofra na razão direta da sua proximidade de Deus. Essas sombras são, muitas vezes, a dúvida de si mesmo, a descrença da sua missão, a náusea da própria vida espiritual — supremo e último tormento dos santos...

Na vida de Pascal assumiu essa dúvida e essa náusea a forma de um doloroso cepticismo, cujo único alívio era a consciência de um grande amor de Deus. Amar é para Pascal a melhor forma de crer. É, em última análise, a tal "razão do coração que a razão ignora". Ele não pode crer num Deus a quem não possa amar sinceramente. Para ele, como para seu grande mestre Agostinho, Deus é, antes de tudo, o "Summum Bonum", o Sumo Bem, o alvo do amor, e não tanto a "Verdade Eterna". Para ele, só se conhece cabalmente o que se ama com ardor. Não importa que a filosofia afirme que o querer segue ao conhecer; pode isto valer para as coisas naturais, onde o intelecto é soberano absoluto; mas no reino de Deus há outras leis; a intuição do coração já está no termo da jornada, em pleno querer, quando a filosofia do intelecto, a meio caminho, ainda está ocupada na construção da ponte silogística do conhecer.

Só quem ama conhece cabalmente. O coração é o chaveiro da inteligência. Pascal tem uma grande mensagem para a humanidade de hoje, para os melhores homens do nosso século — uma mensagem equidistante do materialismo deprimente e do intelectualismo esterilizante, uma grande mensagem de vasta, profunda e panorâmica espiritualidade cristã.

A espiritualidade que brilha em todas as páginas do Evangelho. A espiritualidade do próprio Cristo.

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Tabela Cronológica dos

Principais Fatos da Vida

de Pascal

1623 - 19 de junho — Nascimento de Blaise Pascal.

1633 — Pascal, aos 10 anos, estuda geometria por conta própria e escreve "Traité des sons" (tratado sobre os sons).

1638/39 — Aos 15 e 16 anos, Pascal elabora o "Traité dês sections coniques" (tratado sobre as secções cênicas) e publica, com espanto do mundo científico, os "Essais pour lês coniques" (ensaios para os cones).

1640/42 — Pascal trabalha na construção da sua máquina aritmética. Primeiro abalo grave de sua saúde. 1644 — Pascal faz presente de um exemplar da sua máquina aritmética ao "Grande Conde" (Luiz II).

1646 — Primeira "conversão" de Pascal pelos jansenistas, La Bouteillerie e Deslandes. Pascal "converte" sua genial irmã Jacqueline.

1647- 23 de setembro — Pascal tem, em Paris, uma entrevista com o célebre filósofo Descartes.

1647 - 4 de outubro — Pascal publica o seu tratado sobre o vácuo "Nouvelles éxperiences touchant lê vide". 1647 — Polêmica com o Jesuíta Noel sobre a teoria do vácuo.

1647/51 — Pascal elabora o "Tratado sobre o vácuo".

1648 - janeiro - Primeiras relações diretas de Pascal com Port-Royal.

1648 - setembro — Pascal publica o célebre esboço sobre o equilíbrio dos líquidos "Récit de Ia grande éxperience de 1'équilibre dês liqueurs".

1649 - 22 de maio — É concedida a Pascal patente de invenção para sua máquina aritmética. 1651 — Princípio das relações de amizade de Pascal com o duque Roannez.

1651 - 24 de setembro — Morte do pai de Pascal.

1651 - 17 de setembro — Pascal escreve a célebre "Lettre sur Ia mort".

1652 - 14 de março — Pascal oferece à rainha Cristina da Suécia um exemplar da sua máquina de somar, acompanhado de uma carta dedicatória.

1652, - 8 de julho — Pascal fabrica o modelo definitivo da sua máquina aritmética, que se acha atualmente no Conservatório de Artes e Ofícios, de Paris.

1652 ou 1653 — Pascal escreve os célebres pensamentos sobre o amor "Discours sur les passions de 1'amour".

1653 - 6 de junho — Pascal escreve os tratados sobre os líquidos e sobre o peso da massa atmosférica, "Traité dês liqueurs", "Traité de Ia pesanteur de Ia masse de l'air".

1654 — Pascal escreve os tratados sobre o triângulo aritmético e sobre a ordem numérica, "Traité du triangle arithmetique", "Traité dês ordres numériques". Escreveu ao mesmo tempo uma série de pequenos trabalhos matemáticos e geométricos, em latim.

1654 - junho-outubro — Correspondência de Pascal com o célebre físico Fermat. 1654 — Acidente na ponte de Neuilly.

1654 - 23 a 24 de novembro — Profunda experiência religiosa de Pascal, início da sua "conversão" definitiva à vida espiritual.

1654/55 — Pascal escreve um tratado sobre o espírito da geometria, "Traité de 1'esprit géometrique". 1655 — Pascal associa-se aos eremitas de Port-Royal dês Champs.

1655 - 19 de janeiro — Carta de Jacqueline a seu irmão Blaise sobre a conversão dele. 1655 - dezembro — Pascal em Paris.

1655 — Pascal entretém-se com o grande M. de Sacy sobre a vida cristã 22 de maio — É concedida a Pascal patente de invenção para sua máquina aritmética.

1656 - 23 de janeiro — Pascal publica a primeira das suas famosas "lettres Provinciales".

1656 — Correspondência de Pascal com Mlle. Roannez, irmã do duque Roannez, sobre a vida espiritual. 1657 - 24 de março — Pascal publica a sua última (18ª) "Lettre Provinciale".

1657 - 6 de setembro — A Congregação Romana do Index condena as "Lettres Provinciales".

1657/62 — Pascal trabalha na sua Apologia da Religião, intitulada, mais tarde, pelos editores, "Pensées". 1658 - 11 de junho — Pascal institui o concurso sobre a "roulette" ou a ciclóide (1).

1658 - 25 de novembro — Apuração do concurso sobre a ciclóide. 1658/59 — Diversos trabalhos de Pascal sobre matemática e geometria. '

1658 ou 1659 — Pascal expõe, numa conferência, o plano da sua Apologia da Religião ("Pensées"). 1656, fevereiro — Expulsão das monjas e dos eremitas de Port-Royal.

1661 - 6 de outubro — Morte de Jaqueline, irmã e conselheira espiritual de Pascal.

1662 - janeiro — Pascal estabelece a primeira empresa de omnibus em Paris e obtém para a mesma carta patente da autoridade pública.

1662 - 3 de agosto — Testamento espiritual de Pascal.

1662 - 19 de agosto — Morte piedosa de Blaise Pascal, com 39 anos de idade.

(1) Tratava-se, neste célebre concurso científico, de precisar matematicamente a trajetória descrita por uma roda de carro em movimento. Sendo que essa trajetória se compõe do movimento rotativo da roda e do seu avanço progressivo em sentido horizontal, era sumamente difícil precisar a chamada "roulette" - ou "ciclóide". A solução final do problema foi dada pelo próprio Pascal, com admiração de todo o mundo profissional.

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Lampejos de Gênio

Um menino de 10 anos, por nome Blaise Pascal (1), bate com uma colher num prato e escuta atentamente o som que, por algum tempo, continua a vibrar, cessando, porém, assim que o pequeno põe a mão sobre o prato.

Milhares de meninos terão observado o mesmo fenômeno trivial, mas só este, estranha-mente intrigado com o fato, resolveu investigar o mistério — e escreveu um tratado sobre o som, "Traté des sons".

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(1) Blaise (Braz) Pascal nasceu em Clermont (Auvergue), aos 19 de junho de 1623, filho de Etienne (Estevão) Pascal e Antoinette Begon. Sua irmã mais velha, Gilberte, nasceu em 1620, e sua irmã mais nova, Jacqueline, em 1625. Faleceu aos 19 de agosto de 1662, com 39 anos de idade. Suas últimas palavras foram: "Não me desampare, Senhor!"

Certo dia, encontrou o pai ao pequeno Blaise sentado no soalho do quarto a riscar com um pedaço do giz "rodas e barras" (ronds et barres),como ele chamava, lá na sua linguagem infantil, os círculos e as linhas retas da geometria; e passou a explicar ao pai estupefato as relações que descobrira entre essas "rodas" e as respectivas "barras".

Estranho divertimento para uma criança!...

Por esse mesmo tempo, provou Blaise que a soma dos ângulos de um triângulo perfaz dois retos, solvendo assim, por passatempo, o 32º teorema de Euclides, cujo nome ignorava.

Adolescente de 16 anos, escreveu um tratado sobre as secções dos cones, "Traté des sections coniques", problema de alta geometria, que assombrou o mundo profissional da época. Descartes, o grande filósofo, recusou-se por muito tempo a crer que semelhante trabalho fosse feito por um jovem dessa idade.

***

De resto, não era Blaise o único "prodígio" da família Pascal. Sua irmãzinha Jacqueline, dois anos mais nova que ele, escrevia, aos 11 anos, poesias que excediam a capacidade normal de uma criança. Aos 13 anos, compôs uma poesia sobre um assunto que ninguém podia esperar de uma menina dessa idade — a gravidez da rainha Ana da Áustria. Aos cépticos, que a supunham plagiária, provou-lhes Jacqueline a sua capacidade, improvisando diante deles uma poesia de notável perfeição. Esse talento precoce da menina contribuiu pouco para o melhoramento da situação econômica da família Pascal, e isto de um modo singular. Quando em 1633, o poderoso Ministro de Estado, Cardeal Richelieu, fez representar em seu palácio a tragédia "L'Amour tyrannique", de G. de Scudéry, foi confiado um dos papéis a Jacqueline, que se conduziu com tanto brilho que o Ministro manifestou o desejo de conhecer o pai e a família da pequena atriz, que contava então 8 anos. Etienne Pascal havia perdido as boas graças de Richelieu por causa de um incidente relativo às apólices do Estado, e, para não ser preso, se refugiara a Clermont, na Auvergne. Por causa da talentosa

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filhinha, foi chamado a Paris, onde Richelieu o nomeou Prefeito de Rouen, prometendo, outrossim, interessar-se pela carreira dos jovens Pascal. Não foi necessária esta proteção do Ministro. Os jovens Pascal, sobretudo Blaise, fizeram a sua grandeza, independente de favores públicos, graças aos extraordinários cabedais que a Divina Providência lhes outorgara.

***

Em Rouen excogitou e construiu o jovem matemático, aos 18 anos, uma máquina de contar a fim de aliviar os complicados cálculos de seu pai, lidar com as finanças do Município. Esse aparelho, de que mais tarde, foram feitos numerosos exemplares, prestou grandes serviços aos que se ocupavam com os mistérios da aritmética, nesse tempo em que ainda não estavam aperfeiçoadas as tábuas logarítmicas. Mais tarde, ofereceu Blaise Pascal uma dessas máquinas ao célebre Condé, e outra à Rainha Cristina da Suécia, que então se achava na França. Na carta, que acompanhava o original presente à jovem soberana, revelou-se o genial matemático e mecânico, pela primeira vez, insigne estilista, embora essa epístola não refletisse ainda a incomparável beleza e diáfana simplicidade que encontramos nas "Pensées".

De 1646 a 1648, entre 23 e 25 anos, andou Pascal engolfado em estudos de Física, escrevendo um tratado sobre o "espaço vazio" "Nouvelles experiences

touchant lê vide". Tão excessivos foram os esforços desse tempo que o corpo não

resistiu à sobrecarga do espírito. O jovem cientista caiu enfermo, e nunca mais se restabeleceu completamente.

Inesperadamente, entrou em violenta polêmica científica com um jesuíta, por nome Noel, polêmica em que se revela pela primeira vez a sutil ironia e candente sátira que, mais tarde, fizeram das famosas "Lettres Provinciales" uma das maiores sensações literárias do século, lidas nos palácios e nos tugúrios da França e, logo depois, traduzidas em todas as línguas.

Uma força estranha, uma como energia cósmica parecia trabalhar nos meandros desse cérebro juvenil — e Pascal deixou-se empolgar, consciente ou inconscientemente, por esse sopro anônimo que tangia sua alma para mundos ignotos...

Ignotos, mas pressentidos como soberanamente grandes e divinamente belos...

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Os Eremitas de Port-Royal

Em 1646, quando Blaise contava 23 anos, sofreu seu pai um acidente que por largo tempo o reteve de cama.

Dois piedosos irmãos, fervorosos discípulos de Cornélio Jansênio, bispo de Ypres (+1638), ofereceram-se como enfermeiros, e, além da saúde corpórea que restituíram a Etienne Pascal, procuraram elevar-lhe também o espírito para as alturas da Divindade. Falavam com grande unção e fervor das maravilhas da graça divina.

Já era conhecida nesse tempo a grande obra teológica de Cornélio Jansênio intitulada "Augustinus", obra que, após a morte do autor, encontrou no abade de Saint-Cyran um dinâmico divulgador e apóstolo.

Em 1636 fora o dito abade nomeado diretor espiritual do convento das monjas cistercienses em Port-Royal, nos arrabaldes de Paris. Quem diria que entre os silenciosos muros desse mosteiro encontrassem as ideias do fundador do Jansenismo tão poderoso eco que repercutissem pelo mundo inteiro, mantendo, por muito tempo, em suspensão o catolicismo da França'? Não caísse a mensagem rigorista do bispo de Ypres no meio de uma França profundamente anarquizada e espiritualmente depauperada, talvez que não despertasse tão vasta ressonância em milhares de almas sinceramente cristãs que não se conformavam com o laxismo reinante, suspirando por uma espiritualidade mais profunda e uma regeneração moral dentro do seio da Igreja.

Não tardou que, a certa distância do mosteiro cisterciense, se organizassem diversas ermidas de homens atraídos por esse poderoso foco de espiritualidade cristã, bebendo avidamente, dos lábios de Saint-Cyran, as grandes idéias de Jansênio.

O poderoso cardeal Richelieu, que era tudo, menos o que devia ser, um verdadeiro ministro de Deus, não via com bons olhos esse movimento e o insistente brado de cristianização que de Port-Royal reboava pela sociedade profana do seu tempo. Quem, mais que outro qualquer, necessitava de uma reforma era o hábil Ministro de Estado, que do seu munus sacerdotal tinha apenas a veste talar. No intuito de fazer calar a Saint-Cyran, ofereceu-lhe sucessivamente de cinco Bispados, iscas que o abade recusou sucessivamente com toda a firmeza e polidez, continuando a clamar pela reforma dos costumes dentro do catolicismo e do clero.

Em 1638 acabou a paciência de Richelieu, e, a exemplo de seu patrono Herodes, mandou lançar ao cárcere o importuno pregador da moralidade pública, e ordenou às monjas e aos eremitas de Port-Royal que abandonassem Paris. Saint-Cyran, porém, mesmo na prisão, continuou o seu apostolado por meio de uma vasta correspondência com grande número de pessoas desejosas de espiritualidade cristã. Os seus discípulos, por seu turno, foram estabelecer-se fora da capital, no velho convento de Chevreuse, que, daí por diante, passou a chamar-se "Port-Royal dês Champs".

Dia a dia, crescia o número dos eremitas. Entre eles apareceu também o célebre Antoine Arnauld, lente da Universidade de Paris e um dos grandes defensores das ideias de Jansênio. Arnauld, tomando por base o "Augustinus", fez como que cristalizar em alguns pontos nitidamente definidos o objetivo do movimento, que, em resumo, consistia num retorno ao fervor religioso dos tempos apostólicos, à simplicidade da vida pobre e à concretização do Evangelho na vida quotidiana. Tudo isto queriam Jansênio e seus discípulos realizar de acordo com a hierarquia e as tradições da Igreja Católica; não pretendiam de forma alguma fundar uma seita,

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mas trabalhar por uma reforma religiosa e moral da vida católica e do clero. Eles mesmos, os Jansenistas, davam, por meio de uma vida de grande austeridade e prolongadas meditações, exemplo vivo do que ensinavam.

O que, antes de tudo, horrorizava aos severos ascetas de Port-Royal era o laxismo da teologia moral da época patrocinado pelos famigerados "casuístas". Sendo que os mais célebres desses "casuístas" eram sacerdotes da C o mp a n h i a de Jesus, dirigiu-se o centro da ofensiva jansenista contra a Ordem dos Jesus.

Na opinião de Saint-Cyran, Arnauld e seus correligionários, era essa "casuística" um corrosivo traiçoeiro que ia destruindo insensivelmente, na alma do povo católico, a ética do Evangelho, acabando, assim, por adulterar o próprio espírito do Cristianismo. Até que ponto tinham eles razão, poderá o leitor depreendê-lo dos tópicos que, mais abaixo reproduziremos, tirados de alguns desses livros impugnados.

Tivessem os Jansenistas limitado o seu zelo reformador a esse terreno propriamente moral, talvez que prestassem ao Cristianismo maior serviço do que prestaram. Lançaram-se, porém, a um terreno dogmático semeado de princípios. Quiseram perscrutar o modo como a graça de Deus se compadece com a liberdade humana. Davam à operação da graça divina tanta margem que, na opinião de seus adversários, punham em risco o livre-arbítrio do homem. Mais amigos da linha mística Platão-Agostinho do que da linha intelectual Aristóteles-Tomaz d'Aquino, faziam de todo homem um "predestinado", ou então um "condenado", por conta da graça divina, sem papel decisivo da parte da liberdade humana.

Ingente polêmica travou-se em torno dessa questão, que, no fundo, será sempre insondável mistério. É certo que graça divina é compatível com a liberdade humana; mas nunca teólogo algum desvendará o íntimo como dessa harmonia entre dois fatores aparentemente antagônicos.

***

Enquanto os dois piedosos samaritanos pensavam os ferimentos de Etienne Pascal, escutava o jovem Blaise com grande atenção o que eles diziam do misterioso poder da graça de Deus. E a mensagem divina calou fundo na alma do cientista, cuja sede espiritual era muito maior que sua fome de ciência.

Terminada a cura do acidentado, despediram-se os dois Jansenistas, deixando toda a família Pascal profundamente impressionada com o ideal religioso.

Na alma do jovem Blaise estava lançada a semente, que, todavia, só mais tarde, ia brotar, Não estava ainda preparado o terreno. Pascal cria ainda por demais no poder da vontade humana. Teria de passar primeiro por uma série de dolorosas experiências e derrotas íntimas para descrer de sua amiga "vontade" e capitular incondicionalmente ante a graça de Deus...

Que um homem como Pascal, de extraordinária potência intelectiva e volitiva, acabasse, dentro de poucos anos, por apelar da razão para a f é — isto é um dos mais impressionantes mistérios do poder de Deus, que derrota a vontade, sem lhe ofender a liberdade. A mesma força divina que dum Saulo fariseu fez um Paulo apóstolo, e do estudante pagão de Cartago fez o grande místico cristão de Hipona, faria também do exímio cultor da ciência um devotado discípulo da "loucura da cruz"...

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Encontro Pessoal com Deus

A impressão que as doutrinas dos dois enfermeiros Jansenistas causaram na alma de Blaise Pascal levou-o ao que ele chama a sua "primeira conversão". Começou a se ocupar seriamente com assuntos religiosos, quando, até essa data, se interessava, de preferência, pelas ciências naturais. Não se compara, todavia, esta primeira conversão com a segunda e definitiva, que ocorreu anos mais tarde e fez do grande matemático um ardente discípulo do Cristo e apóstolo do Evangelho.

Mudança mais radical que no espírito de Blaise havia as doutrinas dos dois enfermeiros produzido na alma de Jacqueline, mudança que lhe cortou cerce a brilhante carreira literária iniciada — com grande pesar de seu amigo e admirador, o célebre poeta Corneille, que vivia em Rouen. A jovem poetisa, que teria sido provavelmente, uma das maiores glórias literárias da França, resolveu renunciar a tudo que o mundo lhe prometia e entregar-se inteiramente às humildes grandezas da vida espiritual. E com isto começou o seu longo Calvário, como acontece sempre àqueles que entram numa zona de intensa espiritualidade. Existe indissolúvel vínculo, ou talvez uma misteriosa afinidade e interdependência entre o amor e o sofrimento, como, aliás, prova a vida do próprio Cristo e de todos os seus verdadeiros discípulos. E este sofrimento nos é causado, em geral, por aqueles que mais de perto deviam acompanhar o nosso caminho ascensional.

Numa viagem a Paris, entrou Jacqueline em contato com as religiosas de Port-Royal — e convenceu-se de que só na solidão do mosteiro é que poderia realizar o seu grande desejo de vida intensamente espiritual. O pai, todavia, se opôs terminantemente aos planos da talentosa filha. Também Blaise procurou dissuadi-la do seu intento, e isto por uma espécie de egoísmo espiritual. Jacqueline era, nesse tempo, a única alma que compreendia os anseios íntimos do irmão. Com ela se abria Pascal e dela recebia grandes luzes. A ideia de ter de separar-se da irmã afigurava-se-lhe como que um eclipse religioso em plena alvorada.

Entrementes, casara Gilbert, a irmã mais velha, com um senhor por nome Périer. Em 1649 visitaram os três Pascal, Etienne, Blaise e Jacqueline, a Madame Gilbert Périer, em cuja casa se demoraram algum tempo. Querem alguns biógrafos que Blaise se tenha, nesta ocasião, enamorado de uma jovem da Auvergne apelidada "Safo". Parece, todavia, tratar-se de outro cavalheiro com o sobrenome Pascal. O certo é que o nosso matemático, que contava então 26 anos, frequentou sociedade e se tornou grande amigo de alguns homens de destaque, entre eles o duque de Roannez, como também de um cavalheiro elegante por nome Jorge Méré. Este, apesar de espírito medíocre e apaixonado jogador, veio a ter notável influência sobre Pascal, não tanto sobre o seu caráter como sobre sua vida externa e seu traque j o social. Pascal vivera até então para a sua querida matemática e física e sabia melhor como resolver cálculos infinitesimais do que como portar-se em um salão elegante no meio de damas e cavalheiros. Méré julgou de seu dever fazer do solitário pensador um autêntico homem da sociedade, um "honnête homme", como se dizia naquele tempo. E, por alguns anos, pareceu ter sorte com a sua tentativa civilizadora.

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Quem leu os "Pensées" conhece a célebre exposição que Pascal faz em torno de uma espécie de aposta ou jogo de azar, que poderíamos chamar "cara ou coroa". O fim dessa exposição é fazer ver ao cético ou incrédulo o fraco e absurdo da sua atitude em face dos problemas eternos. É bem possível que esse pensamento remonte ao tempo em que Méré arrastava seu inteligente amigo aos salões de jogo da haute-volée contemporânea.

Em 1651 faleceu Etienne Pascal, e no ano seguinte ingressou Jacqueline no mosteiro cisterciense de Port-Royal, apesar da oposição de Blaise, que não queria ver-se privado da companhia dessa alma congenial à sua.

Para encher ou esquecer o doloroso vácuo que a morte do pai e a despedida da dileta irmã abriram em sua vida, voltou Pascal, com todo o ardor, às lucubrações científicas, e, nas horas vagas, procurava distração e derivativo na sociedade. Levou vida mundana e fútil, sem todavia, comprometer a sua dignidade de homem nem abismar-se nos vícios tão próprios de jovens da sua idade.

Os biógrafos de Pascal discordam no tocante aos amores, reais ou supostos, do jovem cientista. O que o autor dos "Pensées" diz sobre os problemas do coração e o que consta do fragmento "Discours sur les passions de l'amour", publicado por Cousin, não deixam a menor dúvida de que o grande pensador tenha sentido profundamente o que os romancistas chamam "deliciosa tortura". Mas, se essa sen-sação imanente se tenha tornado transitivo e encontrado objeto correspondente — isto é uma questão aberta na vida desse homem mais que todos misterioso e enigmático.

Querem alguns que tenha mantido correspondência amorosa com a irmã do duque Roannez; mas as cartas que escreveu a essa jovem tratam de assuntos essencialmente espirituais e não dão margem a conclusões de ordem romântica. Amor tão eminentemente platônico como esse deixaria de ser amor — e Pascal era homem não menos afetivo que intelectivo.

***

Em outubro de 1654, aos 31 anos, viu-se Pascal a um passo da morte. Passando, na carruagem do duque de Roannez, pela ponte de Neuilly, cujo peitoril estava quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram rumo à beirada da ponte; dois deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte abaixo, ao passo que os outros com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo, salvando assim a vida do cientista.

Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém, madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que, com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão.

Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta, um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor revela um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha-mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria, nessa noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual! Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline,

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confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lampejo da graça divina e o sobre-humano vigor n i agem do duque de Roannez, pela ponte de Neuilly, cujo peitoril estava quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram rumo à beirada da ponte; dois deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte abaixo, ao passo que os outros com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo, salvando assim a vida do cientista.

Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitos atribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém, madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que, com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão.

Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta, um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor revela um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrar inteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha-mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que o convertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria, nessa noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que o agraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual! Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline, confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lam-pejo da graça divina e o sobre-humano vigor por ela comunicado é uma realidade muito superior a todas as chamadas visões.

Esse misterioso acontecimento íntimo, que exerceu decisiva influência sobre a vida ulterior de Pascal, deixou no referido "Memorial" apenas as seguintes palavras, do punho do agraciado:

"L'an de grâce 1654.

Lundi, 23 novembre, jour de saint Clé-ment, pape et martyr et autres au martyrologe, veille de sant Chryso-gone, martyr., et autres.

Depuis envirou dix et demie du soir, jus-ques environ minuit et demie. Feu.

Dieu d'Abraham, Dieu d'Isaac, Dieu de Jacob, non dês philosophes et dês savants.

Certitude. Certitude. Sentiment. Joie. Paix.

Deum meum et Deum vestrum. Ton Dieu será mon Dieu." Tradução:

"Ano da graça de 1654.

Segunda-feira, 23 de novembro, dia de

São Clemente, papa e mártir, e outros no martirológio, vigília de São Crisógono, mártir, e outros.

Desde pelas dez e meia da noite até pelas doze e meia. Fogo.

Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus De Jacó, não dos filósofos e dos cientistas. Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz.

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Deum meum et Deum vestrum. Teu Deus será meu Deus."

Pode-se dizer que estas duas horas de intensíssima experiência religiosa, das 10h30 até 12h30 da referida noite, marcam o nascimento espiritual do grande pensador. Nessa memorável noite cristalizou-se definitivamente a alma cristã de Pascal, assumindo aquela forma religiosa que nunca mais perdeu até a hora da morte.

Depois dessa grande iluminação interior, de que o "Memorial" não é senão pálido reflexo, dirigiu-se Pascal para Port-Royal, onde se associou aos eremitas lá estabelecidos, sob a direção do Mestre de Sacy, filho de uma irmã do célebre Jansenista Arnauld. "Fugi do mundo — escreve ele — e espero que o mundo fugirá de mim." E, de fato, o mundo o abandonou — para depois correr atrás dele por todos os séculos. Pois, é este, como dizíamos, o mistério de todas as coisas creadas: quando as procuramos, fogem de nós; mas, quando as abandonamos por amor de Deus, correm ao nosso encalço e prendem-se a nós, como se estivessem convencidas de que um homem desprendido das creaturas pode conduzir a Deus todas as coisas. A natureza só tem confiança num homem que dela não se enamora, guardando absoluta liberdade de espírito e de coração, para se elevar a. Deus — e elevar a Deus a natureza.

Começou com isto o período da grande introspecção de Pascal, a sua cristalização interior, que, mais tarde, deixou incomparáveis vestígios nos fragmentos da sua planejada apologia do Cristianismo, a que os editores deram o nome de "Pensées". Nesse livro aparecem muitas vezes alusões a Epicteto e Montaigne, ou mais exatamente, às ideologias características que esses filósofos, um grego o outro francês, personificavam: enquanto o estóico frisa a grandeza do homem, o epicureu faz ver a miséria do ser humano. Entre os dois está o Cristianismo, que não super-humaniza nem infra-humaniza o homem, mas soluciona esse enigma ambulante, esse animal-anjo, esse satânico serafim ou seráfico satã, invocando o dualismo interno do homem introduzido pelo despertar do Lúcifer do intelecto e solvido pelo advento do Logos ou Cristo.

Em torno dessa estranha dualidade do homem irredento é que giram os mais luminosos pensamentos de Pascal. Que é o homem'? Em que consiste sua queda? Sua redenção? Há uma ântroporredenção ou necessitamos de uma Teo-redenção?

M. de Sacy introduziu Pascal na vasta selva de grandiosos pensamentos que são as obras de Agostinho. E a alma do grande pensador gaulês fundiu-se com o espírito congenial do grande místico africano. Todos os futuros triunfos, como também os seus violentos conflitos espirituais, têm raiz na ideologia agostiniana. Não há, aliás, em toda a história do Cristianismo homem algum que tenha dado ocasião a maior número de ideologias várias e desencontradas do que o célebre filho de Mônica. Quem entra nessa selva tropical de pensamentos com o intuito de fazer a sua coleção de ideias ou provar a sua tese predileta, encontra abundantíssimo material para seu jardim ou seu museu espiritual — tão panorâmico é o espírito de Agostinho. Com as obras do Bispo de Hipona podem-se provar, mais ou menos, todas as ideologias espirituais; basta colecionar pensamentos de certo colorido e deixar de parte os de outros coloridos — assim como também se pode provar que a luz do sol é verde, vermelha ou azul, conforme a afirmação exclusiva que se faça desta ou daquela faixa do prisma produzido pelos raios solares. Os grandes homens, porém, não são exclusivistas, mas, sim, eminentemente inclusivistas, e só um espírito de vasto e panorâmico inclusivismo é que pode compreender e interpretar corretamente os gênios de horizontes universais. O Evangelho de

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Jesus Cristo é o que há de mais inclusivista e panorâmico que se possa imaginar — e dele precisamente têm os espíritos estreitos e exclusivistas feito a mais horripilante caricatura que já apareceu na face da terra. Todas as po-lêmicas teológicas e todas as guerras de religião nasceram desse exclusivismo, destruindo a harmonia espiritual da humanidade que o vasto inclusivismo de Jesus estabeleceu entre os homens.

Equidistante do materialismo animal e do intelectualismo luciferino, conquistou Pascal, nesses anos de solidão dinâmica, uma espiritualidade panorâmica e integral das supremas realidades. Viveu ele o Cristo vivo, o Rei imortal dos séculos. O Cristo de Pascal não é o "Senhor morto" de tantos cristãos dos nossos dias - é um Cristo vivo, sempre vivo, aquele Cristo que está conosco todos os dias até a consumação dos séculos.

Com os olhos nesse Cristo de todos os séculos é que Pascal escreveu os seus "Pensées". "É um prazer, diz ele, achar-se alguém a bordo de um navio agitado pela tempestade, quando sabe que o barco não pode naufragar. As perseguições de que a Igreja é alvo oferecem esta satisfação."

A exemplo de sua grande patrícia, Joana d'Arc, tão cristã quão analfabeta, não identifica o genial filósofo a Igreja de Cristo com esta ou aquela organização eclesiástica, menos ainda com os homens que, neste ou naquele período, representam casualmente a Igreja. Se assim fosse, seria tão mal-segura a sua fé como falíveis são os homens. Daí a pouco, teria ele ensejo para ver a enorme diferença que vai entre a alma divina da Igreja, que ele amava apaixonadamente, e o corpo humano dessa mesma Igreja, que nem sempre espelha a pureza e perfeição da alma. Católicos menos esclarecidos em sua fé se têm escandalizado com a atitude de Pascal no meio do conflito religioso do seu tempo — e esquecem-se de que ele foi obrigado a essa atitude precisamente pela fé firme e pelo ardente amor que votava à Igreja de Cristo. Outra atitude não podia Pascal assumir, depois da sua grande experiência espiritual de 23 a 24 de novembro de 1654, em que ele se encontrou, como diz, não com o "deus dos cientistas e dos filósofos, mas com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó".

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