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Tragédia Metafísica do Homem

No documento Pascal (páginas 65-70)

Três grandes lutas têm de sustentar o homem normal até chegar a uma relativa quietação interior: l — a luta entre a matéria e o espírito; 2 — a luta entre liberdade e autoridade; 3 — a luta entre o intelecto e a fé.

A primeira dessas guerras é de duração limitada; atinge a sua maior veemência na juventude, quando as potências do corpo, em rápido avanço, pretendem tomar de assalto o espírito e proclamar sobre ele a sua tirânica ditadura. Mais tarde, equilibradas as duas forças e devidamente subordinadas uma à outra, estabelece-se, geralmente, uma paz relativa, ou, pelo menos um estado de "não-beligerância", como se diria modernamente, dando novo sentido a esta palavra.

Muito mais intensa e prolongada é a segunda guerra, onde se digladiam a liberdade e a autoridade, ou seja, o princípio de autonomia individual e o da harmonia social. É inerente a todo ser vivo e, sobretudo, ao ser racional, a tendência de querer afirmar ao extremo o seu Eu individual. Esse amor-próprio, esse instinto egocêntrico é, de per si, necessário. É uma lei natural, e, por isto mesmo, a vontade do autor na natureza. Nenhum ser se realizaria devidamente a si mesmo, se não tivesse dentro de si esse veemente anseio de auto-afirmação. O desejo de progressivo aperfeiçoamento leva todo ser a empolgar e centralizar dentro de si tudo o que de valioso encontre em derredor. É o amor-próprio vital e existencial de todos os seres em evolução.

Mas, como o indivíduo "A" não é o único ser da sua espécie, deve respeitar os direitos do indivíduo "B", como se fossem seus próprios. Na esfera humana, deve o Eu conceder ao não-Eu, ao Tu, ao Nós, o mesmo que reclama para si, ou, como diz o divino Mestre, deve "amar o próximo como a si mesmo".

Afirmar o Eu à custa do Tu, é o grande pecado contra a ordem sagrada do Universo. É um delito cósmico. Respeitar os, direitos do Tu, segundo a bitola do Eu, é estabelecer a harmonia cósmica.

"Amar a Deus sobre todas as coisas, e o próximo como a si mesmo — nisto consistem toda a lei e os profetas." (Jesus).

O amor que o Eu deve a Deus vai, por assim dizer, na vertical. O amor que o Eu deve ao Tu vai na horizontal. Fazer isto é respeitar a ordem e harmonia do mundo, é "praticar o bem", é ser "homem bom".

O homem bom traça a sua vontade paralela à de Deus manifestada na ordem natural. O homem mau traça a sua vontade em linha oblíqua à de Deus, acabando assim, fatalmente, por colidir com a reta eterna, num ângulo maior ou menor — e esse desajustamento de linhas é injustiça, é desordem, é pecado.

Ora, a legítima autoridade humana tem por fim zelar por essa geometria vertical-horizontal; impedir que se desloquem estas linhas essenciais da vida humana: a linha do amor do Eu e a linha do amor do Tu e do Nós.

Mas o indivíduo de Ego hipertrofiado não aceita de bom grado essa limitação à sua tendência, essa coação anti-egoística exercida pelo fator "autoridade". Procura, por isto, eliminar a autoridade, ou furtar-se à sua ação, a fim de poder invadir desimpedidamente a zona do Tu, cercear-lhe os direitos em benefício próprio, eliminá-lo por completo, se necessário for, para o completo triunfo do Eu. Nenhum Cain tolera de bom grado um Abel. A incorporação do Eu no plano do cosmos, divino e humano, exige notável potencial de compreensão e virtude.

***

Entretanto, a luta suprema do homem chegado à sua maturidade espiritual é outra. É a luta titânica de harmonizar o intelecto com a fé.

A luta entre matéria e espírito é individual.

A luta entre liberdade e autoridade é social.

A luta entre o intelecto e fé é metafísica. Atinge as últimas e mais profundas raízes do ser humano, lá onde corre a linha divisória entre Deus e o homem, entre o finito e o Infinito.

Não sei se na vida presente, é possível um definitivo tratado de paz entre essas duas potências beligerantes. O único homem que até hoje, ao que sabemos, viveu num ambiente de perfeita paz entre o intelecto e a f é foi Jesus, o Cristo. Nele não aparece nenhum sintoma de angústia espiritual, de dolorosa problemática interior, de conflito entre o mundo visível e invisível. E isto pela simples razão de não existir nele a fé em sua forma especificamente humana, mas, sim, na forma sobre-humana ou divina da visão. Isto nos dá esperança, e até certeza, de que, um dia, também nós proclamaremos em nosso Eu a harmonia do intelecto e da fé. E esta visão longínqua de paz nos preserva do desespero no meio da luta atual.

Para estabelecer unia relativa harmonia entre o intelecto e a f é, já na vida presente, não basta provar que a fé não é contrária ao intelecto, como fazem os bons apologistas. É uma tese verdadeira, porém negativa — e o homem não se satisfaz com teses negativas.

Quanto mais o homem procura transformar em intuição o seu intelecto, tanto mais diminui ele a distância entre o intelecto e a fé; porque, sendo a fé uma espécie de botão ou germe da visão futura, tanto mais diminui a tensão hostil entre o intelecto e a fé, quanto mais aquele se assemelhar à intuição, e quanto mais esta se aproximar da visão.

O homem primitivo passou do Éden do inconsciente para o mundo do semi- inconsciente intelectual; o homem cristificado passa dessa semiconsciência intelectual para a pleniconsciência espiritual. A inteligência traça ziguezague, serpentinas, meandros, mil e mil caminhos labirínticos, rumo à verdade - ao passo que a fé não conhece propriamente caminho algum, só conhece o termo da jornada, atinge esse termo, sem nenhum espaço intermediário; não calcula, não analisa, não forja silogismos, não pondera argumentos pró e contra — a f é atinge o seu alvo de um jacto, pela simples, ingênua e corajosa reafirmação vital daquilo que Deus afirmou. A fé é por essência um ato de suprema audácia, quase uma temeridade metafísica. O herói da fé joga-se às ondas bravias do mar, de um mar ignoto e infinito. Não usa flutuadores nem salva-vidas. Não nada ao longo da praia, prudentemente agarrado aos arbustos, como fazem os nadadores incipientes e medrosos; perde de vista todos os litorais do continente dos sentidos e do intelecto, e tanto maior é o arrojo do herói da fé, quanto mais veementes são as tempestuosas vagas do oceano divino que o empolgam com sua irresistível sedução.

Devido a essa sublime audácia é que a fé nos parece algo de irracional e anti- intelectual. E ela é, de fato, o mais radical e veemente protesto contra certo burguesismo pseudo-espiritual cuja virtude máxima é a "prudência". A fé é, à luz dessa "prudência" burguesa, a maior "imprudência" que imaginar se possa. Por isto agradecia Jesus ao Pai eterno o fato de ter revelado essas coisas divinas ao "simples e pequeninos" e ocultado aos "doutos e entendidos". Estes últimos, por via de regra, obstruem a tal ponto o caminho que nada mais enxergam do termo da jornada; as montanhas dos seus argumentos intelectualistas lhes ocultam toda e

qualquer realidade divina. O excesso do seu intelectualismo envolve em espessos nevoeiros o objetivo da intuição espiritual.

Para que esses "doutos e entendidos" possam crer, é necessário que primeiro se desintoxiquem da sua filosofia intelectualista; que reduzam a uma ingênua e natural simplicidade o complexo artificialismo da sua vida interior; que se tornem como crianças, porque, segundo as palavras do Mestre, só assim é que entrarão no reino dos céus...

O presente século, unilateralmente intelectualizado, tem de ser por força um século distanciado da fé.

Há, todavia, alviçareiros indícios de que estamos preludiando um período de conquista espiritual. A intuição está ganhando terreno. O pleni-homem é

intuitivo, e por isto nada sabe desse doloroso conflito metafísico entre o intelecto e o coração; o "segundo Adão” é o homem intuitivo por excelência.

***

O homem que consegue harmonizar o intelecto e o coração, aproximando-os da intuição e da visão das supremas realidades, adquire um novo modo de conhecer, que não é nem ciência nem fé.

Que é, então?

É uma vivência, espécie de experiência íntima, profundamente vital, não científica nem religiosa (no sentido comum do termo), mas intensamente real, essencial, cósmica, divina.

Temos, inegavelmente, dentro de nós, como já foi dito, uma faculdade com a qual aprendemos as supremas realidades, faculdade cuja íntima natureza é misteriosa. Essa faculdade é o reflexo do cosmos divino dentro do Eu, uma espécie de consciência cósmica, universal, divina. É uma base infinitamente ampla. Tudo que sobre ela construímos — a ciência, a fé, etc. — é sempre menos largo que essa base.

Por meio dessa base profunda e vasta está o homem ligado ao cosmos, isto é, a todas as demais realidades, quer materiais, quer espirituais e divinas.

***

O homem, na vida presente, depois de harmonizar o intelecto e a f é pela vivência, chega a um ponto em que a "ex-sistência" (existência) (1) das coisas espirituais e divinas lhe parece antes uma "in-sistência". O que o convence dessas supremas realidades não é tanto aquilo que está "ex" (fora), mas, sim, aquilo que está "in" (dentro). Para esse homem, a "in-sistência" ou "imanência" é o fator primário e decisivo, ao passo que a "ex-sistência" (existência) ou "emanência" (transcendência) lhe é secundária e acidental.

(1) A palavra "existência", ou primitivamente "exsistência", é formada da partícula "ec" ou "ex" (fora), e "sistere" (colocar) — isto é, "aquilo que está colocado para fora", ou seja, o que é visível e cognoscívelmente acessível. Sendo que o homem intuitivo se guia de preferência pela realidade interna

das coisas ou de seu próprio Eu, poderíamos designar esse modo de ser e conhecer pela palavra "in- sistência", no sentido de "realidade interna".

É este, aliás, o curso de toda a cultura superior da humanidade: do "ex" para o "in", de fora para dentro, da periferia para o centro, da transcendência para imanência.

Se fosse possível, na vida presente, uma perfeita sintonização entre a ciência e a fé, ou seja, uma perfeita sublimação da ciência em intuição, e da fé em visão — estaria solucionada a tragédia metafísica do homem. Mas essa perfeita sintonização não é possível, por ora, porque é assaz precária a nossa potência intuitiva, e a visão, quando existe, se restringe a uns poucos momentos de vidência sobre-humana.

Por isto, continua a tragédia metafísica do homem pensante que queira crer. Pascal dá a entender que o seu crer se resume num "querer-crer", o que é perfeitamente compreensível em um homem como ele, que possuía em alto grau a inteligência das matemáticas e um apurado senso de objetividade.

Esse "querer-crer", esse sincero desejo de fé, é talvez a única modalidade de crer para muitos homens do presente século. E, como Deus é um Deus de bondade e indulgência, que "não quebra a cena fendida nem apaga a me dia fumegante", é de esperar que ele diga também a esses mártires da tragédia da fé o que disse àquele doutor da lei, que também era um desses crentes descrentes:

"Não estás longe do reino de Deus"...

Pensam os inexperientes que esse "querer-crer" seja falta de fé, ou uma fé vacilante, uma espécie de cepticismo ou dubitação universal de Deus e das coisas divinas. Estão muito enganados. Esse "querer-crer" é uma grande fé; mas, para o homem de intensa intuição espiritual, toda fé, por mais pujante, é tão deficiente que chega a parecer-lhe quase o contrário. Quem viu um foco de 1.000 graus, e tem nas mãos apenas uma lâmpada de 100 graus, quase que se arreceia de chamar "luz" a essa pobre lanterna, que, para outros, de experiência menos luminosa, representa, possivelmente, o mais deslumbrante foco que eles possam conceber.

Provavelmente, esse modesto e doloroso "querer-crer" de Pascal é, na realidade, um "crer" mais firme e convicto do que o "crer" de muitos outros que nunca passaram por essas dores espirituais, e isto, não por terem uma fé mais firme, mas por não saberem avaliar a, enorme distância que vai da pequena realidade ao grande ideal.

Quem crava à distância de mil metros a extrema baliza do seu ideal, sente-se muito satisfeito e seguro de si, quando atinge a oitocentos metros; a sua satisfação é, por assim dizer, quatro vezes maior do que a sua insatisfação (800 para 200!) — mas quem cravou a meta a um milhão de metros, mesmo que percorra mil, dez mil ou cem mil metros, tem sempre a dolorosa impressão de estar muito longe do seu ideal, uma vez que o espaço não percorrido é muito maior do que o caminho vencido.

A distância que vai da realidade ao ideal é a bitola da nossa infelicidade! O "querer-crer" de um espírito penetrante e de uma alma vasta como Pascal só poderá ser ideal em toda a plenitude. Esta última hipótese é impossível na vida presente, ao passo que a primeira supõe um espírito medíocre e obtuso, incapaz de enxergar algo para além das acanhadas fronteiras de sua vida quotidiana. De maneira que não há, para o espírito clarividente, outra alternativa senão a de sofrer o martírio da sua própria espiritualidade, a incompreensão e, possivelmente, a pecha de incrédulo ou herege, por parte de outros homens mais satisfeitos com o pouco que enxergam e ignorantes de muito que ignoram.

O "querer-crer" de um espírito penetrante de uma alma vasta como Pascal só poderá ser entendido e devidamente aquilatado por um homem de igual potencialidade e dinamismo espiritual.

O tacteante "cepticismo" de muitos homens, aparentemente incrédulos ou indiferentes em matéria de religião carimbada, revela, não raro, maior potencial de fé do que o farto e intolerante dogmatismo de muitos outros que nunca adivinharam mundos de infinita grandeza, para além do horizonte do seu compla- cente burguesismo espiritual.

Cristianismo Político-

No documento Pascal (páginas 65-70)