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Aspectos Gerais sobre as Restrições aos Direitos Fundamentais

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Academic year: 2021

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PEREIRA, Jane Reis.

Aspectos Gerais sobre as Restrições aos Direitos Fundamentais

Jane Reis Gonçalves Pereira

1. Generalidades; 2. Os termos do problema: alguns aspectos conceituais e semânticos; 3. O debate sobre a possibilidade lógica de restrição dos direitos: 3.1) A teoria interna (ou concepção estrita) dos limites dos direitos fundamentais; 3.2) A teoria externa (ou concepção ampla) dos limites dos direitos fundamentais; 3.3) Algumas teses diferentes: 3.3.1) O aporte de Häberle: a tese que concilia ponderação e direitos irrestringíveis; 3.3.2) A concepção de Vieira de Andrade: irrestringibilidade abstrata e restringibilidade concreta; 3.4) As críticas postas às teorias interna e externa; 3.5) Aprofundamento das diferenças entre as duas teorias; 3.6) Análise crítica do tema. Razões teóricas e jurídico-positivas em favor da teoria externa: 3.6.1) A existência de um direito geral de liberdade; 3.6.2) As vantagens da teoria externa no campo hermenêutico e argumentativo; 4. Um debate correlato: A doutrina da imanência; 5. Conceito de restrição: 5.1) Aspectos gerais quanto ao conceito de restrição; 5.2) Restrição e configuração; 6. Modalidades de restrições aos direitos fundamentais: 6.1) Generalidades; 6.2) Restrição legal (abstrata) e restrição aplicativa (concreta); 6.3) A classificação de Robert Alexy: 6.3.1) Restrições diretamente constitucionais; 6.3.2) Restrições indiretamente constitucionais; 6.4) Uma proposta complementar de classificação: 6.4.1) Restrições expressamente estatuídas pela Constituição; 6.4.2) Restrições expressamente autorizadas pela Constituição: 6.4.2.1) Reservas legais simples; 6.4.2.2) Reservas legais qualificadas; 6.4.3) Restri-ções implicitamente autorizadas pela Constituição: 6.4.3.1) Conceitos indeterminados e institutos jurídicos sujeitos à regulação legal; 6.4.3.2) Conflitos entre direitos fundamentais e bens constitucionalmente legítimos.

1. Generalidades

O presente texto é uma versão ligeiramente editada do Capítulo III da obra:

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos Fundamentais: Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

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A assertiva de que os direitos fundamentais não são absolutos soa natural e lógica.1 De fato, a ideia de que é preciso limitar as ações humanas para

viabilizar a coexistência das pessoas é tributária da própria noção de liberdade.2

Tal concepção, que remonta ao primeiro estágio de reconhecimento dos direitos humanos,3 já estava expressa na máxima kantiana sobre o direito: “Atue

externamente de maneira que o uso livre do teu arbítrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal.”4

No plano jurídico-positivo, é intuitivo que a ampla gama de direitos consagrada nos textos constitucionais induz à necessidade de harmonizá-los entre si e com outros valores ou bens protegidos pela ordem jurídica. Como destaca Jean-François Renucci, “A limitação dos direitos do homem se impõe em nome de um certo pragmatismo associado a uma preocupação com a efetividade: o absolutismo dos direitos do homem conduziria certamente a uma

1 Cabe registrar, contudo, a existência de um amplo e denso debate sobre o caráter incondicional de certos direitos humanos. O exemplo paradigmático é o direito a não ser torturado. Confira-se a discussão sobre o tema em: FINNIS, John. Natural law and natural

rights. Oxford: Clarendon Law Series, 1999, p. 223 et seq.; GEWIRTH, Alan. Are there any

absolute rights? In: WALDRON, Jeremy (ed.). Theories of rights. Oxford: Oxford University Press, 1990, p. 91-109 e, PERRY, Michael J. Are human rights absolute? In: The idea of

human rights: four inquiries. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 87-106.

2 A noção de que os direitos não são absolutos harmoniza-se com as duas concepções filosóficas fundamentais sobre a liberdade: i) a que entende a liberdade como autonomia; e ii) a que a concebe como heteronomia. O modelo de liberdade como autonomia tem por paradigma fundamental o pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Para o filósofo genebrino, a liberdade não se traduz em abstenções do Estado, mas decorre do fato de as pessoas obedecerem a leis de cuja elaboração participaram. Trata-se de liberdade cívica, política, e sua essência encontra-se mais na sua origem — a vontade geral —, do que na forma pela qual é exercida. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril cultural, 1978. Já a noção de liberdade como heteronomia é a defendida pelos jusnaturalistas liberais, como John Locke. Tal noção tem por pressuposto a tese de que o poder do soberano deve ser limitado, de modo que a liberdade seja exercida nos espaços vazios de poder. Numa palavra, a liberdade é entendida como a ausência de obstáculos. O embate entre essas duas teses celebrizou-se a partir da análise de Benjamim Constant, que identificou a tese de Rousseau com a noção de liberdade dos antigos, em oposição à concepção liberal dos modernos. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Filosofia Política, n. 2, 1985, p. 9-25. Sobre a noção de liberdade como heteronomia e como autonomia veja-se: BOBBIO, Norberto.

Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: UNB, 1995. Sobre o tema da

liberdade confira-se ainda: BARROSO, Luís Roberto. Eficácia e efetividade do direito à liberdade. In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 75-151 e CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1999, p. 357 et seq.

3 A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, já enunciava em seu artigo 29, parágrafo 2º que: “No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”.

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ampla ineficácia”.5 De fato, há uma série de fatores que confluem para rechaçar

uma visão totalitária dos direitos fundamentais.

Em primeiro lugar, a universalidade6 dos direitos torna imperativa sua

limitação. Sendo os direitos fundamentais atribuídos a todas as pessoas, não há como conceber sua fruição permanente e simultânea sem que haja uma disciplina ordenadora a viabilizar que estes coexistam. Só é possível tornar efetiva a titularidade universal dos direitos à medida que sejam harmonizados, o que implica logicamente a imposição de limites.7

Em segundo lugar, os direitos fundamentais são constitucionalizados como um conjunto, e não isoladamente. Nessa perspectiva, o reconhecimento dos direitos traz ínsita a noção de que estes estão inseridos num ordenamento complexo e plural, de modo que a determinação de sua esfera de incidência impõe que sejam coordenados com outros direitos e bens protegidos pela Constituição.8-9

Esses dois aspectos conjugados ligam-se à forte propensão dos direitos fundamentais a chocarem-se. A necessidade de solucionar conflitos de direitos implica, naturalmente, o estabelecimento de restrições recíprocas em sua aplicação. Em situações nas quais certos direitos que seriam, a princípio, aplicáveis, apresentam-se como antagônicos, torna-se necessário promover uma acomodação hermenêutica, devendo um deles ceder, parcial ou totalmente, em favor do outro. Dessa forma, a proteção dos direitos não pode ser efetivada mediante a “prevalência absoluta ou incondicionada de alguns, mas com a afirmação da vigência debilitada de todos”.10

Ademais, os direitos ostentam limites inerentes à sua própria natureza, que defluem da identificação dos bens jurídicos protegidos e da correlata determinação do âmbito de incidência das normas que os consagram. Numa proposição, os direitos têm fronteiras. Desta feita, não há como cogitar que contemplem todas “as situações, formas ou modos de exercício pensáveis”,11 ou

5 RENUCCI, Jean-François. Droit européen des droits de l`homme. Paris: L.G.D.J, 1999, p. 369.

6 Veja-se, sobre o tema, ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático: para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista de Direito Administrativo, n. 217, 1999, p. 60, para quem a universalidade significa que os direitos humanos “são, fundamentalmente, direitos de todos contra todos”.

7 ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Algunas cuestiones basicas de la teoria de los derechos fundamentales. Revista de Estudios Políticos (Nueva Epoca), n. 71, 1991, p. 87-109.

8 GÓMEZ, Enriqueta Expósito. La libertad de Cátedra. Madrid: Tecnos, 1995, p. 181. 9

Essa constatação leva à formulação da teoria dos limites imanentes. Confira-se item 4 infra. 10 ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Algunas cuestiones basicas..., op. cit., p. 98, que acrescenta: “A liberdade de alguns termina onde começa a dos outros, continua a ser uma representação gráfica, ainda que elementar, dessa situação.”

11 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa

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que “cubram a esfera total de ação humana possível”.12 Frequentemente, o

próprio preceito que contempla o direito já estabelece condicionamentos ao seu exercício, apontando de forma expressa os limites de proteção.13

Além disso, vários direitos são contemplados na Constituição de modo sintético e aberto, o que torna imprescindível a densificação de seu conteúdo e a regulação ou detalhamento das condições e formas de seu exercício. Descortina-se, assim, a possibilidade de configuração legal dos direitos, que conduz à ideia de estabelecimento de limites. Em alguns casos, a Lei maior expressamente outorga ao legislador ordinário a possibilidade de (de)limitar os direitos. Mas mesmo em relação aos direitos que não contêm previsão de ingerência legislativa, será cabível a conformação normativa com o escopo de concretizá-los, desenvolvê-los e conciliá-los com outros direitos e bens.14

A atuação do legislador, como é evidente, mostra-se densamente condicionada pela Constituição. Os direitos fundamentais comandam a ação legislativa em duas dimensões: i) constituem-se em obstáculos à atuação do Estado, correspondendo a um catálogo de competências negativas do Poder Público e ii) operam como guias da ação estatal, ordenando a realização de tarefas e a consecução de objetivos pelo Poder Público. Nesse prisma, como consigna Joaquín Rodríguez-Toubes Muñiz:

Os direitos fundamentais têm, portanto, um duplo aspecto: condição ou requisito mínimo da atuação pública constitucionalmente legítima, e ideal ou aspiração máxima da atuação constitucionalmente preferida. São tanto regras sobre direitos como princípios sobre deveres. Entre ambas indicações resta um espaço bastante amplo para a intervenção discricionária (aqui entendida no sentido de política) e legítima

dos poderes públicos.15

12 Idem, ibidem.

13 O exemplo de escola nesse caso é o direito de reunião, que deve ser exercido pacificamente e sem armas.

14 As Constituições contêm diversos preceitos que conferem ao legislador ordinário o poder de regular certos aspectos relativos aos direitos. Partindo-se de tal critério, os direitos fundamentais podem ser classificados em dois grupos i) direitos sujeitos à reserva legal; ii) direitos não sujeitos à reserva legal. Veja-se, nesse sentido: MENDES, Gilmar Ferreira. Âmbito de proteção de direitos fundamentais e as possíveis limitações. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional

e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 210-240. Sobre esse tópico,

confira-se o item 6 do presente trabalho.

15 MUÑIZ, Joaquín Rodríguez-Toubes. Principios, fines y derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2000, p. 122.

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De fato, se a razão de ser dos catálogos de direitos fundamentais é assegurar a inviolabilidade de aspectos essenciais da dignidade humana, não há como admitir que sua limitação venha a importar em desrespeito à Constituição. Nessa perspectiva, a atividade de conformação dos direitos fundamentais operada pelo legislador também está sujeita a limitações,16 que a

doutrina convencionou chamar de limites dos limites.17

É certo, portanto, que os direitos fundamentais são limitados e, ao mesmo tempo, constituem limites à atividade estatal. Essas premissas, que decorrem logicamente da natureza dos direitos e da ideia de Constituição rígida, comportam uma série de dificuldades,18 gerando intensos debates sobre a

natureza, a extensão e a própria possibilidade teórica das limitações. Isso ocorre porque há um inegável paradoxo na ideia de direitos fundamentais como limite ao Estado e como objeto de limitações.19 Assim, as diversas disputas

teóricas inerentes à configuração e à restrição dos direitos situam-se precisamente no âmbito dessa relação paradoxal.

2. Os termos do problema: alguns aspectos conceituais e semânticos

A despeito da aceitação genérica da tese de que os direitos não são absolutos, os mecanismos normativos e hermenêuticos que evidenciam suas limitações são bastante variados. Dessa forma, é preciso traçar uma breve aproximação conceitual para esclarecer os diversos termos empregados com referência ao problema dos limites dos direitos fundamentais.20

16 Como é o caso da reserva de lei geral, a proteção do conteúdo essencial e o imperativo de proporcionalidade. Esses aspectos são abordados em PEREIRA, Jane Reis Gonçalves.

Interpretação constitucional e direitos Fundamentais: Uma contribuição ao estudo das

restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, Capítulo V.

17 A expressão, ao que parece, tem origem no constitucionalismo alemão (shrakenshranke). O tema é tratado de forma mais aprofundada em PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação

constitucional…, op. cit., idem.

18 Como aponta CIANCIARDO, Juan, as duas principais dificuldades relativas à vinculação negativa do legislador ordinário aos direitos fundamentais, surgidas no início do constitucionalismo, encontram-se parcialmente superadas. A primeira diz respeito à visão da lei como expressão da vontade geral, que conduz ao paradoxal conflito entre direitos humanos e democracia. Outra dificuldade consistia na ausência de mecanismos para assegurar a efetividade da Constituição, suplantada pelo advento do judicial review. El

conflictivismo en los derechos fundamentales. Navarra: EUNSA, 2000.

19 ASÍS, Rafael de. Las paradojas de los derechos fundamentales como límites al poder. Madrid: Dykinson, 2000, p. 52.

20 Neste tópico, busca-se apenas precisar o sentido conferido a tais expressões neste trabalho, a fim de uniformizar o discurso. As divergências de fundo relativas a tais categorias serão abordadas nos tópicos pertinentes.

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A existência de comandos e proibições condicionantes da conduta humana é inerente ao próprio conceito de ordenamento jurídico. Com efeito, para além dos preceitos permissivos, o sistema jurídico é composto, fundamentalmente, de uma série de normas que de vários modos circunscrevem a liberdade das pessoas.21 Assim, como assevera Sanchís, “talvez pela força expansiva e pelo

prestígio jurídico dos direitos fundamentais, existe uma certa tendência a considerar tais comandos e proibições como um caso de limitação dos direitos, sugerindo com isto que toda imposição normativa de uma conduta restringe a liberdade individual, que precisamente encontra sua cristalização jurídica nos direitos fundamentais”.22

Todavia, como já se enfatizou, as limitações aos direitos materializam-se de várias formas. Há certas hipóteses em que a ausência de lastro jurídico a legitimar determinadas ações humanas não decorre de intervenções legislativas nos direitos, mas do seu próprio perfil traçado na Constituição.23 Em

outros casos, o legislador detém autorização constitucional para definir ou modular os contornos do direito. E, quando o Judiciário emprega o método da ponderação de interesses, a limitação ao direito opera-se in concreto, mediante o afastamento de sua incidência numa hipótese específica.

Diante de todas essas possibilidades, torna-se evidente que a expressão

limites dos direitos fundamentais é dotada de ambiguidade. A própria palavra limite comporta um duplo significado: de um lado, corresponde à ideia de

constrição; e, de outro, relaciona-se à noção de contorno ou alcance máximo de alguma coisa. Por isso, no presente estudo, a palavra ‘limite’ é aplicada em sentido amplo, a abranger as diversas situações que evidenciam o caráter não absoluto dos direitos fundamentais.

No plano legislativo, os limites dos direitos manifestam-se de dois modos:

i) mediante constrições, exceções ou privações ao exercício do direito tal como

definido constitucionalmente;24 e ii) por meio de um detalhamento da definição

do direito fundamental e de suas formas de exercício. Quando se trata de nomear essas duas modalidades de limites, não há uniformidade na doutrina.25

21 SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los derechos fundamentales y la norma de clausura del sistema de libertades. In: Estudios sobre derechos fundamentales. Madrid: Debate, 1990, p. 153.

22 Idem, ibidem.

23 Admitir a existência de contornos máximos dos direitos não implica adotar a teoria interna, nem tampouco negar que há restrições postas diretamente na Constituição. Sobre o tema veja-se item 5.2 infra.

24 CAMPO, Javier Jiménez. Derechos fundamentales: concepto y garantías. Madrid: Trotta, 1999.

25 Veja-se, por exemplo, MUÑIZ, Joaquín Rodriguez-Toubes. Principios, fines y..., op. cit., pp. 141-142; GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y desarrollo legislativo: la garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1994, p. 161 et seq. e pp. 203-207; QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2002, pp. 201 e 210; ALEXY,

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Fala-se em limite e delimitação, em restrição e configuração, bem como em

conformação e intervenção. Essa imprecisão conceitual é um reflexo das

inúmeras divergências teóricas relativas ao tema. Aponta-se, a seguir, de que forma os referidos conceitos são manejados no presente trabalho.

A restrição — também chamada de limitação — corresponde a previsões normativas e interpretações que operam uma diminuição da esfera máxima de

incidência do direito que, a princípio, pode ser extraída de sua definição

constitucional, mediante o estabelecimento de condições e obstáculos ao seu exercício.26

Já a configuração — também intitulada conformação, delimitação ou

regulação —, é entendida como a densificação do conteúdo normativo do direito,

realizada por meio do detalhamento de seu conceito, da especificação de suas formas de exercício e do estabelecimento de garantias processuais aptas a salvaguardá-lo.27

Nem sempre é fácil distinguir os casos de restrição dos de configuração e estabelecer um consenso acerca do conteúdo constitucional do direito, de modo a permitir afirmar, com precisão, se determinada previsão legislativa constitui redução ou mero detalhamento do conceito que se extrai da Constituição. Assim, as configurações, na maior parte dos casos, haverão de ser entendidas também como restrições.28 Acresça-se, ainda, que é possível empregar a

expressão intervenções legislativas, a abranger todas as hipóteses de atuação normativa no campo temático dos direitos fundamentais.

Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 272 et seq. e, HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido esencial

de los derechos fundamentales en la ley fundamental de bonn: una contribución a la

concepción institucional de los derechos fundamentales y a la teoría de la reserva de la ley. Madrid: Dykinson, 2003, pp. 166-167 e 170.

26 Em sentido semelhante, MUÑIZ, Joaquín Rodriguez-Toubes, averba que “Por delimitação dos direitos fundamentais entendo a identificação do âmbito protegido por eles e da natureza dessa proteção. O que se delimita é o conteúdo do direito, e a delimitação consiste em definir a linha que separa o que está protegido pelo direito do que não o está; consiste então em estabelecer as fronteiras ou — neste sentido — os limites do direito fundamental. Por limitação dos direitos fundamentais, diversamente, entendo a restrição — legítima ou ilegítima, segundo os casos — que possa ser produzida no conteúdo ou no exercício dos direitos. O que se limita é um direito ou, o que é igual, a delimitação prévia (ou potencial) do mesmo. Pode-se dizer, então, que os direitos têm uns limites próprios ou internos que os delimitam, e que por outra parte estão sujeitos a certos condicionantes alheios ou externos que os restringem ou limitam.” Principios, fines y..., op. cit. Na mesma linha, QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais, op. cit., pp. 199-200 e ALEXY, Robert. Teoria de los

derechos..., op. cit., p. 276.

27 GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y..., op. cit., p. 179.

28 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 327-329; BOROWSKI, Martín. La

estructura de los derechos fundamentales. Colombia: Universidad Externado de Colombia,

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Os limites imanentes, de modo muito simplificado, costumam ser definidos como os contornos dos direitos identificados mediante seu cotejo com os demais direitos e valores constitucionalmente protegidos.29

Todos esses conceitos, aqui enunciados de forma singela, são objeto de diversos desacordos teóricos e semânticos. Ademais, há uma relação inextrincável entre as concepções dogmáticas acerca da questão da restringibilidade dos direitos e a conceituação dos mecanismos hermenêuticos e legislativos a ela relativos. A controvérsia fundamental sobre o tema diz respeito à possibilidade lógica de restringir os direitos fundamentais.

3. O debate sobre a possibilidade lógica de restrição dos direitos

Embora haja concordância quanto ao caráter relativo dos direitos,30-31 a

noção do que sejam limites constitui um dos aspectos mais problemáticos da teoria dos direitos fundamentais.32

Alguns sustentam a impossibilidade lógica de os direitos sofrerem autênticas limitações, de modo que i) toda atividade legislativa reguladora dos direitos só pode ser de “delimitação”, ou seja, de fixação de seus contornos (ou limites internos), tendo em vista que o conteúdo constitucional dos direitos não submetidos à reserva legal é irrestringível; e ii) a atividade judiciária de interpretação não pode importar em restrições ou afastamento dos direitos, devendo limitar-se a buscar o enquadramento da situação fática posta em juízo na definição constitucional do direito. Outros, de forma diversa, advogam que

29 A discussão teórica relativa aos limites imanentes será tratada no item 4, infra.

30 Em sentido diverso, defendendo a existência de direitos absolutos no plano filosófico, veja-se FINNIS, John. Natural law and..., op. cit. e GEWIRTH, Alan. Are there any..., op. cit. Para uma defesa da existência de direitos absolutos no constitucionalismo espanhol, veja-se: TORRES DEL MORAL, Antonio. Principios del derecho constitucional. Madrid: Universidad Complutense, 1992, pp. 363-364; e BAUTISTA, J. A. Piqueras. El abuso en el ejercicio de los derechos fundamentales. In: Introducción a los derechos fundamentales. Madrid: Ministerio de Justicia, 1988, p. 871. Apud GÓMEZ, Enriqueta Expósito. La libertad de..., op. cit., pp. 179-180.

31 Como adverte GÓMEZ, Enriqueta Expósito, a ideia de que os direitos fundamentais não são absolutos “... vem a rechaçar a tradicional diferenciação que a doutrina alemã vinha realizando quanto aos direitos como direitos absolutos e relativos.” Idem, ibidem, p. 179. 32 Neste sentido, veja-se MUÑIZ, Joaquín Rodríguez-Toubes, “Adotemos a perspectiva dos limites ou a da delimitação, o que em qualquer caso é indiscutível é que os direitos fundamentais não são absolutos no sentido de irrestritos. Por isso o debate teórico ao qual me refiro não se coloca sobre que condutas estão amparadas pelos direitos (o que é objeto de outro debate diferente), mas sim sobre como entendê-los e aplicá-los. Há acordo no sentido de que o exercício legítimo dos direitos está sujeito a numerosos condicionantes, porém se discute se tais condicionantes são partes da configuração do direito, e portanto dados em princípio estáveis e previsíveis pelos cidadãos e os operadores jurídicos, ou se são pelo contrário obstáculos exteriores cuja presença e força somente se comprova caso por caso, sem possibilidade de generalização.” Principios, fines y..., op. cit., p.143.

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delimitar o conteúdo do direito e restringi-lo são coisas diferentes, porquanto a primeira diz respeito aos lindes do direito, e a segunda é orientada por uma necessidade externa ao direito. Assim, a discussão cinge-se, essencialmente, “à possibilidade lógica de restrição aos direitos fundamentais”.33

3.1) A teoria interna (ou concepção estrita) dos limites dos direitos fundamentais

A teoria interna sobre os limites dos direitos fundamentais sustenta, em síntese, que é inadmissível a ideia de restrições ou limitações externas aos direitos fundamentais.

Essa vertente teórica – também denominada concepção estrita do conteúdo

dos direitos –,34 considera que os direitos fundamentais cuja restrição não é

expressamente autorizada pela Constituição não podem ser objeto de autênticas limitações legislativas, mas apenas de delimitações, as quais devem cingir-se a desvelar o conteúdo normativo constitucionalmente previsto. Assim, na ausência de norma da Constituição autorizando o legislador, de forma expressa, a restringir aos direitos, este poderá apenas explicitar os limites já contidos na norma constitucional. Apenas nos casos em que o texto constitucional prevê a possibilidade de interferência do Poder Legislativo, a atuação deste consistirá em verdadeira e autorizada limitação ao direito fundamental.35

No plano da interpretação judicial, a teoria interna refuta a existência de conflitos entre os direitos e, consequentemente, a ponderação de bens. A tarefa do operador jurídico ao interpretar o direito fundamental deve ater-se a identificar seu conteúdo constitucionalmente estabelecido e a verificar sua adequação à questão de fato apreciada, não lhe competindo estabelecer restri-ções recíprocas a direitos ou bens supostamente antagônicos.

33 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 267.

34 Essa terminologia é empregada por GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa

del legislador a los derechos fundamentales. Madrid: McGraw-Hill, 1996, passim e

BOROWSKI, Martín. La restricción de los derechos fundamentales. Revista Española de

Derecho Constitucional, n.59, 2000, p. 29-56.

35 Esse ponto é controvertido entre os autores que perfilham a teoria interna. No sentido do texto, MÜLLER, Friedrich. Die positivität der grundrechte: fragen einer praktischen grundrechtsdogmatik. Berlín: Duncker & Humblot, 1999, p. 87 et seq. Apud MARTÍNEZ-PUJALTE, Antonio-Luis. La garantía del contenido esencial de los derechos

fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 82; e OTTO Y PARDO,

Ignacio de. La regulación del exercício de los derechos y libertades: la garantia de su contenido esencial en el articulo 53.1 de la constitucion. In: MARTÍN-RETORTILLO, Lorenzo; OTTO Y PARDO, Ignacio de. Derechos fundamentales y constitución. Madrid: Civitas, 1992, p. 151. De forma diversa, Martinez-Pujalte, Antonio-Luis, defende que “os limites fixados diretamente pela Constituição ou que o legislador pode fixar em conformidade — expressa ou tácita — com esta; é um limite interno”. Ibidem.

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Nessa linha de princípio, para os adeptos da teoria interna, os limites dos direitos fundamentais não configuram jamais recortes externos de seu âmbito de incidência, mas sempre resultam da análise de seu conteúdo tal como estatuído na Constituição. Como os direitos não são limitáveis, “o procedimento de aplicação jurídica cumpre a tarefa de verificar se o conteúdo aparente do direito é também seu conteúdo verdadeiro”.36

No que tange às intervenções legislativas em matéria de direitos fundamentais, a teoria interna preconiza que as disposições legais não restringem os direitos. A legislação reguladora dos direitos circunscreve-se a concretizar e configurar os direitos internamente, detalhando suas formas de exercício dentro do âmbito de seu conteúdo constitucionalmente previsto.

Um paradigma dessa concepção é Friederich Müller, para quem do conteúdo dos direitos fundamentais resultam delimitações que “devem ser descobertas dogmaticamente através da análise do âmbito e do programa normativos”.37 A tarefa do intérprete consiste, pois, em identificar o âmbito de

proteção do direito, os seus contornos. Por via de consequência, as hipóteses de colisões de direitos ou entre direitos e outros bens — para cuja solução é necessário pressupor que um direito seja limitado para ceder espaço a outro direito ou bem constitucionalmente protegido — afiguram-se falsas. Na sua visão, trata-se de “pseudocolisões”, sendo desnecessário recorrer ao método da ponderação de bens ou valores, pois “se trata unicamente de um problema dogmático de interpretação do conteúdo do direito em questão”.38 Dessa forma,

os problemas interpretativos que envolvem direitos fundamentais não devem ser resolvidos em duas etapas (delimitação do seu conteúdo e harmonização com outros direitos ou bens), mas, ao contrário, “o conteúdo do direito é decifrado de uma só vez, em um só ato dogmático de interpretação do âmbito normativo, no qual ab initio os limites imanentes são projetados no interior do mesmo, recortando-se assim, aprioristicamente, a genérica esfera de liberdade que dá vida ao direito”.39

Na doutrina espanhola, essa tese foi defendida de forma veemente por Ignácio de Otto y Pardo,40 que, criticando as sentenças do Tribunal

Constitucional — que recorrem ao método da ponderação de bens para examinar a legitimidade constitucional de restrições aos direitos fundamentais —, sustentou que “o verdadeiro fundamento do juízo acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do limite encontra-se em sua

36 BOROWSKI, Martín. La estrutura…, . op. cit., p. 69.

37 MÜLLER, Friedrich. Die positivität der grundrechte. Berlin: Duncker & Humbolt, 1969. Apud GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., p. 55.

38 Idem, ibidem, p. 58. 39 Idem, ibidem.

40 Em seu trabalho, La regulación del exercício..., op. cit., p. 121 et seq. Esse texto é referência obrigatória sobre o problema das limitações na doutrina espanhola, a qual vem cada vez mais se ocupando do tema.

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adequação ou inadequação ao bem oposto ao direito, não em relação entre esses dois últimos, nem na ponderação de bens, por mais que se invoque esta”.41

Outro autor que defende a ideia de impossibilidade de autênticas restrições aos direitos fundamentais é Martinez-Pujalte, que salienta que “para além dos contornos que os delimitam não pode existir proteção constitucional do direito fundamental e, de outro lado, dentro deles a proteção constitucional é absoluta”.42

Como se vê, a partir dessa perspectiva, o problema crucial quanto à interpretação dos direitos fundamentais não diz respeito aos limites das restrições que possam ser estabelecidas, ou à necessidade de justificação dessas restrições. Diversamente, o foco de análise é a determinação dos confins dos direitos, ou seja, de sua esfera normativa ou âmbito de proteção, que decorre da adequação do fato à norma. Assim, ao invés de afirmarem que a liberdade de expressão é limitada pelo direito à honra e à imagem, ou que a ordem pública limita o direito de manifestação, os adeptos dessa tese sustentarão que as condutas humanas são ou não protegidas pelos direitos, ou seja, que estão ou não incluídas em suas esferas de proteção. Nessa linha de raciocínio, Ignacio de Otto apresenta uma série de exemplos que, na sua visão, ilustram a ideia por ele defendida. Afirma o autor que “o problema de uma seita religiosa nudista não é caso de liberdade religiosa”; que a garantia do matrimônio não compreende a poligamia; que a propaganda comercial não se insere no direito à informação; e, ainda, que “a sanção imposta a um funcionário que abandona seu trabalho para assistir a uma missa não é, obviamente, limitação alguma aos correspondentes direitos fundamentais”.43

Outro exemplo sempre lembrado para explanar a teoria interna é fornecido por Friederich Müller. O autor germânico analisa a situação de um artista que pretende pintar no cruzamento de duas ruas muito movimentadas. A partir de sua avaliação, a atividade de pintar em tais circunstâncias não está protegida pelo preceito da Constituição Alemã que consagra a liberdade artística,44 de modo que uma lei que venha a proibir que se pinte em um

41 Idem, ibidem, p. 123.

42 MARTINEZ-PUJALTE, Antonio-Luis. La garantía del..., op. cit., p. 93. Este autor, ocupando-se do problema da limitação legislativa dos direitos, defende que “os direitos fundamentais apresentam limites, porém não admitem restrições.” Ibidem, p. 49.

43 OTTO Y PARDO, Ignacio de. La regulación del exercício..., op. cit., p. 139 e 142.

44 “Artigo 5º (Liberdade de expressão, informação e de imprensa; liberdade de criação artística e científica) (1) Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente a sua opinião pela palavra, pelo escrito e pela imagem, bem como o direito de se informar, sem impedimentos, por meio de fontes acessíveis a todos. São garantidas a liberdade de imprensa e a liberdade de informação por radiodifusão e filme. Não haverá censura. (2) Estes direitos têm por limites os preceitos das leis gerais, as determinações legais para a protecção da juventude e o direito à honra. (3) São livres a arte e a ciência, a investigação e o ensino. A liberdade de ensino não dispensa da lealdade à Constituição”. ALEMANHA. Constituição

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cruzamento não estará restringindo direito algum, porquanto não se está diante de nenhuma “forma de ação especificamente protegida por um direito fundamental”.45 Da mesma forma não haveria restrição a direito fundamental no

caso de proibir-se “expressar opiniões políticas naquele cruzamento”, nem tampouco estaria tutelado pela Constituição um “músico que altas horas da noite, na rua ou em uma casa com paredes finas, ensaiasse sua composição para tambores.”46

Em coerência com essas noções, os diversos aportes doutrinários que defendem a teoria interna contêm, de um modo geral47, uma severa crítica à

ponderação de interesses como método de interpretação constitucional, sustentando a impossibilidade lógica de autênticos conflitos entre os direitos fundamentais ou entre estes e outros bens constitucionais. Aliás, a preocupação central no âmbito da teoria interna é expurgar do processo interpretativo o subjetivismo e, desse modo, evitar o enfraquecimento dos direitos fundamentais. O que orienta tais formulações é a premissa de que o processo de identificação do conteúdo do direito confere maior segurança e previsibilidade à atividade hermenêutica, bem como se mostra mais adequado à noção de superioridade jurídica da Constituição e dos direitos fundamentais.48

Outro objetivo que norteia a teoria interna é o de evitar a proliferação de falsos casos constitucionais, na medida em que as situações não amparadas pelo direito não decorrem de restrições a este, mas simplesmente estão fora do raio de incidência da Constituição.49 Evita-se, assim, uma inflação de direitos

fundamentais, que implicaria o enfraquecimento de sua força vinculante.50

Recentemente, essa teoria vem ganhando a adesão de diversos autores, ainda que com matizações. Nesse sentido, Juan Cianciardo51 — embora

(1949). A lei fundamental da república federal da alemanha. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 129.

45 Apud Alexy, Robert, que formula uma severa crítica a essa concepção. Teoria de los

derechos..., op. cit., p. 303.

46 Idem, ibidem.

47 São exceções: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit. e HABERLE, Peter. La garantía del contenido..., op. cit. Confiram-se, a propósito, os itens 3.3.2 e 3.3.2 infra.

48 De fato, a teoria interna encontra-se associada a outras concepções que são analisadas no curso do presente estudo, tais como a crítica à ponderação e o modelo de regras dos direitos fundamentais. Tais debates correlatos serão aprofundados nos tópicos pertinentes.

49 CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit., p. 245.

50 Idem, ibidem. No mesmo sentido, HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho

privado. Madrid: Civitas, 1995, p. 61.

51 O autor pretende propor uma teoria alternativa à teoria interna e à externa. Como crítica à teoria interna, sustenta que: i) “de um lado, a amplitude semântica das normas constitucionais parece desmentir categoricamente toda possibilidade de determinar apoditicamente, mesmo fazendo um grande esforço hermenêutico, os perfis de cada um dos direitos nelas reconhecidos.”; ii) “... a argumentação da teoria interna assenta-se sobre um

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refutando a ideia de que é possível determinar de forma apodítica o significado constitucional dos direitos, bem como admitindo a tese de que pode haver conflitos entre “normas de direitos fundamentais” — sustenta que “os direitos fundamentais são limitados, mas ilimitáveis”.52 Outro autor hispânico, Tomás de

Domingo, defende que “o exercício de um direito fundamental acha-se internamente limitado pelas exigências do bem jurídico protegido”, razão por que “não entra em colisão com interesses coletivos ou outros direitos fundamentais”. Assevera, assim, que “não resulta adequado falar em direitos ilimitados, porque cada direito não vai além do âmbito que exige a proteção do bem jurídico”.53

Na doutrina argentina, há trabalhos que defendem a posição que nega os conflitos entre direitos e, consequentemente, as limitações externas. Os professores Pedro Serna e Fernando Toller advogam que “os direitos, ainda que não sejam ilimitados — no sentido de que todo o coberto por seu âmbito material seria por isso mesmo legítimo —, propriamente não são tampouco limitados, isto é, não têm nem necessitam de limites externos, mas são delimitáveis: através da tarefa legislativa e da decisão judicial é possível traçar-lhes contornos precisos, um âmbito onde é justo exercê-los, de maneira que transpor essa esfera de atuação regular implicará um exercício abusivo”.54

dogma comprovadamente falso, o da auto-suficiência do texto constitucional e das disposi-ções jusfundamentais.” e iii) “... a teoria interna priva o litigante das garantias do princípio da proporcionalidade e do conteúdo essencial naqueles casos em que se possa considerar que o legislador não tenha limitado um direito fundamental, mas sim explicitado seu conteúdo, vale dizer, em todos os casos de delimitação e não de limitação dos direitos fundamentais, que são mais numerosos para esta teoria que para a teoria externa, porquanto as limitações reduziriam-se neste caso às expressamente contidas no texto da Constituição.” Sem embargo, a tese fundamental defendida por CIANCIARDO, Juan é a de que a) “o conteúdo das normas jusfundamentais é limitado e regulável;” e b) “os direitos fundamentais são limitados porém ilimitáveis.” Este autor, partindo da distinção entre direito fundamental e norma de direito fundamental, sustenta que “...há conflitos de normas jusfundamentais, porém que nunca, em caso algum, existem autênticos conflitos de direitos.” Deste modo, no que se refere ao problema de fundo, a tese de CIANCIARDO aproxima-se muito mais da teoria interna do que da externa. Ibidem, pp. 246-250.

52 Idem, ibidem.

53 PÉREZ, Tomás de Domingo. ¿Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al honor y la intimidad. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 353. 54 SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos

fundamentales: una alternativa a los conflictos de derechos. Buenos Aires: La Ley, 2000,

p.66. As ideias defendidas nesse livro já haviam sido esboçadas por SERNA, Pedro em seu artigo: Derechos fundamentales: el mito de los conflictos. Reflexiones teóricas a partir de un supuesto jurisprudencial sobre intimidad e información. Humana Iura. [S.l.]: n. 4, pp. 197-234, 1994.

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Nessa ordem de argumentos, defendem que a forma adequada de interpretar os direitos em situações de aparente colisão é determinar, a partir de uma leitura teleológica e sistemática, o conteúdo dos direitos.

Em resumo, a teoria interna i) nega a possibilidade de limitações externas aos direitos; ii) afirma que a identificação dos casos em que o direito deve incidir há de ser feita mediante a análise de seu conteúdo constitucionalmente estabelecido e iii) recusa a hipótese de colisões de direitos.

3.2) A teoria externa55 (ou concepção ampla)56 dos limites dos direitos fundamentais

A teoria externa acerca dos limites dos direitos fundamentais estabelece, com clareza, a diferença entre delimitação de conteúdo e restrição dos direitos fundamentais. Como assinala Alexy, a referida teoria pressupõe a existência de duas categorias jurídicas: “primeiro, o direito em si, que não está restringido, e, segundo, o que sobra quando se colocam as restrições, quer dizer, o direito

restringido”.57 E acrescenta:

A teoria externa pode, por certo, admitir que nos ordenamentos

jurídicos os direitos apresentam-se primordial ou

exclusivamente como direitos restringidos porém, tem que insistir que também são concebíveis direitos sem restrições. Por isso, segundo a teoria externa, não existe nenhuma relação necessária entre conceito de direito e o de restrição. A relação é criada tão somente através de uma necessidade externa ao direito, de compatibilizar os direitos de diferentes indivíduos

como assim também os direitos individuais e os bens coletivos.58

De acordo com essa concepção, a tarefa de interpretação constitucional visando a determinar as situações protegidas pelos direitos fundamentais envolve duas etapas, que consistem em: i) identificar o conteúdo do direito (seus contornos máximos, sua esfera de proteção),59 e ii) precisar os limites externos

que decorrem da necessidade de conciliá-lo com outros direitos e bens constitucionalmente protegidos.60

55 Expressão utilizada por ALEXY, Robert, Teoria de los derechos..., op. cit., p. 268; e CiancIardo, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit., p. 222.

56 Expressão utilizada por GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit. 57 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit.

58 Idem, ibidem.

59 Que, na linguagem da teoria dos princípios, corresponde ao conteúdo prima facie dos direitos. Ver, nesse sentido, BOROWSKI, Martín. La estrutura de los..., op. cit., p. 67.

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Na primeira fase, o intérprete deve determinar, da forma mais ampla possível, as diversas faculdades e posições jurídicas que decorrem do direito fundamental em jogo. Trata-se de verificar, à luz do dispositivo que assegura o direito, seu “conteúdo inicialmente protegido,”61 sem tomar-se em consideração

se outros direitos individuais ou interesses comunitários podem ser afetados ou restringidos. A leitura da norma, nessa etapa, é a mais ampliativa possível. Sem embargo, devem ser levadas em conta as limitações estabelecidas no próprio preceito que outorga o direito (por exemplo, a esfera de proteção do direito de associação só ampara a constituída para “fins lícitos”, vedando, ab

initio, as de caráter paramilitar).

No segundo momento, promove-se a harmonização do amplo “conteúdo

inicialmente protegido” do direito com os direitos e bens constitucionais que se

apresentem como contrapostos, a fim de identificar o “conteúdo definitivamente

protegido”. São traçados, assim, os limites definitivos do direito, os quais, para

essa concepção, são limites externos, já que resultam do “recorte” do conteúdo inicialmente protegido do direito fundamental.62

A análise de exemplos é útil para demonstrar as diferenças entre as duas concepções. No caso do artista que pretende pintar no cruzamento de duas vias congestionadas, desde a ótica da teoria interna não haveria direito à liberdade artística a ser tutelado, porquanto a referida ação não estaria inserida do âmbito de proteção da norma de direito fundamental. Embora pintar seja uma ação protegida pela liberdade artística, pintar naquelas condições não corresponde a uma “possibilidade específica de ação” compreendida da esfera normativa do direito.63 De forma diversa, apreciando-se o problema a partir das

premissas que informam da teoria externa, o resultado seria o mesmo — não há direito a pintar no cruzamento movimentado — mas a trajetória hermenêutica que conduz a essa conclusão seria distinta. Como pintar é uma ação artística, haveria um direito prima facie de pintar no cruzamento. Todavia, a existência de razões opostas — o direito dos outros e a ordem pública — justifica o afastamento do direito naquela situação específica.64

A análise promovida feita por um adepto da teoria interna de uma decisão da Suprema Corte do Canadá — que se amparou na ideia de limites — é também ilustrativa das diferenças entre as duas visões.65

O julgamento em questão versou sobre os seguintes fatos: um professor de estudos sociais no ensino médio ministrava teorias anti-semitas em suas aulas.

61 A expressão é de GUERRERO, Manuel Medina. Segundo o autor, nessa etapa, obtém-se, por meio de uma “interpretação literal do direito, um amplo conteúdo constitucionalmente protegido do mesmo.” La vinculación negativa...,op. cit., p. 62.

62 GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.. 63 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., pp. 303.

64 Nesse sentido, ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 304-306. 65 R. v. Keegstra, 1990. Suprema Corte do Canadá, 697.

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Em virtude disso, veio a ser condenado por delito de “promoção consciente e pública de ódio a determinados grupos”, tipificado no Código Penal Canadense. A sentença foi objeto de recurso, tendo a Corte de Apelação desconstituído a condenação por entender que o Código Penal violara o direito à liberdade de expressão, estampado na Carta de Direitos. A Suprema Corte reformou tal decisão por quatro votos a três. Os votos majoritários entenderam que a propaganda do ódio está compreendida na esfera de proteção da liberdade de expressão, cujo alcance constitucional é amplo. Nessa perspectiva, entendeu-se que o Código Penal, em abstrato, restringiu a liberdade de expressão ao tipificar o discurso do ódio (hate speech). Passou-se, numa segunda etapa, a verificar se a referida restrição é justificável à luz do preceito da Carta que determina que os direitos só podem estar sujeitos a limites razoáveis no âmbito de uma sociedade democrática. Entendeu-se, então, que o discurso do ódio representa uma grave ameaça aos grupos discriminados e à sociedade, de modo que o requisito de razoabilidade restou atendido.66

Toller e Serna, adeptos da teoria interna, sustentam que a Corte Canadense empregou fundamentos equivocados, tendo em vista que o discurso do ódio contraria as regras da democracia, não estando abrangido pela garantia da liberdade de expressão. Na visão desses autores, “não pode haver, de um lado, um verdadeiro direito a expressar-se de determinada maneira e, por outro, estar verdadeiramente justificada a limitação desse concreto exercício do direito”.67

A tese de que os direitos fundamentais são restringíveis tem por principal expoente Robert Alexy, sendo adotada por parte substancial da doutrina contemporânea.68 No plano jurisprudencial, essa noção tem sido empregada, em

larga medida, pelas Cortes Constitucionais, e também pela Corte Européia de Direitos Humanos.69

66 SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional..., op. cit., p. 147-148. 67 Idem, ibidem, p. 153.

68 Confira-se, por exemplo, GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.; SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (1990), p. 153 et seq.; MIRANDA, Jorge.

Manual de direito constitucional: tomo IV, direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2000,

p. 336 e, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 411. Entre nós, aproxima-se dessa concepção: SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. Pode-se dizer que tal concepção é a majoritária, embora seja possível observar que a teoria interna vem ganhando adeptos recentemente (veja-se tópico 3.1, supra).

69 Vejam-se alguns exemplos: Na jurisprudência espanhola, a teoria externa tem firme aceitação, prevalecendo a tese de que os direitos fundamentais admitem restrições, desde que estas sejam determinadas pela “estrita observância do princípio da proporcionalidade” (STC 186/2000). Em decisão paradigmática, o Tribunal Constitucional Espanhol denegou o recurso de amparo no qual se alegava a violação dos direitos à intimidade pessoal e a própria imagem em razão da instalação de circuito fechado de televisão em local de trabalho. No caso, as fitas de vídeo gravadas no circuito interno foram apresentadas pela empregadora como

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prova de responsabilidade em processo de demissão do demandante. Segundo o Tribunal, “[...] a instalação de um circuito fechado de televisão que controlava desde a zona onde o demandante de amparo desempenhava sua atividade laboral era uma medida justificada (já que existiam razoáveis suspeitas da ação irregular por parte do recorrente em seu posto de trabalho); idônea para a finalidade pretendida pela empresa (verificar se o trabalhador cometia efetivamente as irregularidades suspeitas e em tal caso adotar as medidas disciplinares correspondentes); necessária (já que a gravação serviria de prova de tais irregularidades); e equilibrada (pois a gravação de imagens limitou-se à zona da caixa registradora e a uma duração temporal limitada, suficiente para comprovar que não se tratava de um feito isolado ou de uma confusão, senão uma conduta ilícita reiterada), por que deve ser descartado que se tenha produzido lesão ao direito a intimidade pessoal consagrado no art. 18.1 CE”. No Tribunal Constitucional de Portugal também se encontram decisões das quais se infere a adesão daquela Corte à teoria externa. No processo de n. 369/2001 (Acórdão n 391/02), em que se discutia a constitucionalidade dos artigos 100º nº 2 e 108º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, os quais determinam a alienação forçada de participações sociais no âmbito de um processo especial de recuperação de empresas, o Tribunal entendeu serem legítimas as restrições ao direito de propriedade impostas por tais preceitos. Utilizando o juízo de proporcionalidade, concluiu o Tribunal que: “em face destes factores de ponderação há que concluir pela não inconstitucionalidade da norma em questão. Na verdade o sacrifício solicitado aos titulares das participações sociais alienadas é adequadamente justificado no plano constitucional pela relevância dos valores salvaguardados com a medida nomeadamente os inerentes à viabilização de um agente económico à preservação de postos de trabalho e à manutenção de uma unidade produtiva no mercado nacional”. Na Itália, a Corte Constitucional, na Sentença n. 141, de 1995, declarou a inconstitucionalidade de preceito legal que estabelecia a impossibilidade de os condenados por sentença penal, ainda que não definitiva, por algum delito relacionado a máfia, se candidatarem nas eleições. O juízo de constitucionalidade foi feito à luz do direito eleitoral passivo, aspecto essencial da participação do cidadão na vida democrática, que no ordenamento constitucional italiano é um direito fundamental. Esta qualificação é importante, pois, para a Corte a “restrição do conteúdo de um direito fundamental só é admissível nos limites indispensáveis a tutela de outro interesse de matriz constitucional, e com base na regra de necessidade e razoável proporcionalidade de tal limitação”. A análise do dispositivo revelou que medida prevista é desporpocional com relação ao valor que se pretende salvaguardar e, portanto, ilegítima à luz do princípio da razoabilidade. Entre as inúmeras decisões da Corte Européia de Direitos Humanos, destaca-se o caso Open Door and Dublin Well Woman v. Ireland, no qual a Corte reconheceu a violação ao direito à informação previsto no art. 10 da Convenção. Open Door e Dublin Well Woman são organizações sem fins lucrativos que oferecem serviços relativos à saúde da mulher, tratamentos de infertilidade, inseminação artificial e orientação para mulheres grávidas. Entretanto, uma decisão da Suprema Corte da Irlanda impediu as referidas organizações de prestar informações a mulheres grávidas concernentes às facilidades do aborto fora da jurisdição da Irlanda. Segundo Suprema Corte, tal atividade é ilegal frente ao art. 40.3.3 da Constituição que protege o direito a vida do nascituro. As organizações recorreram a Corte Européia sob o fundamento de que a decisão constituía uma interferência injustificada no direito a liberdade de informação, previsto no art. 10 da Convenção. A Corte entendeu que apesar de a restrição estar prescrita em lei e ter finalidades legítimas, a mesma não é necessária à sociedade democrática. Segundo a Corte a restrição vai além dos limites da jurisdição irlandesa e é desproporcional.

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No Brasil, os autores que se ocuparam do tema, direta ou indiretamente, vêm defendendo as premissas que integram a teoria externa.70 De outro lado, a

jurisprudência do STF tem encampado a ideia de conflitos e restrições recíprocas entre direitos, o que indica uma inclinação em favor dos postulados da teoria externa.71

A teoria externa é correlativa do modelo de ponderação e da teoria dos princípios. Ampara-se na ideia de que há conflitos entre direitos fundamentais e entre estes e outros bens constitucionais. Sendo os direitos fundamentais concebidos como princípios — vale dizer, como comandos prima facie dirigidos ao legislador —, é possível que sejam restringidos em decorrência de razões antagônicas que, em determinadas situações, assumam maior peso. Dessa forma, há duas normas válidas que entram em conflito: a norma que estatui o

70 Vejam-se, por todos, SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op. cit., p. 97 et seq. e STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da

proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

71 Tome-se como exemplo o rumoroso julgamento pelo Tribunal Pleno da Reclamação n. 2040, formulada por Gloria de Los Angeles Treviño Ruiz. A reclamante alegava que a coleta de material biológico de sua placenta para realização de exame de DNA, com vistas a determinar a paternidade do filho que concebera na prisão, violava seu direito à intimidade e o de seu filho. Como a reclamante houvera afirmado ser a gravidez decorrente de violência sexual sofrida na prisão, o STF entendeu haver um conflito entre o seu direito à intimidade e bens jurídicos constitucionais como a “moralidade administrativa”, a “persecução penal” e a “segurança pública”, estando em jogo, também, o direito à honra dos policiais federais acusados de estupro nas dependências da Polícia Federal. A partir do juízo de ponderação efetivado pela Corte, entendeu-se ser legítima a restrição ao direito à intimidade da reclamante, permitindo, assim, a realização do exame de DNA com a utilização do material biológico colhido de sua placenta. Este entendimento está explícito no voto do relator, Min. Néri da Silveira, que consignou que: “a acusação, tornada pública, porque veiculada nos meios de comunicação, com referência à “violação” sofrida, não só atingiu a honra e a dignidade dos policiais federais, alguns referidos nominalmente na imprensa, como acabou por alcançar, também, o Departamento de Polícia Federal, a instituição em si, notadamente, com as repercussões no âmbito do noticiário internacional, ferindo, sem dúvida, a própria imagem do País no exterior.” [...] “Esses bens e valores, por sua quantidade significativa, atingidos, autorizam que se adote solução realmente consistente para o esclarecimento da verdade, quanto a participação eventual dos servidores públicos em apreço no ato da alegada violência sexual aludido pela reclamante, a quem não caberá, agora, escudar-se na só invocação do direito à intimidade, para impedir se possam averiguar os fatos em sua plenitude, o que está a exigir efetivamente se confronte o DNA do filho da reclamante com o `material biológico sangue periférico' (fls. 113) dos policiais federais e outras pessoas, [...]”. Na parte final do voto o Ministro concluiu: “[...] todos esses aspetos que se acrescem, como bens jurídicos da comunidade — na expressão de Canotilho, referido às fls. 162 — ao direito fundamental à honra (CF, art. 5º, X) já examinado, estão a autorizar se estabeleça restrição, no caso concreto, ao invocado direito à intimidade da reclamante”. (Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 2040 — Distrito Federal. Julgamento: 21/02/2002. Tribunal Pleno. Rel. Min. Néri da Silveira, DJ. 27.06.2003. Ementário n. 2116-1.)

(19)

direito prima facie e a norma que estabelece a restrição.72 O direito definitivo

será extraído depois de empregado o raciocínio ponderativo, tendo-se em conta o imperativo de proporcionalidade. Por estas mesmas razões, a teoria externa é incompatível com a noção de que as normas de direito fundamental estabelecem apenas comandos definitivos (regras).73

Em síntese esquemática, a teoria externa preceitua que: i) os direitos fundamentais são princípios, veiculando comandos prima facie; ii) os direitos fundamentais são restringíveis; iii) as restrições aos direitos fundamentais são motivadas pela existência de conflitos entre estes e outros direitos e bens constitucionais; iv) a legitimidade constitucional da restrição é de ser examinada mediante um juízo de ponderação, que irá sopesar os direitos e bens em conflito, através da aplicação do princípio da proporcionalidade.

3.3) Algumas teses diferentes

3.3.1) O aporte de Peter Häberle: a tese que concilia ponderação e direitos irrestringíveis

Como se viu, as teses no sentido de que os direitos fundamentais não são passíveis de restrição usualmente estão associadas a severas críticas ao método da ponderação de interesses. Não obstante, há certos segmentos da doutrina que preconizam que o conteúdo de direitos não-restringíveis pode ser determinado por meio da ponderação.74

72 Como assinala BOROWSKI, Martín, um aspecto que aparta a teoria interna da externa consiste no fato de que aquela concebe o processo de interpretação dos direitos fundamentais como uma tarefa de verificação da existência do direito, de modo que “o conteúdo aparente do direito não compreende nenhuma posição normativa, mas apenas um fenômeno por elucidar em termos de reconhecimento do juridicamente devido. Quem unicamente pode invocar um direito aparente, atua sem direitos, e não com direitos reduzidos ou restringidos”.

La estrutura de los..., op. cit., p. 69-70.

73 Idem, ibidem, p. 66. Essa tese é acolhida por grande parte da doutrina espanhola. Vejam-se, por exemplo: GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.; SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (1990); CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los límites de los

derechos fundamentales en las relaciones entre particulares: La buena fe. Madrid: Centro

de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000; CATOIRA, Ana Aba. La limitación de los

derechos en la jurisprudencia del Tribunal Constitucional Español. Valencia: Tirant lo

Blanch, 1999; ARNAU, Juan Andrés Muñoz. Los límites de los derechos fundamentales en

el derecho constitucional español. Pamplona: Aranzadi, 1998 e, PECES-BARBA MARTINEZ,

Gregorio. Curso de derechos fundamentales. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 1999. Entre nós, aproxima-se dessa concepção: SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op. cit.

74 Um inventário dessas teorias na dogmática alemã pode ser encontrado em BOROWSKI, Martin. Grundrechte als prinzipien. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1998, p. 111. Apud BOROWSKI, Martín, La estrutura de los..., op. cit., p. 83.

(20)

Um conceituado defensor dessa noção é Peter Häberle, que defende o recurso à ponderação para apurar o conteúdo juridicamente protegido de direitos fundamentais irrestringíveis.

Häberle sustenta que os direitos fundamentais são, em sua essência, ilimitáveis. Em sua ótica, a “essência” dos direitos fundamentais e seu conteúdo constitucional identificam-se. Os marcos que delimitam o conteúdo essencial do direito fundamental, que se afigura irrestringível, são dados pelos limites imanentes. Tais limites não são identificados após um processo pelo qual os direitos são restringidos por outros bens e valores constitucionais, mas estão postos na Constituição “desde o princípio,” podendo ser extraídos diretamente do texto constitucional e das leis gerais situadas na esfera temática dos direitos fundamentais, que os concretizam.75 Portanto, em relação a esses aspectos, sua

obra coincide com os postulados fundamentais da teoria interna. As lições contidas em seu conhecido trabalho sobre o conteúdo essencial dos direitos fundamentais76 são bem claras nesse sentido:

O legislador, que concretiza no campo dos direitos fundamentais os limites conforme a essência, regula limites que existem desde o princípio. Só este “desde o princípio” ajusta-se à natureza destes limites imanentes dos direitos fundamentais: não aparecem como limites suplementares e que chegam aos direitos fundamentais desde fora. Os direitos fundamentais são limitados desde o princípio por aqueles bens jurídicos de igual ou superior hierarquia que, assim como eles mesmos, encontraram reconhecimento jurídico-constitucional. A concretização dos limites, e isso vale também para as reservas especiais de lei, não é um processo que afete os mencionados direitos “desde fora”. Os direitos são garantidos desde o princípio dentro dos limites a eles imanentes da generalidade material do sistema axiológico jurídico constitucional. Este “desde o princípio” contrapõe-se em

75 Em relação a esse aspecto, cumpre observar que, para HÄBERLE, Peter, a legislação no âmbito dos direitos fundamentais não impõe limites “desde fora”. Em suas palavras, a relação entre lei e conteúdo do direito fundamental pode ser assim colocada: “qualquer limitação de um direito fundamental é uma parte da determinação do conteúdo. A limitação e a delimitação de conteúdo vão juntas.” La garantia del contenido..., op. cit., p. 167.

76 HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido esencial…, op. cit.. Essa edição espanhola consubstancia tradução integral da tese de doutorado de Häberle, originalmente publicada como Die wesensgehaltgarantie des art. 19 abs. 2 grundgesetz: zugleich ein beitrag zum institutionellen verstaendnis der grundrechte und zur lehre vom gesetzesvorbehalt. Karlsruhe: Mueller, 1962. Há, também, as seguintes traduções parciais desse mesmo trabalho no idioma italiano e em castelhano: Le libertà fondamentali nello stato costituziole. Roma: Nuova Italia Scientifica, 1996 e La libertad fundamental en el estado constitucional. Granada: Comares, 2003.

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