D issertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Literatura da U niversidade
Federal de Santa C atarina, sob orientação da
Professora Doutora A na Luiza Andrade, p ara a
obtenção do título de “M estre em Letras” , área
de concentração em Teoria Literária.
Devo registrar m inha gratidão aos que colaboraram diretam ente para a
realização desta dissertação:
À orientadora Profa. Dra. A na L uiza A ndrade, pela sensibilidade com que
conduziu nossas discussões.
Ao Prof. Dr. Raúl A ntelo, pela generosidade em partilhar suas reflexões e sua
biblioteca particular.
Aos amigos, colegas e colaboradores: Fernando, C aco, D ilm a, Sim oni,
Eduardo, Ana Luisa, Vanessa.
Aos leais amigos Oscar, M arise, M ônica, Gilles e D inara, por terem
com preendido o longo período de reclusão.
Agradeço em especial aos am igos M aria do Rosário S totz e Celso Braida,
cujo senso prático foi precioso para a finalização deste trabalho.
RESUMO
O presente trabalho se propõe a investigar o conceito de transgressão como
interface entre Teoria Literária e Psicanálise. A partir disso, explora-se a
interdependência entre transgressão e interdito, tendo como referências a obra de
G eorges B ataille, O erotism o, e A ética da p sica n álise, de Jacques Lacan. k
.
-transgressão não pode se realizar senão sob a condição de afirm ar o interdito.
T ransgressão e interdito, gozo e lei, se afirmam pela m esm a lógica de provocar o seu
ABSTRACT
The present study is about concept o f T ransgression as interface betw een L iterary
Theory and Psychoanalysis. It shows thr interdependence o f transgression and
interdiction, in reference to, among other w orks, B ataille’s Erotism and L acan ’s
Ethics in Psychoanalysis. Transgression cannot be realized unless un d er the
condition o f affirm ing interdiction. Transgression and Interdiction, Jo uissan ce and
the Law, these are concepts can only be affirm ed by the same of provocking the
Introdução... 1
I. Transgressão, da literatura à psicanálise... 9
Em torno de Sade: B ata ille e o S u rrealism o...14
B ataille e Freud: Lei e tra n sgressã o...16
B ataille e o S urrealism o... 21
H eterogên eo, pulsão de m orte, a p a tia ... 28
II. Estética e Psicanálise... 38
Surrealism o e P sic a n á lise...43
M inotauro...53
E rotism o e tra n sg ressã o ...57
III. O vazio azul do c é u ...67
Considerações F inais...83
Antes de introduzirm os a tem ática que orientou o presente trabalho, cabe
inform ar ao leitor que nossa form ação acadêm ica realizou-se na Psicologia, d irecio n ad a
subseqüentem ente para a Psicanálise, e não nas Letras. N o transcurso do período
com preendido entre as nossas expectativas iniciais e o trabalho de p esqu isa
propriam ente dito, fom os nos deparando com a crescente com plexidade que en v o lv ia
um a produção que se pretende interdiscursiva. Por um lado, nos sentim os in stig ad os a
explorar um terreno desconhecido e que se fez m uito atraente, e por outro fom os
tom ados por uma espécie de em baraço diante de tam anha profusão e im bricação de
inform ações. O leitor poderá senti-lo p ela insistência com que nos detivem os em
arranjar historicam ente os eventos protagonizados pelos teóricos que estão pontu an d o
esta dissertação com seus conceitos.
M esmo que a doutrina psicanalítica carregue um a m arca de originalidade em
relação aos saberes constituídos antes de seu surgim ento, os legados de Freud e Lacan
deram provas de que tanto na ficção quanto na T eoria L iterária existem p o n to s de
com unicação que podem resultar vantajosos para am bos os cam pos. Já estávam os
prevenidos por algumas indicações de Lacan, vagas, é verdade, sobre o papel que
desem penharam alguns membros do Surrealism o para sua passagem da P siq u iatria à
Psicanálise. Há ainda recom endações feitas por Lacan, umas m ais explícitas, outras
nem tanto, do valor da m oderna ensaística francesa na exploração de tem as
psicanalíticos. E, por último, Lacan reafirm a esta intersecção com o campo literário ao
m inistrar o Seminário O Sintom a, armado sobre a produção de Jam es Joyce.
Por tratar-se, para nós, de um a prim eira experiência de leitura transdisciplinar,
de investigação que concerniam reciprocam ente aos campos literário e psicanalítico.
Ao avançarm os as leituras, optamos p o r delim itar o nosso tem a de investigação ao
papel da tra n sg ressão, com o princípio de um a posição que interpela o pensam ento
dialético, sugerindo um a saída não transcendentalista. Este tema, pudemos entrever
tanto na produção teórica e ficcional de G eorges B ataille, sobretudo em A literatura e o
mal, O erotism o e O azul do céu, quanto em Jacques Lacan de A ética da psicanálise.
Antes de Lacan, vale lem brar, Freud havia dado o passo inaugural em direção à
desdivinização da consciência e à especulação sobre a pulsão de m orte com o
transgressão do princípio de prazer.
Para iniciarm os esta tarefa se fez necessário a realização de um a pesquisa m ais
am pla sobre o panoram a cultural francês no qual se inscreve a história do m ovim ento
surrealista, para posteriorm ente poderm os restringir os eventos e personagens que m ais
diretam ente estiveram relacionados com o tem a de nossa pesquisa. D ecorrente desse
prim eiro passo, optam os por considerar os prim órdios do Surrealism o, até a m etade da
década de 30, como ponto de partida e elo para a articulação mais contem porânea que
pretendem os realizar entre Teoria L iterária e Psicanálise. C onstatam os que um a a
presença com um se destacava no cenário cultural que pesquisávam os: O M arquês de
Sade. C om eçando pelos surrealistas, passando por Georges Bataille e Jacques Lacan,
todos buscaram fundam entos no sistem a sadeano para alicerçar suas idéias. Na década
de 30 verificam os que a interpretação da lição sadeana foi diferentem ente assim ilada
pelos surrealistas e por Bataille. Tardiam ente, no final da década de 50, Lacan proferiu
o sem inário cujo tem a foi a ética da P sicanálise, e nele o sistema de Sade é invocado.
Estas referências nos levaram a p esq u isar essas distintas interpretações que recaíram
sobre Sade, bem com o nos indagar sobre a teorização lacaniana em torno do m esm o.
Na seqüência, já não pudem os mais ig n o rar a im plicação da trajetória surrealista para a
abordagem do tem a da transgressão. Passam os a considerar que, tanto Bataille, quanto
Lacan, seja p ela divergência ou por terem inicialm ente com partilhado inquietações
com uns, nos rem etem aos prim órdios do em preendim ento ousado (aproxim ação entre
Estética e Psicanálise), assum ido pela vanguarda francesa na segunda década do século
Sabendo que B ataille e Lacan m antiveram , separadam ente, com os surrealistas
debates intelectuais que instigaram a futura efetivação, em am bos os teóricos, de u m
pensam ento singular, procurarem os dem onstrá-lo ao longo deste trabalho.
R econhecem os, entretanto, a dificuldade que im plicou destacarm os deste conjunto
histórico, que envolve eventos marcantes, personagens, adesões e dissidências, idéias e
m étodo, certos aspectos em detrim ento de outros tam bém significativos, sobretudo
porque um a m arca surrealista, podemos dizer, foi a esquiva em encerrar-se nos m oldes
de um a escola literária.
Consideram os que os cortes que efetuam os na história do m ovim ento surrealista
atendem ao nosso intento de identificar os pontos de cruzam ento da trajetória
surrealista com a aventura intelectual de B ataille e Lacan, um a vez que, com o esclarece
M aurice B lanchot, o Surrealism o “mexe com todos os pontos de vista, todos os
postulados, todas as pesquisas conscientes e confusas(...)” ' e ganha form a em torno da
reivindicação de liberdade “em relação à tradição literária com o [é] indiferente às
exigências da moral, da religião e mesmo da leitura”2.
Em relação à B ataille e o Surrealism o, interessa-nos destacar os pontos de
debate centrados, sobretudo, na figura de André Breton em torno de Sade e da
orientação política que o m ovim ento surrealista adotou nos anos 30, para, m ais tarde,
exam inarm os a fecundidade deste debate na elaboração teórica batailleana sobre a
transgressão.
R eferente à trajetória lacaniana e o Surrealism o, procuram os enfatizar a
presença surrealista, sobretudo no que diz respeito às pesquisas de Salvador D ali sobre
a paranóia e no processo que culminou com a em ancipação da Psicanálise (segunda
geração de psicanalistas franceses, da qual Lacan é a figura de proa) dos auspícios do
saber médico.
Q uanto aos teóricos B ataille e Lacan não se pode afirm ar que ambos tenham
m antido um a interlocução formal, em bora tenham freqüentado os m esm os círculos
1 B L A N C H O T , A p a r t e d o f o g o , p. 95. 2 ID E M , p. 99.
intelectuais, mas é possível neles localizar interesses com uns por autores e tem as, entre
os quais já destacam os Sade e o tem a da transgressão, que, igualm ente, interessavam
tam bém aos surrealistas. Este com um interesse nos levou a estabelecer conexões entre
o m ovim ento surrealista e a trajetória intelectual de B ataille e Lacan.
o Para desenvolver o tem a da transgressão, destacam os do pensam ento de B ataille
as noções sobre a heterologia, o M al, erotism o e m orte, excesso ou parte m aldita, que,
articuladas, nos perm itiram ensaiar algumas considerações sobre a lógica transgressiva
e seus efeitos sobre a noção de Literatura.
» Com Lacan, estabelecem os um corte teórico bem específico, circunscrito ao
período da realização do Sem inário A ética da psican á lise (1959-60), m arcadam ente
estruturalista. Neste sem inário Lacan introduz o “gozo da transgressão” como além do
princípio de prazer, teorizando o gozo como um “resto ” (no real) que perm anece alheio
à rede significante (ao sim bólico), não subscrito ao princípio de prazer. Pulsão de
m orte, princípio de prazer, princípio de realidade e além do princípio de p razer são
categorias freudianas im plicadas na teorização lacaniana sobre o gozo da transgressão.
A relevância dessa teorização foi ter lançado luz sobre o im passe em que caiu a noção
de pulsão de m orte, identificada apenas com o “tendência de retorno ao inanim ado” .
E sta contribuição de Lacan à teorização freudiana foi atravessada pela inquietação de
toda um a geração de intelectuais franceses, absorvidos em ir além do binarism o
ocidental e em erigir um a teoria da e sc rita ,^ traz a m arca do pensam ento transgressivo
sadeano como um dos pilares de sustentação de um a atitude que excede o lim ite das
categorias do Bem e do M al.
Por fim, buscam os extrair da ficção batailleana noções que exprim em o
pensam ento do excesso (transgressão), pertinentes tanto à Teoria Literária quanto à
psicanalítica, como instrum ento de investigação e análise dos fenômenos da cultura.
Por conseguinte, o caráter precursor do Surrealism o, que, apesar de adotar uma
tran sg ressiv a1. Localizam os essa prática no questionam ento da noção de L iteratura,
bem com o na derrubada de fronteiras disciplinares, ocorrida pelo em prego sim ultâneo
de noções oriundas da Psicanálise, da Econom ia, e da Filosofia na form ulação de
princípios em ancipatórios relativos ao prim ado do racionalism o.
Tínham os com o hipótese inicial para nortear nosso trabalho a suposição de que
a vanguarda surrealista, ao recusar um a prática literária consagrada, abriu cam inh o a
todos os dem ais (pensam os especialm ente em B ataille), para o em prego de categorias
provenientes de distintos campos de saber na investigação e análise dos fenôm enos da
cultura. Ao m esm o tempo, supúnham os que, com o forçam ento dos lim ites
disciplinares, o Surrealism o cum priu papel im portante para a em ancipação da
P sicanálise em relação ao domínio m édico na França, da qual Lacan saiu beneficiado.
E ssas hipótese iniciais foram m antidas com o argumento para erigirm os outras
que constituem o tem a central de nossa pesquisa, qual seja, a transgressão.
C onjeturam os que o substrato para um pensam ento sobre os princípios de um a étic a da
transgressão pode ser localizado na noção da m orte de Deus, com Sade, e no m ito do
assassinato do pai, com Freud. Essas duas referências, Sade e Freud, não esg o tam a
p ossibilidade de investigação do tem a da transgressão, mas pensam os ser ju stific á v el
como u m corte teórico que remete ao Surrealism o e, mais enfaticam ente à B ataille e
L acan /p resu m im o s que o além da consciência sadeano e o além do princípio de prazer
freudiano, fornecem impulso para o “pensam ento do heterogêneo” em B ataille e p ara o
“conceito de gozo” em Lacan, ao m esm o tem po que aquelas noções saem fo rtalecid as
com a leitura destes pensadores contem porâneos franceses^P or fim , tom am os com o
hipótese que os princípios de um a ética da transgressão pensada a p a rtir das
pressuposições acim a, interpelam o pensam ento dialético que opera segundo a lógica
do b inarism o, e perm ite entrever, com o pensam ento heterológico de B ataille, um a
terceira via: a transgressão.«
1 lem b rem os, d iz A ndré Breton, que a id éia de surrealism o tende sim p lesm en te à recu peração total
de n o ssa força p síq u ica por um m eio que não é senão a d escid a vertigin osa em nós, a ilu m in a ç ã o sistem ática dos lugares escon d id os e o ob scu recim en to p rogressivo dos outros lugares, o p a sse io perpétuo em plena zona interdita...” In: M a n ife sto s do su r r e a lis m o , p. 112.
Se o leitor for conduzido a ver essas hipóteses com o plausíveis, terem os
atingido nosso objetivo e ju stificad o nossa pesquisa, m uito em bora reconheçam os que a
ausência, num prim eiro plano, da influência de N ietzsche para esta tem ática, confere
um caráter parcial aos resultados de tal estudo.
A seguir passarem os a desenvolver os três capítulos que com põem este trabalho.
No prim eiro, predom inantem ente teórico, pretendem os abordar o tem a da transgressão
vinculado à noção de L iteratura, que B ataille difunde em A literatura e o m a l,
sobretudo nos ensaios sobre Sade e B audelaire. Prevenidos pelo com bate surrealista em
torno da idéia de Literatura com o prática da representação, nossa leitura será orientada
a partir da noção do M al nos ensaios acim a citad o s./A p reen d em o s o Mal como
correlato do “dem oníaco” , isto é, aquilo que excede, que transgride os lim ites
estabelecidos pela racio n alid ade./D esta form a, não som ente estabelecem os conexões
com a transgressão (do sentido de “representação”) na linguagem a partir do Mal em
Bataille, quanto pudem os delin ear a influência do pensam ento freudiano na noção do
Mal como além do princípio de prazer. C om a noção lacaniana de “gozo” como além
do princípio de prazer, realizam os um a prelim inar aproxim ação entre os
desenvolvim entos teóricos de B ataille e Lacan, intentando dem onstrar a dupla
influência, de Freud e Sade, na construção deste conceito.
Para indicarm os a origem histórica da reunião de Sade e Freud na teorização
batailleana, necessitam os esboçar os eventos m ais m arcantes em sua trajetória
intelectual. D iscorrem os sobre o que consideram os o principal ponto de divergência
entre B ataille e o Surrealism o. A vida e a obra de Sade constituíram o principal ponto
de divergência entre am bos, co m repercussões na orientação política advinda das duas
posições antagônicas. Do lado do Surrealism o a saída sadeana teria sido pensada com o
a supressão da contradição entre fantasia e realidade^ enquanto que para Bataille a lição
sadeana é uma saída transgressiva que pressupõe a indestrutibilidade dos interditos
(acesso ao gozo, em term os lacanianos)| C oncluím os este capítulo, iniciado pela
discussão entre Literatura e o M al, dem arcando a gênese da consolidação do
pensam ento heterológico de B ataille com criação da rev ista A céphale, com Sade (mas
pensam ento da transgressão em Bataille é apresentado a partir do recurso da L iteratura
e o M al, ancorado no pensam ento transgressivo de Sade e Freud, e, ao m esm o tem po,
reconhecem os que a doutrina de ambos sai enriquecida com a leitura de B ataille.
No segundo capítulo reservam os um espaço m aior para o exame da recepção das
teses freudianas p ela vanguarda francesa, em oposição à “aplicação” da Psicanálise à
obra de arte p o r parte dos psicanalistas franceses da “prim eira geração ”
(predom inantem ente psiquiatras), que visava o estudo diagnóstico do artista.
C onsideram os que a psicanálise saiu do jugo m édico graças à insurgência dos artífices
do Surrealism o que encontraram nas teses do pensador vienense o consentim ento para
avançarem além das “realidades sum árias” . Especificam ente, tratarem os da m útua
influência entre Lacan e Salvador Dali, no início dos anos 30, sobre o fenôm eno da
paranóia. A través do uso metafórico do M inotauro (alusivo à revista surrealista
M inotaure),/in d icarem o s a passagem do Lacan psiquiatra para o Lacan psicanalista.
A ludirem os a esta transição como um assentim ento ao aspecto “m onstruoso” (portanto
transgressivo) que excede a representação do hom em regido pela moral cristã, revelado
p o r Freud com a noção do além do princípio de prazer (propositadam ente antecipam os
o que só mais tard e ganhará vigor na teorização lacaniana sob a denom inação de gozo)j.
R etom arem os a polêm ica protagonizada por Bataille e Breton em torno de Sade,
p ara indicarm os um a outra saída que não a superação dialética, desta vez, aproxim ando
o em preendim ento surrealista e batailleano pela via do canibalism o. C om isso,
pretendem os abord ar a hipótese que levantam os, segundo a qual a gênese
revolucionária do Surrealism o produziu efeitos de desacom odação que produziram
novos com eços, com novos custos. Aqui está suposta a idéia de pulsão de m orte com o
vontade de destruição e vontade de com eçar com novos custos, consolidada por
B ataille, através de Sade.
No ú ltim o capítulo, nos propomos extrair da ficção de Bataille, O azul do céu ,
os elem entos teó rico s que destacam os nos capítulos anteriores. ^A noção de M al,
excesso, parte m aldita, resto, são tomados com o análogo ao conceito de gozo, no
sentido lacaniano, e, a partir desses conceitos pretendem os circunscrever as noções de
referência à Sade, no que diz respeito à transgressão como prin cíp io de um a ética,
devem os lembrar, continua sendo o elo de união entre o pensam ento de B ataille sobre o
heterogêneo e o de Lacan sobre o gozo.
Transgressão, da literatura à psicanálise
A noção de transgressão é central para a com preensão das relações entre
L iteratura e Psicanálise, tal como isto se apresenta na obra de Georges B ataille.
Um a de nossas hipóteses iniciais, sobre a oposição surrealista à prática literária
fundada na “representação” , ou no prim ado da consciência, sugere que para o
Surrealism o está jo g o o próprio conceito de Literatura. A djacente a este prim eiro
suposto, segue outro, segundo o qual, Bataille efetiva um segundo passo que consiste
em dissolver os lim ites clássicos entre diferentes cam pos do saber, e por conseguinte, a
concepção de Literatura tam bém sairá questionada.
O ptam os por com eçar esta investigação através do livro de Bataille que traz no
título duas noções que irão perm ear nossa pesquisa sobre os princípios para um a ética
da transgressão: a L iteratura e o M al. A razão de tal escolha (nos deteremos nos
ensaios sobre Sade e B audelaire) se deve ao fato de supormos queyÔ pensam ento de
B ataille consolidou o rom pim ento com a literatura canônica, iniciado pelo m ovim ento
surrealista, ainda que, ou, precisam ente por que (Bataille) tenha perm anecido
criticam ente afastado do S u rre alism o .\)u tra razão para iniciarm os este estudo pela obra
A literatura e o mal, é que entrevem os um a ligação entre o Mal e a noção de “pulsão de
m orte” freudiana, a p artir da qual Lacan, no período estruturalista’, desenvolveu o
conceito de “gozo” com o m ais além do princípio de prazer.
1 Sobre os d istin tos m om entos da teorização lacaniana sobre o “g o z o ”, rem etem os ao m inu cioso estu d o realizad o por Eduardo R ia v iz , S a d e em L a ca n — Um a ética da transgressão. D issertação apresentada para o C urso de P ós-G rad uação em Literatura (U F S C ), em ju lh o de 2000.
Para desenvolverm os as hipóteses acim a, ju lg am os necessário delinear, ainda
que parcialm ente, a trajetória intelectual de B ataille e destacarm os nela, entre outras, a
influência do pensam ento de D. A. F. Sade e de Sigm und Freud. C om isso,
pretendem os estabelecer a ligação entre o lugar que o Surrealism o ocupou na
vanguarda francesa, e a m arca da presença de Sade e de Freud com o duas referências
fundam entais na história surrealista. Desse m odo, avançarem os em direção ao debate
que se estabeleceu entre B ataille e Breton, na década de 30, centrado na interpretação
do pensam ento de Sade. M esmo im plicitam ente, supom os que parte da divergência
entre B ataille e os surrealistas pode ser atribuída à interpretação das noções freudianas
e pretendem os indicá-la na exposição, tam bém parcial, da história do Surrealism o.
** O ponto de vista de Georges B ataille sobre literatura é enunciado no prólogo de
A literatura e o mal, sob o enigm ático enunciado “A literatura é o essencial ou não é
nada” '. A reprodução do fragm ento de um tex to 2, publicado separadam ente à época em
que foram selecionados os ensaios críticos que com põem este livro, indica-nos um a
possível direção no sentido de erigirm os algum as hipóteses acerca da frase, quase
oracular, que condensa o sentido da Literatura em tais artigos. Ali, o autor expressa em
estilo resoluto que a Literatura se firm a com o necessária enquanto predestinada a violar
os interditos erigidos em favor da m anutenção de princípios afiançadores de um a
regularidade.fSucede que os interditos não são inequívocos, pois, ao m esm o tem po em
que são dados a conhecer, só podem ser afirm ados pela transgressão. D aí que serem os
levados, de asora em diante, a considerarm os esta necessária relação entre interdito e
transgressão.
Se há uma noção que percebemos prontam ente se associar ao nom e de B ataille,
é essa da transgressão. Para efeito de introduzi-la, já que será tem a contínuo da reflexão
que ora iniciam os, devem os ficar atentos ao fato de que o pensam ento de B ataille
1 B A T A IL LE , G. A literatu ra e o mal, p. 9.
2 O referido texto con siste em uma nota b iográfica sob re B a ta ille, redigida p elo próp rio autor, p ub licada com o folh eto publicitário por o ca siã o do triplo lan çam en to, por d iferentes ed itoras, de A lite ra tu ra e o
mal, O azu l do céu e O er o tism o . O d esejo exp resso por B a ta ille n essa com u n ica çã o , tornado p ú b lico
através do acordo dos ed itores em d ivu lgá-lo, era que os três livros co n stitu íssem um con jun to. O referido fragm ento encontra-se reproduzido em “N o ta s” , no final da ed ição b rasileira de A lite ra tu ra e
atinge e questiona os m odelos de discurso científico e filosófico assentados sobre o
racionalism o e o apreço por um léxico cujos termos, claram ente circunscritos,
pretendem definir nitidam ente as fronteiras entre os diferentes campos do sabery/A
convicção na eficácia do conceito, ou na exatidão da palavra, conduziram a C iência e a
F ilosofia a se representarem com o edificações acabadas, depositárias do sentido
im utável e, por isso, guardiãs da Lei que institui os seus respectivos saberes em torno
de um centro específico. Dito isto , recobram os a noção anunciada acima com o aquela
que, para efeitos deste trabalho, m elhor evoca a posição de Bataille no espaço da
C rítica L iterária, e nos perm ite supor que a transgressão batailleana questiona a lei
form al dos discursos erigida sobre uma suposta inviolabilidade do sentido./D evem os,
contudo, m anter cautela a fim de evitar confundir a noção de transgressão com
negação, pois, neste caso, cairíam os na arm adilha de m ontar um argum ento sobre a
base de princípios antagônicos e com plem entares. Pensam os que, se a transgressão
batailleana incide sobre a form a discursiva, ela não apenas não recusa a Lei, como só
pode ser pensada com o seu ultrapassam ento, como prática que viola a concepção
clássica de Literatura ao m esm o tem po em que a Literatura é o instrum ento que perm ite
ir além dela própria. A necessária relação entre Lei e transgressão, interdito e violação,
pensam os, evita a aventura de essa vinculação encerrar-se em um jogo de pares
com plem entares, posto que adm ite uma terceira via, e que pretendem os dem onstrar ao
longo deste e stu d o .'
O que m elhor exprim e essa relação necessária entre interdito e violação é,
segundo B ataille, a determ inação audaz que se realiza na literatura, precisam ente
porque “o escritor autêntico o usa fazer o que contraria as leis fundam entais da
sociedade ativa” 1, colocando “em cena os princípios de uma regularidade”2,
reafirm ando, assim , que o seu papel (da Literatura) não consiste em ignorar os
interditos, m as desafiá-los com o sem blante de uma regularidade.
1 ID E M , A lite ra tu ra e o mal, “N o ta s” , p. 185. 2 IB ID E M .
Sade, Baudelaire e o Mal
Ao qualificar a “literatura autêntica” como prom etéica, Bataille assev era o
fundam ento essencial que a especifica como não in o c e n te /S u a soberania se fu n d a a
p artir do conhecim ento do Mal (desafiar o centro, o eu), por conseguinte, o escrito r
sabe que é culpado: Sade e B audelaire constam entre os escritores m alditos,
condenados a esta liberdade culpada. Sade, por ter sido “o prim eiro a dar expressão
arrazoada a estes m ovim entos incontroláveis sobre a negação dos quais a consciên cia
ergueu o edifício social - e a im agem do hom em ” 1, e B audelaire com o aquele que “quis
o im possível até o firn y / Vale destacar que um outro aspecto de “liberdade cu lp ad a” , se
invocada como o em blem a que marcou o século XVIII com suas raízes no
C ristianism o, pode ser extraído da decisão de B audelaire em m anter-se do lado da
despesa ou da insatisfação, pela “recusa de trabalhar [o trabalho é útil e satisfaz], com
isso, de estar satisfeito” .3 Para Bataille, a vida obstinadam ente m alsucedida de
B audelaire não se deve a uma “má escolha” , com o quer Sartre, m as, antes, certifica que
há uma recusa consentida que se reveste de sentido com o expressão da tensão h istó rica
daquele momento: oposição entre o aum ento das forças produtivas e os prazeres
im produtivos. N esta m esm a perspectiva lem bram os que a idéia de redenção asso ciad a
ao aspecto utilitário do trabalho subentende a díade pecado/culpa, que crem os ver
m anifestam ente afrontada por B audelaire no fragm ento da carta endereçada à m ãe,
reproduzido por Bataille:
(...) para resu m ir, m e fo i d e m o n s t r a d o esta sem an a q ue eu p o d ia realm en te ganhar dinh eiro e, com a a p lic a ç ã o , em c o n se q ü ê n c ia , m ais d in h eiro . M as as d e so r d e n s a n teced en tes, m as uma m iséria in cessa n te, um n o v o d é fic it a cob rir, a d im in u iç ã o da
1 ID E M , p. 108.
2 ID E M , p. 42. O en saio B a u d e l a ir e , d e B ataille, fo i prim eiro p u b licad o na Critique 8— 9 d e 1947, o ca siã o em que o livro hom ônim o de Sartre foi ed itado p ela G allim ard. Inicialm ente um p refá c io en com endado a Sartre para uma edição de Ecrits Intim es de B au d elaire, este se transforma em texto independente no ano de 1946. B ataille, em seu estudo sobre B au d elaire, o p õ e à leitura sartreana da m em ória com o puro dado do p assado ( “o sentido ... é o p a s s a d o " ) uma outra q ue situa B a u d ela ire e a p o e sia do lado da d i s s i p a ç ã o e da tra n sg re ssã o .
e n er g ia p ela s p eq u en as in q u ie ta ç õ e s, en fim , para d izer tudo, m inha in clin a ç ã o ao d e v a n e io , tudo an ularam .1
Nos ensaios a eles (Sade, B audelaire) dedicados, em A literatura e o m al,
B ataille indica, a partir das considerações tecidas sobre o caráter precursor das obras do
M arquês e, subseqüentem ente, de B audelaire, a aspiração que neles encarnada ousa
expor e ultrapassar os princípios que regulam e lim itam a coletividade organizada.
N esta, o “elem ento” irredutível à razão perm anece negado por representar am eaça ao
princípio de cálculo que acena para um futuro p ro g ressista / Isenta da tarefa de
organizar a sociedade, a Literatura pode se firm ar, desde então, como um a prática que
desacom oda o m undo apoiado no prim ado da razão e cuja moral — o “bem com um ” —
não com porta a presença do heterogêneo./"
^ Ao considerar que outros, antes de Sade, experim entaram “os m esm os
descam inhos” , ou ainda que, antes das F lores do M al, “escolhas análogas à de
B audelaire”2 poderiam ter lugar, B ataille indica o que faz com que a obra desses
autores sustente e dissem ine o passo inaugural acerca da subversão do sujeito da
Filosofia da consciência e da representação, fundam ento da cultura m oderna.3 *
Seguindo esse apontam ento, podem os inferir que a agitação produzida pelo
conjunto dos eventos históricos que serviram de cenário à época em que os rom ances
de um e os poem as do outro se originaram tam pouco é suficiente para com preenderm os
a preem inência destes sobre o u tro s./A o invés de seus escritos se filiarem a um a
corrente ideológica contestatária ou assum irem o encargo de representação dos ideais
em ascensão — não nos esquecendo que, para Bataille, o escritor autêntico ousa fazer o
que contraria as leis fundam entais da sociedade ativa — , eles [escritos] desnudam o
u ltrap a ^ a m en to irrem ediável do sujeito em relação ao “bem com um” ou ao prim ado da
razão.,
1 ID E M , p. 4 6 - 7 .
2 D e fato, a conjectu ra sobre o “livre arbítrio” que resu ltou na con d en ação de B au delaire à im p otên cia pertence a Sartre, e B ataille apenas dela se b e n e fic ia para se lhe opor. B ataille co n fessa , em 1956, que à é p o ca (1 9 4 7 ) em que escreveu o en saio sobre B au d elaire “tinha uma idéia ainda hesitante do que se tornou uma doutrina articulada. Eu p esq u isava e o con tra-sen so de Sartre me ajudava” . In: A litera tu ra e
o mal. N otas, p. 1 8 8 -9 .
Convém assinalar com o singular no pensam ento de Sade que ele não se alia ao
apelo aristocrata ou dem ocrata do final do século XVIII mas, antes, afronta a sociedade
organizada facultando o ingresso das forças heterogêneas' no dom ínio m oral do bem
com um , nas ações dos personagens de seus ro m an ces/A ssim , ao inform ar o leitor de
120 dias de Sodom a das variadas práticas libertinas que passará a narrar, Sade o
convida a dem olir os juízos estabelecidos e conclam a a um novo discurso, livre dos
dogm as religiosos e morais. Exercício extrem o de liberdade/libertinagem , com pete a
cad a um escolher entre m últiplas possibilidades de satisfação “(...) sem declam ar contra
esse resto, unicam ente porque ele não tem o talento de agradar-te”2, pois a outros
agradará.
Em torno de Sade: Bataille e o Surrealismo
Pensam os que há outro aspecto com plem entar ao já discorrido que pode nos
aux iliar /"com preender a transgressão inaugurada por Sade. Esse aspecto procede da
assertiva, feita por Bataille, de que em Sade “o sentido de um a obra infinitam ente
profunda está no desejo que o autor [Sade] teve de desaparecer’K Entendem os que
p arte da controvérsia que se desenrolou entre Bataille e o Surrealism o, nascido na
França na segunda década do século XX (discorrerem os adiante sobre o seu
1 E m L a u tré a m o n t y Sade, B lanchot nos guia em d ireção à natureza do h eterogên eo no pen sam ento sadeano: “Sade, habiendo d escub ierto que en el hom bre la n egación era p oder, ha p retend ido fundar el p orven ir dei hom bre sobre la n egación llevada hasta su extrem o. Para llegar a e llo ha im agin ado, tom án d olo dei vocabulario de su tiem p o, un p rin cip io que por su am bigüedad, representa una d écisio n m uy in gen iosa. E ste principio es la energia. La en ergia es, en efecto , una n oción m uy eq u ív o ca . Es a la v e z reserva y gasto de fuerza, afirm ación, que no se realiza sino a través de la n egación , fuerza que es d estru cc ió n .” In: B L A N C H O T , M ., p. 5 3 - 4 . A ch am os oportuno situar que a teoria das p u lsõ e s freudiana, relida por Lacan, também se in screve em uma ló g ica sim ilar (d o h etero g ên eo ), sobretudo no q ue d iz respeito à pulsão de morte que se in screve segun do duas d ireções: operando d e form a autônom a, a p u lsão de morte acha-se à serviço da destruição direta, mas, ao m esm o tem po, acrescen ta Lacan, é “von tad e de recom eçar com n ovos cu sto s”. In: L A C A N , J. A ética da P s ic a n á li s e , p. 259.
2 S A D E , D .A .F. L o s 1 2 0 d ias d e S o d o m a , p .69.
3 ID E M , p. 97. Trata-se das in stru ções deixadas por Sade para seu sepultam ento: “U m a v e z recoberta a c o v a , serão sem eadas em cim a landes, a fim de que, em con seq ü ên cia, o terreno da dita co v a se en con tran do gu arn ecido de n ovo e o m ato se encontrando cerrado com o era anteriorm ente, o s traços de m eu túm ulo desapareçam de cim a da su perfície da terra com o eu m e d ele ito que m inha lem brança desap areça da m em ória dos h om en s.” A pp ollinaire, L ’Œ u vre d e S a d e , p. 1 4 - 4 . A pud B a ta ille, G. In: A
surgim ento), liderado por A ndré B reton, pode ser localizada a partir do desejo expresso
por Sade de não perm anecer na m em ória dos hom ens como “afiançador” de uma
verdadp^'
B ataille censurou aos surrealistas a apropriação que teriam feito da vida e da
obra de Sade, por escam otearem “a apologia das perversões em proveito da ‘liberação’
da sexualidade, através da qual se atingiria, po r contágio revolucionário, a liberdade
social e política”2, pouco im portando, segundo as palavras de B ataille, que Sade “(...)
prenne figure d ’idéaliste m oralisateur (...)”3. C rem os, com isso, que o destaque
concedido por B ataille sobre a decisão de Sade, de que sua lem brança não sobreviva à
m em ória dos homens, pode ser lido com o legado que dispensa a conclam ação de um
legislador (Sade) ao qual se referir; ao m esm o tem po descerra o elem ento heterogêneo
(sexualidade alheia à reprodução) que, separado pela doutrina cristã, restava profano.
Para nom earm os o heterogêneo, é oportuno co n star que Bataille, em O erotismo, traz à
tona o aspecto unitário do cam po do sagrado (puro e impuro) no estágio pagão da
religião, anteriorm ente analisada por Roger C aillois em L ’homme et le sacré, e que o
C ristianism o redefiniu, banindo do sagrado os aspectos impuros e associando-os ao
m undo profano. N essa nova definição, diz B ataille, “a im pureza, a m ácula, a
culpabilidade eram colocadas fora desses lim ites. O sagrado im puro foi desde então
relegado ao mundo profano.”4 Se considerarm os que o m al se inscreve na categoria do
heterogêneo por constituir obstáculo à realização das virtudes, podemos voltar
exam inar a relação entre a “L iteratura e o M al” .
Em Baudelaire, o m ovim ento de liberação do M al exprim e a tensão histórica do
m om ento, isto é, contesta a idéia de progresso com o sinônim o de acum ulação vigente
na França em pleno desenvolvim ento capitalista. Entretanto, nos parece que a qualidade
1 A qui nos apoiam os na leitura de B la n c h o t sobre a “f ilo s o f ia de b a se” de Sade. D iz o autor: “Esta filo so fia es la dei interés, se g u id o por el e g o ísm o integral. C ada quien debe hacer lo que le p lazca, nadie tien e outra le y que su placer. Esta moral está fundada sob re el h ech o primero de la soledad ab so lu ta .” In: L a u tré a m o n t y Sade, p. 19.
2 Cf. C H É N IE U X -G E N D R O N , J. O su r r e a l is m o , p. 160.
3 B A T A IL L E , G. D o ssier d e la p o lém iq u e a v ec A ndré B reton . In: Œ u v r e s com plètes. V ol II, p. 103. 4 B A T A IL L E , G. O er o tism o , p. 114.
transgressiva que é avistada por B ataille, em oposição à poesia antiga com prom etida
com a subordinação da sensibilidade à vontade consciente, ele a form ula ao asseverar
que “B audelaire abriu na m assa tum ultuada dessas águas a depressão de um a p o esia
m aldita, que não assum ia mais nada, e que sofria indefesa uma fascinação incapaz de
satisfazer, uma fascinação que destruía” 1.
É possível, então, a partir dos aspectos acim a acentuados, avaliar o alcance
derivado da possibilidade de participação do “elem ento m aldito” nas ações hum anas e a
subseqüente repercussão na noção, contestada, de um a lei transcendente capaz de
ordenar as virtudes e os vícios. Com a destituição de uma universalidade reguladora
(moral ou divina) capaz de norm atizar e coibir o excesso das paixões, com S ade e
B audelaire, a categoria do Bem deixa de ser inscrita sob a rubrica do calculável (cuja
m edida seria a lei moral) e essencial (de natureza d iv in a)./D ep o is dos escrito res
“m ald ito s” , podem os entrever, o acento se desloca sobre o excesso que não pode m ais
ser refreado, repercutindo no desm oronam ento do sujeito fundado na preem inência da
vontade consciente. Por decorrência, o pensam ento ocidental, calcado na soberania da
vontade ou prim ado da consciência com o princípios decisivos da m oralidade não cessa
mais de ser colocado em xeque.2
Bataille e Freud: Lei e transgressão
C o m referência ao abalo infligido ao pensam ento da hom ogeneidade,
acrescentam os que dois outros golpes serão desferidos, estes, derivados da d o utrina
freudiana — cuja repercussão foi além do dom ínio psicanalítico e estendeu-se para
outros âm bitos, entre eles o da Literatura. jO prim eiro deles fez-se sentir pela convicção
com a qual Freud sustentou a prim azia do inconsciente, dem onstrando que o ego não é
1 ID E M , p. 53.
2 N o v a m e n te cabe relembrar aqui a p osição de N ietzsch e, leitor de Baudelaire, referente à cr ítica do sujeito da F ilo so fia da representação e, tam bém , à crítica da moral, em n om e de um “tr ie b e ” fundam ental e in con scien te, nas obras A u rora, A lém do bem e do m al e G e n e a lo g i a d a moral.
senhor nem mesmo em sua própria casa e, segundo, ao conceber a pulsão de m orte
como obstáculo ao princípio de prazery iig ad o ao conservadorism o da pulsão de vida.
Conform e tentarem os articular, na seqüência, tam bém com Freud a provocação im posta
ao campo da moral e da racionalidade, tom ado segundo a lógica binária da suprem acia
do Bem na luta contra o M al, acaba por proporcionar elem entos à doutrina batailleana.
Iniciarem os pelo com entário de alguns textos de Freud e buscarem os delinear os pontos
de contato que consideram os pertinentes aos temas batailleanos, concernentes ao corte
teórico e histórico do presente estudo, bem como ao tem a da transgressão.
A gênese da Lei, em term os freudianos, é situada a partir da construção de uma
Jicç ã o que tem estatuto de realidade. Em Totem e tabu (1913), Freud constrói um m ito,
com o qual situa a culpa antes da Lei, ou seja, é pela m orte do pai interditor do gozo2
1 D esd e 1905, quando Freud em pregou p ela prim eira vez o term o “p u lsã o ” em Três e n sa io s s o b r e a
teoria da s e x u a lid a d e , já havia p recon izad o o d u alism o p u lsion al. E stas se d ivid iam em p u lsões sexu ais
e p u lsões de au toconservação ou p u lsõ e s do eg o . Som ente em 1 9 2 0 , no A l é m do p r in c í p io d e p r a z e r , o dualism o p u lsion al vai aparecer em sua form a d efinitiva: p u lsão d e vid a e p u lsão de m orte. Em nota acrescentada aos Três en saios, em 1924, Freud adm ite que “A doutrina das p u lsões é a parte m ais im portante, m as também a m ais in com p leta da teoria p sican alítica” (F R E U D , S ., E S B , V o l VII, p. 158), o que ex p lic a o esforço d os p sican alistas que se seguiram à Freud, esp ecialm en te Lacan, em dar con tinu id ade à teorização freudiana sobre as p u lsõ e s. Quanto às n o ç õ e s de “p rincípio de prazer” e “princípio de realid ade” , estas se referem ao m od o de fu n cion am en to p síq u ic o . Em “F orm ulações sobre o s dois p rin cíp ios do fun cion am en to m en tal” (1 9 1 1 ), Freud diz: “( ...) acostu m am o-nos a tomar com o p onto de partida os p ro cesso s m entais in co n sc ie n te s (...), resíd u os d e uma fase de d esen v o lv im en to em que eram o ú nico tipo de p ro cesso m ental. O p ro cesso d om in ante o b ed e c id o por estes p ro cesso s prim ários (...) é descrito com o o p rin cíp io de prazer-desprazer [ L u st-U n lu st], ou, m ais suscintam ente, p rin cíp io d e prazer. E sses p ro ce sso s esfo r ça m -se por alcançar prazer; a ativid ade p síq u ica afasta-se de
qualquer ev en to que p o ssa despertar prazer.” (FR E U D , S ., E S B , V o l X II, p. 2 7 8 ). D ian te do
desapontam ento experim entado quando o rep o u so p síq u ico é interrom pido pelas e x ig ên cia s das n ecessid a d es internas, verifica -se o abandono da tentativa de sa tisfa çã o por m eio da alu cin ação do ob jeto [princíp io de prazer] e, em v e z d isso , o ap arelho p síq u ico dá in íc io à ativid ade ligada ao prin cíp io d e realidade: “N a realidade, a su b stitu ição do p rin cíp io de prazer p e lo p rin cíp io de realidade não im plica a d ep osição d aquele, mas apenas sua p ro teç ã o .” (F R E U D , S., E S B , V o l X II, p. 2 8 3 .)
2 O termo “g o z o ”, quando u tilizad o por Freud, refere-se à b usca irrestrita de prazer que se detém ante a culpa, ou seja, o g ozo freudiano é p en sad o em relação (o p o siçã o ) a uma instância censora. N o “P ós- escrito ” de P s ic o lo g ia d e gru p o e a n á lis e do e g o (1 9 2 1 ), lem os: “P resum im os que o pai da horda prim eva, d ev id o à sua intolerância sexu al, co m p eliu todos os filh o s à ab stinência, forçan d o-os assim a la ço s in ib id os em seus o b jetivos, enquanto reservava para si a lib erdad e do g o zo sexual, perm anecendo, d esse m odo, sem v ín cu lo s.” [FR E U D , S ., E S B , V o l. X V III, p. 175]. Lacan é quem irá teorizar o g o z o e, em d istintos m om entos de seu p en sam ento, esta n o çã o sofrerá m udanças. N o sem inário de 1956— 60, A
ética da p s ic a n á lis e , Lacan ev id e n c ia a d istin çã o entre prazer e g o zo : o g o z o con stitu i-se na busca
contínua do “além do prin cíp io d e prazer” , em direção ao o b je to im p ossível: a C oisa [das D in g freudiano], Lacan propõe articular o que Freud já havia p erceb id o, isto é, que o g o zo é um Mal: “E o que me é m ais próxim o do que e sse âm ago em m im m esm o que é o de m eu g o z o , do que não m e ou so aproximar? P o is assim que m e ap roxim o — é e s s e o sentido do M a l - e s t a r na c iv iliza ç ã o — surge essa in sondável agressividad e diante da qual eu recu o, que retorno contra m im , e que vem , no lugar m esm o da Lei esv a n ecid a , dar seu p eso ao que m e im pede de transpor uma certa fronteira no lim ite da C o isa .” In: L A C A N , J. A ética d a p s ic a n á l is e , p. 2 2 7 - 8 .
com todas as m ulheres que a culpa é difundida entre a com unidade fraterna e, som ente
então, para abrandar a culpa originada pelo parricídio, a Lei é invocada.
C ontrariam ente à concepção da doutrina cristã, que situa o pecado em relação à
transgressão de um a Lei de ordem divina (em bora o C ristianism o se fundam ente na
idéia do pecado original, a obediência à ordem divina é redentora), Freud situa a gênese
da culpa antecipadam ente a um a Lei im peditiva do parricídio e do incesto. N este
sentido, pensam os que a tarefa titânica que cabe ao escritor na em preitada prom etéica
prevista por B ataille pode ser pensada a partir do fundam ento freudiano da Lei que,
um a vez instaurada, confere autenticidade ao “resto” que se conserva m arginal ao
cam po da lógica racional (além do princípio de prazer) /in s is te em desafiar a alm ejada
unidade do ew /Sabedoras da “m aldade” original do homem, tanto a Psicanálise quanto
a “literatura au tên tica” não podem se dar com o tarefa a ordenação do “serviço dos
b en s” , posto que, em oposição à moral que crê que na busca do Bem, o m al-esta r que
se despende p ela falha da Lei interditiva corrobora, como disse Lacan, que “um a
transgressão é necessária para aceder a esse gozo (m ais-além ), e que ... é m uito
precisam ente p ara isso que serve a Lei.” 1
O argum ento freudiano destaca a im potência do interdito (Lei) criado para
pacificar a culpa, pois, se o desaparecim ento do-pai interditor gera a inibição do desejo
arrebatado e resguarda os filhos contra o desregram ento lúbrico, tam bém origina a
instância censora2 e tirânica — que não coincide com a concepção clássica acerca da
consciência m oral — encarregada da auto proibição. Vemos esboçado o paradoxo,
reafirm ado m ais tarde em O m al-estar na civilização (1930), segundo o qualy/ quanto
m ais o sujeito ren u n cia ao gozo, mais se sente culpado. Desde este ponto de vista, o
gozo absoluto perm anece inacessível, im possível, indicando que o lim ite ao gozo é
determ inado pelo próprio desejo, ou seja, que a Lei é interna ao sujeito desejante e nada
deve a um plano divino (Deus está m orto^ Assim, gozo e desejo, em term os
freudianos, ao participarem da organização coletiva, ecoam na afirm ação de B ataille de
1 L A C A N , J. A é tic a d a p s ic a n á l is e , p. 217.
2 E ssa instância cen so ra será form alm ente conceituada co m o superego em 1923 [1 9 2 5 ] no livro O e g o e
que “a transgressão organizada form a com o interdito um con ju n to que define a vida
social.” 1 Além da m orte há ainda, segundo B ataille, o exem plo do erotism o com o o
jo g o em que se alternam o interdito e a transgressão.
Ao com entar o interdito do assassínio, B ataille cita Totem e tabu para ressalvar
que o pouco conhecim ento de Freud sobre E tnografia o levou a adm itir que, de m odo
geral, o tabu opunha-se ao desejo de tocar os m ortos e erguia um a barreira que protegia
o excesso de desejo sobre o objeto interdito. E ntretanto, adianta B ataille, a violência
que a m orte torna m anifesta desperta nos hom ens o desejo de m atar, pois o interdito
não anula necessariam ente o desejo mas é apenas um aspecto particular do interdito
global da violência. O m andam ento bíblico “N ão m atarás”, ainda segundo B ataille,
prevê que, diante da existência do desejo, o interdito, m esm o quando é infringido
(assassínio na guerra que opõe um a com unidade a outra), sobrevive à transgressão, isto
é j o interdito ganha força na condição de que seja u ltrap assad c/ Entendem os, assim ,
que B ataille não apenas docum enta com dados etnográficos o que Freud
“desconhecia”, mas reafirm a a irresistível inclinação do hom em p ara a m aldade que lhe
é inerente, exposto em M al-estar na civilização. De sorte que, chega a aproxim ar, sem
que tenha explicitado, Freud e Sade a p artir do uso da assertiva sadeana de que “Nada
contém a libertinagem (...) a verdadeira m aneira de espalhar e m ultiplicar os desejos é
querer lhe impor lim ites”2— , para sustentar que “N ada contém a libertinagem (...), ou
m elhor, de form a geral, não há nada que reduza a violência”3 e que, acrescentam os,
poderia passar por um texto de Freud.4
1 B A T A IL L E , G. O e r o tism o , p. 61.
2 S A D E , D .A F de. Os 1 2 0 d ia s de S o d o m a , apud B A T A IL L E , G ., O e r o tis m o , p .45. 3 B A T A IL L E , G. O e r o tis m o , p. 4 5 . (G rifo n o sso ).
4 Lacan d estacou em que asp ecto o texto de Freud O m a l - e s t a r na c iv il iz a ç ã o p od e se passar por um de Sade: “A q u eles que preferem os con tos de fada fazem o u v id o s m oucos quan do se fala da tendência nativa do hom em à m a ld a d e , à a gre ssão, à d e s tr u iç ã o , e, p o r ta n to , tam bém à c r u e ld a d e . E não é só ... O
homem, com efeito, é te n ta d o a sa tisfa z e r no p r ó x i m o sua a g re ssiv id a d e , a e x p l o r a r seu tra b a l h o sem c o m p e n s a ç ã o , u tiliz á-lo se xualm en te sem o seu co n se n tim e n to , a p r o p r i a r - s e d e su a s p o sse s, humilhá-lo, ca u s a r - lh e sofrimento, torturá-lo , matá -lo .
S e não lhes tivesse d ito prim eiro qual a obra de on d e estou extraindo e s se te x to , eu poderia tê-lo feito passar por um texto de S a d e ...” In: L A C A N , J., A é t ic a d a p s ic a n á l is e , p. 2 2 6 .
A destituição da im agem clássica platônica, da Lei como representante do Bem ,
tem seu correlato na em ergência do supereu, em term os psicanalíticos, e na m orte de
D eus, em term os filosóficos. C om Freud, de O m al-estar, encontram os aberta a via,
p osteriorm ente percorrida por Jacques Lacan, para que se depreenda que o gozo é um
M al, que se constitui em um a dívida im pagável (fonte de culpa). Cada renúncia im plica
alim entar a agressão do supereu contra o próprio eu, daí o paradoxo do qual redunda a
im possibilidade de seguir o m andam ento cristão am arás teu próxim o como a ti m esm o ',
pois ele próprio contém um a m arca de tirania: amar o outro é amar a própria m aldade,
isto é, cum prir um m andam ento que exige ser transgredido em seu preceito.
A vançando no exam e do preceito cristão acim a citado, Freud o inverte para
m ostrar o que ele encerra de im possível:
N a verdad e, se aq u ele im p on en te m andam ento d is s e s s e “A m a a teu p róxim o co m o e s te te am a”, eu n ão lhe faria o b je ç õ e s. E há um se g u n d o m andam ento que m e p arece m ais in c o m p r e e n sív e l ainda e que desp erta em mim um a o p o siçã o m ais forte ainda. T rata-se d o m andam ento “A m a o s teus in im ig o s” R efle tin d o sobre e le , no en tanto, p erc eb o q ue e sto u errado em c o n sid e r á -lo co m o um a im p o siçã o m aior. N o fun do é a m esm a c o is a .2
C om essa form a invertida de situar o m andam ento cristão, Freud força o
reconhecim ento de que só se ama o próprio eu (amor narcísico), e tudo o m ais que for
estranho a ele é indigno de amor e alvo de hostilidade e ódio. O tiro de m isericórdia na
m oral cristã, vem a seguir, quando Freud expõe sem rodeios que o ideal de fraternidade
(“bem com um ”) oculta um a poderosa porção de agressividade que, adm itida,
desengana a hum anidade do alm ejado “bem com um ” . D iz Freud:
( ...) o seu p r ó x im o é, para e le s [os h om en s], não apenas um ajudante p o ten cia l ou um ob jeto se x u a l, m as tam b ém algu ém que os tenta a satisfa zer sobre e le s a sua a g re ssiv id a d e , a exp lorar sua cap acidad e de trabalho sem c o m p en sa çã o , u tiliz á -lo sex u a lm en te sem o seu co n se n tim en to , ap oderar-se d e suas p o s s e s , h u m ilh á-lo, cau sar- lh e so frim en to , torturá-lo, m a tá -lo .3
Julgam os que a agudeza do pensam ento freudiano em dem ostrar que os laços
que fazem um a com unidade são apoiados no ideal do eu e tudo que não se conform a e
1 E xam in ado por Freud em O m a l- e s ta r na civilização, op. cit., p. 130 e seguintes, retom ado por Lacan, em 1960, em “O am or ao p ró x im o ” , p .2 1 9 — 232. In: L A C A N , J., A ética da p s ic a n á l is e , livro 7.
2 ID E M , p. 132. 3 ID E M , P. 133.
ele é alvo de agressividade, é bastante para inferirm os que o pensam ento de B ataille
sobre o heterogêneo tem a m esm a natureza da pulsão de m orte (de d e stru içã o )1. Da
afronta freudiana ao cam po da moral e da racionalidade, como havíam os anunciado
anteriorm ente, cremos ver repercutir no pensam ento de B ataille, referente à
transgressão, o princípio que excede o prazer e se constitui um além que in siste com o
um Mal (resto) e desaloja o prim ado da Lei. Em relação à organização coletiva,
acreditam os que não é a violência destrutiva que responde a esse prin cíp io do além
freudiano, mas sim a/transgressão (M al) que estam pa aquilo que o interdito dissim ula, i
D aí podermos pensar tam bém , por analogia, a form ulação b ataillean a sobre a
necessária relação entre interdito e transgressão em relação à Literatura e o M al.
Bataille e o Surrealismo
Antes de discorrerm os sobre as ligações entre B ataille e o Surrealism o, resta
dizer, do que vínhamos tratando, que na produção teórica e ficcional de B ataille
encontram os, recorrentem ente, os tem as da m orte e do M al, explorados desde uma
perspectiva que aproxim a seu pensam ento aos tem as psicanalíticos. E u m prim eiro
1 V a le lembrar que a h ipótese da pulsão de m orte já havia sid o form ulada em 1 9 2 0 , no A l é m do
p r in c í p io de p r a z e r , mas o verdad eiro além do p rin cíp io d e prazer só será firm ado d e z an os m ais tarde
em O m a l-e sta r na c ivilização, sob a en u nciação da in d ep en d ên cia da p u lsão de m orte en ten d id a, agora, co m o pulsão de destruição. A té en tão, Freud sustentava que o p rin cíp io de prazer ach a v a -se a se rv iç o da pulsão de morte co m o tendência de retorno ao inanim ado. O a sp ecto destrutivo estava p en sa d o com o uma transform ação da pulsão sexu al e o par sad ism o/m asoq u ism o era apenas uma co n d iç ã o d essa m etam orfose, isto é, a destrutividade aparecia vinculada à sexu alid ad e. A m udança efetu ada com O mal-
e s ta r na c i v il iz a ç ã o forçou o recon h ecim en to de que a agressão e a destruição eram au tôn om as em
relação à sexu alid ad e [às p u lsõ e s de vida] e, com iss o , a p u lsão destrutiva advém c o m o m aldade
fundam ental e indom esticável do hom em . Parte da re tifica ç ã o feita por Freud é assim exp ressa: “S ei que no sadism o e no m asoquism o sem pre vim os diante d e nós m a n ifesta çõ es do in stin to d estru tivo (...), fortem ente m esclad as ao erotism o, mas não p o sso m ais entender c o m o foi que p ud em os ter d esp reza d o a ubiqüidade da agressividad e e da destrutividade não eróticas e falhad o em co n ced er-lh e o d e v id o lugar (...) R ecordo m inha própria atitude d efen siva quando a id éia de um instinto de d estru ição surgiu p ela prim eira vez (...) D eu s nos criou à im agem de Sua própria p erfeição; ninguém d eseja que lh e lem brem co m o é d ifícil recon ciliar a in egável existên cia do m al... com Seu p oder e Sua b on d ad e.” In: F R E U D , S., E S B , V ol. X X I, p. 1 4 2 — 3.
registro da influência dos textos freudianos em B ataille1 aparece com a publicação, em
1933, de “La structure psychologique du fascism e” , na revista La Critique so cia le2.
C ircunscrito no período das indagações sociológicas, este texto de Bataille rem onta às
teorias de Freud em P sicologia de grupo e análise do ego (1921) sobre o
com portam ento do indivíduo em relação ao líder. Os estados de hipnose e form ação de
grupo (religioso ou m ilitar) assem elham -se, segundo Freud, quanto ao aspecto inibido
dos im pulsos sexuais e substituição do ideal do ego, resultado do narcisism o e
identificação com os genitores. E stes, que serviram de identificação para o ego, são
substituídos por um objeto estranho (pessoa ou crença), agora idealizado, explicando
assim a dependência para com o hipnotizador e a subm issão ao líder.
A fascinação exercida pelo líd er fascista sobre o grupo inspira em B ataille,
leitor de Freud, o m odelo através do qual o próprio fascism o e a m aquinaria capitalista
poderiam ser m inados em suas bases pela insurreição das classes proletárias lideradas
pelos intelectuais revolucionários.
D o lado da vanguarda surrealista, essa posição lhe valerá o títu lo de
“sobrefascista”3 lançado contra ele pelo grupo encabeçado por B reton, que o acusa de
tendências claram ente fascistas. De sua parte, B ataille reprova aos surrealistas o projeto
de aliança com o Partido Com unista. A aspiração revolucionária surrealista, depois de
1925, incluía a pesquisa estética enlaçada com a vida concreta, o que parecia à B ataille
mais um engodo idealista.4 Os efeitos da querela que se estende entre Bataille e o grupo
surrealista ligado a Breton, na década de 30, podem ser destacados a partir de dois
pontos que, crem os, são os mais valiosos para o estudo que estam os nos propondo: do
período inicial do pensam ento de B ataille isolam os o interesse pelo heterogêneo que
resulta na noção de heterologia, representando um a transgressão ao pensam ento
1 V er H E IM O N E T , J.-M . P o u r q u o i B a t a ille ? Trajets in tellectu els et p olitiq u es d ’une n ég a tiv ité au chôm age.
2 R evista com u n ista, fundada por B oris S ou varin e no in ício da década de 30, que aglu tin ou e x integrantes do PCF e escritores com o R aym ond Q ueneau, M ich el Leiris e B ataille.
3 “(...)B r eto n et le s surréalistes n ’h ésitent pas à d én oncer certaines ‘tendances d ites su rfa s cistes dont le caractère purem ent fa sciste s ’est montré de p lu s en plus flagrant’.” Cf. H EIM O N ET, J-M , “C ontre- Attaque et le ‘su rfa scism e’” , p. 36.
hom ogêneo, bem com o destacam os o persistente em penho em asseverar o asp ecto
m aldito da obra de Sade (este segundo aspecto será desenvolvido no capítulo II).
Para tanto, é necessário traçarm os brevem ente (sem a pretensão de nos
expandirm os sobre a com plexidade dos aspectos que envolveram toda a tra je tó ria
surrealista) o panoram a cultural no qual se inscreve o nascim ento da corrente de
opinião cham ada Surrealism o, pois dele derivaram , segundo consideram os, os
cruzam entos entre E stética e Psicanálise (inicialm ente com Freud e estendendo-se a
Lacan), que nos interessam examinar.
Originalm ente com posto por Louis A ragon, A ndré B reton e Philippe Soupault,
o grupo surrealista fundou em 1919 um a revista cujo nom e, L ittérature, já d e n o ta a
— prim eira ruptura com a lógica do inequívoq^.1 Prim eiram ente porque a união que
culm inou com a publicação da revista foi m ovida pelo desgosto com a L iteratu ra
convencional que se praticava e, com isso, não só a tradição literária virá a ser
contestada como a própria concepção de Literatura. A rigor, se o assunto da rev ista era
a literatura conforme o título sugeria, será, no entanto, em sua dim ensão transgressiva
que o tem a (Literatura) será tratado, isto é, fora dos lim ites ditados pela fronteira que
instituía o domínio do literário. E sta seria a m arca inaugural da ruptura in stau rad a e
assum ida pelos surrealistas, sobretudo com a apropriação, num prim eiro m om ento, da
escrita autom ática. No prim eiro núm ero da revista, inspirados pela escrita autom ática,
Breton e Soupault redigem Les cham ps m agnétiques, dando m ostra do exercício de
escritura no qual a linguagem evidencia sua independência em relação ao su jeito
lógico. Neste sentido, a técnica por eles criada situa-se m ais próxim a (m as não
equivalente) do autom atism o psíquico, do m ecanism o do sonho destacado por F reu d , e
alheia ao modelo canônico de Literatura.
Da rápida aproxim ação com o dadaísm o de T ristan Tzara, cujo M anifesto (1918)
aclam a a antiarte e proclam a a descrença absoluta nas soluções civilizadas que
1 A b reve reconstrução que seg u e b aseia-se na leitura das segu in tes obras: M a n if e s to s d o s u r r e a l i s m o , de A ndré Breton; A n to lo g ia , de André Breton; A p u n ta r d e i dia - E n saios, de A ndré Breton; P r o f il d ’une œ uvre. N adja,- André B reton, de Robert Jouanny; O su rrealism o, de Jacq u elin e C hénieu x-G end ron ;
H is tó ria d o surrealism o, de M aurice Nadeau; Surrealism o y se x u a lid a d , de X a v ièr e Gauthier; H i s t ó r i a da p s i c a n á l i s e na França, V o l. I e II, de É lisab eth R oud in esco; A p a r t e d o f o g o , d e M aurice B la n c h o t.