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O cinema de Gus Van Sant e a temporalidade do afeto

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RAFAEL BATISTA DIAS

O cinema de Gus Van Sant e a temporalidade do afeto

Recife

2013

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RAFAEL BATISTA DIAS

O cinema de Gus Van Sant e a temporalidade do afeto

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE para obtenção do Título de Mestre

Área de concentração: Mídia e Estética

Orientador: Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho

Recife

2013

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4-439

D541c Dias, Rafael Batista

O cinema de Gus Van Sant e a temporalidade do afeto / Rafael Batista Dias – Recife: O Autor, 2013.

129 f.: il.

Orientador: Paulo Carneiro da Cunha Filho.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Comunicação, 2013.

Inclui referências.

1.Comunicação. 2. Van Sant, Gus - Crítica. 3. Cinema. 4. Afeto (Psicologia). 5. Geração beat. I. Cunha Filho, Paulo Carneiro da (Orientador). II.Titulo.

302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2013-100)

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor do trabalho: Rafael Batista Dias

Título: “O cinema de Gus Van Sant e a temporalidade do afeto”

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação do Professor Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho.

Banca Examinadora:

________________________________________ Paulo Carneiro da Cunha Filho

________________________________________ Maria do Carmo de Siqueira Nino

________________________________________ Lourival Holanda

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Agradecimentos

Ao orientador, prof. Paulo Cunha, por compreender a sensibilidade deste projeto no cuidado ao revisar e comentar meus textos, e também por me apoiar no tempo e nos caminhos necessários.

A Michelson Novaes, pela acolhida, pelos filmes, pelo papel de guia na Université Vincennes-Saint-Denis e pelos atalhos em Paris que me fizeram redescobrir o afeto.

A Éricka de Sá, por tornar leve a etapa desta pesquisa em Londres.

Ao prof. Thiago Soares, da UFPB, pela indicação de livros acadêmicos que me tocaram profundamente.

À Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco, pela bolsa de mestrado concedida no período de dois anos da prospecção, o que possibilitou a feitura deste texto.

Aos meus alunos da disciplina eletiva Autoria e estilo, por proporcionarem um ambiente de cinefilia e aprendizado mútuo durante a experiência de estágio-docência.

À profa. Ângela Prysthon, da UFPE, por me ouvir sobre este projeto e ter me indicado Fernando Mendonça, meu amigo vansantiano.

A Mariana Andrade, pelas leituras, conselhos e, sobretudo, por sempre estar junto nas revisões desta dissertação. E a Zé Carlos, da secretaria do Ppgcom/UFPE, pelo suporte.

A Schneider Carpeggiani e Talles Colatino, por terem sido meu esteio.

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Lista de figuras

Fig. 1: Frames de Mala Noche, de Van Sant e O Terceiro Homem, de Orson Welles...19

Fig. 2: Foto de estrada no deserto de Nevada (EUA) por Ansel Adams...22

Fig. 3: Foto do ator River Phoenix no filme My own private Idaho...23

Fig. 4: Foto da série Southern Suite, de William Eggleston...23

Fig. 5: Frames de Drugstore Cowboy com o rosto de Matt Dillon...30

Fig. 6: Close-up de Henry Hopper, em Inquietos...36

Fig. 7: Close-up de Dennis Hopper, por Andy Warhol……...36

Fig. 8: Close-up de Matt Damon, em Gênio indomável……...45

Fig. 9: Still de Até as vaqueiras ficam tristes...48

Fig. 10: Frame de nuvens em Mala Noche...50

Fig. 11: Frame de nuvens em Gerry...50

Fig. 12: Contra-plongée das nuvens em My Own Private Idaho...52

Fig. 13: Frame do filme Satantango, de Béla Tarr...64

Fig. 14: Foto da série Equivalents, de Alfred Stieglitz....77

Fig. 15: Frames de close-up em Elefante, de Van Sant...85

Fig. 16: Still com a técnica do travelling em Gerry....88

Fig. 17: Sobreposição de close-ups em Gerry....98

Fig. 18: Still de Casey Affleck e Matt Damon em Gerry...100

Fig. 19: Sequência de quatro frames de Gerry...101

Fig. 20: Contra-plongée de nuvens e das árvores em Elefante....104

Fig. 21: Frame do corredor da escola em Elefante....106

Fig. 22: Sequência de dez frames de Elefante...108

Fig. 23: Travelling sobre a personagem Elias em Elefante....109

Fig. 24: Frame desfocado da personagem Alex em Elefante... 109

Fig. 25: Frame do parabrisa do carro em Últimos dias...113

Fig. 26: Frame da janela do quarto em Últimos dias....117

Fig. 27: Frame em zoom-out da janela em Últimos dias....117

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RESUMO

Para que servem cinemas de limiar estético? Sobre que fios de tempo delicados deitam-se imagens e narrativas contemporâneas densas? Compreendendo um esforço em recontar o cotidiano por meio de nosso tecido de afetos, esta dissertação usa o cinema de Gus Van Sant como escopo para uma bandeira teórica: a necessidade de uma nova “arqueologia” da memória (Didi-Huberman) que dê conta também de experiências “sublimes no banal” (Lopes). O corpus deste estudo centra-se na Trilogia da Morte (Gerry, Elefante e Últimos Dias), momento em que a obra vansantiana remete aos “cristais de tempo” (Deleuze) a partir do uso de nuvens como motif poético onipresente, mesmo que rarefeitas e insuspeitas sob a forma de reflexos (o duplo) e de névoa. Este texto também destaca, a efeito de introdução, os vínculos de Van Sant com outras experimentações estéticas que antecipariam suas preocupações atuais: a ligação com a Contracultura americana nas artes plásticas (Pop-art), no cinema (Cinema de Vanguarda e New Queer Cinema) e na literatura (Geração Beat).

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ABSTRACT

What are border aesthetic cinemas for? How they could lean on smooth and thin loaves of time by considering contemporary images and narratives? Gus Van Sant’s cinema struggles against narrative as an attempting to re-historycize our daily life using the plenty of human affections. This dissertation gives a glimpse of the oeuvre from this American director to formulate a theoretical question: how possible it is to recreate a new “archeology” of time (Didi-Huberman) considering our “sublime moments on vulgar” (Lopes). The corpus of this research focuses on Death Trilogy’s Van Sant (Gerry, Elephant and Last Days), which reflects the conceptual moment of “Crystal-Image” (Deleuze) by using the image of clouds as ever-present poetic motif, even opaque and visually insuspected upon windows reflections (the double) or mist. This text also exposes prior aesthetic experimentations in Van Sant’s career, for e.e. his conection with the American Counterculture in visual arts (Pop-art), cinema (Avant-Garde Cinema and New Queer Cinema) and literature (Beat Generation).

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Sumário

1. Introdução ... 9

2. Gus Van Sant e o olhar offbeat ... 15

2.1 Identidades, pastiche e uma estética do desvio ...18

2.1.1 Beatnik tardio e questões de adaptação... 21

2.1.2 Cinemas deslocados: queer, de vanguarda e experimental...27

2.1.3 Andy Warhol, Pop-art e máscara...35

2.2 Temas à margem e motifs poéticos...39

2.2.1 Juventude e o uivo da rebeldia...41

2.2.2 A estrada e a mitologia como um rito...46

2.2.3 A nuvem e o afeto como sentimentos...49

3. A Imagem-Névoa... 57

3.1 O afeto fílmico...60

3.1.1 A temporalidade do afeto e a Trilogia da Morte ... 66

3.1.2 A inflexão da imagem-névoa...75

3.1.3 Corpo-cadáver e corpo-abismo...83

4. Névoa, corpo e desaparição ... 94

4.1 Gerry e a névoa de recomposição...96

4.2 Elefante e a névoa de desfragmentação...103

4.3 Last Days e a névoa de decomposição...111

5. Considerações finais ... 121

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1.INTRODUÇÃO

[Arthur] Schopenhauer foi o primeiro escritor importante a falar sobre o tédio (em seu livro Essays) - classifica-o como "dor" um dos males duplos da vida (dor para os que não têm, tédio para os ricos - que é uma questão de afluência). As pessoas dizem ‘é chato’, como se isso fosse um padrão final de recurso, e nenhuma obra de arte tem o direito de nos aborrecer. Mas talvez a arte tenha que ser chata, agora. (O que, obviamente, não significa que a arte chata é necessariamente boa); tradução nossa.

Susan Sontag

O amor é uma espera; e a dor, uma ruptura súbita e imprevisível dessa espera.

J.-D. Nasio

América, eu te dei tudo e agora não sou nada. América, quando é que você será angelical? Quando você se olhará através do túmulo? América, por que suas bibliotecas estão cheias de lágrimas?

Allen Ginsberg

O filme Paisagem na neblina (Topio stin omichli, 1988), do cineasta grego Theodoros Angelopoulos, contém uma cena emblemática que virtualiza a questão do olhar, cerne deste estudo. Ao caminharem sobre uma rua erma de Atenas, à noite, o jovem rapaz Orestis, acompanhado de duas crianças, Voula e Alexandros, acha um pedaço de celulóide, provavelmente um refugo fotográfico, com marcas de uso, e lhes mostra, pedindo que foquem o objeto com atenção. O negativo, todo escuro, é examinado pelos dois irmãos, que dizem não ver imagem alguma. O rapaz insiste, pede que observem novamente. Enquanto conversam, a câmera de Angelopoulos move-se lentamente, em direção à peça estranha e aparentemente estéril que se torna pivô de um jogo: opaca, cujo interior é invisível a olho nu, a atmosfera embaçada e refratária contida naquele recorte de filme desafia quem a vê. Nós, espectadores, somos atraídos, inadvertidamente, por uma imagem turva que se projeta em um infinito que rompe o

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estatuto da cronologia tradicional, fazendo surgir a fenda de um labirinto à nossa frente. E, enfim, o que vemos não é um celulóide escuro, mas um pedaço de imagem sobre a qual transferimos afetos, sensações e desejos. A visão retiniana conjuga um sistema a partir de um espelho primário (o filme descartado) que reflete um olhar-espelho secundário (o movimento da câmera conjugado ao estoque da visão subjetiva do espectador). Essa troca de vetores incessante, um fluxo permanente de tentar enxergar algo e ter devolvida a (ir)resolução do ver em si rebatida ao infinito, rearticula o tempo como um espaço apreensível, sobre o qual repousamos a luz do nosso pensamento. Somos devolvidos à natureza do olhar cotidiano quando Orestis nos indica um ponto de escape: “Estão vendo? Atrás da neblina, uma árvore!”, imagem-conclusão que cristaliza o que as crianças irão viver adiante, o destino inescapável que os espreita, como se, ali, passado e futuro fossem indiscerníveis.

É essa dualidade da imagem, problematizada tão fortemente por Angelopoulos, que parece ser o objeto de fruição estética de Gus Van Sant. Impregnada por incertezas em torno da verdade, da imagem e de valores contemporâneos, a obra do diretor norte-americano é pautada pelo olhar fraturado pelo tempo e espaço enquanto memória. Assim como a neblina que deixa entrever aspectos da realidade – ela, dialeticamente, nega a percepção imediata de longo alcance mas, como uma superfície refletora, formada por água, refrata luzes, sombras e novas figuras passíveis de um outro olhar -, pode-se dizer que o cinema vansantiano empreende uma busca pela visão de mundo atravessada pelas arestas do ordinário. Por isso, sua percepção fílmica vai ser marcada por intervalos (longos ou curtos, mas plenos, quase sem o corte seco), desvios (a sexualidade, as margens, o afeto), um naturalismo/realismo na forma de pensar a filmagem de forma low e contemplativa, e, sobretudo, por uma câmera assombrada e perseguida pelas nuvens. Sua câmera transmuta-se em nuvens na Terra: são uma névoa delicada e desfeita na imagem.

Seja nas suas produções de pequeno orçamento, como Mala Noche (1985), seu primeiro longa-metragem que custou 22 mil dólares, ou na obra laureada Elefante (2003), vencedora do prêmio de melhor direção e melhor filme no Festival de Cannes, o elemento da água em estado gasoso figura em presença corpórea, tanto como objeto de fruição do enquadramento como uma fruição em si, esta última, especialmente, em uma determinada fase da carreira. Tomada, muitas vezes, de baixo para cima (contra-plongée), e, em alguns casos, em close-up como um rosto sensual, sem horizonte

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definido (“a fucked-up face”, como diz o anti-herói beat Mike, em My own private Idaho, ao perceber seu estar-no-mundo, a estrada, emoldurada pela nuvem que lhe sorri), a névoa se espraia no encadeamento fílmico de tal maneira que se torna simultaneamente matéria e tempo. A tensão entre belo e sublime se espraia pelas camadas mais simples da vida, criando uma visão alegórica que ganha corpo no gesto do diretor. O cinema de Van Sant tenta embalsamar o tempo, captado, particularmente, com um olhar peculiar sobre o contemporâneo (a violência, o tédio e o niilismo) em um invólucro suave.

A estética por um afeto da névoa, de nuvens que se condensam para mostrar a face urgente do mundo, adoção de uma linha estética que propõe a ambiguidade ao espectador para que ele pense por si próprio, expõe a fagulha sobre a qual a inflexão do olhar vansantiano se lança a partir da Trilogia da Morte (Death Trilogy) – Gerry (2002), Elefante (2003) e Últimos Dias (2005). É sobre isso que este texto irá tratar. Veremos como o tempo e a imagem revelam um paradoxo que não se dissolve na narrativa desses três filmes: ambos estão condicionados à própria dinâmica de um contexto atual em que a fluidez é parte de um problema e de sua gravidade enquanto natureza. Se, em um primeiro momento, as nuvens irão transmitir a ideia de transcendência, de sublimação do luto pela vida, como afirma Freud1, a derivação de Van Sant vai tocar em temas que permutam a consciência moderna sobre o homem fragmentado. O ser perde a sua solidez para vida líquida, segundo Bauman2, sobre um tempo que retira a autonomia humana.

Tal mudança, a de uma ênfase propositiva (e não apenas iconoclasta), dá-se de maneira ampla e sem reservas, um comprometimento profundo sobre o qual Van Sant irá se debruçar na tentativa de filiar-se a um cinema visionário, compartilhado em uma nova onda transnacional destas primeiras décadas dos anos 2000, com Hou Hsiao-hsien (Taiwan), Claire Denis (França), Carlos Reygadas (México), só para citar alguns. Constataremos que o diretor americano, no momento que decidiu produzir a Death Trilogy, havia-se imbuído de um sentimento de mise en scène não-original mas renovado: um ritmo de narrativa dilatada, uma condução de cena in-progress que mimetiza o afeto em Alfred Hitchcock, o rosto em Andy Warhol, a profundidade de campo em Orson Welles e os longos planos-sequência de Béla Tarr e Chantal Akerman,

1 Ver FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, (1917) 2012.

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constituindo um cristal em que o caos e a nuvem transfiguram-se. Um mundo estranho, cruel e suave, que desvela um ambiente que é caro a Van Sant: a América cheia de cicatrizes, os Estados Unidos como a nação em seu auge e também falha em si mesma. Temas como o terror, a juventude, a inocência perdida, a sexualidade particular e o suicídio enfeixam uma decupagem da realidade por um estado bruto da vida. E, enfim, opta por uma terceira margem, pelo silêncio das superfícies gasosas.

Com base em uma metodologia mista, o presente estudo aciona autores transdisciplinares, porém se ampara fundamentalmente nas teorias de Gilles Deleuze sobre “imagem-cristal”. A proposta é concatenar uma fase em especial na obra vansantiana que demarca uma transubstanciação do real via imagem. Não se coloca, portanto, a preemência de uma revisão de outras fases da filmografia do cineasta. É evidente que, por razões de recorrência estética e temas que perpassam preocupações perenes, tocaremos em aspectos do seu período como um dos artífices do New Queer Cinema, de 1985 até pelo menos 1993, com Even Cowgirls Get The Blues. Também tangenciaremos o momento anterior à Trilogia da Morte, de produções como Psicose (1998), remake de Hitchcock, e obras abertamente comerciais como Gênio Indomável (1996), que serão citadas a título de exemplificação desta pré-fase. Eventualmente, iremos desembocar em obras mais recentes. Paranoid Park (2006), uma espécie de filho-temporão da Trilogia da Morte, teria legitimidade para ser destrinchada como parte analítica, porém, por questões de delimitação de um corpus mais enxuto, convencionamos nos deter nos três filmes dessa fase singular. Reitera-se que, apesar desse recorte consciente, permanece uma inquietação que se revela pela metáfora da nuvem, a qual atravessa continuamente os filmes de Van Sant, em quase três décadas, trajetória inicialmente carregada de influências da literatura beatnik, da pintura e da fotografia modernas. A ligação pessoal com escritores como William S. Burroughs e Allen Ginsberg, nesse percurso, também não é acidental; com eles irá produzir curta-metragens e até álbuns musicais. Com Burroughs, um dos fundadores da Beat Generation, por exemplo, Van Sant lançou, em 1985 (mesmo ano de Mala Noche), o EP The Elvis of Letters, com textos do poeta beat. O mesmo elemento figurativo da nuvem, seu motif obsedante, reaparecia anos depois em novo trabalho musical de Van Sant: um single em 1992, intitulado Bursting Clouds (Nuvens Explosivas), produzido por Tim Kerr, em Portland.

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É esse artista de lugar particular, de nome francês, mas nascido no interior dos Estados Unidos (Louisville, estado de Kentucky); um pintor que se tornou cineasta referendado pelo panteão da crítica fílmica mundial, a Cahiers du Cinéma; um ente situado entre a baixa e a alta cultura; um gay nascido na classe média norte-americana que se aproxima dos rejeitados do Novo Continente; é esse trajeto avesso a taxonomias que estará inscrito, ainda que subliminarmente, nesta análise essencialmente imagética - aqui defendida sob a materialização de uma “imagem-névoa”, a expressão máxima daquilo que Gus Van Sant parece ter tentado atingir durante toda a sua vida ao se valer do ecrã, enxertando nuvens surrealistas que sorriem ou se movem sobre um mundo em degringolamento melancólico, de horror ou de anestesia diante do excesso. Sua linguagem, que amadurece a partir da Trilogia, aponta um algo “para menos”, para um interior sem arestas. E tal construção de vida, que reflete na sua evolução fílmica, corre em paralelo, mas não sem custo de uma suposta pureza das imagens, para a afirmação de uma nova visão de mundo diante das crises que se impõem em níveis ideológico, artístico, social e, de certa forma, político.

Assim, este estudo sobre o tempo e as nuvens na Trilogia da Morte será dividido em três capítulos. O primeiro, “Gus Van Sant e o olhar offbeat”, traz uma apresentação da relação afetuosa de Van Sant com as margens sociais e a estética do desvio dos beatniks, da Pop-art, do Cinema de Vanguarda norte-americano e do Cinema Experimental. No segundo capítulo, “A Imagem-névoa”, abordaremos as conjunções entre imaterialidade e materialidade diante de uma presença etérea da câmera e dos personagens. O terceiro capítulo, “Névoa, corpo e desaparição”, enfoca a análise da Trilogia da Morte e as particularidades que cada filme evoca. Vale acrescentar, neste último tópico, os estudos de frame e dos devires de imagem-duração empreendidos por Suzana Kilpp, como uma ferramenta metodológica complementar a essa observação.

Não poderia deixar de citar, por último, mas não menos importante, o sopro decisivo para a realização deste estudo: uma pesquisa em bibliotecas e livrarias em Paris, na França, feita no transcorrer desta pesquisa, com o apoio de Michelson Novaes, Manoel Junior, Samyr Lira e Michelle Redondo, que tornaram a minha busca diletante de alguma maneira mais rica e acolhedora – o que, permitiu, por exemplo, o meu acesso, como estudante e pesquisador estrangeiro, ao acervo da Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis – além de me proporcionarem companhia e leveza nos intervalos. Também foi fundamental a forma como fui recebido na Cinématèque

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Française, de onde prospectei um dos livros mais prolíficos para esta dissertação, um livro azul da Revue Du Cinéma, número 41, edição dedicada inteiramente a Gus Van Sant, que me encheu os olhos e me encorajou a seguir no meu percurso. Agradeço, ainda, a ajuda incontestável do casal Éricka de Sá e Murilo Lubambo, que me auxiliaram na etapa da pesquisa em Londres, indicando livrarias-sebo e lojas especializadas, em especial a Gays The Word Bookshop, minha fonte de vários livros sobre Beat Cinema e Queer Cinema. Lugares, afetos e memórias que desembocam nesta dissertação como um trajeto revivido, restaurado. Assim como diz o subtítulo de My Own Private Idaho, que capta a essência desta travessia, it´s not where you go, but how you get there.

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2.GUS VAN SANT E O OLHAR OFFBEAT

Estou esperando que meu caso venha à tona e estou esperando

um renascimento do maravilhoso e estou esperando que alguém realmente descubra a América e se lamente [...]

Lawrence Ferlinguetti

Por que escrever sobre alguém? O que faz uma obra ser tão importante a ponto de precisar ser destrinchada? Seria ela um artefato em si, com camadas que escondem uma chave interpretativa, ou apenas um elemento de desejo que convém arroubos pessoais? Pensar sobre essas questões em torno de Gus Van Sant levou a uma pergunta crucial: afinal, que estranheza é essa que o olhar vansantiano deixa como resíduo? A resposta, a priori, já estava dada, antes de se percorrer um caminho não menos livre de dúvidas: como Susan Sontag3 dissera, não se trata de revelar o conteúdo daquilo que afeta a alguém, mas, sim, a apreensão sensorial que dele, como forma de arte, depreende-se. Trata-se de uma experiência do sensível acerca do campo da estética e da ética. Assim, neste estudo, o ponto de partida não será julgar o mérito da face sob o véu, a atitude subliminar deste cineasta estadunidense em questão – seus códigos, segredos ou fruições ocultas. A subnarrativa pode até ser desvendada (ou trazer retalhos de um tecido cognitivo mais amplo). Mas o interesse final, sentimento que se avolumou à medida que esta pesquisa avançava, desvia-se para algo externo, mas delicado: a teia de relações, afetos e sensações (o tal resíduo inquietante) com o qual Van Sant se emaranha em um gesto particular, uma idiossincrasia ao fazer filmes. Tessitura visível, mas sutil. Coisa que só ele tem, mas que é partilhada, de alguma forma, com outros diretores, atores e cinematógrafos. Uma característica que o torna humano como qualquer outro – não é algo extraordinário, pelo contrário, é um aspecto comum. O rastro vansantiano traz, em seu bojo, um olhar atravessado, que corta afetivamente

3

Sontag critica o utilitarismo na interpretação da arte e advoga por um “erotismo” do olhar. “A finalidade de todo comentário sobre arte seria fazer obras de arte – e, por analogia, nossa própria experiência – mais reais, e não menos, para nós. A função da crítica deveria ser mostrar como isto é o que é, ou mesmo que isto é o que é, do que mostrar o que isto significa”. Tradução nossa. Ver SONTAG, Susan. Contra la

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paisagens, pessoas e domínios artísticos. Atravessa e se deixa atravessar, afeta e se deixa afetar, compondo uma reserva de sentimentos no conjunto das relações do dia-a-dia. Em uma cultura contemporânea baseada no “excesso, na superprodução e [...] na abundância material [...] que embotam nossas faculdades sensoriais”4, parece obsceno falar de sutileza, do silêncio e do cotidiano. No entanto, é isto que permanece, ou que tenta permanecer: a urgência de um olhar offbeat5.

Tal viés vansantiano desvela um cuidado especial sobre aqueles que estão fora da margem, ou à margem da sociedade. Como uma estética em função da essência (mais uma vez, o tal resíduo), Van Sant cultiva empatia pelos sociopatas, isto é, pessoas que, de uma forma ou de outra, foram alijadas do american dream. Ganham sua atenção, apartada de julgamento (sociopolítico, étnico, econômico, ideológico etc), os arquétipos de uma camada situada abaixo aos operários, no demi-monde6; eis eles: toxicômanos que aparecem no filme Drugstore Cowboy (1989); imigrantes ilegais, em Mala Noche (1985); indigentes, loucos, em Paranoid Park (2007); suicidas, em Últimos Dias (Last Days, 2005); homossexuais e prostitutos, em Garotos de Programa (My Own Private Idaho, 1991), Até As Vaqueiras Ficam Tristes (Even Cowgirls Get The Blues, 1993) e Milk – A Voz da Igualdade (Milk, 2008), entre outros estratos e grupos que, em função da invisibilidade ou do senso comum distorcido, vivem sob o signo da violência ou, até em alguns casos, à sombra da indiferença, seja ela midiática ou exercida pelo cidadão. O recorte desses personagens, por sua vez, reflete na abordagem dos temas, que convergem questões atuais, como o bullying, as drogas, a sexualidade particular e a tolerância. Poderia caber, no seu projeto fílmico, um discurso flamejante ou panfletário sobre as camadas suboperárias, porém o enfrentamento vansantiano resvala mais por uma espécie de “poética de reinserção”, uma suave trincheira desprovida de cartilhas neomarxistas. Homossexual revelado à luz de seus primeiros filmes de temática queer7 nos anos 1980, sua postura é mais propriamente a de um “gay pacifista” (PARISH,

4 Ibidem, p. 14\15.

5 Offbeat, termo inglês, aqui, emprestado do biógrafo James Parish, que assim define Gus Van Sant: “Há sempre aquele ponto de vista característico de Van Sant: offbeat, oblíquo, e desafiador para a percepção única das coisas” (PARISH, 2001, p. 12). Tradução nossa.

6 “O mundo da penumbra, como era chamado no Século 20”. Ver o documentário Before Stonewall, de Greta Schiller.

7 “Na acepção original, queer significa estrangeiro, bizarro, anormal ou mesmo doente. Aos poucos, o termo passou a ser aplicado a toda forma de sexualidade que não se encaixa nas normas sociais [...] A partir dos anos 1980, queer passou a ser um conceito mais teórico, utilizado notadamente não apenas para as identidades gay e lésbica tradicionais mas também transexuais, bissexuais e ainda todas as variações da sexualidade”. ROTH-BETTONI, Didier. L’Homossexualité au cinema. Paris: La Musardine, 2007, p. 24. Tradução nossa.

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2001, p. 175) e de alguém “raramente político e um não-ativista por natureza” (Ibidem, p. 12). Pertence ao período de pós-militância do cinema de identidade gay, mais precisamente nos anos da visibilidade “depois dos anos 1980, de banalização da presença homossexual8 no ecrã” (ROTH-BETTONI, 2007, p. 329). Contudo, o olhar vansantiano vai na contramão de um possível excesso, trabalhando com representações identitárias e a elevação dos excluídos ao topo do modelo midiático. Seu apreço, basicamente, será a de se filiar às margens em seus diferentes aspectos, rostos e níveis de alijamento. Há, porém, uma diferença crítica. Distinta, sua origem é a de um cidadão de classe média, filho de um comerciante bem-sucedido e de uma professora de escola básica, nascido em 1952 na casta branca do sul dos Estados Unidos (em Louisville, estado de Kentucky), com todas as benesses agregadas a esse tipo de condição social em que cresceu9. Com a exceção de ser homossexual, Van Sant não é um deles.

Vale destacar que o presente estudo não tem o interesse em destrinchar a vida de Gus Van Sant, fazendo-se valer do uso do biografismo. Em vez de recorrer a dados biográficos para proceder à análise, o sentido desta escrita tem como guia as recorrências estilísticas que irão culminar no projeto de uma estética pura com a sua Trilogia da Morte (Death Trilogy), como veremos adiante. Já existe uma biografia, publicada em inglês nos Estados Unidos, assinada pelo jornalista norte-americano James Robert Parish, que dá conta de pormenores da trajetória de Van Sant10. Naturalmente, alguns dados desse livro revelam-se úteis, na medida em que depõem sobre passagens que sinalizam o olhar atravessado de Van Sant que queremos abordar aqui. Como, por exemplo, além dos temas e personagens offbeat, as paisagens a Oeste dos Estados Unidos marcam um aspecto fundamental na sua diegese. A paisagem, sobretudo, também será uma materialização do seu afeto. O livro de Parish (2001)

8 O termo “homossexualidade” foi descrito pela primeira vez pelo escritor húngaro Károly Mária Kertbeny em 1869 como um pedido ao então Ministro de Justiça da Prússia para abolir crimes contra lei por “atos não-naturais”. Marcou o início dos movimentos de militância gay, mas também o

recrudescimento do discurso homofóbico, inclusive na medicina, com a “especificação” da

homossexualidade, segundo Michel Foucault. Ver Aldrich, Robert (ed.). Gay Life and Culture – A World

History. Londres: Thames &Hudson, 2006, p. 167. 9

As relações entre política e estética são extremamente cruciais hoje em dia, e no caso de Van Sant, atribuir um sentido político à sua obra torna-se ainda mais impreciso. Em 1989, ao lançar “Drugstore Cowboy”, o diretor explicitou ser avesso a uma arte-panfleto: “É uma verdade provável que o filme faça um drogado sair de casa e roubar drogas, mas isto não é uma afirmação política sobre drogas. Acho que espero algum tipo de estremecimento” (PARISH, 2001, p. 87). Seria mais apropriado, portanto, atribuir a Van Sant o engajamento por uma arte que faça o espectador pensar.

10 Biografia já desatualizada; dados somente até a produção do filme Encontrando Forrester (2000), sem uma nova reedição. Vale salientar que se trata de uma biografia não-autorizada; as informações sobre a vida de Van Sant, quando controversas, terão evidentemente a fonte citada, não cabendo a

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descreve que Gus Van Sant teve, em virtude das mudanças de emprego do pai, então executivo de grandes corporações do ramo de confecção, de migrar de Louisville para várias cidades - Denver (Colorado), Darien (Connecticut) e Portland (Oregon)11, escolhendo esta última, próxima a Seattle (no extremo noroeste estadunidense), como cenário de visibilidade de uma cultura fora do eixo cosmopolita de Nova Iorque e também dos estúdios de Los Angeles. O desvio, a fenda e a fratura são peças primárias que abrem para seu nomadismo social e tornam fidedigno seu sentimento por uma América descentrada:

Ao se examinar a rica vida em camadas de Gus Van Sant, tanto como cineasta quanto indivíduo, é fácil dizer que este introspectivo, homem reflexivo com profundos olhos penetrantes, voz monótona e expressão imóvel seria um completo cínico, um ser pessimista e preso à sua idiossincrasia. Mas, assim que este talento do sul prova ser um narrador engraçado e uma pessoa que se põe aberta ao novo e ao inesperado, então Van Sant se revela um homem de extremo otimismo (PARISH, 2001, p. 15).

Afastado dos grandes centros, o olhar afetuoso às margens (geográficas, sociais, estéticas) de Van Sant situa-se em um “lugar misterioso no interior de um ciclone” (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 13), predisposição por uma “calmaria e um silêncio que prevalecem enquanto o mundo todo se desfaz” (Ibidem). Mas como explicar esse estado de espírito inquebrantável e pacifista de Van Sant? Que mistério é esse em que ele se situa? A quem (aos quais) ele recorre para fincar seu estar-no-mundo em que medos, violências e incertezas, aparentemente, dissipam-se? Por que em seus filmes, em especial na Trilogia da Morte, há reflexões sobre a finitude? Resíduos que se acumulam, inquietam e movem esta pesquisa. E que nos fazem prosseguir.

2.1 Identidades, pastiche e uma estética do desvio

Gus Van Sant possui referências estéticas conhecidas por estudiosos dos film studies. Algumas são notórias pela imitação. São muitas. Compõem um “tecido de citações”, como afirmava Barthes12

. Algumas delas são pastiches13 em pequeno grau, como por exemplo, cenas em que ele presta homenagem a outro cineasta (é possível

11

Ver PARISH, 2001, p. 12. 12

Ver http://www.eca.usp.br/ciencias.linguagem/L3BarthesAutor.pdf

13 O conceito moderno de pastiche (pasticcio) evoluiu para a ideia de “imitação em arte” (DYER, 2007, p. 21), superando a definição primária de “combinação” (Ibidem). Trata-se de um gesto estético deliberado e consciente, embora nem sempre revelado ou textualmente assinalado. Difere da cópia exata e do plágio.

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verificar em Mala Noche, seu primeiro filme, menções estilísticas a O Terceiro Homem, de Orson Welles, em uma das tomadas de perseguição noturna do branco americano Walt em busca do mexicano Johnny Alonso). Há, no entanto, pastiches mais ambiciosos, como o projeto do remake shot-by-shot de Psicose, de Alfred Hitchcock, expondo uma faceta sua puramente artística em torno da elaboração de um palimpsesto14. Experimentos, em distintos momentos da sua filmografia (o primeiro nos anos 1980, o outro dez anos depois), que denunciam um ponto de fuga do cinema e apontam um detalhe proeminente: sua formação na Rhode Island School of Design (RISD), nos anos 1970, o que irá credenciá-lo a ser um artista aberto à experimentação na arte contemporânea.

FIGURA 1: Pastiche em Mala Noche (frames à direita) sobre O Terceiro Homem, de Welles (à esq.)

FONTE: http://strangewood.tumblr.com/post/49235683053/gus-van-sant-paying-homage-to-the-third-man-in. Acesso em: 28/08/2013

14 “Manuscrito no qual um texto foi escrito sobre o outro (ou mesmo vários em sucessão); com o tempo, textos mais recentes podem mostrar as tentativas de apagar ou escrever sobre eles, e essa noção de um texto refletir-se através do outro (...)” (Ibidem, p. 49).

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A predisposição a esse tipo de licença como uma homenagem ou diálogo com artistas ou outros gêneros (a exemplo, novamente, de Mala Noche, filme neo-noir de 1985, que presta reverência às produções noir15 dos anos 1940 e 1950) cria um hibridismo estético. Essa presença pastichizante em Van Sant não será devedora somente do cinema; ela também decorre de fontes de estilo nos mais diversos campos, da fotografia à literatura, passando pela pintura. Em comum a todas essas áreas, sua referência mater é o retorno à Contracultura dos anos 1950 e 1960, de autores como Jonas Mekas, considerado o pai do cinema de vanguarda norte-americano, e Andy Warhol, cineasta e ícone da Pop-art. As incursões do cinema vansantiano também nascem do blend de elementos da cultura underground norte-americana, de Stan Brakhage, mentor do Cinema Experimental, à tradição do western de Howard Hawks e John Ford, e ainda uma reapropriação da cultura queer de John Waters e Jean Genet entre os anos 1950/70. Forjando uma identidade múltipla, aleatória, difusa, que interroga “qual a origem de um artista americano?” (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 57), seu lugar parece ser menos a formação de um retrato enviesado da América que uma sondagem empírica. A certeza dá-se por uma filiação ao desvio16, um interesse pelos outsiders, os losers, sobretudo por aqueles ilustrados pela Beat Generation dos 1950, resgatada em termos de condição de um grupo excluído das grandes narrativas. Como um esteta em si - e não apenas cineasta, pintor, fotógrafo ou artista plástico, Van Sant, cronologicamente um pós-beat, iria manter ligações por décadas com os poetas beatniks Allen Ginsberg e William Seward Burroughs. Pelo menos, seus quatro primeiros filmes (Mala Noche, Drugstore Cowboy, Garotos de Programa e Até as Vaqueiras Ficam Tristes) poderiam ser enquadrados como filhos-temporão do Beat Cinema.

A identidade flutuante entre diversos gêneros (cinema noir, western, queer) e campos artísticos faz Gus Van Sant agir em outras áreas do conhecimento e das artes. Publicou, em uma série de retratos intitulada 108 Portraits, com fotos em polaroid de Uma Thurman, Robin Williams e Sofia Coppola; lançou, em 1997, o livro satírico Pink, um romance que ironiza as feições mercantis de Hollywood, além de integrar bandas

15 “As ficções policiais americanas da década de 1930 – romances e filmes – caracterizaram-se por sua violência e por sua visão amarga, e até mesmo desiludida, da sociedade liberal da Era da Depressão” (AUMONT et MARIE, 2010, p. 212).

16 O desvio pode tanto ser assinalado no campo das ciências sociais, como “entre outras coisas, uma conseqüência das reações de outros ao ato de uma pessoa” (BECKER, 2005, p. 22), como também uma potência do ato de deambulação visto por Deleuze no livro Conversações.

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(Kill All Blondes) e produzir videoclipes de David Bowie, Elton John e Red Hot Chilli Peppers. Atuou, ainda, em galerias, com exposições de fotocolagens (no museu de arte contemporânea de Portland, o PDX Contemporary Art, em 201017) e de pinturas exibidas juntamente com sobras das filmagens do filme My Own Private Idaho (na Gagosian Gallery, em Los Angeles, em 2011), entre outros trabalhos. Desvios, marcados pela polivalência, que abrem arestas para um retorno ao passado, questões de adaptação do cinema e o seu diálogo com outras artes.

2.1.1 Beatnik tardio e questões de adaptação

O contato de Van Sant com os beatniks18 é da ordem de um idílio espiritual. Não somente irá filmá-los, nas suas essências, como irá filmar com eles, em especial William S. Burroughs e Allen Ginsberg, seus ídolos de adolescência. Segundo Parish (2001), aos 17 anos de idade e morando ainda em Darien, Gus interessava-se por visitas ao Museu de Arte Moderna de Manhattan e por cinemas underground/experimental, ao passo que era “atraído pelo ethos dos hippies” e da Geração Beat (PARISH, 2001, p. 13). Espécie de bíblia dos loucos de Nova Iorque, o livro Pé na Estrada (On The Road, 1957), de Jack Kerouac, foi uma das suas leituras à época – livro creditado como o gérmen da cartografia visual dos seus primeiros filmes:

Seus filmes Mala Noche (1985), Drugstore Cowboy (1989), My Own Private

Idaho (1991) e Even Cowgirls Get The Blues (1993) revelam um interesse

pela América – e a vastidão da paisagem norte-americana – que é similar à manifestada pela escrita de Kerouac. Como Kerouac, Van Sant reconhece o lado sedutor e ao mesmo tempo vertiginoso da literatura de viagem; e seus personagens estão sempre motivados pela necessidade de viajar pela/na América (através do Noroeste Pacífico em Drugstore Cowboy, de Portland para Idaho – e até a Itália – em My Own Private Idaho, e até Dakota em Even

Cowgirls Get The Blues). A cinematografia em cada um desses filmes

enfatiza a beleza do interior rural dos Estados Unidos, especificamente o Norte e o Meio-Oeste (SARGEANT, 2008, p. 223, tradução nossa).

O registro de grandes montanhas, as paisagens de horizonte distante, extensas regiões áridas, assemelham-se às fotografias de Ansel Adams, uma acuidade visual

17 Ver http://pdxcontemporaryart.com/van-sant#o. 18

“Beat significa a falta de ambição direcionada a obter dinheiro. Praticamente, todas as pessoas gastam seus dias com a ideia fixa de ganhar Dinheiro. Aqueles poucos que ignoram essa tendência recebem uma graça especial, a liberdade na mente que os torna capazes de Criar e ter Prazer” (RICE apud

SARGEANT, 2008, p. 10). O termo beatniks ou Beat Beneration caracteriza o grupo literário e artístico de Nova Iorque dos anos 1950, cena que depois se expandiu para San Francisco e Portland.

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descritiva da exuberância de um Velho Oeste saqueado pelos colonos ingleses; ou às fotos de William Eggleston, com suas representações de estradas e vilas americanas em cores vivas. O vazio, o elogio à natureza e um retorno a um passado pré-civilizatório, na tentativa de recontar a história e resgatar cenários puros, irão fazer com que seu cinema aponte para elementos pictóricos de força expressiva. O olhar vansantiano é devedor mais propriamente do Cinema Beat, ao fazer uso, em sua mise en scène, de imagens que são reminiscentes do cinema de vanguarda de Jonas Mekas e do surrealismo de André Breton. Cenas como a da casa que cai na estrada em My Own Private Idaho e enxertos de home videos que costuram passado afetivo e plot de tempo presente – tudo isso constitui “fragmentos que atuam como momentos que chamam atenção para as várias convenções e contemplações de filme e câmera em um sentido análogo à ênfase beat nas várias possibilidades da palavra escrita” (Ibidem, p. 225). O que há em comum entre escritores beatniks e os cineastas/pintores/fotógrafos da Geração Beat (entre eles, diretores como Harry Smith e Ron Rice; o fotógrafo Robert Frank e o artista visual Alfred Leslie), na Nova Iorque dos anos 1950, é um “senso de estar fora do vasto grosso da sociedade americana” e de “compartilhar o desejo de articular e celebrar o sentimento do outro, em criar manifestações artísticas que sejam espontâneas, pessoais e visionárias” (Ibidem, p. 12).

FIGURA 2: Estrada no deserto de Nevada (EUA) nos anos 1960. Foto de Ansel Adams.

FONTE: http://www.escreveretriste.com/wp-content/uploads/2013/01/ansel-adams-road-nevada-desert-1960.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

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FIGURA 3: River Phoenix no filme My own private Idaho (1991).

FONTE: http://www.reverseshot.com/files/images/ my_own_private_idaho_1.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

FIGURA 4: Foto da série Southern Suite (1981), de William Eggleston

. FONTE: http://whatwelikenyc.files.wordpress.com/2013/03/2-

_untitled_mississippi_eggleston.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

É evidente que, por uma diferença cronológica de menos de duas décadas, Gus Van Sant não viveu a época dos beats. Leitor e apreciador de livros seminais do movimento, em particular Uivo e outros poemas (Howl and Other Poems, 1956), de Allen Ginsberg, e Almoço Nu (Naked Lunch, 1959), relato lisérgico sobre o consumo de drogas de William S. Burroughs, ele só iria ter o primeiro contato pessoal com Burroughs em 1975. Gus descobrira que o escritor estava, assim como ele, morando em Nova Iorque, e o telefonou após ter acesso ao seu número em uma lista telefônica. Expressando ao seu guru o desejo de filmar o conto Discipline of DE (Do Easy), eles

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mantiveram alguns encontros, até um acordo ser assinado para a produção de uma adaptação cinematográfica. Na época, Van Sant era um recém-formado da RISD e trabalhava para agências de publicidade em Nova Iorque. Após isso, somente uma década depois, voltariam a se ver; durante esse hiato, trocaram cartas, e Gus dizia que Burroughs era “um grande apoiador e um amigo” (PARISH, 2011, p. 26). Ao se reapropriar imageticamente de um texto beatnik que ironiza a disciplina e o auto-controle, o diretor sublinha questões contemporâneas, como repetição, banalidade e o trabalho como construção processual – tópicos que refletem sua coerência enquanto artista. Em Discipline of DE (1982), Van Sant dá visibilidade a uma cartilha do bem-fazer, com uma série de regras sobre como conquistar a autonomia pessoal em atividades prosaicas (levantar um copo sem deixá-lo cair, passar por um cômodo apertado e não tropeçar em uma cadeira etc.). O vídeo, em preto e branco, começa com a história de um coronel aposentado que vive uma vida pródiga a executar tarefas do cotidiano de forma meticulosa. Um homem que criou seu próprio calendário de “dez meses e com 26 dias para cada mês” e que resolveu gastar “seu tempo no presente”. A missão deste senhor de meia idade será a de estudar a disciplina do “do easy”, ou seja, fazer o que se quer fazer da maneira mais fácil e mais relaxada que se possa fazer, o que inclui dobrar toalhas e cobertores sem deixar pontas aparentes ou levantar-se da cadeira sem tocar na mesa, calculando o espaço entre elas. Na segunda parte do curta, um estudante jovem e desajeitado tenta desenvolver a técnica. Analisando este vídeo, pode-se apreender, a partir deste gesto de Van Sant, uma adesão ao teor bem-humorado do texto de Burroughs. No entanto, este pequeno filme se agiganta a partir do momento em que se observa a filmografia vansantiana. Percebemos, aqui, como um ato paciente em torno do presente banal a desvelar uma prerrogativa que marcaria seus futuros longa-metragens: um agir não como condição inata, mas como consciência da relação consigo mesmo e com o outro. Seu cinema demarca uma ruptura mediada da práxis (com produções alternadas entre não-atores e artistas de Hollywood, uso prescindido de script, autoria de cenas e diálogos compartilhada entre os atores que “pensam” os diálogos etc.) para fundar um tipo de predisposição desinteressada em prol de uma obra consciente do acaso inerente ao meio. “Movimentos imprevisíveis” que estão nos “primórdios do cinema, reinando absoluto desde os irmãos Lumière” (BURCH, 2011, p. 135).

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Em Mala Noche, outro filme que fora adaptado de um texto originalmente beat, o acaso é um elemento norteador desta produção de baixo orçamento (22,5 mil dólares). Nos extras do DVD lançado pela MK2 Diffusion, em 2008, há o documentário No cutting, no stars, no script, de 2007. Nele, Gus explica, ao ser entrevistado, que a maioria das locações, situadas na periferia de Portland, eram prospectadas no mesmo dia de gravação da cena. E completou que os atores eram transeuntes e personagens reais das ruas, a exemplo do rapaz que faz um dos mexicanos no filme, o ator amador Ray Monge, um jovem que frequentava boates na cidade e foi convidado a atuar pela primeira vez. O filme é baseado na novela homônima de Walt Curtis, poeta beatnik de Portland, e tem uma hora e quatorze minutos de duração, com cenas intercaladas de pouco ou quase diálogo algum, e trilha sonora de Violeta Parra (Gracias a la Vida), além de temas mariachis. Apesar de sua maneira de filmar solta, sem roteiro, Gus deixa entrever em Mala Noche suas preocupações estéticas, ao optar por ângulos tortos à la Orson Welles; por uma fotografia escura e granulada, que se encaixa poeticamente com o texto de Curtis; e cenas com edição acelerada de plano e contra-plano (geralmente fechadas no rosto). Bouquet e Lallane (2009), ao comentarem este primeiro filme de Van Sant sobre o amor obsessivo de um branco norte-americano de classe média por um clandestino mexicano, julgam aproximá-lo de um dos ícones do Beat Cinema, John Cassavettes e o seu “cinema espontâneo”:

Se o estilo se refere a Welles como um videoclipe, a maneira de contar, a relação com o corpo (filmado muito próximo) e o estabelecimento de uma relação constante de proximidade com os personagens funcionam como uma forma diferente de Nouvelle Vague – um pouco francesa, mas nova-iorquina sobretudo. Em seu desejo de iniciar uma síncope próxima do free-jazz, mais também pela aproximação do sujeito (o amor interracial), Mala Noche guarda muita semelhança com Shadows, de Cassavettes (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 23)

Essa inquietude política em torno dos marginalizados, quase sempre revestida pelo invólucro estético, somente veio à tona, em roupagem ativista, em dois momentos em que Van Sant emprestou sua plataforma para o discurso crítico de seus amigos beatniks. Em 1991, Burroughs – dois anos após uma participação em Drugstore Cowboy, em que fez o papel de um padre ex-viciado que aconselha o ladrão de farmácias Bob (Matt Dillon) – aparece no curta Thanksgiving Prayer (título secundário Thank You America), no qual declama um texto virulento contra a América em meio a fusões de imagens oníricas e de arquivo. Seis anos depois, Allen Ginsberg também destinaria palavras inflamadas ao governo norte-americano e sua política belicista em

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Ballad of the Skeletons. “No fundo, Gus é um hippie. Ele é um tanto romântico, um tanto sentimental” (COOPER apud BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 102). A amizade com Burroughs e Ginsberg seria algo sempre acionado na obra vansantiana até a morte deles, no mesmo ano, em 199719.

Como um beatnik tardio, existem questões pertinentes do ponto de vista de uma aproximação teórica, estética e estilística que pode ser fidelizada, mas não suplantada de forma integral. Uma das reflexões diz respeito a quanto de inspirações artísticas da Geração Beat, de intelectuais outsiders a exemplo de Louis-Ferdinand Celine, Walt Whitman, William Blake, Henri David Thoreau, podem, de alguma forma, estar presentes no trabalho de Van Sant, ainda que de forma indireta. Van Sant não deve ter bebido diretamente na fonte, já que, ao se referir a Burroughs como um intelectual de bancada, alega não ter sido um estudante meticuloso (PARISH, 2001, p. 26). No entanto, se “o be-bop, gênero do jazz marcado pela liberdade de improviso que conquistaria espaço na década de 1950 com músicos como Charlie Parker, teve importância na escrita de Kerouac e dos beats em geral” (COHN, 2012, p. 8), para a expressão artística vansantiana também será seminal outra vertente livre da música, ainda que como plano de fundo. “Frank Zappa, Velvet Underground e as ‘bandas de pintores’ tiveram uma grande influência na cena da RISD nos anos 1970” (VAN SANT apud FULLER, 1993, p. 14). Como estudante contemporâneo a David Byrne, Chris Frantz e Tina Weymouth, do grupo Talking Heads, Gus deixou-se infectar pelo surgimento do ambiente pós-punk e do rock experimental nos Estados Unidos. Um sentimento de ruptura que irá ecoar no seu modo em ver a cultura underground para uma formulação mais libertária do cinema, inclusive no modo como seus filmes estão imbrincados com a música, como no uso do minimalismo de Arvo Pärt em Gerry.

Outra questão que se pode ponderar sobre Van Sant em relação à Geração Beat é que, por não ser um membro original do movimento, sua relação com a literatura recai sobre o recurso da adaptação cinematográfica. Ora, ainda que seus primeiros quatro filmes sejam, em essência, beats, e ainda que somente fosse esquadrinhado e avaliado por essa produção primária, Gus não se encaixa nem cronologicamente nem esteticamente no Beat Cinema. Sua filiação é de ordem espiritual, com o uso efetivo de empréstimos. O roteiro de My Own Private Idaho é resultado, por exemplo, de uma

19 Os dois escritores foram homenageados nos créditos finais do filme Gênio Indomável (Good Will Hunting), lançado em 1998 e vencedor dos Oscar de Roteiro Original e Melhor Ator Coadjuvante (Robin

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apropriação de rastros de City of Night, livro sem tradução para o português, de conteúdo homossexual, escrito pelo americano John Rechy; do filme Chimes at Midnight, de Orson Welles e de passagens de Henry IV e Henry V, de William Shakespeare. Assim como Mala Noche carrega influências na sua cinematografia de David Lynch e Stanley Kubrick (FULLER, 1993, p. 21) e também de Jean Genet (Un Chant d’Amour, 1950). Um tipo de diálogo de estética beat com outros autores literários que deram um novo sentido aos filmes dessa fase de influência literária – e coerente com a liberdade be-bop que pregava o movimento. E que, em contrapartida, devolve novas camadas à Geração Beat, como já dizia André Bazin (1991), décadas antes, em 1940, na defesa por um “cinema impuro”. Ao invés de ser um demérito, como a crítica da época enxergava sobre a literatura ou o teatro que, transposto para as telas, estariam condenados a perder seus aspectos inerentes, o empréstimo pode ser oportuno para qualquer uma das artes, inclusive em um movimento de troca ou retorno. “Se a crítica deplora frequentemente os empréstimos que o cinema faz à literatura, a existência da influência inversa é geralmente tida tanto por legítima quanto por evidente” (BAZIN, 1991, p. 88).

2.1.2 Cinemas deslocados: queer, de vanguarda e experimental

A passagem de Gus Van Sant pela Rhode Island School of Design (RISD), nos anos 1970, foi fundamental não somente para que ele decidisse seguir pelo caminho de cineasta, e não a de pintor (embora não tenha abandonado totalmente, com a série de colagens que expôs em 2010, em uma galeria em Portland), mas também para um aprofundamento de sua cinefilia. Na entrevista concedida ao crítico de cinema Graham Fuller, em junho de 1993, ele explica que, durante a formação universitária, “foi fundamentalmente influenciado por cineastas experimentais dos anos 1960 que eram também pintores, entre eles Stan Brakhage, [Andy] Warhol, Ron Rice, Taylor Mead e Jordan Belson, um pintor de São Francisco” (VAN SANT apud FULLER, 1993, p. 15). Jonas Mekas também é citado entre suas maiores influências no começo da carreira. Porém, em termos de apropriação identitária, Gus alega que não houve “uma influência direta, a não ser em tentar emular diretores de comerciais e assimilar o drama nos filmes” (Ibidem). Entretanto, em um dos seus primeiros curtas, intitulado Late Morning

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Start e produzido como trabalho de conclusão na RISD, ele faz uso, mais uma vez, do pastiche, desta vez sobre a estética de Jean-Luc Godard. Segundo o próprio Van Sant, trata-se de um vídeo no formato de 16 mm, colorido, “com tino experimental, mas que tentava incorporar um pouco do estilo de Hollywood” (PARISH, 2001, p.21).

É interessante notar que alguns dos lemas de Stan Brakhage, mentor do Cinema Experimental nos Estados Unidos, ressoam em determinadas obras vansantianas, sobretudo nos primeiros filmes de influência beat. No livro Métaphores et vision, de 1963, Brakhage afiava-se à “imaginação de um Mundo antes de ‘no princípio, era a palavra” (BRAKHAGE, 1998, p. 19) e a uma visão além da visão ordinária que pudesse “permitir a chamada alucinação para entrar no domínio da percepção” (Ibidem). Assim como Maya Deren, cineasta e coreógrafa do Século 20 que repensou a imagem em movimento em relação ao corpo e à dança, Brakhage propunha um retorno da visão humana ao olho infantil, desprovido de pré-requisitos da composição lógica. No entanto, já previra que seria impossível voltar ao passado, simplesmente esquecer a perda original. O desafio – pensou ele – seria desenvolver uma nova mente óptica, capaz de dar conta de “todo tipo de influência visual” (Ibidem, p. 20), seja ela real ou onírica. Tomando por empréstimo conceitos do Expressionismo abstrato e do Surrealismo, Brakhage tencionava radicalizar uma visão subjetiva no cinema, na qual sonho e realidade, corpo e mente, razão e afeto não estivessem dissociados. Na prática, seus filmes exploravam os umbrais perceptivos, sejam eles originados na ilusão ótica ou na visão fidedigna da realidade, por meio de superposição de imagens; narrativas não-lineares ou situações dramáticas que levassem a uma relação metafórica entre as imagens; e miragens e exposições fortes ou brandas à luz. Outras técnicas também incluíam distorções espaciais com o uso de lentes anamórficas, ângulos enviesados, falta de sincronia do som com a imagem em movimento e close-ups de foco suave. Em Reflections on a Black (1955), ele reproduz o efeito de um homem cego que caminha na rua até chegar em casa e traduz isso em qualidade expressiva do próprio meio: sinaliza a cegueira “cortando” os olhos dele e “suturando” com negativos cinematográficos. Já em Prelude: Dog Star Man (1959), a câmera se aproxima dos pelos de um animal, que se supõe ser de um cão ou um gato. A rarefação de foco, no entanto, abre a possibilidade para se pensar não sobre a textura ou a origem do animal, mas sobre sua condição de domesticado. A busca parece ir além do horizonte perceptivo material para se lançar em

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questões sensoriais e da ordem do espírito, esta última como uma peregrinação pelo divino ou um Ser superior:

Esqueça ideologia – para um filme bruto que ainda não tem um idioma e fala como um aborígene – retórica monótona. Abandone a estética – a imagem em movimento sem fundamentos religiosos, deixe sozinha a Catedral, a forma de arte, e comece a sua própria busca de Deus aceitando apenas como perigo a herança arquitetônica dos ‘sete’, outras artes e seus pecados, e fechando seu círculo, seu círculo estilístico, e, portanto, zero (BRAKHAGE, 1998, p. 21)

Perante tal vontade em demarcar uma imagem cinemática livre, sem vínculo com a palavra, mas presa somente ao desígnio da percepção e do domínio sensorial, parece conveniente destacar uma consonância entre Brakhage e o discurso de André Breton e o seu Manifesto Surrealista de 192420. Breton afirmava que nenhuma arte surrealista podia ser julgada por questões morais, a não ser, talvez, levando-se em consideração o mérito dos sonhos e a teoria psicanalítica de Sigmund Freud. É nesse sentido que recorrências surrealistas no cinema provocam reações adversas – elas quebram um jogo de disposição automática, mas não excluem a possibilidade de provocar percepções variadas que divergem da intenção original do cineasta. O espectador cria, de algum modo, novas interpretações sobre uma determinada obra que brinca com a imaginação e o universo onírico.

Um dos casos clássicos do cinema surrealista é o filme Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1928), de Luís Buñuel e Salvador Dalí, que levou parte da plateia a desmaios em virtude da cena que simula o corte de um globo ocular com uma navalha. Trata-se de um dos primeiros enquadramentos do filme, com a participação do próprio Buñuel. Esta cena, dramática e impactante, funciona como uma introdução para o que virá depois, uma sucessão de ambiências que dinamitam a percepção humana sobre realidade, interpretação e lógica. Há também, neste filme, outra cena em que o homem, ao tentar assediar sexualmente uma moça indefesa, é impelido ao ter o corpo atado a cordas presas a um piano, dois padres e duas cabeças de bezerros mortos. Em outro momento, saem formigas da sua mão, como se fosse um formigueiro. Várias situações em que o absurdo e a imaginação solta de Buñuel e Dalí confrontam o real. À época, a obra foi associada simbolicamente a tensões sexuais de ordem de repressão religiosa. Porém, Buñuel alegou que não houve um sentido premeditado quando ele e Dalí pensaram essas cenas; segundo ele, as cenas nasceram como um rompante.

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FIGURA 5: Frames de Drugstore Cowboy, com o efeito surrealista para a alucinação de Bob Hughes.

FONTE: http://24.media.tumblr.com/tumblr_ m71i6dQYHK1r5deu6o1_400.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

Em Drugstore Cowboy, também é usado o recurso estilístico emprestado do Surrealismo. Bob Hughes, toxicômano interpretado por Matt Dillon, rouba farmácias na companhia de uma gangue para ter acesso a drogas sintéticas. Depois de se drogar com metadona, seu rosto aparece sob efeito de perda de consciência e submetido às alucinações. Para explorar as propriedades do meio, Gus Van Sant utiliza uma técnica similar àquela empregada por Brakhage: a superposição (colagem) de animais e objetos no céu, com o protagonista também impresso nele – recurso que aponta para fagulhas de sonho, a um devaneio induzido, tentando transmitir a mesma sensação da personagem para o ecrã.

Nesse sentido, em termos de experimentalismo, cinema e imagens, é natural que Jonas Mekas seja outra referência basilar para Van Sant. O cineasta e poeta lituano, radicado em Nova Iorque, e padrinho do Cinema de Vanguarda dos Estados Unidos, esteve ligado a Allen Ginsberg, aos cineastas beats, a Andy Warhol e continua servindo

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de inspiração para cineastas contemporâneos, tais quais Jim Jarmusch e Harmony Korine. Seus filmes captam a atmosfera da vida cotidiana livre da narrativa linear, de preceitos do drama teatral clássico e do compromisso em dar cabo moral a uma história. Seu estilo é chamado comumente de “filme diário” (diary film), por conter mais impressões e reflexões pessoais neles; raras vezes, ele opta por métodos esquemáticos. Combatente político do cinema underground, Mekas usa seu discurso crítico a favor de um cinema artesanal. Em 1997, na ocasião dos festejos em torno do centenário do cinema, ele foi convidado a participar de uma exposição sobre o cinema independente americano na Cinémathèque Française, em Paris. O evento ocorreu em maio daquele ano e resultou, além de palestras e entrevistas, em um manifesto, escrito por ele, denominado Manifesto Anti-100 anos do cinema. O material de áudio foi transcrito e impresso no livro Déclaration de Paris/Statements from Paris, edição bilíngue da Editions Paris Expérimental. Já naquele ano, Mekas retrucara contra aqueles que acreditavam na morte do cinema. Afirmara que o cinema de vanguarda era ignorado por Hollywood e pela indústria. Para ele, a efeméride evidenciava um racha entre o mainstream e os independentes. “Eu quero celebrar as formas pequenas de cinema, as formas líricas, o poema, a aquarela, o cartão postal, o estudo, o desenho, o cartão-postal, o arabesco, o triolet, a bagatelle e as minicanções em 8mm” (MEKAS, 2001, p. 11).

O legado de Jonas Mekas também foi importante do ponto de vista de um agregador cultural para os cineastas underground dos anos 1950, que dispunham de poucos recursos. Além de criar o Anthology Film Archives, sediado em Nova Iorque, instituição expoente no Mundo para o resguardo de filmes experimentais, ele editou o jornal Film Culture, publicação fundada em 1955 e responsável pela articulação da cena de escritores e diretores de filmes beatniks daquela década. Como uma espécie de Cahiers du Cinéma americano, o jornal “inicialmente se focava na vanguarda europeia, mas depois passou a documentar filmes underground americanos” (SARGEANT, 2008, p. 13). O Film Culture deu origem ainda ao Independent Film Award, festival de cinema independente americano, cuja primeira edição, em 1959, premiou Shadows, de John Cassavettes. A ligação íntima ao espírito beatnik fez com que Allen Ginsberg, ao ver o filme Guns of The Trees (1961), dirigido pelo próprio Mekas em parceria com Eduard de Laurot – uma obra essencialmente narrativa que mostra a vida de dois casais que compartilham a amizade e o receio diante da ameaça de uma bomba atômica –,

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descreveu que o longa tem uma narração poética que “funde noções beat de pacificismo, Existencialismo e Zen” (Ibidem, 2008, p. 112).

A importância de Mekas é, nesse sentido, a de ser, de modo aguerrido, a mola propulsora da cadeia econômica dos filmes experimentais americanos no Século 20. Em 1962, criou a Film-Makers’ Cooperative, “maior distribuidora de filmes de vanguarda nos Estados Unidos” (Ibidem, 2008, p. 113). Exibiu algumas produções do catálogo da distribuidora, incluindo obras de Stan Brakhage, Jack Smith, Ken Jacobs, entre outros, em teatros nova-iorquinos durante os anos 1960. As pequenas mostras dos Film Makers’ tornaram-se, anos depois, uma instituição, a The Film Makers’ Cinemateque. Eventualmente, as sessões eram canceladas por não terem licença de exibição e por mostrarem obras consideradas de conteúdo obsceno.

Além de escrever para o jornal Film Culture, Jonas Mekas colaborava para a coluna Movie Journal do Village Voice, revista especializada em cinema sediada em Nova Iorque, que ganhou circulação pelo território estadunidense no começo dos anos 1960. E, durante esse tempo, ele sempre esteve no convívio da comunidade boêmia de artistas, escritores, músicos e performers. Em 1968, lançou o filme Diaries, Notes & Sketches (também conhecido como Walden), que revela parte desse seu livre trânsito pela intelectualidade americana. Contém depoimentos e impressões, colhidos entre os anos de 1964 e 1968, de Carl Theodore Dreyer, Andy Warhol, Allen Ginsberg, Yoko Ono e John Lennon, músicos do The Velvet Undergroung, sem citar Brakhage e outros artistas de seu círculo de amizade. Na forma de um quasi-documentário, ele capta o cotidiano dessas pessoas em sua intimidade, visitando amigos, celebrando e em situações de foro privado. Esse aspecto de banalidade foi registrado pela câmera espontânea de Mekas, guiada por movimentos erráticos (estilo câmera na mão), efeitos de transição de um frame para outro, e técnicas de home video que prescindem da narrativa dramática convencional. Por essa estética descompromissada com a regra fílmica, algo que Van Sant vai absorver, sobretudo de forma indireta por meio da obra de Andy Warhol, é que irá tornar crucial a influência de Mekas também em termos estéticos.

Van Sant integra, ainda, outra faceta deslocada do cinema norte-americano, o gênero queer21. No contexto global hostil ao aparecimento de grupos em defesa da

21 O Cinema Queer está ligado aos “anos militantes (1960-1979)” de luta pela afirmação gay e contra a heteronormatividade (ROTH-BETTONI, 2007, p. 297), cuja mão puramente cinematográfica é essencialmente importante para a definição de uma identidade homossexual. “No Cinema Queer, a

Referências

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