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Gerry e a névoa de recomposição

4. Névoa, corpo e desaparição

4.1 Gerry e a névoa de recomposição

Resumo minimalista da iconografia vansantiana, Gerry não apenas funde todos os motifs poéticos (o road movie, a estrada mítica norte-americana e as nuvens), de forma simultânea, como os converte em abstração pura, elevada à categoria de apresentação principal. O filme remete a uma tradição de filmes ambientados no deserto, grupo que poderíamos incluir a Trilogia do Deserto – Andarilhos do deserto (El-haimoune, 1986), O colar perdido da pomba (Tawk al-Hamama al-Mafkoud,1992) e Baba Aziz – O príncipe que contemplou sua alma (Bab'Aziz: le prince qui contemplait son ame, 2005), de Nacer Khemir; e A cicatriz interior (La cicatrice intérieure, 1972), de Philippe Garrel. Paisagem por excelência, a região desértica, per si, fomenta teses e usos de narrativas, dentro ou fora do cinema, em torno de seu aspecto imanente e vazio: a fluidez espacial. No entanto, ao considerarmos o cinema de fluxo em que se inscreve Van Sant com a Trilogia da Morte, passaremos a defender o deserto como instância temporal. E a isso se deve a dois motivos. Primeiro, porque o padrão de indicialidade do lugar é quebrado deliberadamente pelo diretor. Ao optar por filmar Gerry em três locações distintas – o deserto de sal em Salta, na Argentina; nas regiões áridas do estado de Utah e o Vale da Morte, no Deserto de Mojave, na Califórnia – a pulverização da referencialidade do lugar aponta para uma desterritorialização da imagem: importa menos a identidade, e sim a face icônica de um deserto lançado à imaginação banal. A segunda razão é a de que o deserto não é somente um espaço por onde os atores Casey Affleck e Matt Damon (cujos nomes das personagens são desconhecidos, já que se chamam um ao outro pelo apelido Gerry) irão percorrer a pé, num percurso delirante; tal clichê é também um vetor para o preenchimento visual de nuvens e de um tempo dilatado, que manterá um diálogo intrínseco com a jornada angustiante dos dois jovens perdidos. A paisagem árida, por vezes, vai se imiscuir ao céu (quando, num rompante quase surrealista, eles caminham em um plano-sequência de sete minutos por um

deserto de sal, marcando a transição de um amanhecer totalmente escuro para um ambiente de luz). Portanto, podemos pensar, em Gerry, o deserto enquanto categoria puramente imagética.

Na imagem, assim como no deserto, o tempo e o espaço vêm configurar uma espécie de falta, de algo a ser completado pelo que o Movimento traz de essencial, de mundano e orgânico. Se [Maurice] Blanchot identifica uma ‘existência móvel’ para aqueles que habitam no deserto – o que não podemos deixar de associar à própria existência do cinematográfico –, é porque o ‘não- tempo’ e o ‘não-espaço’ que originam a região desértica opõem-se diretamente a qualquer tipo de estabilidade ou fixação das formas. (MENDONÇA, 2011, p.3)

É nesse sentido que a paisagem mítica norte-americana, antes plenamente figurativa nos filmes de Van Sant, vai deixar a questão representacional para trás e aderir à abstração de uma matéria leve. Por isso, discordamos de Luiz Carlos Oliveira Jr. (2010) em sua análise sobre Gerry, quando ele relaciona os passos trôpegos e cansados das personagens às rochas gigantes do deserto, atribuindo a qualidade de uma mise en scène sólida. “[...] Gerry faz da lentidão uma figura de estilo que permite a Gus Van Sant testar até a exaustão a hipótese de uma mineralidade do corpo e da imagem” (OLIVEIRA JR., 2010, p. 136). O crítico e pesquisador completa dizendo que se trata de uma “estética Stonehenge”, em virtude de a montagem ser “uma justaposição de grandes rochas de espaço-tempo indivisíveis” (Ibidem). Ora, é uma imprecisão dupla de tal fala situar o corpo na solidez, já que este é questionado em sua materialidade em vários momentos pela rarefação da imagem; outro aspecto é que o tempo do filme é um fluxo indeterminado (passado e presente se misturam na antidiegese de Gerry).

A rigor, Gerry projeta-se pela leveza. Desde o início do filme, há o convite ao invólucro sereno de um tempo suspenso. A primeira cena é de um travelling com os dois Gerry dentro do carro. Os rostos são iluminados pelo lusco-fusco, e o que vemos é o interior do automóvel mergulhar na penumbra aos poucos. Somos, assim, apresentados à passagem do tempo, ao som da trilha de Arvo Pärt, o “sublime do banal”. Depois, iremos nos dar conta de que o veículo será o elemento de retorno da imagem de afeto, quando somente um deles conseguirá sair do deserto e pegar carona na estrada de volta para casa. Mas, antes de se perderem, os Gerry são incautos. Correm em busca de, segundo eles, “uma coisa” (“a thing”); exploram a trilha de aventura; apostam corrida; tudo isso acompanhado por uma câmera que perscruta todos os movimentos. É interessante a maneira como o foco da câmera muda à medida que os

dois amigos se perdem e entram em colapso nervoso. O close-up e a desaparição passam, então, a ser elementos-chave.

FIGURA 17: Sobreposição das faces e a imagem-névoa em Gerry (2001), de Van Sant

FONTE: http://www.flickr.com/photos/darknessmoves/ 1994522542/sizes/o/in/photostream. Acesso em: 28/08/2013.

A desterritorialização do deserto repete-se nos planos. O que se vê é o vazio da paisagem que será replicado na face dos Gerry – da felicidade inicial da jornada, a expressão emudece. A partir de então, começa-se o processo: impera a desaparição do sujeito e um tempo vagaroso. Os dois rapazes, ao se descobrirem perdidos, receberão investimento afetivo da câmera, recolhidos na subitaneidade de um ambiente que passará a ser um labirinto temporal. Como assinala Fabris (2004), citando Baudrillard, a relação do dispositivo com o retrato aponta inevitavelmente para uma superfície virtual, em que a identidade do sujeito é inferior à “máscara que torna o indivíduo singular, que o transforma em ‘coisa entre coisas’” (FABRIS, 2004, p. 14). Ou seja, é nesse encontro efêmero entre câmera, pose e olhar que nasce o imponderável. Ao investigar detidamente a fisionomia dos Gerry, Van Sant amplia as possibilidades do simulacro, do artifício e da ficcionalização. O real é negado diante de um movimento de câmera que os segue, compondo um enquadramento estático. Nesse gesto, supervalorizam-se a imagem e a estrutura do “rosto morto” (Ibidem). Porém, diferente das abordagens anteriores de Van Sant essencialmente voyeurísticas, de um olhar sob o signo do consumo semelhante à Warhol, teremos o exemplo de um retrato que é ressignificado em Gerry. Na figura 17, vemos a reduplicação dos Gerry, um sobreposto ao outro. Cabisbaixos, cumprindo a sina da caminhada e já sem rumo, os jovens compõem, diante do corte singular, uma fusão de rostos que ora avançam ora recuam. O vislumbre de duas faces, que seguem contra o fluxo normal do filme (a convenção fílmica é de que os

objetos movimentam-se da esquerda para a direita) sinaliza um caminho inverso, a busca por uma identidade, algo parecido como o encontro de rostos de Bibi Andersson e Liv Ullmann, em Quando duas mulherem pecam (Persona, 1966), de Ingmar Bergman. Vemos a fratura facial, que se rompe no duplo. Sabemos, a priori, que os rapazes têm o mesmo “nome”, e, embora também tenhamos consciência de que se tratam de pessoas diferentes, elementos heterogêneos, tal imagem especular, a da imagem sobre a imagem, faz explicitar o código do cinema retomando a questão original da identidade (Ibidem, p. 68). O enquadramento facial dos Gerry, que dura três minutos e 18 segundos, abre o questionamento sobre uma ontologia da imagem e do ser: seria esta uma fabulação sobre uma única pessoa em crise de identidade? Se não, qual então a relação entre os dois jovens, além do anonimato que se põe? Seriam eles irmãos, companheiros? São passado ou presente? – perguntas que se sobressaem acerca não mais de uma diferença, de um rosto pré-iconizado e distinto, mas de uma semelhança, de uma identidade convergente. Nesta tomada, Van Sant parece superar o olhar da grade warholiano para questionar a repetição e a simbolização na arte. Aqui abre-se uma fenda para uma profunda busca do “eu”. A contenção dramática desta cena também aponta para o extracampo, que se insinua como uma pré-figuração da imagem-névoa. Todo gesto é minimalizado e sintetizado no vazio, no banal: Casey Affleck, o rosto em primeiro plano e aparentemente o mais tenso, coça o nariz duas vezes, vigia o horizonte; já Matt Damon, com a testa franzida, quase uma esfinge, age sob a abnegação da marcha, enxugando o rosto com a camisa. Os micromovimentos deixam como resíduo apenas o som de passos que raspam o chão; e, ao fundo, apenas uma atmosfera branca. Intuímos que se trata de uma paisagem do deserto de sal. No entanto, a tomada longa cria uma estranheza, uma sinestesia em torno da ideia de que eles não estão sozinhos; dá a sensação de que eles estão sob espreita. Assim, diante do close-up vansantiano ressignificado, dirimi-se a dúvida: estamos diante de rostos que flutuam no abismo.

A questão do abismo deflagra um parâmetro existencial e nos faz retomar a ideia do mito e da origem das coisas em Van Sant. Como Kilbourn (2010) observa, esse tipo de narrativa comunica-se com os épicos de Virgílio e Dante, em que “a memória como labirinto ou ‘cidade da morte’ (necrópole), através do qual o protagonista deve passar, como a katabasis de um clássico” é reprocessada, nestes tempos modernos, “pela irônica e metafórica jornada às profundezas do mundo por heróis novelísticos” (KILBOURN, 2010, p. 30). A ideia, portanto, de uma narratologia em torno da

katabasis, de uma “ida para baixo” cuja origem remonta ao Classicismo Grego e à literatura de heróis, é operatória em Gerry neste ato infrene de descida às zonas ínferas para se chegar ao conhecimento de outro mundo. Encontra ressonância com a versão secularizada e psicologizada de literatura moderna de “Beckett reescrevendo Dante, assim como Proust e Kafka expandindo o motif da ‘Peregrinação judaica’ em paisagens áridas” (Ibidem). O olhar vansantiano que se conjuga, aqui, no entanto, é quase de uma katabasis invertida: não de uma descida, mas de uma subida dolorosa, dialética. Não se trata de uma jornada clássica, nem de uma jornada mental, mas de uma jornada afetiva. Um percurso revelador e leve.

FIGURA 18: Corpo-abismo em Gerry (2002).

FONTE: http://cdn5.movieclips.com/miramax-films/

g/gerry-2002/0190718_30137_MC_Tx360.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

Nesse movimento pendular de aparição/desaparição do sujeito, Van Sant leva a katabasis ao extremo, questionando a existência do corpo, da paisagem e do tempo. Em Gerry, esse sentido metafísico de uma transcendência corpórea efetua-se não somente perante uma paisagem desértica branca que se transmuta em nuvens (matéria árida para superfície vaporosa), como vemos também, em lapsos fílmicos, microcenas de alguns segundos, a transfiguração dos jovens em sombras, almas que divagam em meio ao sublime, como podemos ver na figura 18. Em outros momentos, mais prolongados, Van Sant coloca as personagens em tamanho micro diante de um enquadramento acachapante da paisagem do deserto, emoldurado por montanhas gigantescas. Solto, etéreo, desvinculado de presilhas, o corpo-abismo não é a total desfiguração do sujeito, mas a sua assertiva material, o rastro de um limiar que está prestes a se submeter ao

encontro abissal que possa restituí-lo enquanto ser. É tanto uma miragem do gesto de Van Sant quanto um corpo afetivizado.

Em primeiro lugar, a matéria projetada na tela muda de condição: o pó colorido aqui é substituído pela própria luz. O que tem principalmente como consequência limitar o cromatismo a um jogo puro de branco e preto, imaterializar essa própria matéria, que se tornou toda impalpável, e igualmente deixá-la propagar-se por ela própria, por autoirradiação: a sombra é ‘natural’, o ‘sopro’ do homem como origem motriz da projeção não é mais necessária. Por outro lado, o próprio processo de surgimento da sombra é instantâneo, ocorre por inteiro de uma só vez sob o impulso luminoso (enquanto a projeção de pó era progressiva e fazia-se parte dela). (DUBOIS, 2012, p. 118)

Diante de um corpo minimalista, que se torna luz, a mise en scène de Gerry fulgura o tempo puro. O que antes era uma tentativa de registrar o tempo direto, aqui o fluxo cinético sintetiza a intenção de transformar tudo em devir. A imagem icônica do primeiro Gerry vira índice e passa a ser atualizada pelo referente, o outro Gerry. Uma imagem flou, deformada, mas que não resvala unicamente na mudança contínua da desaparição. No studium, a leitura perceptiva do código, como afirmava Barthes, obtém- se a fenda disso: a estrela de amarelo desenhada na camisa do outro Gerry (um gesto de Van Sant) funciona como o punctum, o detalhe que “aponta o espectador”, “a emanação real do passado” (Ibidem, p. 87). Na figura 16, esse elemento figurativo pode ser visto.

FIGURA 19: Frames e a imagem-cristal em Gerry (2002).

FONTE: http://31.media.tumblr.com/tumblr_ lny1vupRud1qzbykto1_r1_500.png. Acesso em: 28/08/2013.

Gerry é um cinema feito de nuvens, abstração pura, mas também um clichê. A simplicidade da obra vansantiana está nessa essência imagética, indeterminada, que, por outro lado, é potência. Kilpp (2009), citando Bergson, fala sobre esse atrito entre espaço e tempo que gera uma mudança real, um movimento dos virtuais (memória pura) em direção aos atuais (matéria). O tempo, inapreensível, escorre na duração que se encontra no meio, e não na formulação de instantes fictícios. Por isso, é na atualização de “algo que acontece, enquanto perdura uma virtualidade que não cessa de fluir” (KILPP, 2009, p. 2) que se apreende um tempo que é acontecimento puro. Gerry é um grande relicário de tempo, um âmbar com seu interior gasoso, matéria evanescente, por onde passam, pela sua superfície, os dois Gerry. A imagem-cristal fundamenta-se nisto: passado e presente se misturam, a ponto de ficarem confusos, mas o que permanece é sempre um presente virtualizado, uma superfície que não para de se transformar em virtude de uma troca incessante com sua subcamada. Na figura 19, vemos uma sequência de frames de Gerry, instantes fotográficos de um todo que não muda muito. Com exceção da cena inicial da chegada do carro, o restante são imagens de um deserto ora espacializável ora nuvem. No entanto, no terceiro frame, que mostra a cena final em que um dos Gerry abrevia a morte do outro, ao vê-lo agonizando, vemos a imagem-névoa cristalizada: o corpo ao fundo é o passado de um instante que ainda é presente neste Gerry que continua a marchar sozinho. Ao redor, impera um grande deserto de sal (uma névoa?), que funciona como moldura do tempo em devir, o tempo dos acontecimentos. Dentro do plano, estão o presente (o Gerry que se levanta e sai andando) colado ao seu passado, alterego já morto (o Gerry caído). Tal cena sacramenta um acontecimento duplo, a partida em um plano menor adornada pelo tempo macro, atmosfera vidente que depois será reveladora de uma saída que estava mais próxima do que eles pensavam. Após o assassinato, metros adiante, o Gerry que sobrevive avista a estrada que lhe devolverá o tempo ordinário, não mais a duração como um fluxo.

A simbiose desse tempo perscrutado ao extremo, cuja duração corresponde à extensão dos planos, e o registro suspenso das camadas abissais do outro afetivo, irá causar um efeito. As imagens em Gerry produzem um estado de hipnose, em que sonho e realidade organicamente tornam-se uma amálgama. A câmera engendra, então, um movimento que amplifica a tensão entre o corpo e a morte como seu duplo. A percepção confusa amplia a intensificação do processo de katabasis e lança a certeza de que, mesmo a partir de uma matéria-prima aparentemente morta (o deserto), é possível

extrair um substrato enriquecedor. A experiência da câmera aberta, por exemplo, corresponde a uma maneira de compor uma narratividade que, em outros momentos de vanguarda modernista, como a Pop-art, mostrou-se eficaz em apreender uma experiência do tempo. Bergson e Deleuze trouxeram, em seguida, o horizonte ético- filosófico para defender uma arte que se preocupasse com as vicissitudes temporais. No entanto, pensar a temporalidade em si apenas não basta; ela também se relaciona com a historicidade do pensamento. Para isso, a filosofia hegeliana projetou o indivíduo como um ser ontológico capaz de concatenar e rever sua posição no mundo, apropriando-se da sua ideia de sujeito. Para Hegel, o ser humano não deveria enxergar somente o que se passa em seu interior; é sua função, ou pelo menos deveria ser, buscar um "sentido espiritual" para atingir a autodeterminação no mundo.

Gerry seria uma conjunção metafórica de “deserto, desejo, desastre” (“désert, désir, désastre”), um “desejo pela origem” (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 134). A recomposição do corpo e do tempo esfacelados, o ato de recompor dois rostos em um e a busca por uma sondagem do vazio, preenchido por pequenas granadas perceptivas e espirituais - é tudo isso que move este aprofundamento no olhar de Van Sant:

Pautado por uma poética do esvaziamento, o filme de Van Sant encontra seu potencial dramático justamente no exarcebar da ausência, da falta não suprida. [...] A plenitude pelo vazio aí proposta, longe de corresponder-se a um projeto desintegrador, niilista ou meramente conceitual, aproxima-se muito mais de uma arguição filosófica, na maneira como ela pode ser nutrida pela juventude contemporânea (MENDONÇA, 2011, vol. 2, p. 175)