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Elefante e a névoa de desfragmentação

4. Névoa, corpo e desaparição

4.2 Elefante e a névoa de desfragmentação

Susan Sontag (2003), ao refletir sobre o ataque ao World Trade Center, em Nova Iorque, ressaltou a tema da banalização da catástrofe por Hollywood do ponto de vista da recepção das massas. O 11 de setembro, lembra ela, foi “classificado de ‘irreal’, ‘surreal’, ‘como um filme’, em muitos dos primeiros depoimentos das pessoas que escaparam das torres ou viram o desastre de perto” (SONTAG, 2003, p. 23). Dessa forma, a velocidade do fluxo de imagens48, pelos meios tecnológicos atuais, expõe uma

48 O olhar de Susan Sontag não era totalmente pessimista. Mesmo ao discorrer sobre a “morte da cinefilia”, a ensaísta norte-americana observava exemplos de filmes que nadavam na margem do fluxo incessante de imagens (Satantango, de Béla Tarr, é um deles), restabelecendo sua fé, ainda que numa negação do estatuto da própria arte do cinema e aproximação dialógica com a imagem parada e a fotografia. Ver http://www.thewhitereview.org/features/the-prosaic-sublime-of-bela-tarr.

problematização em torno do excesso e da maneira como a memória e a sensibilidade passam por uma crise de representação epistemológica.

O fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui nosso meio circundante, mas, quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma citação ou um provérbio (Ibidem)

Não vem ao caso, aqui, estabelecer diferenciações entre cinema e fotografia, dois campos que se entrecruzam mediante imagens, tampouco construir maniqueísmos entre suportes de mídia mais novos e mais antigos. Interessa, sim, apontar um tipo de cinema que se inscreve na “virada afetiva”, na margem de um contrafluxo estético. Um tipo de construção fílmica que advoga pela pausa. Uma fronteira entre o registro fotográfico e o encadeamento de imagens.

A cena inicial de Elefante rompe com essa expectativa prévia de filme-tragédia. A tomada, um timelapse de um minuto, dirige o olhar para um céu de nuvens esparsas, de cor azulada, mas numa tonalidade estranha. Não de um azul-anil ou azul-celeste, mas a cromaticidade de um ocaso, o crepúsculo de um dia ensolarado. O filme abre com o motif vansantiano e, ao fundo, o som ambiente de um diálogo entre jovens, além do sopro de uma ventania. A partir desse momento, o contrato que Van Sant tenta estabelecer é de um estado de suspensão das faculdades perceptivas. O céu escurece, e a próxima cena é um contra-plongée durante o dia, que foca uma alameda de árvores de outono em movimento. Em seguida, a câmera, em plongée, segue um carro pela rua de um subúrbio norte-americano. Três tomadas que instauram um sentido ontológico da névoa. A primeira, a nuvem como objeto de fruição do olhar; a segunda, a natureza que sofre desaparição pela técnica do dispositivo; e a terceira, o real visto segundo a nuvem.

FIGURA 20: Contra-plongée de nuvens escuras e das árvores em Elefante (2003).

FONTE: http://theartofmemory.blogspot.com.br/2007/09/ elephant-some-things-just-stick-in-your.html. Acesso em: 28/08/2013.

A terceira tomada inicial de Elefante, a do tipo plongée, é um tipo que descreve uma névoa dessublimada: poderia ser associada a um ângulo de nuvem baixa, que, personificada, observa de maneira suavemente superior os entes que estão lá embaixo, antecipando, pelo ato do olhar sublime, o horror que irá se desencadear adiante. Toda a ação se torna repetitiva, arrastada, exaurida, a partir da cena em que o jovem John é guiado por um pai bêbado ao volante - o ato será trôpego, desconcertado até o ato final da tragédia. A névoa assume, assim, papel de contraponto, que flui a potência dos personagens, ao mesmo tempo que os oprime, obscurece, apequena e castiga com sua forma que se modula, varia e desfaz, num papel semelhante ao tempo no sentido bergsoniano de uma duração transmutável. Ao que a câmera de Van Sant indica, ao intuir essas imprecisões, a única certeza é que tudo se move, e que o acaso não é uma pedra instransponível, mas uma condição. Nesse sentido, Holmes (2010), em seu Manifesto Afetivista, nos dá o escopo em prol de uma imagem puramente afetiva, cuja nova trilha do possível seria percorrer regiões e ambientes do afeto: "O mais importante, desde o ponto de vista afetivo, é o caráter de crítica a esta sociedade, sua insistência no piloto automático, sua governância cibernética" (HOLMES, 2010, p. 2).

O que virá, então, a seguir é uma narrativa de esvaziamento dramático, porém, diferentemente de Gerry, a ausência será pautada pela questão do fragmento como elemento a ser reconstruído em sua organicidade. Remontando, de forma ficcional, os pedaços factuais que compuseram o episódio do tiroteio na Escola de Columbine, em 20 de abril de 1999, Van Sant coleta cada uma das peças desse microcosmo para, então, esticá-los em seus momentos individuais até a instantaneidade fatal. É isto: Elefante comporta-se como uma grande “imagem-cristal”, formada por pequenos instantes que, em sua devolução atual, são restituídos à virtualização. Nesse projeto puramente conceitual, o filme resgata o percurso espaço-temporal das personagens a partir de uma revivência que é estendida e recontada no tempo comprimido do filme (uma hora e 18 minutos de duração, ao todo). É claro que os rostos que habitam o ecrã são outros, não são reais – não se trata de um documentário, a exemplo de Tiros em Columbine (Bowling for Columbine, 2002), de Michael Moore, que trata do mesmo tema – não há dúvidas de que estamos diante de uma ficção. Mas há um padrão de indicialidade com o episódio, intenção que se corrobora com a decisão de Van Sant em estabelecer uma mise en scène realista, com atores novatos/amadores (estudantes que interpretam personagens com os seus próprios nomes), locação de uma escola secundária

semelhante (em Portland, e não num estúdio) e a inspiração na estética de Alan Clarke. Embora a predominância das cores seja distinta – em Elefante, de Van Sant, incide um amarelo solar, pela fotografia de Harry Savides, enquanto Elefante, de Clarke, carrega mais em tons sombrios da Irlanda do Norte – o manejo de câmera é idêntico. Mediante longos planos-sequência, que sondam a personagem como uma co-presença, os jovens alunos são esquadrinhados em suas atividades rotineiras, num universo arquetípico de colégio estadunidense, com a prática de futebol americano, basquete, idas ao refeitório etc. A diferença é que, no filme de Clarke, os assassinatos em série são mostrados sem repetição e jogo de tempo com o passado; são apenas comprimidos no tempo fílmico de 18 minutos. Já em Elefante, de Van Sant, a mesma cena pode ser mostrada duas ou três vezes, por ângulos diferentes, por enquadramentos igualmente distintos e com gestuais que abrem fendas por serem milimetricamente desiguais de um take para outro similar. É nesse aspecto, a da pulverização repetitiva de um acontecimento, que a mise en scène vansantiana atinge um grau inquietante.

FIGURA 21: Frame do corredor, em um dos ângulos, de Elefante (2003).

FONTE: http://www.filmhafizasi.com/media/images/elephant.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

É evidente que, ao fatiar as cenas em função de o olhar variado e múltiplo da co- presença, Van Sant aponta para uma intenção consciente em desvelar uma estranheza que está no cotidiano, uma anormalidade já banalizada. Sua câmera se volta à sutileza daquilo que não é percebido no dia-a-dia, como, por exemplo, na figura 21, em que

filma, tripticamente, a cena em que três estudantes – John (de camisa amarela), o fotógrafo Elias e Michelle – prenunciam um encontro fatal, o último momento em que se vêem antes do início dos assassinatos. Tal situação, pensada por Van Sant sem um compromisso de fidedignidade, é emblemática do ponto de vista da constituição de uma memória, da fixação de algo que congela, em meio à enxurrada de informação, como assinalava Sontag (2003). Nesta cena, o jovem Elias pede para fotografar John, e, enquanto este faz uma pose estritamente superficial, a máscara de um jovem alegre que, ironicamente, simula um gesto engraçado (naquele mesmo dia, John chora ao chegar atrasado ao colégio, porque seu pai, bêbado, quase provoca um acidente de carro), Michelle, uma nerd vítima de bullying que não frequenta as aulas de basquete por ter vergonha em vestir shorts, corre em direção à biblioteca, passando pelos dois, sem cumprimentá-los nem olhá-los. A cena é mostrada três vezes, cada um sob o ângulo subjetivo, em montagem alternada com outros eventos, de tempo distinto. É interessante como, em virtude da presença de um fotógrafo dentro do quadro, a estranheza se aprofunda ainda mais, na medida em que a nota mental adjacente parece a de ser ‘olhe com mais calma’ ou ‘olhe de novo’. É como se Van Sant pedisse que o espectador fixasse algum detalhe que passou despercebido ali. Uma observação mais acurada sobre algo que está por trás das personagens, não mais nas suas máscaras, nos arquétipos que cada um assume, mas na identidade, nos medos e nos dramas geracionais que compartilham. Sutton (2010) resgata o conceito romântico de “uncanny”, formulado por Freud, e denominado originalmente no alemão de “Unheimlich”, em torno de algo que é estranhamente familiar e inquietante ao mesmo tempo:

Uncanny denomina aquilo que é não-familiar sobre aquilo que é mais

familiar e ou ‘doméstico’: a estranheza daquilo que é mais próximo para nós, o mais íntimo; o exotismo do cotidiano [...] O modelo em Freud do inquietante é o Duplo: em modernos (pós-românticos) termos literários, é por definição diferente do ‘original’ (SUTTON, 2010, p. 110)

O papel do fotógrafo Elias, nesta cena, revela a indexabilidade de uma ausência que Van Sant tenta demonstrar pela fragmentação do mesmo acontecimento. Sutton (2010), citando Derrida, fala do “perigo sempre presente de reduzir ou assimilar o outro como você (mesmo) – em oposição a uma relação mais ética e dialógica” (Ibidem, p. 112) ou do luto “pela alteridade do outro (a), pela estranheza, desconhecimento, não- representatividade: o aspecto do (agora ausente) outro que está sempre além ou fora da memória” (Ibidem).

A fragmentação das cenas em Elefante concorre para trazer à tona essas impossibilidades inquietantes que não encontram vazão na teia social contemporânea. No entanto, em um painel de investimento maior, a ação é contrária. Ao invés de simplesmente repartir os trajetos individuais, Van Sant os desfragmenta, os une, como uma grande colmeia de tempo, que se costura e se enreda múltipla, interpenetrante, confusa e complexa.

FIGURA 22: Vários espectros de tempo e co-presença em Elefante (2003).

FONTE: http://prestigiousblogsir.files.wordpress.com/2011/10/elephant.png. Acesso em: 28/08/2013.

A poética do corredor é o fio condutor dessa desfragmentação, ambiente escolar vasculhado em toda sua riqueza de texturas e formas. A câmera vagueia, quase planando, na sina de testemunhar os movimentos dos estudantes. Dependendo da incidência de luz natural, o percurso será mais visível, um tipo de predisposição que estará atrelada à proximidade do evento trágico: quanto mais o tempo avança, mais os ambientes ficam escuros e asfixiantes, atribuindo um sintoma psicologizante de suspense, uma função mental. Já no tratamento das personagens, o status de co-presença fílmico é imutável. Seja com Eric e Alex, os alunos que irão cometer a chacina, ou com Nathan (o jogador de futebol) e sua namorada Carrie, quanto com as patricinhas Britanny, Jordan e Nicole, o movimento de câmera é uniforme: gira ou repousa sobre seus rostos, capta suas instantaneidades fatais etc, como se eles não tivessem consciência de que estão sendo perscrutados de forma íntima. Talvez Eric e Alex recebam um investimento diferenciado, não em termos de natureza, mas em grau, por representarem o elemento mais misterioso do massacre. Além de terem a rotina sondada no colégio, os dois amigos são mostrados em atividades na casa de um deles, tocando música, jogando videogame e usando a internet. Apesar do mergulho no pormenor, na coleção de pequenos instantâneos da vida dos alunos, o olhar vansantiano não se desvincula da influência warholiana da máscara: o close-up tem um caráter ambíguo, além de imperar a construção arquetípica das personagens (a nerd, a cheerleader, o

jogador popular etc). Van Sant também deixa patente a marca de seu discurso pregresso sobre a juventude e as margens sociais, ao filmar uma cena em que Alex e Eric tomam banho juntos, retomando questões sobre heteronormatividade e, num plano mais polêmico, aventando uma possível afetividade entre os dois criminosos.

FIGURA 23: Travelling sobre a personagem Elias.

FONTE: http://farm2.static.flickr.com/1282/1324366616_45c815bb64_o.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

FIGURA 24: Corpo-abismo da personagem Alex, com a arma em punho.

FONTE: http://apaladewalsh.files.wordpress.com/2012/10/elephant -elefante-2003-de-gus-van-sant-6.jpg. Acesso em: 28/08/2013.

Tal câmera deambulante enseja a evocação daquilo que Fernão Pessoa Ramos (2012) chama de “o sujeito-da-câmera”, o surgimento virtual de uma posição espectatorial que se dá pela fruição de uma circunstância de tomada e de câmera. “Devemos realçar a presença da câmera em interação direta com o mundo que a cerca e

a maneira particular pelo qual ela se abre à sua presença” (RAMOS, 2012, p. 74). É nesse sentido que a câmera, embora haja a trucagem ficcional em mantê-la oculta, ganha também um estatuto corpóreo. O dispositivo torna-se tão matéria quanto os objetos, a paisagem e as personagens. Deste modo, ao realçar o objeto físico da câmera, o olhar vansantiano confunde-se com a presença efetiva das tomadas diretas de home videos, câmera digitais, de segurança, de celular e de internet. De certa maneira, emula- se, aqui, o comportamento em relação à presença banal da câmera no dia-a-dia, em que a reação à proximidade da máquina é semelhante à maneira como todos “reagem diante de pedras, troncos, cadeiras, cachorros ou outros seres humanos, para neles não trombar” (Ibidem). O que faz com que pensemos numa solenidade no contato com a câmera em Elefante, assumindo a farsa do invisível, é a maneira como a câmera é poupada do ato de transfixiamento, de ser rasgada ao meio ou “atropelada” no decurso dos movimentos. Portanto, ainda que no plano da personagem esta presença esteja implícita, para o espectador este contrato, muitas vezes, é reafirmado.

Nesse grande painel múltiplo de câmera e co-presença, Gus Van Sant joga o filme inteiro em um mise en abyme, um “labirinto de pontos de vista que são passíveis de serem um compósito e que são cristalizados, um por vez, abrindo caminho para o outro” (SUTTON, 2009, p. 114). Tempo e imagem passam a ser células interpretativas de uma ruptura da cronologia que funda uma nova unidade temporal. A tragédia de Elefante não é mais entendida de acordo com o seu referente, narrado por relatos fragmentados e isolados entre si. A separação entre a vivência espacializável e um continuum de interação e contato entre objetos é o que vai fazer Van Sant se aderir à imagem-tempo. A existência de cada drama individual é descentralizada para configurar uma não-subjetividade, em que “qualquer tragédia” se tornará “toda tragédia”. Tal natureza de imagem dialoga com o conceito de mônada do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz:

O universo da mônada é uma estrutura sem centros na qual há somente um

continuuum de dobras e ondulações. [...] Dividir o continuum é dividir uma

mônada em uma série de mônadas até um patamar invisível. Esta é a estrutura da multiplicidade na unidade, a aparência da mônada no concetto como o topo do cone, uma visão que compreende totalmente a relação entre o qualquer e o todo (Ibidem, p. 102)

A desaparição do espaço e dos objetos a favor do tempo, por outro lado, cria o efeito imagético que se prolonga em todos os filmes da Trilogia da Morte: o apontamento para a ausência e a fulguração da sombra. Em alguns instantes, essa

superfície fantasmagórica é um rastro de luz que se exacerba na tela, como uma superexposição da câmera aos raios solares que vêm da janela (figura 23). Não como um detalhe, mas como um fenômeno óptico técnico, resultado de uma falta de foco intencional, também vemos figuras esguias que desafiam a percepção, a exemplo da cena em que Alex atravessa um corredor já escuro e tomado de sangue, com uma metralhadora em punho, sendo já o prenúncio de uma quasi-morte (figura 24). O corpo de Alex, assim como o dos outros estudantes que irão sucumbir ao ataque, flutuavam em meio a uma imagem-névoa, que agora lhes é abismo. De corpo-cadáver, presos no intervalo entre a morte iminente e a condição de mortandade súbita de um corpo frágil e leve, todos os estudantes passam a se transmutar em sombras e luz, constituindo um corpo-abismo entregue à multiplicidade de tempos subjetivos e pontos de vista. Embora não de uma totalidade pura, a desfragmentação religa perdas e memórias esquecidas no baú do fluxo incessante de imagens.