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Corpo-cadáver e corpo-abismo

3. A Imagem-Névoa

3.1 O afeto fílmico

3.1.3 Corpo-cadáver e corpo-abismo

Ao se lançar em um cinema revestido de tempo, que habita entre o fluxo temporal reconfigurado e a névoa como ato técnico e afetivo de câmera, Gus Van Sant justapõe espaço e tempo, abertos à abstração suspensa do real a outro elemento, matéria humana, identitária e puramente imagética: o corpo. Falar em corporeidade na Trilogia da Morte vansantiana referenda o status do ser em relação ao sujeito, do universal diante do particular, evocando questões éticas e estéticas. Portanto, distante de ser uma negação, a questão do corpo não se coloca aqui como uma antítese entre tempo (ou mesmo da névoa) e matéria bruta, mas como a ideia de um corpo transcendental, o ultrapassamento de um corpo imanente.

Se o tempo desconexo, partido e reconfigurado pela memória faz frente à cronologia pós-moderna, o corpo vai ter um papel decisivo na Trilogia da Morte como uma unidade de materialização/desmaterialização da sensibilidade. O corpo é, portanto, tanto uma matéria quanto uma imagem, carne e desaparição (espírito). É a partir do reconhecimento da sua feição trágica e mítica que Van Sant vai se voltar ao belo como categoria. A imagem cristalizada de corpos físicos que avançam, escorrem, marcham, atritam-se - voam até como seres diáfanos, evocando a prefiguração da morte anunciada-, é enfatizada em um ambiente labiríntico. Courville (2009) é certeiro ao observar o movimento em Gerry, Elefante e Últimos Dias como uma "deambulação trágica" (“déambulation tragique”), pois, pelo encadeamento cinematográfico, os corpos físicos são acionados em um ritmo lento, atitudes errantes que guardam aproximação semântica às epopeias da Ilíada ou Eneida. Tal retorno ao classicismo grego reforça-se com o olhar detido, quase obsessivo, sobre o corpo, mais precisamente, a beleza do corpo, tão tematizada pela civilização clássica em esculturas.

Podemos dizer que o terceiro ato que o olhar vansantiano efetua, após a reconfiguração do espaço e depois o tempo, é de uma exegese dos corpos - ação que o inscreve em um cinema de ruptura particular, de pós-vanguarda de "gênero". Cada vez mais visível nos meios de massa, esse tipo de produção intelectual e poética, que surge no Pós-Guerra de 1945 como "new waves", dialoga com uma narratividade que prescinde do tempo cronológico, do passado estanque - muitas vezes apenas nostálgico - e do futuro idealizado para reconstruir novas iconografias em uma sociedade cuja memória passa a se constituir pelo aparato tecnológico: solta, livre, redesenhada e difusa. Nesse sentido, urge reconstituir, novamente, um olhar dialético.

O interesse de Gus Van Sant pela representação do corpo, isto é, não apenas atrelado à sua própria personificação mortificada, não é nova, pois remonta desde as primeiras obras de influência beatnik. Em termos de construção fílmica, os close-ups, excessivamente próximos, delineiam essa intenção em captar traços do rosto, cicatrizes e os olhos como uma máscara warholiana. A essência desse corpo à deriva é reatualizada na Trilogia da Morte: há a construção de uma corporeidade instável e excluída, em alguns estágios até nomadista; além de marcas corpóreas vinculadas às margens (sempre acionadas por jovens, traço comum em todas as fases do cinema vansantiano) pela sua imaturidade ou desacerto: são corpos limítrofes, perdidos, em choque constante com sua própria matéria e com as normas sociais.

FIGURA 15: Sequência em close-up de Elefante (2003), de Van Sant.

FONTE: http://4.bp.blogspot.com/_7INDccPViqw/TDIMAbWGzhI/AAAAAAAACOs/ rEKICIUrbQU/s640/elephant+(1).jpg. Acesso em 28/08/2013.

Na Trilogia da Morte, o corpo perde algumas marcas identitárias (deixa de pertencer a uma minoria social) para vislumbrar uma passagem para um corpo-cadáver, arquetípico, destituído da própria densidade óssea e de pele, e, então, se resvalar no abismo ontológico. Aqui, temos uma noção de corporeidade que buscará uma transcendência profunda na sua relação com o tempo. A poética vansantiana, que antes se baseava na linearidade da estrada (route), matéria pesada, adquire consistência leve e volátil: ela passa, de cena para cena, local a local, luz e escuro, pela "experiência de outro corpo físico" (COURVILLE, 2009, p. 129). Assim, basicamente, a Trilogia da Morte se efetua por extensos travellings: em Gerry, a câmera que deambula e quase toca o corpo dos dois rapazes que se perdem no deserto; em Elefante, a ação dos estudantes anterior ao massacre de Columbine é percorrida em microeventos, pequenas digressões (nuvens que fogem do plano) e close-ups; e em Últimos Dias, tomadas que

se rastejam acompanhando o torpor de um rockstar em crise, seja pelo jardim, por um rio ou, estáticas, enquanto o personagem compõe músicas no quarto. Podemos falar, aqui, de um cinema de monitoramento.

A adesão a uma antinarrativa, diante do caos contemporâneo, o "fragmentar o fragmentado", a que se refere Malpas (2003), vai, ao que parece, guiar Van Sant na sua Trilogia da Morte. A ruptura epistemológica vai se efetuar em duas linhas-mestras: 1) na temática banal, cotidiana, em que a figura do homem comum passa a ser o centro, marcando um distanciamento dos sociopatas e entes marginalizados do seu cinema mais precoce (mesmo em Últimos Dias, cuja inspiração livre se dá em Kurt Cobain, o foco é o degringolamento de um músico quase sem rosto, anônimo); 2) no encadeamento fílmico solto, com a adoção de longos planos-sequência, colada ao movimento das personagens, como se a lógica de um cinema de voyeurismo de George Albert Smith ou Émile Reynaud se invertesse, colocando o espectador bisbilhoteiro dentro da própria cena45. Essa postura antimoderna, por assim dizer, contrasta com a lógica da indústria do cinema. Não à toa, a grande influência de Van Sant, nesse período, como dissemos, será a estética orgânica e contemplativa do húngaro Bela Tárr. Estamos lidando, então, com um cineasta que retoma as bases de um cinema essencialmente romântico, analisam assim Bouquet e Lalanne (2009): "Gus Van Sant defende a volta ao Rosebud antes de Griffith, a um tempo em que não havia o vocabulário industrial de corte e trituração" (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 128). Ao lançar mão de uma estética contemporânea, Gus Van Sant parece superar a nostalgia de que faz uso, apontando para um "new cinema" visionário, cujo fio condutor havia se perdido após a chegada da indústria cinematográfica moderna. Um "novo vanguardismo", ou melhor, um velho vanguardismo ressignificado, que tenta reaver o laço cortado da experiência humana e da memória estilhaçados.

O que se vai perceber adiante, principalmente com a Trilogia da Morte de Van Sant, é que sua obra permanece a reverenciar uma nostalgia do belo. A diferença é que ele passa a fazer jus, mais precisamente, a uma nostalgia estética, ou, para dizer melhor, a "nostalgias estéticas", alinhando-se em torno da ideia de uma estética (ainda) não definida. Se antes as apropriações se davam no patamar de uma cultura mítica western norte-americana de Steinbeck, da fotografia de William Eggleston, a iconografia da Pop-art e de uma identidade gay, os filmes da fase minimalista vansantiana dialogam

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com o pensamento de um "novo esteticismo". Como Malpas (2003) observou, essa "tendência regressiva" de pós-esteticismo, que experienciamos nas primeiras décadas do Século 21, rechaça o legado dos Estudos Culturais e se volta à especificidade do fenômeno estético em si. O retorno ao belo é contemporizado: Van Sant mantém a quebra da normatividade herdada da modernidade, mas separa o fenômeno estético da realidade diante de um outro, independente de aportes ideológicos, políticos e históricos. Essa postura vem de encontro ao ceticismo em relação a teorias anteriores sobre o contemporâneo. Com a fragmentação da cultura contemporânea, as grandes narrativas são substituídas pelas metanarrativas, pois as primeiras já não dão conta da complexa teia de eventos e singularidades desta nova fase capitalista, fluida, presenteísta e nostálgica:

De acordo com (Jean-Luc) Nancy, nosso tempo é o tempo em que a (grande narrativa) é suspensa: guerra total, genocídios, a rivalidade de poder nuclear, tecnologia implacável, fome e absoluta miséria, todos esses são, no mínimo, sinais de autodestruição da humanidade, de auto-aniquilação da história, sem possibilidade alguma de dialética negativa. (...) Para Nancy, a pluralidade contemporânea apresenta a realidade como um espaço da radical falta de sentido, ou, antes, um espaço em que a ausência se tornou o próprio senso (MALPAS, 2003, p. 90)

Assim, a Trilogia da Morte marca a posição do corpo e sua relação com o espaço, a paisagem e suas origens. Trata-se de um devir ontológico, um "vir-a-ser já sendo" de uma materialidade que se presume finita e tensa, mas que, por meio do movimento, projeta a si própria contra a fatalidade do fim. O drama físico, ou a via- crúcis do ser, é apresentado de maneira diferente em cada filme, porém sob mesmo tratamento estético: em Gerry, no (des)encontro dantesco de dois adolescentes homônimos, dois Gerry que se perdem no deserto; a reconstituição multiespecular e labiríntica do massacre de Columbine, de 1999, em Elefante; e, em Últimos Dias, que evidencia o colapso do corpo de Blake, astro de rock livremente inspirado no músico grunge Kurt Cobain, dias enclausurado com quatro amigos em uma mansão até cometer suicídio. Nos três exemplos, vemos uma matéria orgânica, viva, sensual, em conflito com o destino da morte, trágica na maioria das vezes.

FIGURA 16: Still com a técnica do travelling em Gerry (2002)

FONTE: http://www.filmologia.com.br/wp-content/uploads/2011/11/Gerry.jpg. Acesso em 28/08/2013.

O registro da agonia lenta, que para alguns deles só se consome no ato final, como no caso de Elefante, perpassa por um ritmo de duração bruta, com planos que quase se tornam como uma extensão corpórea. O tempo, assim como o sol em Gerry, que queima o solo e os oprime fazendo com que olhem para baixo, converte-se pelas lentes de Van Sant em uma abstração tênue que tenta acompanhar o ritmo da caminhada, da batida do coração e outros elementos táteis e puramente carnais. Esse status suspenso de "monitoramento", operado por meio de travellings e steadycam, repete-se nos outros dois filmes: o que vemos é o tempo corporificado. Por sua vez, as personagens deambulam, cumprem sua sina, correm, ou se livram, constituindo movimentos de um corpo-trivial, um corpo-cadáver. Segundo Moëllic (2009), ao analisar Gerry, essa massa rítmica se torna uma "coreografia dos corpos no deserto":

Se Gus Van Sant queria captar a duração bruta, a tensão de um lado para outro, sem maquiagem, ele conseguiu capturar, em seus planos cheios de afeto sensual, o ritmo exato de uma amizade que se consome sob o sol. Capta com precisão a complexidade e a intimidade do ritmo da fala (a discussão em frente à fogueira, o diálogo surreal da cena sobre a rocha...), bem como a de seus passos ao final da jornada, até onde a fusão em que este Gerry mortal é absorvido em um outro. (MOËLLIC, 2009, p. 124)

Nesse momento, em que corpo e tempo parecem agir um sobre outro, marcando um novo lugar do cinema, a narratividade parte para outro patamar. Numa sociedade transformada pela tecnologia e pelo desdobramento de múltiplas formas de apreensão do passado em formato físico, do celuloide e agora no digital, a constituição de uma memória prostética ganha relevância em um cinema que cumpre o papel de (re)operar

historicidades coletivas e pessoais. A “imagem-tempo” proporciona um processo de reorganização de lembranças, afetos, sonhos e imaginário em uma "memória palimpséstica, conceito sobre uma reescritura da memória, natural ou artificial, que é apagada" e tem a chance de ser renovada (KILBOURN, 2010, p. 36).

Vale relembrar Pasquet (2007), que diz que quem assiste a Gerry assume "um caráter de participação na experiência, a exigência de uma presença corpórea" (PASQUET, 2007, p. 117) em virtude da câmera que segue a deambulação das personagens. Nesse sentido, não dá para não pensar que esse estágio da obra vansantiana estabeleça algum tipo de adesão ao conceito de imagem comodificada de Jameson, ou seja, a uma crítica ao consumo, à euforia tecnológica e à cultura expandida do mercado. Em certa medida, ao se contrapor à ideia do corpo passivo na pós- modernidade, o corpo na Trilogia da Morte busca um idealismo heroico na tentativa de romper qualquer perspectiva fatalista. Mas há de se convir que a imagem em Van Sant, ainda seja a personificação do corpo explorado em suas possibilidades de afeto, desejo e sensibilidade, ainda será, acima de tudo, uma expressão do tempo.

Ao mesmo tempo em que esse corpo ativo, evanescente e extracorpóreo se reatualiza perante a imagem, ele mantém-se preso à densidade da morte, do sublime e da materialidade. Quando, por exemplo, um dos personagens Gerry, encarnado por Casey Afleck, morre, o outro, interpretado por Matt Damon, alcança a estrada e volta ao curso normal da vida; ou então quando Blake (na pele do ator Michael Pitt), ao morrer, vai para o céu ao invés do inferno moralista - estas são inferências dialéticas de que o conflito e o seu sintoma de desespero são parte constituinte da existência humana. Por outro lado, a preocupação de Van Sant parece ser de ordem metafísica, e isso não só em relação ao corpo físico, mas a uma gramática do cinema desligada do automatismo, a favor de uma espontaneidade e de uma sensibilidade desatreladas dos modelos teatrais tradicionais.

Assim como o tempo passa por uma transformação profunda nos modelos de produção de memória e no cinema, a mise en scène do corpo surge como potencial reflexo da mudança do olhar. Não somente essa alteração de paradigma se efetua nele como a partir dele se enreda uma jornada particular por camadas de uma nova historicidade. Essa experiência do devir-morte dá-se por marcas cinematográficas: a fadiga dos Gerry que marcham resolutos enfrentando tempestades de vento em uma narrativa arrastada; a música repetitiva de Alex, que toca Für Elise, de Beethoven, ao

piano, no exato instante anterior à chacina em Elefante; e a mutabilidade progressiva do corpo de Blake em Últimos Dias. No caso de Gerry, temos um embate corpo-a-corpo do duplo por excelência, e câmera evidencia isso pela tomada quase justaposta dos rostos em close-ups. Como lembra Kilbourn (2010), essa relação de memória versus a morte já foi objeto de valor da literatura e da narrativa clássica. Aludindo às epopeias gregas de Homero, ou, pelos desdobramentos mais recentes, às narrativas modernistas de Franz Kafka diante dos intricados porões sociais, esses três filmes parecem empreender um esforço de katabasis, uma descida às zonas mais profundas para se obter o conhecimento de um outro mundo. "Para Tarkovsky, a psico-katabasis ("jornada mental") é a instância visual da memória como epistemologia: não há o "si mesmo" fora da memória" (KILBOURN, 2010, p. 73).

A morte na trilogia vansantiana é, então, estendida, destrinchada e decodificada como redenção do tempo, metáfora para salvação da condição dos corpos ali colocados de forma casual, mas peremptoriamente condenados ao fim. O corpo mortificado ganha seu ponto de deriva, seu alterego de um corpo-abismo, que cumpre uma caminhada pelo vale de negatividades em busca da sua própria imanência. Assim, corpo e tempo, matéria e memória, natural e artificial permutam-se entre si em um mise en abyme, expondo um "labirinto de pontos de vista que são recompostos e cada um deles é cristalizado antes de serem transformado no outro" (SUTTON, 2009, p. 114). Essa posição ambígua, sem julgamento moral do olhar é percebida em Elefante com as diferentes versões para cada história dos estudantes, tanto a partir da ótica daqueles que foram assassinados quanto dos jovens metralhadores. Assim, podemos dizer que a imagem-tempo chega ao auge do regime cristalino, em que afetos, sonhos e lembranças se fragmentam para depois formar um novo outro, coalescente e indiscernível.

Courville (2007) compõe uma interessante metáfora para entender a ontologia na Trilogia da Morte. Partindo da perspectiva da dança e da pantomina da obra Sur le théâtre de marionnettes, de Heinrich von Kleist, observa-se que a emergência dos corpos no contemporâneo é um produto fenomenológico da gravidade natural e da dualidade entre a "marionete", aqui sob a epistemologia de um corpo afetado, e a matéria humana. O corpo é um ser preso ao devir-colapso, enquanto que o fantoche mimético seria uma articulação de superioridade estética que resiste ao centro de gravidade de movimento: ele é célere, leve, fluido e idiossincrático. O cinema, em sua finalidade ética, filosófica, poética, seria esse fantoche: propõe uma interação dos

corpos com o espaço, o tempo, o outro como morte e matéria opaca, produzindo uma experiência e uma intimidade imediata:

A morte não ocorre fora da tela, ela se materializa, mesmo antes do desastre criminoso. Tem lugar na narrativa por uma encenação que situa o corpo entre a inexistência e a realidade, a transformação da vertigem entre o ser e o não- ser; entre o peso do corpo, que de repente se tornou inércia, já condenado antes a morrer na imobilidade mortal, e a graça arejada dos corpos boiando, a imaterialidade do corpo - ambas impulsionadas por uma centelha de vida e o "déjà morts", etéreos como um espectro pré-póstumo. (COURVILLE, 2009, p. 135)

É interessante notar que o olhar sobre o tempo e a ontologia cinematográfica empreendidos por Van Sant, através do corpo, colocam-se como um questionamento da representação positivista, embasada no cinema do enigma e da ação; e também uma crítica, nos campos de análise, a conceitos estruturalistas, cognitivistas e antiesteticistas. É quase um retorno à metafísica romântica, à dialética ideal hegeliana, mas, desta vez, atrelada a uma profunda questão da imagem enquanto nova peça para apreensão do conhecimento. Não se instaura, de forma alguma, aliás, como vemos desde o começo, uma concepção totalmente nova, ainda que tomasse emprestado algum conceito teórico preliminar como ponto de partida. Também não é novo o interesse dele por essa quebra, por essa fuga da teatralidade de Dickens. Seu cinema mais rudimentar é marcado essencialmente por derivas. Pasquet (2009), ao analisar a montagem labiríntica de Gerry, que por vezes escapa aos corpos dos personagens, instaurando um modo de figuração rítmica subjetiva e de espaços irreais, lembra que "essas imagens mentais convocam as visões psicodélicas de Drugstore Cowboy, as visões narcolépticas de My Own Private Idaho e aquelas (visões) que o cineasta atribui, em Psicose, às duas vítimas de Norman Bates" (p. 116).

A vertigem da razão adquire, com a Trilogia da Morte, seu estágio mais puro, que pode ser interpretada como uma tentativa de se chegar ao mais próximo da abstração ou de um contato mais primitivo com o humano. Primeiro, Van Sant parece instituir um imenso cristal de tempo deleuziano, aquele em que a imagem atual se condensa, se contrai e se virtualiza em uma única imagem, minimalista, indiscernível e coalescente. É assim, em Gerry, o deserto funcionando como uma metáfora perfeita da sua radicalidade formal ao querer comunicar algo sem frestas ou enfeites, além de ser um território dialético da contemporaneidade. A paisagem árida, explorada em sua virtuosidade do prazer estético pela fotografia de Harry Savides, lembra a atmosfera já usada por Bernardo Bertolucci, em O Céu Que Nos Protege, e Nacer Khemir, em

Andarilhos do Deserto. Mas, na imagem contraída vansantiana, o deserto aponta um avanço sobre o significado de um retorno à natureza perdida para adquirir o status de uma imagem dupla de instâncias temporais: a memória de um Oeste saqueado que perdeu seu verde para os colonos, em contraste com a presença de dois homens contemporâneos, citadinos, alheios à historicidade daquele lugar - dois elementos díspares que se opõem num encontro em que o presente atualiza o passado e um transforma o outro.

O regime cristalino em que tudo é suspenso em um tipo de alegoria dialética é aplicado novamente em Elefante, no qual a escola secundária se torna um imenso cristal que se abre em pequenos feixes de tempo e espaço: o corredor, as salas, os corpos, lastros de materialidade em série que se repetem ao longo dos planos virtualizados. Neste caso, temos uma situação em que a temporalidade é experienciada em seu estado mais puro, por meio de uma coleta direta do tempo, que leva a uma abstração completa do evento em si, o referente real do massacre da Escola de Columbine em 1999. Mas há um traço que rompe com essa derivação pura, a partir do momento em que Van Sant decide restituir os atores e os figurinos em seu aspecto de realidade, ao permitir que