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A temporalidade do afeto e a Trilogia da Morte

3. A Imagem-Névoa

3.1 O afeto fílmico

3.1.1 A temporalidade do afeto e a Trilogia da Morte

O estado de nuvens vansantiano é uma chave interpretativa que abre para o campo da percepção. Torna-se um interstício, uma membrana, entre o corpo do filme e o corpo do espectador, constituindo-se matéria. Mas também pode ser, como vimos acima, um espírito, um rastro de uma ausência, uma lembrança. Um afeto do presente e do passado. Algo que transcorre no processo fílmico, no seu interior, pelos espaços que percorre dentro do plano, porém que se resvala, de igual maneira, por fios de tempo, pela memória, pela ação externa. Portanto, trata-se de um fenômeno da percepção e das ideias.

Com uma espinha narrativa fraturada, pontuada por fluxos labirínticos, tempos mortos e imagens que pressupõem uma duplicidade temporal, Gus Van Sant inaugura, no conjunto da sua Trilogia da Morte, uma experimentação que se assemelha à defesa deleuziana da “imagem-tempo” aplicada à potência de um cinema totalmente desvinculado do esquema sensório-motor. Tal rompimento com a narratologia e a teatralidade clássica de Charles Dickens e William Shakespeare, historicamente, contudo, foi negociado, e muitas vezes, até reprocessado como influência estética40. Ao optar por “situações puramente óticas e sonoras” e por um “cinema vidente, o qual permite a exploração espaço-tempo pelo espectador, representando o tempo diretamente” (LIMA et ALVARENGA, 2012, p. 32), o cinema vansantiano desta fase adquire um escopo ontológico da imagem.

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Em 2004, na ocasião do lançamento do filme Elefante, Van Sant concedeu uma entrevista ao jornal francês Le Monde, reproduzida no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, em que comenta a sua relação com a teatralidade convencional: “Gerry (2002) e Elefante são uma tentativa de subverter a utilização habitual das técnicas cinematográficas. Desde que surgiu, o cinema emprestou sua forma narrativa do teatro. Meu desejo é me desligar do modelo teatral com a câmera”. Em outro momento, completa: “Meus filmes até Gerry são muito tradicionais. Talvez se possa encontrar traços de minha pesquisa atual em

Mala Noche [sua estreia na direção, em 1985; nota da reportagem]. Garotos de programa (1991) era mais

audacioso na forma, mas se inspirava em Shakespeare, o que vem de encontro ao que eu dizia em relação ao teatro. Já Psicose (1998) foi menos tradicional”. Ver COLOMBANI, Florence. “Meu filme é uma subversão das regras, diz Gus Van Sant”. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. E4, 2 de abril de 2004.

Nesse aspecto, Gilles Deleuze formula os conceitos de "imagem-movimento" e "imagem-tempo" a partir da ideia da "duração" bergsoniana41 (tempo como intervalo) para se constituir como um antípoda do tempo cronológico, esquemático e monolítico das sociedades modernas. As duas células de imagem, ambas concebidas como unidades originais do cinema, teriam comportamentos distintos: a primeira se ocupa da ação e reação, é "matéria fluida formada de imagens em movimento separadas por um hiato ou devir universal" (VASCONCELLOS, 2006, p. 84); já a segunda é a forma pura e transcendental do tempo, um regime de apresentação temporal direta da experiência, mas contaminada por momentos do falso. Os conceitos de imagem atual e imagem virtual comportam-se como enfrentamento ao esquema sensório-motor do mundo físico. Ainda que não verbalize o interesse em criar uma “imagem-tempo”, Gus Van Sant normatiza um discurso em torno do registro do “presente”, de uma “autenticidade de um mundo em estado bruto” contra o “artifício que conduz à uniformização” e de uma vontade artística em apreender “as coisas como são, e não por sua representação” (VAN SANT apud COLOMBANI, 2004, p. E4). No entanto, é muito clara também sua posição a favor de um cinema do pensamento, como quando, ao escrever sobre o cinema de Béla Tarr para o MoMA, cita a resposta de Hitchcock na célebre entrevista a François Truffaut que diz “que a mudança estilística de um filme pode acontecer por meio de um personagem, talvez, mas aqui está uma mudança principal por meio de ideias” (VAN SANT apud JONES, 2008, p. 1).

Ora, a defesa por um cinema de ideias é, em essência, aquilo a que Deleuze (2005) aludia por um cinema moderno não preocupado com a narrativa e com o todo, mas, sim, em produzir reflexões, gerar pensamentos, com base em uma dada realidade. É nesse sentido que vale dizer que subsiste, aqui, uma tentativa de cinema por uma “imagem mental”, a partir de um esforço em traduzir percepções, afetos e ações em um

41 Deleuze (1983) atribui um sentido filosófico ao cinema a partir do resgate dos postulados de Henri Bergson (1859-1941) sobre matéria e tempo. Para Bergson, o mundo material era feito de imagens; o corpo era tanto matéria quanto imagem. Isso pressupõe que não haveria mais categorias de grau no horizonte da percepção: a ação do corpo reflete sobre os objetos e tem sua imagem devolvida. Essa relação, portanto, não seria mais opaca, e sim de afetação mútua. A partir disso, Bergson entende que percepção e espírito estarão diretamente vinculados um ao outro. O conceito de “duração” bergsoniano consiste, assim, numa junção intercambiante e ativa entre presente e passado, troca incessante entre corpo enquanto imagem (e ao mesmo tempo matéria) e a lembrança, resultando em um devir-imagem, um futuro. “O movimento reporta os objetos, entre os quais se estabelece, ao todo cambiante que ele exprime, e vice-versa. Pelo movimento, o todo se divide nos objetos, e os objetos se reúnem no todo: e, justamente, entre os dois, ‘tudo’ muda. Podemos considerar os objetos ou partes de um conjunto como cortes imóveis; mas o movimento se estabelece entre esses cortes e reporta os objetos ou partes a duração de um todo que muda, ele exprime portanto a mudança do todo com relação aos objetos e é, ele mesmo, um corte móvel da duração” (DELEUZE, 1983, p. 17).

grande raciocínio. Hitchcock e seu cinema de suspense com subcamadas psicológicas é a referência mater desse tipo de alegorização que torna a relação explícita com o objeto.

[Trata-se de] uma imagem que toma como objeto de pensamento objetos que têm uma existência própria fora do pensamento, como os objetos da percepção têm uma existência fora da percepção. É uma imagem que toma como objeto relações, atos simbólicos, sentimentos intelectuais [...] Imagem mental é imagem-relação, cadeia de relações, mais do que trama de ações (MACHADO, 2009, p. 268)

É preciso esclarecer que o cinema de função mental é descrito por Deleuze (1983) como um fenômeno atrelado à “imagem-movimento”, e não à “imagem-tempo”. Seria uma condição relacionada à passagem de um objeto para outro. Uma transição que transparece tanto um movimento físico, ou uma translação; como também uma mudança interior do objeto, exprimindo o conceito de duração de Bergson. A função mental se estabelece nesse jogo em que “as ações são tomadas num tecido de relações, que as eleva ao estado mental” (Ibidem, p. 269). De tal maneira, as faculdades qualitativas do cinema são ampliadas, como um corte móvel sobre a coisa e o tempo, ambos de forma complementares. O uso da mise en scène e dos movimentos de câmera são decisivos nessa prerrogativa. Exemplo de uma “situação de vidência” (Ibidem) está no filme A sombra de uma dúvida (Shadow of a doubt, 1942). Na cena em que a jovem Charlie (Teresa Wright) vai à biblioteca à noite e é captada por uma câmera plongée que aos poucos se afasta, o movimento de câmera é revelador de um momento dramático em que a garota descobre que seu tio é um assassino. Subjetivo, o enquadramento próximo que passa por uma mudança qualitativa de profundidade de campo (vemos uma biblioteca vazia e penumbrosa) indica uma alteração de estado, um descolamento da realidade, uma epifania que a personagem acaba de viver – e algo com o qual o espectador lida de maneira tão íntima, como se fosse, assim como o diretor, uma figura onisciente. Hitchcock situa-se no cinema de ação, mas figura no limiar de ruptura do próprio cinema mais convencional.

De maneira semelhante, Gus Van Sant opera, na Trilogia da Morte, micromovimentos de ação, dimensão de atos particulares que são fecundos em microcosmos do real (como as atividades prosaicas dos estudantes no colégio em Elefante, ou os gestos mínimos e até silenciosos do protagonista Blake, em Últimos Dias). Não deixa de ser algo do ponto de vista deleuziano de uma “imagem- movimento”: a de um cotidiano elementar decupado por uma câmera que se move, produzindo sentidos, sentimentos e raciocínios. Mas também, em uma dimensão macro,

a Trilogia comporta-se como algo semelhante com uma grande névoa, um “cristal de tempo”, um encontro entre o passado e presente que corre para o infinito.

Assim, em sua busca por um cinema presentificado na Trilogia da Morte, Van Sant recai em uma questão de tempo puro. Deliberadamente ou não, ele, como artista, irá permitir fendas entreabertas nesse presente aparentemente inofensivo. Em termos práticos, evocará não apenas símbolos (a nuvem, o corpo, o deserto, a estrada), mas também movimentos – o corte móvel – mas com uma diferença: a de um movimento sobre outro movimento, este último operado pelas personagens. Nesse sentido, podemos dizer que seus filmes desta fase passam a ser movimento genuíno, libertação além da abstração. O movimento sobre o movimento resultará em um corte estático, mise en scène que conjuga manejo de câmera colado ao rosto ou ao corpo das personagens e um olhar que não dá costas ao sujeito, nem toma o seu lugar, mas que o segue. É diferente, por exemplo, dos irmãos Jean-Luc e Pierre Dardenne, que costumam filmar em ângulo posicionado centímetros atrás da nuca das personagens, na mesma posição; em Van Sant, tal enquadramento, em geral, aproxima-se lateralmente, às vezes girando em torno do eixo do sujeito em foco. O território, desta forma, torna-se compartilhado, os dois (o dispositivo e os seres que habitam a imagem) juntos se coabitam, exibindo gestos semelhantes. Duplicado e anulado, em uma relação que justapõe espectador e personagens pela câmera intersticial e afetiva vansantiana, o movimento adquire uma instância temporal por meio das imagens, reconstruindo um passo-a-passo de instantes quaisquer que remetem à duração bergsoniana. Temos, então, em Van Sant, dois estatutos de imagem, que coexistem e se complementam: a imagem-névoa e a imagem dupla de movimento. Nesse movimento específico, o do movimento duplo, Van Sant reapropria-se de um diálogo pastichizante com Elefante, de Alan Clarke, um média- metragem de 39 minutos que reconstitui os assassinatos na Irlanda do Norte e a época dos conflitos étnicos e nacionalistas em Belfast, prolongado por décadas, desde os anos 1960, como uma guerra civil e cotidiana. A mesma técnica usada por Clarke estará refletida em Gerry, Últimos Dias e, especialmente, no homônimo Elefante, de Van Sant: o uso de steadycam, ou seja, de uma câmera presa ao operador da máquina, com amortecedores que impedem a trepidação da imagem, e que percorre detidamente o transcurso espaço-temporal da personagem. E não só isso, há também o intercruzamento de Clarke e Van Sant no horizonte estético, por meio de uma abordagem minimalista,

marcada pela contenção e rarefação dramática, potencializada exclusivamente no gesto da caminhada e na sequência em que os crimes são cometidos.

O movimento, portanto, também é tempo, e por si só, heterogêneo. Partindo da ideia de que qualquer gesto da câmera e do personagem são únicos e singulares, acompanhamos com o olhar muito próximo, muitas vezes em close-up; ações banais, como, por exemplo, os dois Gerrys apostando corrida na trilha pelo deserto. Ao extrair da imagem o choque entre dois jovens perdidos na América, Gus opera um corte móvel, afetivo, sensível, inscrito em um tempo aberto. Em Elefante, a temporalidade ganha status profundamente corpóreo, deixa de ser um valor fixo, cronologia estanque, para se permeada por contatos, aproximações, gestos, olhares, rostos e rastros. Antes da tragédia, os alunos comunicam suas afecções, em um tempo que se desfragmenta ao ser fragmentado não mais pelo corte imóvel da câmera ou do tempo objetivo, mas em função da relação que "um se faz através do outro" (DELEUZE, 1983, p. 31). Como veremos depois, o corpo também será tempo, quando ele se tornar rarefeito.

A percepção do tempo na Trilogia da Morte, partindo dessa premissa, amplia-se. Ela não se restringe a uma manipulação pelo dispositivo. A reconfiguração espaço- temporal também se efetua dentro dos planos, não apenas no encadeamento dos filmes, mas em sua ação interna. Por isso, emerge a presença corpórea da névoa: ela se faz presente a todo instante. Está na mise en scène, em forma figurativa, como nas nuvens densas que parecem perseguir fantasmagoricamente os Gerry; e na montagem no plano das ideias, ao intercalar cenas de nuvens após algum ato que rompe uma aparente normalidade, como o suicídio de Blake em Últimos Dias. A névoa surge ainda como uma condição do olhar e do movimento das personagens, adquirindo uma pele diáfana, invisível, mas de densidade pesada, tornando a ação dos personagens lenta, ritmada, abnegada.

A nuvem, é portanto, a epítome temporal vansantiana. De presença espiritual, ela torna-se corpórea e densamente leve tanto quanto as personagens, que também sofrem processo semelhante às avessas. Se elas vagueavam em passos tímidos pelos céus de Mala Noche, serviam de plano de fundo surrealista em Drugstore Cowboy e prefiguravam a estrada e o nomadismo em My Own Private Idaho, aqui as nuvens chegam à completa personificação afetuosa, repetitiva e corporificada em Gerry, Elefante e Últimos dias. É interessante observar como Van Sant, nesse último momento de abstração da imagem pura, joga a nuvem em um campo multiespecular, que marca

tempo, duração e passagens de tragédia em um invólucro de serenidade. Bouquet e Lalanne (2009) captam a essência da proposta vansantiana ao usar o termo suavidade (douceur), algo que remete a uma câmera leve como uma presença etérea que registra delicadamente a presença do outro:

A suavidade é também certa proximidade, uma maneira de pensar sobre o cinema como uma abordagem paciente da arte, um sonho de sociedade voltada para si e para o outro, mais do que a amizade, menos do que o amor, mais como uma tentativa de definir um termo inteiramente novo. Ele [Van Sant] nada faz, apenas segue o objeto do olhar; quando faz, avança nas cores ou afunda-se num deserto, se aproximando mais perto de seu pescoço, sem assustá-lo. Não espere muito mais do que o milagre simples da copresença, um estar-aí-e-com, que é o propósito do cinema de acordo com Gus (BOUQUET et LALANNE, 2009, p. 13). Tradução nossa.

O afeto da “imagem-tempo” em Van Sant está epitomizado na nuvem enquanto elemento abstrato, ou seja, a algo que não se explica em uma relação de causa e efeito. O registro de câmera é leve, porque as nuvens assim são, e não necessariamente tal estrutura delicada vai nos indicar um pensamento ou dedução imediata. Desta forma, a Trilogia da Morte trabalha com um tipo de temporalidade que está profundamente inscrita na ideia de afeto defendida por Deleuze (2005). Não se trata de um conceito relativo à afecção, isto é, em respeito à questão de uma ordem da percepção. O afeto também não se põe somente como um pensamento intelectual, sobretudo não em termos racionais que demandem um significado representacional; as nuvens não são um juízo. Elas, as nuvens como afeto, antes de tudo, ensejam uma “onda de choque” (DELEUZE, 2005, p. 190). O conceito deleuziano de afeto vem de Baruch Spinoza e das formulações sobre afeição e afeto, sendo este último uma representação do nada. O afeto está mais no sentido do verbo querer. E o fato de querer nos faz sobrecair em algo, entretanto, o “fato isolado de querer não se coloca como ideia, e sim como afeto; sendo assim, o afeto implica uma ideia, mas são modos diferentes de pensamento” (LIMA et ALVARENGA, 2012, p. 33). Assim, Van Sant, ao defender um tipo de cinema de ideias, filia-se ao pressuposto deleuziano do momento afetivo da imagem-tempo, em que o choque é o elemento mediador entre a montagem e a imagem, dois processos que coexistem.

Eis, portanto, que a potência ou a capacidade do cinema revelava não passar de pura e simples possibilidade lógica. Pelo menos o possível ganhava nisso uma forma, mesmo se ainda faltava o povo, mesmo se o pensamento ainda estava por vir. Algo se fazia, numa concepção sublime do cinema [grifo do autor]. Com efeito, o que constitui o sublime é que a imaginação sofre um choque que a leva para seu limite, e força o pensamento a pensar o todo enquanto totalidade intelectual que ultrapassa a imaginação (DELEUZE, 2005, p. 191).

Forjada em uma temporalidade totalmente suspensa, que resvala entre o passado e o futuro, negando narrativa, dramaticidade e causalidade, a Trilogia da Morte aponta, em sua constituição de “imagem-tempo”, para um cinema que se constitui de "imagem- cristal", como definiu Deleuze (2005). Trata-se de um modelo de imagem, destituído de movimento evidente, mas que carrega, em si, a coalescência de experiências e memórias. Para Cabrera (2006), o cinema que se propõe a repensar o tempo, reconstruído na teia de imagens, até mesmo com movimento externo nulo, adquire um status revigorante:

Há alguns filmes que não são estritamente filmes de transformações dialéticas, mas parecem feitos de tempo, nos quais a historicidade do real se mostra de maneira plena. Certamente o cinema já é, per se, inevitavelmente um mundo feito de tempo, de sequencialidade, de momentos; é a arte temporal por excelência, onde até o estático, paradoxalmente, em movimento. O cinema vive da própria historicidade do espectador, de seu olho, da própria dinâmica da vida. (CABRERA, 2006, p. 227)

Partindo do bergsonismo de um passado-presente dialético, Deleuze chega à coalescência desses dois tipos de imagem: a imagem-cristal, estrutura bifacial, indiscernível, que revela e esconde os fiapos do tempo. A contração dos acontecimentos em uma única cena, e não apenas uma imagem, também pode ser entendida como um substrato de bergsonismo, duração que não se legitima por um tempo puramente abstrato mas espacializável. Vemos essa situação na disposição labiríntica dos corredores do colégio em Elefante, ou na casa do músico Blake em Últimos Dias, e também em algumas cenas, em que movimento de câmera e personagem se anulam e coexistem, como veremos adiante.

Conclui-se que o jogo de tensão temporal na Trilogia da Morte aponta para uma ontologia do ser, e, que, por sua vez, remete aos conceitos deleuziano da imagem. Como observa Courville, a Trilogia sela a fusão de presente, passado e futuro em um presente antidiegético:

A disjunção - os saltos - do tempo, não só proíbe qualquer explicação psicológica dos trágicos acontecimentos que irão ocorrer, como rompe a cadeia causal de qualquer ficção clássica. Aparece, por meio do universo fechado verdadeiramente infinito e de longos travellings, como um passo para trás no tempo. Gus Van Sant mostra o que aconteceu antes da tragédia ter lugar, este em ambos concentrado e disperso (COURVILLE, 2009, p. 130). Tradução nossa.

Se na imagem virtualizada, em oposição à atual, já temos um "acontecimento" contraído, minimalizado, o regime cristalino deleuziano instaura uma versão extrema de um momento único e, ao mesmo tempo, de um duplo: como um perfeito relicário, nele passam fluxos do passado sob um registro efetuado no presente. Tem-se, então, um

presente sempre contínuo ("present-ever-present"), que expressa o aqui e o agora. Esse instante particular e corpóreo foi metaforizado por Deleuze (2005) pela estrutura do "Aion", que seria a meta ideal, sobre o qual um evento tenta tocar em um "ponto arbitrário ou aleatório de um passado próximo e futuro imanente" (SUTTON, 2009, p. 74). Tal presente vivo, vertiginoso, que condensa o futuro e atualiza o passado, cria um efeito incontrolável e incessante de "devir-louco" ("the becoming-mad of depth" ou "depths"), em que a imagem é devolvida e projetada de volta mais uma vez, criando um jogo infinito, como dois espelhos que refletem um ao outro. Sutton (2009), ao analisar a teoria deleuziana da contração da memória em relação "ao caos do presente", defende esse dispositivo para criação de identidades e de organização do armazenamento do passado e da imaginação:

Então nós temos três elementos que produzem tempo para a nossa própria identidade: duração como mudança contínua, memória como nossa consciência da duração (imagem de duração) e do tempo, e o senso de passado, presente e futuro a partir dos quais nossa consciência é criada. Eles estão em constante movimento e interação, apesar de nós dependermos totalmente do tempo como algo confiável e das nossas identidades como construções imutáveis. (SUTTON, 2009, p. 36). Tradução nossa.

Essa relação parece ser suscitada quando nos voltamos para a teia tecnológica e de instrumentação múltipla que se abre à humanidade contemporânea. Passamos, cada