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A inflexão da imagem-névoa

3. A Imagem-Névoa

3.1 O afeto fílmico

3.1.2 A inflexão da imagem-névoa

A imagem-névoa constitui-se de matéria e tempo; é uma bruma. Prefigura uma imagem matricial no cinema e até na fotografia. Podemos remontar seus primórdios ao cinema silencioso, que surgiu no Século 19 como a primeira contemplação da imagem em movimento, evocando uma experiência ilusória. O progresso técnico (que também chegava via fotografia décadas antes) assombrava a sociedade e os campos do conhecimento ao assumir a função de cópia exata, espelhada e atrelada à representação verossímil do real. Diante da nova tecnologia, os textos críticos da época relatavam um ensimesmamento, "um discurso de fascinação, uma espécie de reverência religiosa pela pura magia da mimese" (STAM, 2010, p. 38). Essa concepção, que viria acompanhar

também a arte fotográfica como um meio essencialmente figurativo, desafia discursos sobre o seu uso e teorias em torno das suas habilidades enquanto um meio de imagens. Jean-Claude Carrière (2006), ao teorizar a práxis cinematográfica a partir de seus trabalhos com Luis Buñuel e Andrzej Wajda, compara a linguagem do cinema a uma "névoa da palavra", que, segundo ele, oculta a verdadeira realidade. Para ele, o cinema vincula-se ao recurso da máscara, levada ao extremo em virtude do artifício, sendo as imagens, em si, inerentemente falsas, mas aptas a conduzir a uma realidade superior. Assim, ele contemporiza o conceito de verdade, problema ontológico do cinema perpassado em todas as fases (do Neorrealismo italiano ao digital) e emenda com uma advertência metafórica sobre o problema da saturação de imagens na modernidade: "O Século XX acrescentou a bruma acumulada sobre a bruma" (CARRIÈRE, 2006, p. 196). A associação do cinema à ideia macro de névoa, a uma atmosfera embaçada, por onde fluem os acontecimentos, ora desvelados ora fechados à razão, constitui um escopo interessante. Na doxa dos estudos de cinema, há a corrente do mito da caverna de Platão, frequentemente utilizada como parábola do cinema (autores como Slavoj Zizek, Arlindo Machado42, entre outros, resgatam esse conceito), na qual se destaca a existência da potência da luz fora da escuridão, e que dentro dela estaríamos protegidos da cegueira da verdade - como se o Mundo exterior estivesse acima do nosso entendimento (o horizonte kantiano de que nossa percepção é limitada). É evidente que, na abordagem de Carrière, formula-se uma criação lírica que se forja no empirismo puro: ele defende que, além das falhas de um cinema moderno de indústria, supratecnológico, longe da feitura romântica do cinema mudo de Carl Theodor Dreyer, David Wark Griffith e Georges Meliès, há alguma luz dentro do seu sistema aparentemente mecanicista (a luz não estaria mais fora). Ainda que não desenvolva uma equivalência filosófica entre cinema e a literatura, a névoa de Carrière nos deixa um ponto de partida que permite colocá-lo em diálogo com alguns postulados - entre eles os de Alfred Stieglitz (estéticos) e de Zygmunt Bauman (teóricos).

A série Equivalências, de 1923, do fotógrafo norte-americano Alfred Stieglitz, foi a primeira obra fotográfica a ser exposta em um museu43. Pretendia segregar a

42 Ver MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 2011 e ZIZEK, Slavoj. A Visão em Paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.

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Precursor do movimento pictorialista do Século 19, que empunha à fotografia o estatuto de arte a partir da mimese de elementos pictóricos da pintura, Alfred Stieglitz levou a fotografia artística ao museu em 1898, quando a Secessão de Munique fez uma exposição de obras fotográficas ao lado de quadros. Antes

imagem do significante, por isso captou nuvens em diversos formatos, algumas apenas fragmentos do céu sem horizonte, para tornar a visualidade tão fortemente abstrata a ponto de parecer uma Sinfonia de Nuvens, de Ernst Bloch. Associar a proposta de Carrière, a de um estado de evaporação da realidade pragmática, às fotografias de nuvens de Stieglitz cria um diálogo de dimensões representativas diferentes, embora ambos compartilhem a mesma finalidade, a de uma arte imagética que transcende a imanência da luz imperfeita, a feitura artística que supera a imitação divina. No caso de Stieglitz, tal fim se dá de maneira mais radical, como uma descida das nuvens à Terra, em que todos os referenciais (indiciais, causais etc.) são abalados pelo deslocamento do olhar rumo a matéria leve, gasosa, que vem ao nosso encontro como névoa, como analisa Dubois:

A nuvem é, antes de mais nada, uma substância corpuscular sem contorno, sem forma definida, sem corpo próprio, uma espécie de véu, de cortina, um lençol de vapores, um condensado de auras - e sobretudo algo que não existe por si só. (...) Ela própria, incolor, é aquilo que, pela graça da reflexão, proporciona matéria à luz, a atualiza, a torna visível: como assinala Aristóteles, as nuvens têm a propriedade que faz com que elas funcionem em sua massa 'como espelhos, mas como espelhos que só devolvem cores' - o efeito pôr-do-sol, se quisermos (DUBOIS, 2004, p. 201)

FIGURA 14: Foto da série Equivalents (1923), de Alfred Stieglitz.

FONTE: http://ernstlalleman.files.wordpress.com/2010/05/untitled-53.jpg. Acesso em 28/08/2013.

Bauman (2000), ao pensar o contemporâneo, atribui metáfora diferente, ainda que sob a reflexão de um estado aquoso. O sociólogo polonês organiza a ideia de um "presenteísmo" que avança sobre a vida social, o indivíduo e a arte, com base na alegoria da mudança de estado das coisas - da modernidade sólida para uma

disso, desde 1893, instituições museológicas como a Academia real de Berlim, a Kuntshalle de Hamburgo e o Museu Nacional dos Estados Unidos adquirem fotografias para seus acervos (FABRIS, 2011, p. 41).

"modernidade líquida", uma "segunda modernidade" ou uma "sobremodernidade". Tal acepção, a de um império do dinamismo, efetua-se, sobretudo, décadas após as duas Guerras Mundiais, como combustível para uma cultura contemporânea do efêmero, mais particularmente a partir da cultura de massa dos anos1950/60. Michel Maffesoli (2010) estende o conceito presenteísta de Bauman como um estado de esgotamento em si mesmo, um "presente falso": em função de uma promessa por um passado post- mortem ou de um futuro que, em sua essência, já é passado. Para ele, estamos, portanto, nos tornando, inadvertidamente, a presença pálida de nós mesmos (ou a névoa da nossa própria imagem):

A modernidade que se esgota "desenervou", em sentido estrito, o corpo social. O higienismo, a securização, a racionalização da existência, as proibições de todo os tipos, tudo isso tinha retirado do corpo individual ou do corpo coletivo a capacidade de emitir as reações necessárias a sua sobrevivência. Pareceria, para retomar uma expressão de Georg Simmel, que se assiste, com a pós-modernidade, a uma "intensificação da vida nos nervos" (MAFFESOLI, 2010, p. 35)

As relações contemporâneas, sendo, assim, fluidas, pressupõem que os laços humanos também se tornem escorregadios e enfraquecidos: "precariedade, instabilidade, vulnerabilidade, são a característica mais difundida das condições de vida contemporâneas" (BAUMAN, 2000, p. 184). Para o estudioso polonês, a nova ordem da modernidade irá repercutir em uma sociedade consumista, e, para tanto, solitária, individualista e subjugada nas relações de trabalho pela autoperpetuação da falta de confiança e do desenvolvimento compulsivo e obsessivo. Ora, trata-se de uma fala contundente, que expõe um fenômeno macropolítico e socioeconômico atroz, com o qual o sujeito atual precisa lidar cotidianamente. Enfoca uma preocupação crucial do homem moderno frente a um cenário em constante mudança da revolução técnica - ideal esquerdista que remonta aos pressupostos marxistas da Teoria Crítica, com reflexos ainda visíveis sobre aquilo que foi dito há quase cem anos. No entanto, experimentos como o de Stieglitz fazem um movimento contrário ao completo pessimismo.

Ora, as críticas de Bauman sobre a sociedade contemporânea disparam questões de ordem metafórica na obra vansantiana. O diálogo entre os dois corre em paralelo: Gus Van Sant trata de temas de natureza perceptiva e ontológica; Bauman, situa-se num engajamento político-social de bandeira notadamente esquerdista. No entanto, a Trilogia da Morte, ao propor um caminho estético pelas margens, redireciona o horizonte político para a ausência afetiva, a precariedade dos laços da modernidade; para uma névoa, o espelho do outro. É, nesse sentido, que Van Sant supera uma

dicotomia para se instaurar um discurso do gasoso que se investe acima do líquido, como ultrapassamento deste, mas sem se desvincular de preocupações originárias de inconformidade. Já em relação a Stieglitz, a imagem-névoa encontra seu primo mais velho, embora seja preciso demarcar diferenças. As canções visuais de Stieglitz evocam o motif poético mais caro a Gus Van Sant, as nuvens do Oeste norte-americano. Stieglitz e Van Sant compartilham o mergulho poético, a imersão idêntica sobre a imanência da imagem. Ambos quebram ideais sólidos, refutam o padrão de indicialidade da imagem acumulada, ao mesmo tempo em que reafirmam a mudança do estado como um fenômeno eminentemente moderno. Ainda que separados por quase duas gerações, têm em comum um olhar peculiar sobre o padrão gasoso de visão do mundo, como uma resposta a qualquer materialidade de certezas e inseguranças que se põem à frente. É, nesse sentido, que a névoa abre-se, aqui, como uma fagulha, uma fenda para se compreender o contemporâneo.

A névoa é uma chave interpretativa, epítome poético que dialoga em um escopo de abstração, remetendo aqui a uma questão conceitual. Ela advém diretamente do elemento “nuvem”, massa gasosa, mas também pode ser entendido como superfície invisível e etérea. Algo que nos cega, interrompe nossa visão, revelando algo posterior em sua imagem atual. Na literatura, tomamos como partida a metáfora da “névoa da palavra” do poeta pérsio Mowlânâ, citado por Carrière (2006):

As imagens filmadas (justamente porque o cinema parece tão perfeito, pois não parece uma máscara) talvez sejam as mais ilusórias de todas as máscaras que colocamos sobre o rosto da realidade. E, ainda assim, quando um filme nos toma por completo, as imagens que sabemos falsas podem nos levar a uma realidade superior, mais forte, mais penetrante, e decisivamente mais real do que a própria realidade (CARRIÈRE, 2006, p.196).

O cinema pode ser um portal para a epifania. Assim, podemos chegar ao conceito da imagem-névoa, aquela que se reveste da bruma para fazer-se enxergar, elucidar nosso pensamento em meio ao nevoeiro da razão, condensando o tempo presente da imagem em constante mudança (a nuvem, o movimento) com aquilo que ela traz de atualização, passado ou futuro (o tempo congelado, acelerado, duplicado e múltiplo).

Com efeito, a imagem-névoa manifesta-se no espaço circunscrito de uma moldura, um “devir-janela” (KILPP, 2009, p. 13), o que nos remete à imagem reflexiva

e à ideia de contemplação. Os pressupostos de Suzanna Kilpp44 em torno da imagem como um quadro são úteis para apreendermos as relações entre o tempo do filme e o tempo que circunda o objeto de nossa fruição do olhar, problematizado pela delicada – e quase imperceptível - intervenção vansantiana. Tal mise en scène, cuja essência é identificada pela imagem-névoa, opta, além dos planos-sequência arrastados e de frames repetidos, pela refração de luzes. É, nesse sentido, que o diálogo de Stieglitz com Van Sant torna-se efetivo e operatório. Em muitas cenas, como iremos ver adiante, as nuvens são substituídas pelo movimento da copa das árvores, por exemplo – a rarefação torna- se tão extrema que será abstração de nuvens pura, sem horizonte nem perspectiva. A energia da natureza, como Van Sant registra pelo modo do duplo especular, flui por outro reflexo, o do céu emoldurado pelos galhos, mais próximo às nossas cabeças.

Antes de proceder à imagem-névoa e suas particularidades, é preciso fazer uma ressalva. Este texto não pretende defender uma aplicabilidade da metodologia de Kilpp. O que nos interessa nela é o olhar específico sobre uma realidade aparentemente banal, ou descartável pelo seu fator corriqueiro, inclusive em práticas fotográficas. Tencionaremos converter a sensibilidade de Kilpp, cuja especialidade é tratar das molduras em análises televisivas, ao nosso modo de ver as “molduras de névoa” de Van Sant. A efetividade de seu método dá-se mais numa esfera apreensiva de sua essência que no uso mecânico e meramente residual. Somente para efeito de mais um adendo, também será importante para este arcabouço teórico, já que estamos evocando aqui a fotografia em si como conceito, trazer à luz algumas formulações de Annateresa Fabris sobre identidades visuais e a temporalidade da imagem técnica dentro do campo artístico geral. É fundamental, por exemplo, para avançar na reflexão, pensar a incidência de Warhol e sua desaparição do sujeito, em Últimos Dias. Decerto, o fato de Gus Van Sant ser fotógrafo, além de pintor, contribui também para entender um pouco tal flerte obsessivo com a imagem estática.

Também não se trata, aqui, de enfocar a névoa como chave-conceito. Tal verbete não caracteriza um cinema de gênero. Aumont e outros autores do léxico cinematográfico não se referem a esse termo - fala-se em cinema de afeto, talvez a

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No artigo Imagens-média do tempo acontecimento, Kilpp afirma que a imagem-duração é uma “natureza precípua” da TV, suporte no qual se debruça em sua análise como pesquisadora. Ela diz que o fluxo de tempo real da televisão e a montagem superficial de molduras informativas criam uma estética única e, segundo ela, distinta do cinema e do vídeo, por produzirem apenas imagens de tempo.

Discordamos da autora neste ponto, na medida em que o cinema e o audiovisual também podem criar molduras e diálogos com um tempo sublime no mesmo ecrã.

categorização mais próxima, como falamos anteriormente de Denilson Lopes (2013), mas ele, igualmente, descarta o afeto como conceito. Ainda que não exista como categorização artística ou expressiva, não é difícil associar esse estado de suspensão e aspecto puro de textura, luz e forma a filmes como os de Andrei Tarkovsky, Aleksandr Sokúrov, Alain Resnais e de outros diretores que resvalavam pelo sentido onírico da realidade; ela os perpassa e, portanto, é a somatização da imagem por si própria (seja ela em movimento, ou, como na maioria das vezes, quase estática, quase um frame parado, associada à fotografia), remetendo nosso olhar ao conceito de “imagem-cristal” deleuziano. Podemos, assim, falar em uma recorrência estética, uma preponderância estilística e suavemente materializada como um elemento "delicado" (a inocência perdida, o tempo lento, os planos muito próximos ao rosto, além de outras formas assumidas no ecrã), que constitui uma interpretação coerente em relação à de construção Van Sant como artista essencialmente imagético. A nuvem, mais do que uma metáfora em colisão enviesada com a sociedade contemporânea vista por Bauman, marcará uma mudança de paradigma do olhar vansantiano. É possível atribuir à névoa o papel de vetor por um modo de fazer cinema, de afetividade e de estar no mundo, mesmo que como um ser diáfano, adquirindo materialidade por imagens. Como um fio condutor por excelência, essa tendência de estado gasoso, solto em baixa densidade atmosférica e de descompressão a vácuo, desempenha um papel importante.

Assim, a nuvem em Gus Van Sant é corte (ato operacional), mas também devir (ato final). Trata-se de imagem-névoa extraída de uma atmosfera celeste, ou, em muitos casos, tomando por base os reflexos. Esses últimos, imagens secundárias e mediadas, não se formam unicamente de imagens devolvidas de espelhos, objeto-clichê, convertido em fios de tempo de memória, como já fizeram Andrei Tarkovsky (O Espelho), Luccino Visconti (Morte em Veneza) e Alain Resnais (O ano passado em Marienbad). No entanto, a Trilogia de Morte explora uma abordagem distinta desse grupo, ainda que bastante incidente no cinema contemporâneo: enfatizar o elemento estético do reflexo a partir de outras superfícies especulares, como o vidro. O diretor taiwanês Hou Hsiao-hsien é outro cineasta que tem um apreço por esse recurso; é comum o espectro do vidro no filme A viagem do balão vermelho, de 2007, com suas refrações de luz de cafés e bares parisienses. A imagem nasce, assim, do corte, ou seja, do enquadramento fílmico de um fenômeno quase intangível.

A questão do corte é destacada pelo pesquisador Philippe Dubois (apud FABRIS, 2011, p. 69) no pictorialismo fotográfico, vertente artística do fim do Século 19. E, por coincidência, ele recorre à nuvem como tema, fazendo uma análise poética no livro O ato fotográfico e Outros Ensaios. O modo como ele fala de fotógrafos daquela época, que tentam compor ao modo de um pintor, nos aponta confluências entre Gus Van Sant e os trabalhos dos fotógrafos Paul Strand e Alfred Stieglitz. Este último, como já dissemos, criando um dialogismo mais próximo com o diretor norte-americano, pelo fato de ter produzido a série Equivalências (1923-1932), que retratava nuvens transfiguradas em aspectos totalmente abstratos, sem horizonte e com percepção aberta ao mergulho inconsciente. A aproximação Van Sant e Stieglitz não se dá apenas no plano temático: o golpe (o corte) da imagem também se radicaliza na tentativa de configurar uma nova visualidade. De certa forma, Stieglitz e Van Sant são menos adeptos da tentativa de abarcar a realidade em sua completude do que da cisão. Originam-se, assim, perfilados em torno de um estado de evanescência, daquilo que lhes escapa à imagem. Está aí um fruto do corte: o extracampo, a ideia de algo que está fora do enquadramento e é preenchido por espaço e tempo imaginários, torna-se uma peça comum entre eles. Stieglitz compôs fotos de nuvens que levavam ao completo delírio, corte tão radical que propõe, segundo Dubois, uma “transformação radical da realidade e estrutura um espaço autônomo que, pela falta de linha do horizonte, destrói todo sentido de orientação” (DUBOIS apud FABRIS, 2011, p. 70). Por sua vez, em Últimos Dias, Van Sant não opera o corte no falso raccord (falsa ligação) entre os planos, e sim, dentro deles, na relação interna da imagem. A radicalização reside, assim, de outra maneira, no paradoxo da imagem em movimento. Se por um lado a sequência de frames é repetida exaustivamente, por outro a narrativa é readequada ao tempo real, como um reality show às avessas, não mais em função de uma filmagem do passado, mas de um estado in-progress. Esse olhar tem a particularidade de se focar a uma distância mínima do objeto e de efetuar uma sondagem meticulosa da ação, cumprida pela captura de uma vida que flui em seu tempo cronológico.

Em termos práticos, o cotidiano, filmado em tempo estendido, cria uma relação com a névoa, a bruma que desconcerta pelo excesso de imagem reflexiva ou pelo tempo de exposição. O corte, assim, aparece dentro da imagem, no frame em si, por meio da delimitação de gestos, refutações e expressões faciais, em situações corriqueiras etc. No entanto, há ainda o não-corte, o encadeamento fílmico que compõe uma camada por

cima: o tempo é dilatado, avança, recua, estanca. Todos esses movimentos ondulatórios, sem uma cronologia fundadora, cruzam-se nesse imenso cristal da imagem-névoa: a solidão do interior das personagens atualizada pelo vazio imanente exterior. Fabris, ao descrever os métodos pictorialistas de Strand e Stieglitz, prega uma objetividade que se assemelha àquela defendida por Van Sant em seu cinema, pontuado por closes-up e recortes da realidade via câmera para atingir uma visão subjetiva da névoa.

A objetividade defendida por Strand implica uma manipulação do mundo pelo aparelho fotográfico, sem que isso signifique uma distorção da realidade. Interessado em buscar seus temas no mundo real, o fotógrafo usa recursos de iluminação, escolhe novos ângulos de visão, aproxima-se do objeto de modo a obter close-ups, com o objetivo de propor um realismo inerente ao aparato e sintonizado com os alcances da arte moderna, sobretudo cubismo e precisionismo. Essas mesmas qualidades são detectadas nas imagens de Stieglitz, que usa a câmara como um instrumento de conhecimento intuitivo, conseguindo resultados que não são oferecidos por outros meios (FABRIS, 2011, p. 57)

É importante deixar claro que a relação de Van Sant com o pictorialismo não é automática, tampouco é assumida pelo diretor. A equivalência integral dá-se no plano impossível, porque nos referimos a suportes e meios estéticos diferentes, entre fotografia e o cinema. No entanto, o cineasta norte-americano, como um pesquisador teórico, fala, sim, em um retorno ao cinema silencioso de Griffith, fazendo alusão a um tipo de produção de imagens associada a valores pictóricos, como no texto que ele escreve sobre Béla Tarr.