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O revirar do avesso : a estrutura topológica da identificação na psicanálise de Jacques Lacan

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS

PEDRO HENRIQUE BEDIN AFFONSO

O REVIRAR DO AVESSO:

A ESTRUTURA TOPOLÓGICA DA IDENTIFICAÇÃO NA PSICANÁLISE DE JACQUES LACAN

CAMPINAS 2020

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PEDRO HENRIQUE BEDIN AFFONSO

O REVIRAR DO AVESSO:

A ESTRUTURA TOPOLÓGICA DA IDENTIFICAÇÃO NA PSICANÁLISE DE JACQUES LACAN

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Daniel Omar Perez

Este trabalho corresponde à versão final da dissertação defendida pelo aluno Pedro Henrique Bedin Affonso e orientada pelo Prof. Dr. Daniel Omar Perez.

CAMPINAS 2020

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Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Affonso, Pedro Henrique Bedin,

Af28r AffO revirar do avesso : a estrutura topológica da identificação na psicanálise de Jacques Lacan / Pedro Henrique Bedin Affonso. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

AffOrientador: Daniel Omar Perez.

AffDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Aff1. Lacan, Jacques, 1901-1981. 2. Psicanálise. 3. Identidade. 4. Identificação (Psicologia). 5. Topologia. I. Perez, Daniel Omar, 1968-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The everting of the reverse : the topological structure of

identification in Jacques Lacan's psychoanalysis

Palavras-chave em inglês:

Psychoanalysis Identity

Identification (Psychology) Topology

Área de concentração: Filosofia Titulação: Mestre em Filosofia Banca examinadora:

Daniel Omar Perez [Orientador] Lauro José Siqueira Baldini

José Francisco Miguel Henriques Bairrão

Data de defesa: 24-04-2020

Programa de Pós-Graduação: Filosofia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-1062-367X - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/3231397503602671

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 24 de abril de 2020, considerou o candidato Pedro Henrique Bedin Affonso aprovado.

Prof. Dr. Daniel Omar Perez

Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini

Prof. Dr. José Francisco Miguel Henriques Bairrão

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Agradecimentos

Primeiramente, ao meu orientador, professor Daniel Perez, pela oportunidade, confiança e direcionamento para atravessar o percurso sinuoso que decidi percorrer. Aos professores que compuseram a banca, tanto da qualificação, quanto da defesa, Miguel Bairrão e Lauro Baldini, pela generosidade nas sugestões que em muito contribuíram para o desenvolvimento da presente dissertação.

Ao professor Carlo Séquin, da Universidade da Califórnia, campus de Berkeley, que proveu contribuições fundamentais para o desenvolvimento de algumas questões topológicas de suma importância para minha pesquisa. Não poderia deixar de reconhecer minha dívida com Carlo, por sustentar essa transferência de trabalho tão intensamente, sem a qual certamente não teria avançado em muitas das elaborações realizadas.

Ao meu caro colega, Alexandre Starnino, pela leitura atenta e inúmeras conversas.

À minha família e aos meus amigos, especialmente aos meus pais, José e Suselei, e a minha companheira, Amanda, pelo incentivo e suporte incondicional.

Por fim, ao apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através de concessão da bolsa (Processo nº 168549/2018-2) que viabilizou a dedicação integral ao programa de pós-graduação e a realização da presente pesquisa.

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Il y a du refoulé. Toujours. C’est irréductible. Élaborer l’inconscient, comme il se fait dans l’analyse, n’est rien qu’y produire ce trou. Freud lui-même, je le rappelle, en fait état.

Cela me paraît confluer pertinemment à la mort. À la mort que j’en identifie de ce que, ‘comme le soleil’ dit l’autre, elle ne se peut regarder en face. Aussi, pas plus que quiconque, je ne la regarde. Je fais ce que j’ai à faire, qui est de faire face au fait, frayé par Freud, de l’inconscient.

Là-dedans, je suis seul.

Jacques-Marie Émile Lacan Lettre à en-tête de la Cause freudienne, 5, rue de Lille, publiée dans le Courrier de la Cause freudienne, octobre 1980, n° 3.

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Resumo

Jacques Lacan resgata o conceito de identificação desenvolvido por Sigmund Freud, reelaborando-o exaustivamente ao longo de seu ensino a partir de referências aos campos da lógica e da matemática, de modo que a opção metodológica pelo recurso à topologia, como via eleita para perscrutar a estrutura do sujeito do inconsciente, delimita o campo de investigação próprio à psicanálise lacaniana. A presente pesquisa visa, em um primeiro momento, compreender o conceito de identificação desenvolvido por Lacan e seu substrato topológico, analisando seus desdobramentos ao longo de seu percurso teórico, para então, partindo de desenvolvimentos topológicos ulteriores no campo psicanalítico, apresentar novas hipóteses acerca da identificação através do exame das propriedades topológicas do mergulho do nó borromeano em um toro triplo imerso no espaço tridimensional. Para tanto, são abordadas as problemáticas acerca da formalização, da estrutura, da ética, do tempo, do corpo e do gozo em psicanálise, evidenciando suas articulações. Os resultados obtidos indicam que o mergulho do nó borromeano constitui uma estrutura topológica capaz de vincular certas problemáticas cruciais para a psicanálise lacaniana, acerca da identificação e das relações entre as dimensões do Real, Simbólico e Imaginário, bem como de suas propriedades operantes, referidas à ex-sistência, furo e consistência, respectivamente. Em última instância, trata-se de uma abordagem do problema da identificação como operação lógico-temporal constituinte de uma estrutura refratária à sua apreensão estática.

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Abstract

Jacques Lacan rescues the concept of identification developed by Sigmund Freud, reviewing it exhaustively throughout his teaching from references to the fields of logic and mathematics, so that the methodological option for the use of topology, as the chosen way to examine the structure of the subject of the unconscious, delimits the field of investigation proper to Lacanian psychoanalysis. The present research aims, at first, to understand the concept of identification developed by Lacan and its topological substrate, analyzing its unfolding along his theoretical path, and then, starting from further topological developments in the psychoanalytic field, to present new hypotheses about the identification by examining the topological properties of the Borromean Rings embedded in a triple torus immersed in the three-dimensional space. To this end, the issues concerning formalization, structure, ethics, time, body and enjoyment in psychoanalysis are addressed, highlighting their articulations. The results obtained indicate that the embedding of the Borromean Rings constitutes a topological structure capable of linking crucial issues for Lacanian psychoanalysis, concerning the identification and the relationships between the dimensions of the Real, Symbolic and Imaginary, as well as their operative properties, referred to the “ex-sistence”, “hole” and “consistency”, respectively. Ultimately, it is an approach to the problem of identification as a logical-temporal operation that constitutes a structure that is refractory to its static apprehension.

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Sumário

Apresentação ... 11

Introdução ... 17

1. Formalização, estrutura, matema e topologia em Lacan ... 35

1.1. Modelo, analogia, metalinguagem ou estrutura? ... 46

1.2. Mais-além da formalização abstracionista: o corpo ... 61

1.3. A topologia e o tempo ... 66

1.4. Ética e topologia ... 73

2. Identificação em Lacan nos anos sessenta ... 81

2.1. O oito interior e o toro: a gênese do significante ... 90

2.2. O cross-cap: da fantasia ao desejo do analista ... 102

2.3. A garrafa de Klein: o tempo lógico ... 106

3. Identificação em Lacan nos anos setenta ... 113

3.1. O nó borromeano: da estrutura da demanda à heresia ... 116

3.2. Topologia do lapso: o sinthoma como suplência ... 127

3.3. Os reviramentos tóricos: o “endo-psíquico” ... 133

3.4. O nó borromeano generalizado ... 142

4. Desenvolvimentos topológicos a partir de Lacan: o estado da arte ... 147

4.1. A matriz simbólico-imaginária da identificação ... 157

4.2. A involução significante e o movimento-nó ... 160

4.3. Os nós-cortes mergulhados em superfícies multitóricas ... 170

5. A estrutura topológica do nó borromeano mergulhado ... 174

5.1. A estrutura tetraédrica do toro triplo ... 175

5.2. O reviramento do toro triplo e seu efeito sobre o nó borromeano mergulhado ... 181

5.3. As identificações na constituição da estrutura ... 193

5.4. Sexuação e identificação ao sinthoma ... 200

5.5. Imaginar o Real, através do espelho ... 207

Conclusão ... 215

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Apresentação

A presente pesquisa de mestrado se relaciona com um projeto em desenvolvimento na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) intitulado “A constituição do sujeito a partir das relações de identificação”1

. Pretendemos avançar com este projeto, trabalhando em alguns pontos precisos da problemática da identificação na psicanálise lacaniana. Desta forma, esta dissertação converge com a linha de pesquisa “Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência e da Linguagem”, mais especificamente na vertente “Filosofia da Psicologia e da Psicanálise”, a qual visa investigar os modelos explicativos da gênese conceitual e as estratégias de fundamentação na psicanálise.

Parte-se de uma perspectiva que privilegia o entendimento do exercício filosófico como a indagação acerca das condições de possibilidade de abordagem da realidade, daquilo que se apresenta como verdadeiro em sentido amplo, tendo como fundamento correlato o advento do sujeito na modernidade. Desta forma, a presente dissertação foi realizada através de uma extensa pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo com o objetivo de explicitar o desenvolvimento do conceito de identificação e seu substrato topológico empregado por Lacan e articular seus desdobramentos ao longo de seu percurso teórico. Mais especificamente, a investigação estará voltada aos seguintes objetivos: analisar as bases conceituais do conceito de identificação e enfatizar os principais argumentos desenvolvidos por Lacan e por outros autores considerados referências no assunto; retomar os desenvolvimentos topológicos2 utilizados por Lacan ao longo de sua obra, articulando seus pontos de convergência e divergência; apresentar as propriedades e transformações de uma estrutura topológica — mais especificamente, do nó borromeano mergulhado no toro triplo — que possibilite articular o conceito de identificação com outros conceitos e noções fundamentais da psicanálise de maneira inédita.

1 “A constituição do sujeito a partir das relações de identificação: Uma abordagem entre a filosofia

kantiana e a psicanálise freudiano-lacaniana”. UNICAMP, 2014. Projeto desenvolvido pelo professor Dr. Daniel Omar Perez, o qual acompanho desde meados de 2016, contando com diversos alunos e professores dos cursos de mestrado e doutorado da UNICAMP.

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Em linhas gerais, a topologia é um ramo da geometria não-euclidiana que estuda as relações qualitativas de vizinhança e fronteira.

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A opção metodológica pelo recurso à topologia delimita o campo de investigação próprio da psicanálise lacaniana, não havendo, em nosso entendimento, outra forma de proceder rigorosamente ao exame da relação entre os conceitos — afinal, a efetividade de um conceito só pode ser compreendida no panorama da teoria em que é elaborado —, o que buscaremos evidenciar no decorrer da presente dissertação. Em suma, trata-se da via eleita por Lacan para abordar a estrutura significante pela qual o sujeito se constitui, através de identificações. Neste sentido, a psicanálise como práxis é homóloga a um saber-fazer topológico com o discurso do analisante e, como saber transmissível, deve ser ela própria topologicamente estruturada3.

Iniciaremos nosso percurso balizando a problemática da identidade na filosofia ocidental, em um pequeno recorte que abrange algumas das principais proposições surgidas na Idade Média e na modernidade. Abordaremos então os novos contornos instaurados pela psicanálise nesse debate, com a proposição da causalidade inconsciente e sua lógica adjacente, focando a introdução da noção de identificação por Sigmund Freud e sua recepção por Jacques Lacan. Em seguida, adentraremos na temática da busca pela formalização que conduz o psicanalista francês à topologia como recurso metodológico de investigação psicanalítica. Acredita-se que esse panorama permita delimitar o campo da presente pesquisa para então propriamente apresentar os desenvolvimentos ulteriores de Lacan acerca da identificação e sua topologia.

Apresentamos detalhadamente a seguir o plano de investigação proposto em nossa dissertação visando atingir o objetivo de realizar um exame aprofundado da problemática da identificação e sua topologia.

Buscando seguir a ordem cronológica em que a questão se apresenta, iniciamos com uma breve introdução ao problema da identidade na filosofia moderna, principalmente a partir de Descartes e Kant, e seu desdobramento com as contribuições da psicanálise, apresentando os primórdios do conceito de identificação na obra de Freud e suas primeiras incidências na obra de Lacan, mais especificamente, no que se convencionou chamar de sua tópica do imaginário, cujo principal expoente é o estádio do espelho.

3 .Cf. as palavras de Lacan: “É como isto que meu discurso se fia – cada termo só se sustenta por

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No primeiro capítulo realizaremos uma discussão acerca do estatuto da formalização, da estrutura, do matema e da topologia no ensino de Lacan, buscando apresentar a justificativa do recurso à topologia em sua especificidade. A questão colocada pelo emprego da topologia é também abordada em relação a outras problemáticas centrais para a psicanálise, tais como: o estatuto do corpo, articulado aos conceitos de pulsão, objeto a e gozo4; a dimensão propriamente dinâmica da estrutura; a convergência entre a ética do psicanalista e as operações topológicas de corte e sutura.

No segundo capítulo apresentaremos os desenvolvimentos de Lacan acerca da identificação, realizados no início dos anos sessenta, época em que o psicanalista inicia um movimento de distanciamento em relação ao paradigma estruturalista, através da reelaboração de seus empréstimos da linguística de Saussure e Jakobson e da antropologia de Levi-Strauss. Neste momento de seu ensino, Lacan desenvolve suas principais contribuições para a problemática da identificação, dedicando um seminário especificamente a esta questão, no qual elabora o conceito de identificação significante e utiliza a topologia das superfícies.

No terceiro capítulo abordaremos o remanejamento realizado por Lacan nos anos setenta da questão da identificação. Trata-se de um período de seu ensino caracterizado pela reformulação de seus conceitos em torno da problemática da impossibilidade de escrita da relação sexual e da topologia do nó borromeano, com a qual Lacan articula as relações entre os registros do Real, Simbólico e Imaginário5.

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Objeto a e gozo são dois conceitos fundamentais na obra de Lacan. Em uma definição bastante resumida e precária em vista da complexidade colocada por cada um destes conceitos, diríamos que o primeiro busca dar conta da problemática do objeto na psicanálise, entendido como objeto essencialmente faltante, objeto sem referente na realidade, que articula as dimensões do desejo, do gozo e do amor, como objeto causa do desejo, objeto da pulsão – ou mais-gozar – e agalma, enquanto o segundo trata de um aspecto essencial da pulsão de morte freudiana, mais especificamente da paradoxal satisfação pulsional mais além do principio de prazer envolvida na compulsão à repetição que em última instância se refere a uma perda de si. Ao longo da dissertação exploraremos mais detalhadamente estes conceitos, ainda que parcialmente.

5

Real, Simbólico e Imaginário são os três registros, ou dimensões, fundamentais que compõem a estrutura do sujeito na psicanálise lacaniana. Lacan introduz essas três categorias em 1953, as quais atravessam o decorrer de seu ensino. Resumidamente, diremos que: o Simbólico é o registro do Outro, da cadeia significante; o Imaginário, distinto de sua acepção corrente, é o registro da imagem especular, da representação imagética, o qual é identificado num primeiro momento como da ordem do engano, do desconhecimento, pois ignora sua determinação simbólica; O Real é o registro do impossível, limite do simbólico, mas não externo ou independente deste, é a dimensão daquilo que escapa como causa, da estrutura do sujeito. Importante que as três categorias passam por transformações importantes ao longo do ensino de Lacan, primeiramente sendo utilizadas como adjetivos da função paterna, relacionados às operações diferenciais de falta de objeto, nomeadamente, frustração, privação e castração, para, posteriormente serem tomadas como

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Veremos como a questão da identificação não somente é rearticulada em termos da topologia do nó borromeano como também é ampliada por novas problemáticas, mais especificamente com a questão da identificação sexuada apresentada pelas fórmulas dos quantificadores existenciais da sexuação e com a ideia de identificação ao sinthoma. Examinaremos ainda os últimos desenvolvimentos topológicos realizados por Lacan acerca dos reviramentos tóricos, problemática diretamente relacionada à questão da identificação, e da generalização do nó borromeano, tópico ainda pouco conhecido e explorado, o qual permite uma nova perspectiva acerca de aspectos cruciais da topologia lacaniana — em especial, a concepção de uma abordagem não-fisicalista6 dos nós, através de operações realizadas por homotopia.

No quarto capítulo apresentaremos um panorama da problemática topológica legada por Lacan, a partir do levantamento dos estudos psicanalíticos que empregam a topologia e de uma análise crítica acerca dos rumos que a questão toma sob a pena de diversos autores, denunciando o hipostasiamento metafísico à qual foi reduzida. Exploraremos então os desenvolvimentos esquemáticos e topológicos de Perez, Vappereau e Affonso acerca da identificação e da topologia lacaniana de forma geral. Primeiramente, veremos como o trabalho de Perez, com a apresentação de uma matriz simbólico-imaginária da identificação, ressalta a dimensão dos mecanismos de exclusão do Real que ameaça a coesão do grupo e seus diversos retornos. Em um segundo momento, a obra de Vappereau contribui para a problemática a partir de duas vertentes, a primeira parte do conceito de involução significante que propõe uma articulação da identificação entre a primeira tópica freudiana e os esquemas de Lacan de 1955-1956, e se estende à ampla consideração da transformação de superfícies biláteras em superfícies uniláteras a partir da obtenção da superfície de tensão de nós e cadeias que operam como corte em superfícies tóricas e multitóricas, e a segunda vertente propõe uma leitura acerca da generalização do nó borromeano como definida pela propriedade de uma cadeia

substantivos e serem articuladas com a topologia do nó borromeano, conforme veremos no terceiro capítulo.

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Os termos “fisicalista” e “não-fisicalista”, amplamente utilizados na presente dissertação, não têm nenhuma relação com a teoria fisicalista da neurologia/psicologia. O termo “não-fisicalista”, adotado de Vappereau (2008), designa uma abordagem estritamente topológica de determinados objetos topológicos (superfícies ou nós) que trabalha com operações que produzem intersecções e auto-atravessamentos, diferindo de uma abordagem “fisicalista” em topologia, a qual supõe uma consistência que conserva o princípio de partes extra partes, possibilitando a utilização de modelos físicos.

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se desfazer pelo procedimento de leitura, tomado como equivalente à função do traço unário, efetuado por movimentos-nós próprios, impróprios e híbridos. Por fim, veremos como a proposta de Affonso (2016) de uma escrita que não se reduza à projeção planificada a partir da noção de nó-corte operado em superfícies multitóricas permite uma rearticulação dos conceitos dispostos por Lacan em 1974 no nó borromeano, a qual é tomada como ponto de partida para as contribuições que são realizadas no capítulo seguinte, visando ampliar seu alcance.

No quinto e último capítulo, apresentamos nossa contribuição para a problemática da topologia da identificação, retomando e articulando os seguintes problemas: a constituição da imagem especular suportada por um espelhamento, apresentada na introdução da presente dissertação; a irredutibilidade da topologia à formalização algébrica, a dinâmica temporal da estrutura, a convergência entre ética e topologia e o estatuto do corpo em psicanálise em suas relações com a estrutura significante, desenvolvidos no primeiro capítulo; a identificação significante erigida sob a diferença a si mesma colocada pela repetição das demandas — articulada através da topologia do toro — e as operações de corte operadas em superfícies topológicas, apresentadas no segundo capítulo; a identificação pensada a partir da estrutura topológica do nó borromeano, em suas variações e características aparentemente contraditórias, apresentada no terceiro capítulo; a matriz simbólico-imaginária da identificação, a involução significante como transformação do estado aberto/fechado de uma estrutura topológica, os movimentos de homotopia regular e o mergulho do nó borromeano como redescrição do esquema lacaniano de 1974 das relações entre Real, Simbólico e Imaginário, apresentados no capítulo quatro.

Assim, partimos da análise da estrutura topológica do nó borromeano mergulhado no toro triplo imerso no espaço tridimensional, para: i. Apresentar sua estrutura tetraédrica, a qual possibilita uma nova perspectiva da relação entre as modalidades de gozo e o trio de conceitos freudianos, composto por angústia, sintoma e inibição; ii. Mostrar diversas formas de operar o reviramento do toro triplo que acolhe o nó borromeano e extrair suas consequências, principalmente acerca da transformação dos circuitos pulsionais que delimitam modalidades de gozo; iii. Elaborar uma hipótese acerca da constituição desta estrutura, ao escandir o mergulho do nó em momentos lógicos, relacionando-os aos diferentes modos de identificação; iv. Examinar a relação entre às fórmulas da sexuação e a identificação ao sinthoma através de mergulhos não convencionais do nó borromeano; v. Mostrar

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como a estrutura topológica apresentada permite articular uma série de teses apresentadas por Lacan, aparentemente contraditórias entre si — do nó como escrita e consistência tórica, como estrutura trinitária e quaternária, simétrica e dissimétrica —, sem recorrer ao argumento da diacronia, verificando a confluência de problemáticas referentes à identificação e à estrutura do sujeito, desenvolvidas em períodos distintos do ensino lacaniano, e justificando seu emprego como possível unificação de distintas vertentes topológicas de investigação psicanalítica.

Finalmente, apresentaremos a conclusão de nossa investigação, sintetizando os desenvolvimentos realizados e extraindo suas principais consequências para o debate contemporâneo acerca da problemática da identificação e do estatuto do recurso à topologia em psicanálise.

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Introdução

Desde as ideias teocráticas medievais, especialmente no cristianismo, a identidade do eu se ancora na alma eterna e o corpo é tomado como mera cobertura, desta forma, “a identidade aparece como o horizonte do que seria igual a si mesmo, mas na diferença” (PEREZ, 2016, p. 185). Segundo Perez (2016), alguns pressupostos acerca do sujeito que se organizaram a partir do discurso moderno se orientam por uma teoria bipolar do indivíduo constituído e determinado por condições naturais e representações mentais.

Essa teoria bipolar do indivíduo se fundamenta em concepções teológicas presentes desde a Idade Média, as quais foram reelaboradas por filósofos da modernidade e contemporaneidade, chegando aos tempos atuais sob formas distintas, dentre elas, as neurociências. De acordo com Perez,

com o surgimento das ideias teocráticas medievais, especialmente com o cristianismo mais hegemônico, a identidade do eu ancora na alma e o corpo, corruptível e efêmero, se concebe como mera cobertura. Outra vez a identidade aparece como o horizonte do que seria igual a si mesmo, mas na diferença. Descartes reinventou a identidade dizendo que eu sou eu mesmo desde que meus pensamentos não sejam manipulados por um gênio maligno. Para evitar entidades supra sensoriais aparecem propostas que podemos chamar de afetivistas. Como já mencionamos, Hobbes destaca um corpo com um sentimento: o medo. Não é apenas com o afeto, mas é a partir desse afeto que a identidade do eu pode ser reconhecida. Por outra via, Locke reconhece uma unidade natural capaz de receber sensações como ponto de identidade. Por sua parte, Hume dispôs algo que se parece com o contrário da posição anterior: a subjetividade como o efeito do entrecruzamento das sensações. Entre a via dos afetos e das sensações e do fisiologismo, alguns dos especialistas da área das neurociências decretaram que a identidade (o eu) é uma formação do cérebro. A esta altura da história do pensamento essa sábia verdade é tão verdadeira quanto inútil. O problema da identidade do eu que enuncia S é p não é, certamente, uma questão colocada para a mula sem cabeça, mas pretender dar compreensão teórica ao problema da realidade, da identidade e do eu por meio da descrição do funcionamento de um órgão parece limitado. (PEREZ, 2016, p. 185).

Tomando uma cronologia relativamente curta e um recorte geográfico restrito — a cultura europeia desde o século XVI — pode-se estar seguro de que a problemática acerca do sujeito e sua identidade é uma invenção recente. É somente com Descartes, no século dezessete, que se evidencia o sujeito no seio da filosofia, o que Foucault resgata situando a centralização do sujeito na história da filosofia a partir da modernidade, momento em que surgem diversas teorizações acerca de sua identidade (PEREZ, 2016).

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Kant apresenta uma contribuição decisiva para esta questão, ao propor uma reformulação da questão da identidade do eu e sua relação com a realidade, que consiste no isolamento de uma unidade mínima da identificação, o “eu penso”, tratando-o como uma função lógica, esvaziada de conteúdo, culminando em um formalismo que “des-substancializa a identidade do sujeito” (PEREZ, 2016, p. 186).

A hipótese do inconsciente elaborada por Freud — e retomada por Lacan — introduz na razão ocidental um sujeito cindido, marcado pela impossibilidade de dizer toda a verdade sobre seu desejo inconsciente, fundamentalmente interditado. Mais do que uma terceira ferida narcísica para a humanidade, precedida pelo heliocentrismo de Copérnico e pelo evolucionismo de Darwin, a hipótese do inconsciente introduz um novo regime de determinação no pensamento ocidental, diferente da causalidade natural, biológica, mas também irredutível à consciência, tal como elaborada por Kant em sua razão prática (PEREZ, 2012). Assim, a psicanálise dá novos contornos à problemática da identidade, a qual passa a ser compreendida em relação ao inconsciente, sendo o conceito de identificação fundamental para o estabelecimento de uma teoria do sujeito que proponha uma alternativa à questão da identidade sustentada em concepções essencialistas, ontológicas, metafísicas ou teleológicas.

O termo identificação é pela primeira vez utilizado por Freud em uma carta endereçada à Fliess, datada de 17 de dezembro 1897. Neste primeiro momento de sua obra, a identificação seria para Freud o mecanismo de apropriação de atributos ou traços do semelhante pelo qual o sujeito se constitui.

O termo é utilizado pelo fundador da psicanálise em relação à suposta realização do próximo de um desejo recalcado, o que se daria pelo mecanismo de deslocamento do afeto da representação inconsciente e estaria na gênese do sentimento da inveja e do ciúme, já que surge mediante a privação do objeto do desejo do qual o outro usufrui, atribuindo uma relação de causa e consequência entre este usufruto do outro e a privação do sujeito (PEREZ, 2016).

No célebre trabalho sobre “A Interpretação dos Sonhos”, Freud (1900) aborda a questão da identificação relacionada à histeria, ressaltando se tratar, não de uma imitação, e sim da assimilação de um elemento do outro que passa a compartilhar. De acordo com Freud, a identificação se mostra um importante fator no mecanismo do sintoma histérico, permitindo o sujeito expressar através de seu sintoma não somente suas experiências individuais como também de outras

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pessoas, “permite-lhes, por assim dizer, sofrer em nome de toda uma multidão de pessoas e desempenhar sozinhas todos os papéis de uma peça”. (FREUD, 1900, p. 108).

Freud destaca que com frequência a identificação na histérica expressa um elemento sexual comum, ocorrendo em relação às pessoas com as quais tenha mantido relações sexuais ou com alguém que tenha tido relações sexuais com as mesmas pessoas que ela, no entanto, logo adverte que “nas fantasias histéricas, tal como nos sonhos, é suficiente, para fins de identificação, que o sujeito tenha pensamentos sobre relações sexuais, sem que estas tenham necessariamente ocorrido na realidade” (FREUD, 1900, p. 109), indicando que se trata menos da factual realização do ato sexual do que de um desejo inconsciente.

Em “Três ensaios para uma teoria da sexualidade” (1905), Freud aborda a identificação pelo viés de uma hipotética organização sexual pré-genital, a qual consiste na incorporação do objeto, organização que se dá pela fase oral ou canibalesca. Trata-se de um momento em que a atividade sexual e a nutrição ainda estão intimamente associadas. De acordo com Freud, “como resíduo dessa hipotética fase de organização que nos foi imposta pela patologia podemos ver o chuchar, no qual a atividade sexual, desligada da atividade de alimentação, renunciou ao objeto alheio em troca de um objeto situado no próprio corpo” (FREUD, 1905, p. 121).

Poderia-se dizer que esta fase configura um momento inaugural da constituição do sujeito, momento no qual sujeito e objeto ainda não se distinguiram um do outro, tampouco havendo distinção entre interior-exterior. Para Perez:

Tratar-se-ia de um momento da constituição do sujeito onde a atividade sexual não se separou ainda da nutrição, onde não se tem diferenciado ente opostos (sujeito-objeto). O leite da mãe (por exemplo) serve para nutrir a criança e ao mesmo tempo se oferece como elemento para a satisfação. Dito por outras palavras, o objeto de uma atividade (nutrição) seria também o da outra (satisfação) e a meta sexual seria a incorporação do objeto. Porém há algo a ser destacado nessa situação que nos interessa especialmente: não há distinção ou limite entre o interior e o exterior. O exterior (leite) é interiorizado. O leite e o bebê não estabelecem uma relação sujeito-objeto, poderíamos dizer que temos quase objetos confundidos na mesma nebulosa. Isto é considerado por Freud como paradigma de identificação (PEREZ, 2016, p. 187).

Esse modo de incorporação canibalesco é retomado por Freud em “Totem e Tabu” (1912) acerca da devoração do inimigo como forma de adquirir seus

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atributos admirados. O pai primevo é assassinado e os irmãos realizam então o pacto social, erigindo um totem como representante do pai morto. Esse animal possui as características desejáveis do pai que é representado, daí resultam todas as formas de proibições e rituais relacionados à caça e à ingestão da carne do animal-totem.

Em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), Freud apresenta extensivamente o papel do Ideal do eu como saída para o narcisismo, situando a identificação como operante no deslocamento da escolha de objeto narcísica para a relação ao outro, no caso, os pais e seus substitutos (PEREZ, 2016). Freud indica também a importância do Ideal do eu na psicologia dos grupos, questão que ele retomará amplamente em seu artigo sobre a psicologia das massas, argumentando que este se constitui como o ideal comum de uma família, classe ou nação, vinculando a libido narcisista e também a libido homossexual que retorna ao ego. Assim, a não realização deste ideal desvincula a libido homossexual que retorna como sentimento de culpa — originalmente medo de perder o amor dos pais. (FREUD, 1914).

Em “Luto e melancolia” (1917 [1915]), Freud, ao evidenciar o mecanismo intrínseco à melancolia, se refere ao estabelecimento de uma identificação do ego ao objeto abandonado, de forma que “uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação” (FREUD, 1917 [1915], p. 146). Em seguida, retoma a função central da identificação na formação dos sintomas para em seguida realizar uma distinção importante entre a identificação narcisista e a identificação histérica:

não hesitaríamos em incluir em nossa caracterização da melancolia essa regressão da catexia objetal para a fase oral ainda narcisista da libido. Também nas neuroses de transferência as identificações com o objeto de modo algum são raras; na realidade, constituem um conhecido mecanismo de formação de sintomas, especialmente na histeria. Contudo, a diferença entre a identificação narcisista e a histérica pode residir no seguinte: ao passo que na primeira a catexia objetal é abandonada, na segunda persiste e manifesta sua influência, embora isso em geral esteja confinado a certas ações e inervações isoladas. Seja como for, também nas neuroses de transferência a identificação é a expressão da existência de algo em comum, que pode significar amor. A identificação narcisista é a mais antiga das duas e prepara o caminho para uma compreensão da identificação histérica, que tem sido estudada menos profundamente. (FREUD, 1917 [1915], p. 147).

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Vemos aqui como a ideia de diferentes modos de identificação sucessivos e coexistentes já está presente nas elaborações freudianas. Em “Psicologia das massas e análise do eu” (1921), no capítulo VII, Freud se aprofunda na consideração do mecanismo psíquico envolvido na formação das massas, a qual constata ocorrer pelo estabelecimento de um vínculo vertical ao líder sustentado pelo “Ideal do eu” que mantém as relações horizontais entre os demais membros que constituem a massa. É neste estudo que Freud distingue três formas de identificação, distinção que Lacan retoma e desenvolve no decorrer de seu ensino. As três formas de identificação são as seguintes, conforme Perez:

1. A pré-edípica com incorporação do objeto. Trata-se da identificação que aparece em ‘Três ensaios’ denominada canibal ou fase oral; 2. A identificação do sintoma da pessoa amada que tem como exemplo a tosse do pai do caso Dora. Trata-se de uma elaboração da noção que aparece na Interpretação dos sonhos. Este elemento será rearticulado por Lacan já não como secundário, mas como primordial na noção de traço unário, no Seminário 9. 3. A identificação com o ‘Ideal do eu’ no colocar-se no lugar do outro produzindo a identificação da comunidade. Trata-se da relação entre cada indivíduo da comunidade e o condutor da massa. Tudo se passa como se fossem modos de distanciamento entre o sujeito e o objeto de identificação em procedimentos de: Incorporação — assimilação — idealização. (PEREZ, 2016, p. 188).

Com o conceito de identificação, Freud trata de problemáticas diversas que remetem a momentos distintos da constituição do sujeito — em termos lacanianos. Posteriormente, em “O id e o ego” (1923) Freud irá situar a identificação como mecanismo central operante na dissolução do complexo de Édipo:

Em idade muito precoce o menininho desenvolve uma catexia objetal pela mãe, originalmente relacionada ao seio materno, e que é o protótipo de uma escolha de objeto segundo o modelo anaclítico; o menino trata o pai identificando-se com este. Durante certo tempo, esses dois relacionamentos avançam lado a lado, até que os desejos sexuais do menino em relação à mãe se tornam mais intensos e o pai é percebido como um obstáculo a eles; disso se origina o complexo de Édipo. Sua identificação com o pai assume então uma coloração hostil e transforma-se num desejo de livrar-se dele, a fim de ocupar o seu lugar junto à mãe. Daí por diante, a sua relação com o pai é ambivalente; parece como se a ambivalência, inerente à identificação desde o início, se houvesse tornado manifesta. Uma atitude ambivalente para com o pai e uma relação objetal de tipo unicamente afetuoso com a mãe constituem o conteúdo do complexo de Édipo positivo simples num menino. Juntamente com a demolição do complexo de Édipo, a catexia objetal da mãe, por parte do menino, deve ser abandonada. O seu lugar pode ser preenchido por uma de duas coisas: uma identificação com a mãe ou uma intensificação de sua identificação com o pai. Estamos acostumados a encarar o último resultado como o mais normal; ele permite que a relação afetuosa com a mãe seja, em certa medida, mantida. Dessa maneira, a dissolução do complexo de Édipo consolidaria a masculinidade

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no caráter de um menino. De maneira precisamente análoga, o desfecho da atitude edipiana numa menininha pode ser uma intensificação de sua identificação com a mãe (ou a instalação de tal identificação pela primeira vez) — resultado que fixará o caráter feminino da criança. (FREUD, 1923, p. 20)

Interessante notar como as questões da identidade e da escolha do objeto estão intricadas para Freud, para quem a intensificação da identificação do menino ao pai é concomitante à escolha de manter a relação afetuosa com a mãe, ou seja, à escolha de objeto feminino, de outras mulheres que virão substituir o desejo incestuoso original. Operação simetricamente equivalente ocorreria com a menina, na medida em que o caráter feminino se daria pela identificação à mãe. Essa forma de colocar a questão será revista em 1932, nas “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise” (1933 [1932]), mais especificamente na 31ª conferência, intitulada “A dissecção da personalidade psíquica”, na qual Freud retoma a problemática da constituição do superego, surgida a partir da identificação parental.

No referido texto, Freud ressalta a diferença que entre a identificação pelo vínculo com a pessoa amada e a escolha objetal, entre ser como a pessoa com a qual se identifica e ter, no sentido de possuir sexualmente, essa pessoa, afirmando que: “identificação e escolha objetal são, em grande parte, independentes uma da outra; no entanto, é possível identificar-se com alguém que, por exemplo, foi tomado como objeto sexual, e modificar o ego segundo esse modelo” (FREUD, 1933 [1932], p. 44).

Retornando ao texto de 1923, Freud procede à consideração da formação do superego como herdeiro do complexo de Édipo e equivalente à primeira identificação realizada quando o ego ainda era frágil:

temos afirmado repetidamente que o ego é formado, em grande parte, a partir de identificações que tomam o lugar de catexias abandonadas pelo id; que a primeira dessas identificações sempre se comporta como uma instância especial no ego e dele se mantém à parte sob a forma de um superego: enquanto que, posteriormente, à medida que fica mais forte, o ego pode tornar-se mais resistente às influências de tais identificações. O superego deve sua posição especial no ego, ou em relação ao ego, a um fator que deve ser considerado sob dois aspectos: por um lado, ele foi a primeira identificação, uma identificação que se efetuou enquanto o ego ainda era fraco; por outro, é o herdeiro do complexo de Édipo e, assim, introduziu os objetos mais significativos no ego. (FREUD, 1923, p. 29-30)

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A identificação ao pai estaria na gênese do superego, passando por um processo de sublimação, ou “desfusão institual” — em uma tradução mais adequada, diríamos “desfusão pulsional” — se desvencilhando de seu caráter erótico que dá lugar à severidade desta instância psíquica7.

Assim, a identificação se mostra um conceito fundamental para a psicanálise freudiana na medida em que é indispensável para articular a dissolução do complexo de Édipo, o narcisismo, a constituição do supereu, a representação recalcada na raiz das formações sintomáticas e a constituição das massas.

Lacan retoma o conceito de identificação desenvolvido por Freud e propõe um novo encaminhamento acerca da problemática da identidade em seu ensino. O momento inicial do ensino propriamente psicanalítico de Lacan, que se convencionou chamar de tópica do Imaginário, é o sucessor imediato da sua tese em psiquiatria “Da psicose paranoia e suas relações com a personalidade” de 1932, no qual, por uma análise do caso “Aimée”, situa o eu como instância do desconhecimento e propõe uma nova categoria clínica da paranoia de autopunição, e do artigo “Razões para o crime paranóico: o crime das irmãs Papin”, publicado em 1933, acerca da “folie à deux”, ou loucura a dois.

A problemática da identificação está presente desde o início do percurso de Lacan na psicanálise, podendo ser encontrada no artigo “O estádio do espelho como formador da função do eu”, título de uma conferência apresentada originalmente em 1936, publicado alguns anos mais tarde:

Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem - cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago (...). A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem no estágio de infans, parecer-nos-á, pois, manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o eu [je] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (...). (LACAN, 1998, p. 97)

7 De acordo com Freud: “O superego surge, como sabemos, de uma identificação com o pai tomado

como modelo. Toda identificação desse tipo tem a natureza de uma dessexualização ou mesmo de uma sublimação. Parece então que, quando uma transformação desse tipo se efetua, ocorre ao mesmo tempo uma desfusão instintual. Após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição. Essa desfusão seria a fonte do caráter geral de severidade e crueldade apresentado pelo ideal - o seu ditatorial ‘farás’” (FREUD,1923. p. 34)

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O que está posto no estádio do espelho é essencialmente uma dupla releitura de Lacan da retomada da passagem do autoerotismo ao narcisismo, etapa intermediária à da escolha de objeto, na qual o próprio corpo é constituído mediante seu investimento libidinal, à luz de uma revisão do conceito de identificação. De acordo com Lacan, a identificação afetiva seria uma função psíquica estabelecida de forma original pela psicanálise freudiana, em especial no complexo de Édipo — interessante notar os adjetivos empregados na ocasião, em 1938, “afetiva” e “psíquica”, os quais posteriormente serão substituídos por “significante” e “estrutural” ou “topológica”, respectivamente —, destacando que “o emprego desse termo, na etapa que estamos estudando, é mal definido na doutrina: foi isso que tentamos suprir com uma teoria da identificação cujo momento genético designamos pela denominação de estádio do espelho” (LACAN, 2003a, p.46).

É através do estádio do espelho que o corpo pulsional, despedaçado, ganha contorno, e com isto, unidade. Trata-se, de acordo com Lacan, de um “drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação — e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade” (LACAN, 1998, p. 100), ou seja, que culmina em sua conformação ortopédica com essa imagem que se assume como uma identidade alienante.

Em “Complexos familiares na formação do indivíduo” de 1938, Lacan apresenta dois complexos estruturantes adicionais, complexo de desmame e complexo de intrusão, ambos logicamente anteriores aos complexos de Édipo e de castração instituídos por Freud.

O eu constitui-se ao mesmo tempo que o outro no drama do ciúme [jalousie]. Para o sujeito, essa é uma discordância que intervém na satisfação espetacular, graças à tendência que esta sugere. Ela implica a introdução de um objeto terceiro, que substitui a confusão afetiva e a ambiguidade espetacular pela concorrência com a situação triangular. Assim, o sujeito, que enveredou pelo ciúme por identificação, desemboca numa nova alternativa, onde se joga o destino da realidade: ou ele reencontra o objeto materno e se aferra à recusa do real e à destruição do outro, ou então, levado a algum outro objeto, acolhe-o sob a forma característica do conhecimento humano (LACAN, 2003a, p. 49).

O complexo de intrusão, juntamente ao estádio do espelho, é tido como fundamental para a constituição do eu, de forma que “esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do

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semelhante e pelo drama do ciúme primordial (...) a dialética que desde então liga o Eu (je) a situações socialmente elaboradas” (LACAN, 1998, p. 101).

Salientamos que, apesar do emprego dos termos eu [je] e sujeito, a consideração do sujeito do inconsciente, sujeito cindido, só será levada a cabo por Lacan anos depois. Embora o uso destes termos seja um indício de sua preocupação quanto à problemática desta diferenciação, ainda não se trata propriamente da constituição deste sujeito do desejo, mas sim da constituição do ego, do narcisismo, da unidade do eu, a partir de sua percepção antecipada pela imagem do outro:

O que foi que tentei fazer entender com o estádio do espelho? Que aquilo que existe no homem de desvinculado, de despedaçado, de anárquico, estabelece sua relação com suas percepções no plano de uma tensão totalmente original. É a imagem do seu corpo que é o princípio de toda unidade que ele percebe nos objetos. Ora, desta própria imagem, ele só percebe a unidade do lado de fora, e de maneira antecipada. Devido a esta relação dupla que tem consigo mesmo, é sempre ao redor da sombra errante do seu próprio eu que vão se estruturando todos os objetos do seu mundo. (LACAN, 1985, p. 211).

Lacan ainda não havia entrado no que se convencionou chamar de seu período estruturalista, caracterizado pelo aforismo do inconsciente estruturado como uma linguagem e pela noção de significante, amplamente desenvolvida e remanejada posteriormente. Julien (1993) apresenta com bastante clareza as diferentes perspectivas das sucessivas retomadas de Lacan do estádio do espelho, de acordo com o momento em que se situava em seu ensino. Em um primeiro momento, “até 1953, Lacan isola um imaginário em estado puro, onde se afirma a primazia do visual; é através dele que a criança constitui seu eu, a partir da imagem corporal do outro, enquanto vista em sua totalidade” (JULIEN, 1993, p. 138). Sua base conceitual se sustenta em teorias gestálticas, etológicas e fenomenológicas, configurando “totalidades plenas, superfícies vistas como fronteiras de um volume e sustentando a hipótese de uma substância (hypokeimenon) que faz a unidade permanente aquém das aparências instáveis” (JULIEN, 1993, p. 138), tratando-se do reinado de “um imaginário corporal, segundo a "geometria" do eu e de sua imagem especular. Domínio, unidade, estabilidade encontram nele seu fundamento euclidiano” (JULIEN, 1993, p. 138).

Esta primeira apresentação do estádio do espelho poderia ser realmente qualificada como advinda de uma tópica do imaginário, impregnada de noções

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evolutivas advindas das ciências naturais, privilegiando as relações duais de rivalidade e a percepção visual como experiência essencial. De acordo com Julien, esta primeira apresentação do estádio do espelho atribuía à necessidade de antecipação da imagem do corpo uma causa biológica, referida ao atraso na coordenação nervosa característica de uma prematuridade do nascimento. (JULIEN, 1993).

Lacan dá um passo adiante, o qual será indispensável para a fundamentação de sua tópica simbólica, com a introdução do Outro no estádio do espelho como destinatário de uma demanda de reconhecimento. Um esquema derivado do esquema óptico de Bouasse passa a ser empregado por Lacan para apresentar o estádio do espelho, mostrando como através de um jogo de espelho a imagem de um buque de flores aparece dentro de um vaso vazio.

Figura 1: Esquema óptico

O esquema mostra como a partir de elementos disjuntos no plano real, de um corpo despedaçado, aqui nas figuras do buque e do vaso, se obtém uma imagem virtual unificadora, notado por i’(a). Essa imagem unificadora que vem do exterior teria um valor constituinte na medida em que antecipa a formação do próprio eu. O espelho plano no centro do esquema que possibilita a formação da imagem virtual unificadora é notado como grande Outro, evidenciando a primazia dada a matriz simbólica como organizadora das relações imaginárias.

Trata-se para Lacan, neste período de seu, de situar a constituição do sujeito a partir do apelo à dimensão simbólica, como forma de atravessar o dualismo que se coloca em termos de exclusão no imaginário, da rivalidade com o

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semelhante. Destacamos desta nova apresentação do estádio do espelho a nítida diferenciação entre o ‘Ideal do eu’ e o ‘Eu ideal’ e a correlativa mudança de uma perspectiva evolutiva, ancorada nas ciências naturais, para dar primazia à dimensão simbólica. Esta questão está diretamente relacionada ao mecanismo da identificação, na medida em que a identificação primordial, a qual Lacan indica ser constituinte da instância do Ideal do Eu, não se dá por introjeção, mas pela incorporação8.

Cabe ressaltar também que o esquema óptico apresentado por Lacan carece de uma estrutura propriamente simbólica, mantendo uma dependência com a experiência visual do sujeito em questão, o que faz com que a qualifiquemos como da ordem de uma metáfora ou analogia, cujo uso se justifica somente em termos didáticos de simplificar uma problemática em termos que se tornem mais acessíveis à compreensão do leitor. Outros esquemas empregados por Lacan na mesma época9, diferentemente do esquema óptico, apresentam uma topologia implícita.

Quanto à diferenciação entre Ideal do eu e eu ideal — o primeiro, relativo à instância simbólica, instituído pela incorporação do Outro, o qual redobra as exigências narcísicas, e o segundo, referente à constituição da imagem egoica, a partir da imagem do outro, que possui os atributos desejáveis ao olhar do Outro —, Lacan apresenta em 1958 o matema da fórmula do Ideal do Eu.

8

Conforme Lacan: “no momento em que se trata da referência primordial mais mítica e, poder-se-ia dizer, e não seria nada errado dizer, a mais idealisante, pois é aquela onde se estrutura a função do ideal do eu, a referência primordial se faz sobre a evocação do corpo. Essas coisas que maneja- mos, esses termos, esses conceitos que deixamos numa espécie de imprecisão sem jamais nos perguntar de que se trata, merecem, entretanto, ser interrogados. Sabemos que, quando se trata da incorporação enquanto que se refere ao primeiro estádio inaugural da relação libidinal, parece que a questão não é simples. Seguramente, alguma coisa, aí, se distingue daquilo a que poderíamos ceder, isto é, fazer disso uma questão de representação, de imagem, o contrário do que mais tarde será a disseminação pelo mundo de nossas projeções diversamente afetivas. Não é absolutamente, disso que se trata. Não se trata nem mesmo do termo, que poderia ser ambíguo, de introjeção. Trata-se de incorporação, e nada indica que, seja o que for aqui, seja mesmo a se levar em conta no ativo de uma subjetividade”. (LACAN, 2006, p. 182).

9

Referimos-nos aos esquemas L, Z, R e I desenvolvidos por Lacan em 1955-1956. Os dois primeiros tratam de duas versões bastante semelhantes de um grafo composto por dois eixos, um simbólico e o outro imaginário, referidos à fala plena e a fala vazia, respectivamente. Com isto Lacan busca formalizar que a análise deve se deter na escuta da fala plena, do eixo simbólico, a qual o eixo imaginário está subordinado. Com os esquemas R e I, tratam-se de superfícies que se engendram a partir dos esquemas precedentes e apresentam a constituição do campo da realidade na neurose e na psicose, respectivamente. Acerca destes esquemas, sugerimos a leitura de Eidelsztein (1992).

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Figura 2: Fórmula do Ideal do Eu (LACAN, 2016, p. 127)

O matema mostra como o sujeito se precipita em uma imagem do outro, a qual, por sua vez, se ancora num objeto que depende do Ideal do Eu como “herdeiro de uma relação primeira do sujeito”:

O afeto do sujeito em presença de seu desejo é transferido para seu objeto enquanto narcísico. [...] Inversamene, o sujeito torna-se o quê? Como ele se estrutura? Por que se estrutura como eu e como Ideal do eu? Isso não poderá ser percebido em sua necessidade estrutural absolutamente rigorosa a não ser como retorno, devolução da delegação de afeto que o sujeito fez a esse objeto, o a. Desse a, na verdade ainda não falamos nunca, no sentido de que ainda não lhes mostrei que ele tem de ser formulado necessariamente não como a, mas como imagem de a, imagem do outro, o que, junto com o eu, constitui uma única e mesma coisa. Essa imagem é marcada com o índice de um I maiúsculo, de um Ideal do eu, na medida em que ele é o herdeiro de uma relação primeira do sujeito, não com seu desejo, mas com o desejo de sua mãe. Esse Ideal toma então o lugar do que foi experimentado pelo sujeito como o efeito de uma criança desejada. Na sequência desse desenvolvimento necessário, o I vem se inscrevendo num certo rastro. Impõe-se aqui uma transformação do algoritmo, que já posso escrever no quadro a título de anúncio. O I se inscreve numa certa relação com o outro, a, na medida em que este é afetado pelo próprio sujeito quando este é afetado por seu desejo. (LACAN, 2016, p. 126-127)

O que Lacan designa aqui como “desejo de sua mãe” poderia ser mais bem designado como desejo do Outro, um Outro marcado pela falta. Tudo se passa como se, a partir de um Ideal constituinte das coordenadas que determinam o desejável, a criança se constitui, egoicamente, através da imagem de seu semelhante, sempre em referência ao Ideal, porém sem jamais alcançá-lo plenamente, estando sempre mais ou menos próximo do que supõe se esperar dela.

Retornando ao exame das diferentes versões do estádio do espelho apresentadas por Lacan, em um terceiro momento lógico, a partir dos anos sessenta, vemos a colocação em causa do efeito da castração no imaginário, da falta que se apresenta como negativização do falo imaginário, notado pelo “menos phi”, -. De acordo com Julien, neste retorno ao estádio do espelho,

O que importa não é mais apenas a criança como vidente, mas saber-se o objeto do olhar do Outro. O ensino do ano de 1964 passa por este ponto. O assunto não é o domínio pela visão, mas o objeto escópico como objeto a, podendo faltar no campo do Outro. O que falta? Não a falta simbólica S(), mas uma falta imaginária: . E, neste lugar vazio, neste ponto cego,

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pode-se colocar, então, o objeto a, o olhar. [...] Assim, o júbilo nasce do cruzar dos olhares que cobre a falta fálica. Mas este cruzamento é apenas pontual, só atingindo o objeto, por mais evanescente que seja: o olhar como objeto da pulsão escópica. [...] A hiância causal não é a inércia biológica, mas a falta fálica na imagem especular. (JULIEN, 1993, 139-140)

Não se trata, portanto, de um evolucionismo, de uma teoria do desenvolvimento caracterizada pela maturação, e sim de uma teoria do sujeito, colocada em termos da alienação ao desejo do Outro, o que é evidenciado por uma consideração não das relações objetais, mas das distintas formas de falta do objeto. É dentro deste contexto em que Lacan apresenta um novo esquema óptico simplificado, com o falo negativizado no imaginário10 presente nas notações:

Figura 3: Esquema óptico simplificado

O que vemos no esquema é o recobrimento do vazio notado pelo objeto a por uma falta no imaginário (-), o que requer uma reelaboração do estatuto do Imaginário, desvinculado do narcisismo e do que se caracterizou como instância paranoica do eu, sede do desconhecimento e do engano11. De acordo com Julien,

a constituição da imagem especular, em sua primeira versão, repousa "na ligação com a qualidade de vidente" do sujeito. Esta ligação faz crer em um imaginário que dá ao eu os caracteres de uma superfície corporal que delimita uma figura plena e fechada, "substancial", porque constituída pelo

10

Há em Lacan duas formas de se conceber o falo: a primeira é o falo simbólico, notado por

, que se refere à significação fálica enquanto respondendo a uma falta estrutural da ordem simbólica; a segunda é o falo imaginário, que é invariavelmente negativizado, notado por -

, pois se trata de uma falta atribuída à imagem do outro, surgindo como mancha, borrão, o que denuncia sua função de véu.

11

Cabe aqui realizar uma diferenciação entre o desconhecimento e o engano característicos do imaginário, do engano como tropeço, encontro com o não-sabido do inconsciente, característicos do registro simbólico. Os primeiros se referem a um aspecto do conhecimento egoico, da forma ordinária de apreensão da realidade que crê poder fixar um significado, acreditando na univocidade de um referente no mundo para suas representações. Já o segundo, trata de um aspecto da lógica própria ao inconsciente, calcada nos processos primários de condensação e deslocamento descritos por Freud e retomados por Lacan, a partir de sua leitura de Jakobson, como metáfora e metonímia, que se manifesta nas lacunas no discurso consciente, através dos sonhos – entendidos como formações inconscientes -, lapsos e atos falhos.

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espelho que é o outro de figura semelhante. Se, ao contrário, o olhar do Outro está no fundamento desta constituição, é porque a imagem do outro está furada: o objeto a, no campo do Outro, está no lugar do buraco que é , na imagem. Donde a afirmativa (tardia!) de Lacan: "o eu nada mais é do que um buraco". Sem substância suposta! É justamente porque a definição mais segura do objeto a é esta: o objeto a é o que mantém a imagem; ou: porque a imagem é furada, ela só mantém o a. Isto é imaginável? Certamente não, a menos que seja "instituído um outro modo de imaginarização" na permanência do dito, como di-mensão, ou seja, nova forma de nomear, por uma nomeação imaginária. Na verdade, o buraco não é imaginado como ocorrendo posteriormente, sobre uma totalidade constituída por um dilaceramento da superfície; porém, ao contrário, gerando a figura: sua estrutura de borda é operante. Ora, a apresentação deste imaginário exige o abandono das propriedades métricas (tamanho, dimensões) da geometria clássica por uma topologia com propriedades qualitativas de vizinhança conservadas depois da transformação. Isto tem as propriedades de uma "figura" que permanecem invariáveis, depois de uma transformação sem dilaceramento nem recobrimento, de uma forma contínua — ou seja, o imaginário do "espelho", em sua nova apresentação. [...] um imaginário não ligado ao narcisismo e ao eu. Então é mostrada a exigência da apresentação de uma transformação contínua de uma imagem no avesso, a partir de -. (JULIEN, 1993, 140-141)

Após utilizar de modelos, esquemas e matemas como suporte de seu ensino, Lacan passa a empregar a topologia para articular a estrutura do sujeito em questão. Assim, não se poderia compreender o conceito de identificação desenvolvido por Lacan sem necessariamente considerar seu substrato topológico. A apresentação de uma transformação contínua de uma imagem ao avesso, mencionada por Julien, se refere ao exemplo da luva utilizado por Lacan, a qual serviria tanto para a mão esquerda quanto para a direita se considerarmos que possa ser revirada. O exemplo da luva antecipa o que Lacan coloca como problema central no seu seminário de 1976-1977 acerca da dissimetria na estrutura do significante, articulada topologicamente com os reviramentos tóricos. Veremos esta questão no subcapítulo 3.3.

Optamos por apresentar de forma integral a problemática da identificação articulada pelos diversos momentos de retomada do estádio do espelho com o objetivo de preservar a linha de seu desenvolvimento lógico, ultrapassando o âmbito das elaborações de Lacan realizadas anteriormente aos anos sessenta e antecipando algumas construções que pretendemos desenvolver ulteriormente, no decorrer desta dissertação.

Não iremos nos deter por demasiado nas demais elaborações de Lacan anteriores aos anos sessenta acerca da identificação, pois é a partir do seminário homônimo ao conceito, realizado logo no início desta década, que Lacan desenvolve

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noções que permanecem fundamentais até o final de seu ensino, constituindo, portanto, um marco em seu ensino acerca da questão da identificação.

O percurso de Lacan em sua análise do problema identitário se desenvolve a partir da retomada de elementos da psicanálise freudiana que são reelaborados a partir das noções de sujeito, traço unário e identificação significante. O significante é um conceito tomado de empréstimo da linguística estrutural de Saussure, subvertendo a relação unívoca com o significado que lhe fora atribuída originalmente, constituindo-se como o principal operador de leitura empregado por Lacan em seu programa de “Retorno à Freud”, resultando nos axiomas do inconsciente estruturado como uma linguagem e do significante como o que representa o sujeito para outro significante12. No início dos anos sessenta, Lacan desenvolve a noção de identificação significante que visa à reelaboração da identificação ao traço único em Freud em termos da repetição de um traço, traduzido por Lacan como traço unário, que estaria na origem da relação do sujeito com o significante (LACAN, 2003b). Assim, é a partir do sujeito ancorado numa experiência de fala que Lacan aborda o problema identitário, pois “é no nível de uma experiência de fala, aquela na qual confiamos através de seus equívocos, até de suas ambiguidades, sobre o que podemos abordar sob o termo de identificação” (LACAN, 2003b, p. 14).

Apesar da radicalidade da obra de Freud — e da determinação do psicanalista para desenvolvê-la em uma época em que abordar temas como a sexualidade infantil e a perversão generalizada lhe rendeu grande censura por parte da comunidade médica da qual fazia parte —, podemos dizer que é com a releitura de Lacan da invenção freudiana que a hipótese do inconsciente pôde ser levada às últimas consequências, justamente ao extrair o estatuto do sujeito cindido13 que nela se implica. Nas palavras de Lacan, a psicanálise não é uma visão de mundo, tampouco “uma filosofia que pretenda dar a chave do universo. Ela é comandada

12

Para uma discussão mais aprofundada quanto às referências linguísticas em Lacan, indicamos o trabalho de Arrivé (1999).

13

Trata-se do sujeito descentrado, desprovido de qualidades e desapropriado de seu saber, o qual deriva da tese de que nossas ações e pensamentos são guiados majoritariamente por processos inconscientes, sendo a consciência reduzida à apreensão superficial e fundamentalmente ilusória do que constitui a realidade. Lacan realiza uma diferenciação, ausente em Freud, entre o eu [je] como sujeito do inconsciente e o eu [moi] como ego, caracterizado por uma unidade constituída por uma imagem totalizante, o qual se crê indivisível e detentor de um conhecimento sobre si e sobre o mundo (LACAN, 1998).

Referências

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