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5. A estrutura topológica do nó borromeano mergulhado

5.3. As identificações na constituição da estrutura

Vemo-nos agora em condições de propor uma hipótese de maior amplitude acerca da identificação, articulando-a a constituição da estrutura do sujeito. Tal proposta busca resgatar o que há de fundamental acerca da identificação, desde como apresentada por Lacan através do que chamou do estádio do espelho, passando por suas elaborações acerca do traço unário, e finalmente em sua derradeira contribuição referente à topologia dos nós e dos reviramentos tóricos.

Nossa hipótese se baseia no estabelecimento de uma homologia entre os três modos de identificação e os momentos constitutivos da estrutura a partir do nó borromeano com consistência tórica, em uma sucessão de tempos lógicos. Assim, o mergulho do nó borromeano no toro triplo tridimensional seria a forma final obtida pela realização das três formas de identificação. A fim de obtermos uma leitura do tempo lógico da constituição da estrutura que contemple os três modos de identificação como momentos sucessivos deste procedimento, propomos realizar uma escansão temporal do mergulho do nó borromeano na superfície do toro triplo, distinguindo três etapas que permitem sua efetivação.

Partiremos da cadeia borromeana composta por três toros, estrutura mínima designada por Lacan. A superfície por nós adotada acolhe a operação inaugural, a qual se efetua por um corte em cada toro, cada corte realizando uma volta em cada eixo tórico, resultando na figura abaixo:

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Problema que hipoteticamente só poderia ser transposto por uma exaustiva descrição de todas as possibilidades de configuração levando em conta a relação dos percursos entre si, tarefa árdua diante da inesgotável combinatória que se produz ao deformar a superfície.

Figura 76: Cadeia borromeana com toros cortados (VAPPEREAU, 2007a).

Esta operação é seguida da sutura dos três toros, criando um toro triplo. A essa dupla operação, fazemos equivaler à incorporação, primeira forma de identificação. Lacan chegou a definir a paranoia como a colocação em continuidade do nó borromeano em nó de trevo (LACAN, 2007), essa outra forma de realizar a colocação em continuidade dos três registros poderia ser correlata à paranoia, não entendida aqui como subtipo de estrutura clínica psicótica, mas como instância fundamental na constituição do ego. A figura abaixo mostra essa operação:

Figura 77: Passagem da cadeia borromeana ao toro triplo (VAPPEREAU, 2007a).

A segunda forma de identificação, ao traço unário, seria o procedimento de resgatar o traço do corte original contido na sutura de seu fechamento. Esta operação efetua um retorno ao momento anterior à sutura em forma de grafo para reter e conservar o traço do objeto original.

Figura 78: Da marca da sutura ao traço unário (VAPPEREAU, 2007a).

Para uma apreensão mais rigorosa da estrutura em questão, diremos que a superfície do toro triplo de que se trata não é exatamente aquela de uma rosquinha oca com três furos, apesar das figuras apresentadas. Esse objeto topológico que já conhecemos é na realidade o mergulho do toro de três furos bidimensional no espaço tridimensional. Teríamos que dar um passo para trás para compreender que o toro triplo bidimensional é equivalente a um polígono de doze arestas, um dodecágono, que, ao ser fechado pela sutura de suas arestas duas a duas, de acordo com determinada configuração, forma o toro triplo fechado, conforme o conhecemos, chamado também de superfície de gênero três.

A abordagem do toro como superfície bidimensional, sem furos, é indicada por Lacan em seu texto “O aturdito”, no qual afirma que “o toro só tem furo, central ou circular, para quem o olha como objeto, não para quem é seu sujeito” (LACAN, 2003a, p. 487). Essa afirmação de Lacan contrasta com aquela referente ao toro ser uma estrutura cujo centro se situa fora de si, portanto, furada, apresentando uma extimidade76. A contradição é somente aparente na medida em que no primeiro caso se trata do toro bidimensional, enquanto no segundo se trata do toro mergulhado no espaço tridimensional. Desfeita a aparente paradoxalidade da questão nos resta indagar sobre qual estado da estrutura topológica do toro se

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O conceito de extimidade é caro à Lacan para indicar a excentricidade do sujeito do inconsciente - no sentido de estar descentrado, desalojado de si mesmo – o que faz com que o reconhecimento de seu íntimo venha de fora, tal como no infamiliar de Freud, em oposição ao indivíduo concêntrico do conhecimento, cujo centro é coincidente consigo mesmo.

trata em psicanálise. A questão é mais complexa do que parece, de modo que não basta afirmarmos que o sujeito enquanto superfície bidimensional não tem acesso ao seu furo e que somente como objeto tridimensional seria furado.

Duas variáveis permeiam a questão: a primeira é de que somente pode haver desejo e demanda, como equivalentes aos eixos central e periférico, respectivamente, na medida em que o toro é tridimensional, pois, enquanto superfície bidimensional não há distinção que permita saber qual dos eixos é do desejo e qual é da demanda; a segunda diz respeito à extimidade, pois, com o toro simples tridimensional caímos facilmente no engôdo de que o ponto central da superfície se encontra necessariamente em seu exterior — o tal ponto êxtimo — porém, quando se trata do toro triplo, a ilusão se dissipa, revelando que o ponto central da estrutura, supostamente o mais íntimo, não necessariamente se situa em um dos furos que a atravessam, podendo muito bem ser simplesmente localizado em seu interior — o que retroativamente nos faz ver que o mesmo é válido mesmo para o toro simples, se o figurarmos como uma esfera munida de uma alça.

Em uma tentativa de resolver esse impasse, parece-nos possível pensar que em um primeiro momento o sujeito está identificado à superfície bidimensional, mas, na medida em que se vê articulado ao objeto a pela fantasia, passa a ser tomado como superfície mergulhada no espaço tridimensional. Essa hipótese nos parece dar conta do primeiro problema, porém não resolve a questão da extimidade. É aí que entra a problemática do reviramento. No seminário sobre a identificação, o furo do toro coincidia com o ponto mais íntimo da estrutura e por aí entrava o toro complementar do Outro com o qual estabelece uma relação especular totalmente simétrica77. Quando vemos que não há necessariamente extimidade alguma colocada pelo toro triplo, faz-se necessário recorrer ao reviramento, pois somente por essa operação o centro mais íntimo da estrutura se alterna com um ponto em seu exterior.

De acordo Vappereau (2007b), o estádio do espelho trata da problemática acerca da relação entre o sujeito e o objeto, sendo topologicamente elaborada pelo autor como passagem de uma posição intrínseca — em termos discursivos e em relação ao corpo — para uma posição extrínseca, característica do narcisismo. Esta

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Ainda que Lacan utilize o termo “dissimetria” ao se referir a diferença entre o circuito que se estabelece entre demanda e desejo nos dois toros, há que se reconhecer que se trata de uma relação especular, completamente simétrica entre sujeito e Outro.

mesma questão é elaborada em outro momento por Vappereau (2000) em termos de objeto e sombra do objeto, topologicamente identificáveis ao nó e ao grafo planar do nó, respectivamente78. Nossa acepção da problemática destacada por Vappereau é que a sombra do objeto não deve ser tomada como grafo planar do nó, mas sim como inscrição no mapa bidimensional da superfície, supondo seu desconhecimento do enodamento que somente se efetiva na terceira dimensão. Somente assim se faz possível articular a passagem do discurso intrínseco ao discurso extrínseco, o qual seria justamente a passagem do mapa bidimensional ao mergulho tridimensional.

Em nosso entendimento, que se distancia da posição de Vappereau, a ideia da sombra do objeto é correlata da posição do sujeito prévia a sua articulação fantasmática ao objeto a. Sujeito e sombra do objeto são assim dois nomes da mesma condição intrínseca do discurso. Em um momento inicial à sua constituição, o sujeito desconhece a estrutura do nó, se restringindo ao mapa bidimensional. A terceira identificação, chamada de identificação histérica, introduz o narcisismo como estádio do espelho renovado, ao se efetuar pelo mergulho do toro triplo bidimensional no espaço tridimensional, realizando a passagem do intrínseco ao extrínseco.

Ressaltamos que, embora a passagem de um discurso intrínseco a um discurso extrínseco seja realizada pelo mergulho do toro triplo no espaço tridimensional, não haveria uma univocidade nesse procedimento, podendo a mesma “sombra” corresponder a “objetos” distintos — utilizando-se dos termos de Vappereau. Esses distintos objetos, aqui entendidos como diferentes mergulhos do nó borromeano no triplo toro inserido no espaço tridimensional — para ser mais

78 Cf. Vappereau: “O que disse em Buenos Aires nesse momento, e em Paris quando voltei, se trata

do que chamo da sombra de um nó. Dois nós podem ser como esses, parecidos mas diferentes e não são sobreponiveis no espaço tridimensional. No entanto, se tomo a sombra de cada um destes objetos não marco mais a passagem por-cima ou por-baixo. Estes dois objetos diferentes tem a mesma sombra. Não vou entrar nesta exposição na estrutura da psicose mas precisarei que a foraclusão, que é o termo colocado por Lacan, se refere justamente sobre esta questão que Freud trata em termos de sombra de objeto. Não se trata somente do retiro da libido de objeto sobre a libido narcisista na psicose paranoica. Freud nos diz que o sujeito faz uma tentativa de cura tratando de retornar, de voltar ao objeto, e diz que é nesta tentativa onde o sujeito fracassa. E, na falta de encontrar o objeto, encontra somente a sombra do objeto. É justamente a propósito desta diferença entre o objeto e a sombra do objeto, a dificuldade de jogar de uma maneira dinâmica entre um discurso intrínseco e um discurso extrínseco. No espelho a fórmula de Freud é límpida. A propósito do narcisismo o sujeito se toma como um objeto; isso é o que se chama de posição extrínseca. Mas há o mesmo exercício a se fazer entre o objeto e a sombra do objeto. Há uma posição intrínseca que é a sombra, uma posição extrínseca que é o objeto e essa falta de poder articular juntas estas duas posições. É a falta disso que o sujeito fracassa em sua tentativa de curar”. (VAPPEREAU, 2000, tradução do autor).

exato, quatro mergulhos ou objetos, conforme apresentados no subcapítulo anterior — correspondem aos resultados das duas formas de inversões passíveis de serem realizadas por homotopia regular, operadas através da imersão do toro triplo no espaço tridimensional. A consideração dessas diferentes disposições da estrutura seria correlata da queda da imagem especular do objeto, e corresponde a nada menos que a construção da fantasia, na qual sujeito e objeto são conjugados, conforme o matema de Lacan79.

A figura a seguir mostra essa passagem do dodecágono à superfície de gênero três:

Figura 79: Montagem do dodecágono em superfície fechada de gênero três (HILBERT & COHN- VOSSEN, 1999, p. 301)

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Em uma crítica direta a Vappereau, diremos que seu interesse pela questão da sombra do nó como grafo planar, projetivo, reflete os problemas inerentes a sua opção metodológica, a qual julgamos francamente equivocada, ao adotar uma concepção freudo-lacaniana que supõe continuidade entre o ensino dos dois psicanalistas aonde não há, ignorando algumas rupturas epistemológicas fundamentais, em especial no que concerne a problemática da representação freudiana, a qual é absolutamente reformulada no referencial teórico lacaniano. Isso se materializa em sua tentativa de apreender a topologia dos nós de Lacan através de invariantes diagramáticos do nó, o que faz com que se limite a uma apropriação do nó como projeção - diferentemente de nossa abordagem do nó como incorporação em uma superfície adequada para seu mergulho. Nesse sentido, a suposta tentativa fracassada do sujeito, que, na falta de encontrar o objeto, encontra a sombra, diz respeito ao próprio autor em sua abordagem dos nós. Obviamente que essa crítica se dirige mais especificamente aos desenvolvimentos topológicos de Vappereau acerca dos invariantes diagramáticos do nó, havendo que se reconhecer que o autor realiza uma variedade de desenvolvimentos topológicos que vão além destes, inclusive abordando o mergulho do nó e seu efeito de corte, os quais são de grande relevância e pertinência, sendo amplamente utilizados por nós.

Falta à figura apresentada as setas que indicam a orientação de cada aresta, configurando a forma de fechamento da superfície. A seguir apresentamos a escrita do nó borromeano sobre o dodecágono e seu fechamento resultando no toro triplo mergulhado em três dimensões:

Figura 80: Nó borromeano escrito no dodecágono e sobre o toro triplo

Para facilitar a visualização, os elos do nó foram coloridos e as arestas do dodecágono foram orientadas, assim como a linha de fechamento das arestas mostradas no toro triplo. Para que esse mapa do toro triplo seja adequado à escrita do nó borromeano é necessário respeitar a ordem em que cada um dos elos passa pelas arestas, de acordo com suas respectivas orientações indicadas pelas setas, e que não haja cruzamento dos elos, o que se mostra correto, ao menos de acordo com a escrita que obtivemos.

Essa passagem do toro triplo bidimensional, apresentado pelo dodecágono, ao toro triplo mergulhado no espaço tridimensional seria equivalente ao terceiro modo de identificação, a identificação histérica, conhecida também como identificação ao desejo do Outro. É somente a partir do mergulho do toro triplo bidimensional no espaço de três dimensões que surgem os furos centrais e periféricos do toro triplo, ainda que já estivessem dados pelas coordenadas simbólicas da superfície. A identificação ao desejo do Outro é tributária da articulação do vazio dos eixos periféricos ao ‘nada’ dos furos centrais. A negativização do falo Simbólico em falo imaginário, menos phi, surgiria deste procedimento.

Para essa hipótese que desenvolvemos acerca da constituição da estrutura apresentamos a tabela abaixo:

Modalidade de Identificação Operação Topológica

Identificação Originária Nó borromeano composto por três toros Identificação

Primária

Incorporação Corte/Sutura em toro triplo Assimilação / Traço unário Retenção da marca do corte original Idealização / Histérica / Desejo

do Outro

Toro triplo como objeto – mergulho no espaço tridimensional

Tabela 4: Tabela da constituição da estrutura topológica relacionada às identificações

Nota-se que essa leitura que realizamos apresenta a mesma estrutura proposta por Vappereau acerca das identificações, na qual a identificação primária é dividida em três modalidades. Trata-se de uma escansão temporal, homóloga àquela desenvolvida por Lacan acerca do tempo lógico, que culmina na identificação como antecipação da identidade sob um fundo de incerteza. A dúvida aqui estaria relacionada à equivocidade do procedimento de fechamento, o qual pode resultar em mergulhos distintos do nó borromeano.