• Nenhum resultado encontrado

4. Desenvolvimentos topológicos a partir de Lacan: o estado da arte

4.2. A involução significante e o movimento-nó

Vappereau é um dos poucos autores a desbravar o campo da topologia lacaniana de forma a produzir uma obra coesa e que busca dar conta da resolução dos impasses deixados por Lacan ao eleger esta via como principal opção metodológica para a investigação e transmissão da psicanálise. A apresentação de algumas de suas principais contribuições para a topologia lacaniana se faz necessária para delinear o estado da problemática mais geral acerca do estatuto e dos empregos da topologia, e mais especificamente, no que se refere ao substrato topológico da identificação.

Vappereau (2012) esboça três direções acerca do estudo da topologia lacaniana, referentes às questões levantadas por Lacan acerca da involução significante, da composição de cadeias com quatro elos e da generalização do nó borromeano. Os problemas delimitados e desenvolvimentos topológicos propostos por Vappereau ao longo de sua trajetória são incontornáveis, sendo a principal referência de um campo complexo e ainda pouco explorado.

Enfocaremos os desenvolvimentos de Vappereau acerca de sua releitura topológica da identificação em Freud e em Lacan a partir do que ele denomina como involução significante64, além de seus desenvolvimentos acerca da generalização do nó borromeano em sua relação com a operação topológica que propõe com o movimento-nó.

A. A involução significante

Para Vappereau, não haveria três modos de identificação como é consenso entre os lacanianos, e sim quatro. Para chegar a estes quatro modos teríamos de partir de seis termos, distinguindo entre identificação primeira, identificação primária e identificação secundária, e os três modos de identificação abordados por Lacan no seminário IX, que segundo o autor, seriam modalidades da identificação primária: identificação ao traço unário, identificação ao amor ao pai e

64

Termo que Vappereau atribui à Lacan, supostamente utilizado no Seminário XXII, o qual, no entanto, acordo com nossa pesquisa não se verifica: Lacan fala em função involutiva e remete à cópula do diferente ao idêntico, o que Vappereau nomeia de involução significante.

identificação histérica ao objeto do desejo, desejo do Outro. (VAPPEREAU, 1998). Esses seis termos são colocados por Vappereau sobre o grafo de Freud acerca da primeira tópica na carta nº 52 à Fliess.

Figura 50: As identificações situadas em relação à primeira tópica de Freud, por Vappereau (1998)

O esquema freudiano passa então por um procedimento de dobradura, chegando ao esquema F, conforme apresentado abaixo:

Figura 51: Dobradura da tópica de Freud em Esquema F, por Vappereau (1998)

Vê-se de imediato a semelhança do esquema F com o esquema R de Lacan. É justamente essa equivalência que Vappereau realiza, mediante uma báscula entre sua versão aberta — como no esquema R — e fechada — como no esquema L de Lacan.

Figura 52: Abertura e fechamento do inconsciente nos esquemas R e L, por Vappereau (1998)

O fechamento da zona da realidade (R) faz com que onde estavam designados i, m,I e M passe a subsistir somente a linha entre a e a’. Se retomarmos a inscrição do grafo freudiano, a linha da percepção que se funde com a linha do consciente. De acordo com Vappereau,

É o momento do fechamento do inconsciente. O momento no qual a identificação primeira ao Ideal se enoda à identificação secundária. Elas se identificam por não formar mais que uma só e mesma identificação. No estado R da estrutura distinguimos cinco termos: a primeira, a última e os três modos da primária. No estado L da estrutura nós distinguimos três termos: não resta mais de dois modos da primária, a identificação ao traço unário e a histérica, e a conjunção das identificações primeira e secundária não formam mais que uma só. A identificação ao amor ao pai se esvanece no processo primário, ela é como que apagada, se reduzindo a uma linha sem pontos. A solução ao problema da identificação colocado por Freud se encontra entre esses doi estados R e L, entre cinco e três no quatro que se encontra formulado nos termos dos três modos da primária, dos quais um pode se evanescer para se reduzir a um corte e a conjunção disjuntiva da primeira com a secundária. (VAPPEREAU, 1998, p. 79 – tradução do autor). O autor em seguida apresenta as versões em termos de superfícies e de nós das três formas de identificações primárias realizadas por Lacan, conforme apresentados no capítulo anterior, referentes aos sucessivos reviramentos tóricos e ao triskel, a cadeia de quatro elos e a cadeia borromeana, respectivamente.

O procedimento de dobradura do esquema de Freud e sua relação com os esquemas L e R de Lacan, como báscula entre a abertura e fechamento do inconsciente, é chamado de involução significante. Este termo também é utilizado para descrever operações de corte e sutura realizadas em superfícies topológicas, passando, ora de superfície biláteras para superfícies uniláteras, ora de esquemas abertos para esquemas fechados, e também da cadeia borromeana para a cadeia de quatro elos. Tal operação, mais especificamente àquela referida à passagem do toro à banda de Moebius, é proposta oralmente por Lacan em “O aturdito” (2003).

Figura 53: Transformação do toro em banda de Moebius simples

Vappereau mostra como a mesma operação pode ser realizada a partir da efetuação de um corte feito em nó de trevo, o que resulta em uma banda de Moebius tripla, ou seja, composta por três semi-torções.

Para realizar o procedimento equivalente no caso do nó borromeano é necessário primeiramente dispô-lo sobre um toro triplo, para em seguida adicionar um corte em nó de trevo suplementar, conforme mostra a figura abaixo:

Figura 55: Transformação do toro triplo em superfície de tensão do nó borromeano (VAPPEREAU, 2004).

Nota-se que, ao efetuar os cortes iniciais, a superfície do toro triplo é divida em duas superfícies idênticas, que permanecem ligadas entre si. Vappereau as toma separadamente para poder realizar o restante do procedimento, efetuado por uma sutura que transforma cada uma das duas superfícies na superfície de tensão do nó borromeano. O procedimento não seria possível caso não separasse as duas superfícies, tomando-as individualmente. Este procedimento realiza, segundo Vappereau (2004), a involução entre o multitoro e o plano projetivo.

Reteremos destes desenvolvimentos topológicos de Vappereau especialmente o método de correlação topológica que busca apreender um movimento de abertura e fechamento que caracteriza a dinâmica própria ao inconsciente. O fator temporal de um tempo à posteriori que articula desenvolvimentos e esquemas de épocas distintas e permite esclarecer certas

dificuldades, como é o caso da distinção entre identificação primeira e secundária, também se mostra exemplar de um método de leitura no qual a topologia é utilizada como forma de abordar problemas complexos e propor soluções que somente ela tem condições de articular.

B. O movimento-nó e a generalização do nó borromeano

O tratamento que Vappereau (2008) dá a questão da generalização do nó borromeano é de formalizar uma nova forma de movimento de modificação dos cruzamentos que permita o desenlaçamento do nó em teorias topológicas que admitem apenas movimentos impróprios, próprios e híbridos, com o intuito de levar até as últimas consequências o que ele compreende que seria generalização a partir do nó borromeano generalizado apresentado por Lacan, ou seja, a propriedade de se desfazer perante certo número de transformações contínuas.

Vappereau coloca que para se compreender o que seria em última instância a generalização que Lacan propõe, se faz necessário ir além do nó borromeano generalizado, a partir da formalização topológica de operações que modificam as cadeias, o que resulta em uma proposta bastante original que chama de movimento-nó65. Vappereau desenvolve uma operação topológica de desenodamento, cujos fundamentos são similares aos dos movimentos de Reidemeister (ADAMS, 2004), amplamente conhecidos pelos topólogos, com a diferença de que últimos são feitos dentro de uma perspectiva fisicalista dos nós, ou seja, sem modificar a estrutura do nó, enquanto o movimento-nó (N3) de Vappereau altera a estrutura, não podendo ser replicado em modelos físicos sem causar rupturas.

Figura 56: Movimento-nó (N3) (VAPPEREAU, 2008)

65

Operação a qual, de acordo com Vappereau, Lacan teria empregado por duas vezes em seu seminário, sem explicitá-la.

Vappereau (2008) se apoia na equivalência estabelecida por Lacan entre o triskel, fundamento do movimento-nó (N3), e o traço unário para dar o passo lógico seguinte que articula a generalização do nó borromeano com a questão da identificação, equivalendo a operação topológica do movimento-nó àquela instaurada pelo traço unário.

O que se generaliza não é mais a propriedade borromeana conforme a definimos no capítulo anterior, portanto, não importa mais a questão de estabelecer as regras de formação de cadeias que possam ser reduzidas a uma cadeia brunniana de quatro elos, mas sim as formas de se desfazer os nós através de transformações contínuas, permitidas por um entendimento não fisicalista destes — ou seja, considerando que sejam imersos na terceira dimensão e submetidos a operações impensáveis no universo que conserva o princípio partes extra partes. A imagem a seguir mostra o emprego do movimento-nó (N3) para os casos do nó de trevo, cadeia de WhiteHead e cadeia borromeana, desfeitas a partir de movimentos próprios, híbridos e impróprios, respectivamente.

Figura 57: Nó de trevo, cadeia de WhiteHead e cadeia borromeana desfeitas por N3 (VAPPEREAU, 2008)

O entendimento subjacente à proposta de Vappereau é de que o que se generaliza é a forma do nó se desfazer, o que nó borromeano generalizado proposto por Lacan só realiza em parte e somente o nó borromeano fortemente generalizado

realmente o atinge, se desfazendo por quatro movimentos-nó, exclusivamente próprios, híbridos ou impróprios.

Figura 58: Nó borromeano fortemente generalizado (VAPPEREAU, 2008)

Se o nó borromeano generalizado apresentado por Lacan só se desfaz por movimentos de deformação exclusivamente próprios, ou seja, de um nó consigo mesmo, o nó borromeano fortemente generalizado pode ser desfeito em um número maior de teorias do nó, cada qual permitindo determinadas operações, só não sendo desfeito pela teoria clássica dos nós, a qual não permite nenhum movimento de auto-atravessamento. Com esse procedimento, Vappereau resgata a propriedade de que o nó se desfaça por movimentos de deformação contínua cujos efeitos não se limitem a somente um dos elos. Vappereau ressalta que este não é o único nó borromeano fortemente generalizado possível, mas o nó mais simples que possui essa propriedade.

Vappereau apresenta detalhadamente as propriedades de

desenodamento da cadeia proposta por ele, porém não explicita a gênese de sua formação. Somente em um pequeno artigo de Mack (2015) encontramos indicações precisas acerca da constituição desta cadeia, a qual se efetua por um procedimento similar àquele do nó borromeano generalizado apresentado por Lacan, porém ao partir de uma cadeia brunniana de cinco elos.

A figura abaixo mostra a constituição do nó borromeano fortemente generalizado a partir de uma diferente escrita da mesma cadeia acima, através de duas colocações em continuidade.

Figura 60: Colocação em continuidade dos três elos medianos de uma cadeia brunniana de cinco elos, resultando no nó borromeano fortemente generalizado

Dando um passo além, nos parece importante indicar que é possível construir outras cadeias borromeanas generalizadas, questão que não chegou a ser desenvolvida por Lacan. Tal indicação se mostra preciosa para ampliar o horizonte da problemática dos nós, a qual foi deixada em aberto por Lacan e permanece irresoluta, não se limitando ao nó por ele apresentado. As figuras a seguir mostram a constituição de um nó borromeano generalizado 6-2, ou seja, pela efetuação de duas colocações em continuidade que transformam uma cadeia brunniana de seis elos em uma cadeia brunniana de quatro elos.

Figura 61: Colocação em continuidade dos três elos medianos de uma cadeia brunniana de seis elos (transformação incompleta)

Esta cadeia foi constituída por Vappereau e figura no site do grupo Topologie en extension, porém só encontramos a indicação de sua composição a partir de uma cadeia brunniana de seis elos em Mack (2015).

Figura 62: Nó borromeano generalizado 6-2 (Vappereau, logo Topologie en extension).

Esse nó borromeano generalizado é de grande interesse para nós, pois apresenta uma configuração do tipo “três mais um”, ou seja, os três elos coloridos ocupam posições equivalentes na cadeia, enquanto o elo central é não-equivalente aos demais. Veremos no capítulo seguinte como a estrutura do nó borromeano mergulhado no toro simples, quando submetida às operações de reviramento e inversão, apresenta uma configuração semelhante a esta.

Se nos cabe realizar uma crítica em relação aos desenvolvimentos de Vappereau apresentados, acreditamos que a mera obtenção da superfície de tensão de um nó ou generalização de uma propriedade de dissolução do nó pouco explora a riqueza de articulações que a topologia desenvolvida por Lacan acerca dos nós e superfícies possibilita, incorrendo no risco de perder o rumo do que efetivamente seria de nosso interesse, já que se trata do que essas problemáticas podem contribuir para a psicanálise66.

Parece-nos que a opção de Vappereau em utilizar o termo de involução significante exclusivamente para pensar, em termos de topologia das superfícies, a passagem de uma superfície bilátera a uma superfície unilátera pela obtenção da

66

Não descartamos a importância do procedimento de generalização para lidar com certas questões colocadas pela topologia lacaniana, tanto que realizamos outrora (AFFONSO, 2016) uma generalização, não da propriedade borromeana, mas da composição de nós que apresentam o mesmo padrão e poderiam ser úteis para se pensar a estrutura da repetição significante, série na qual o nó borromeano não aparece, cujos primeiros objetos são o nó trivial, o nó de trevo e o nó 8_18, o qual examinamos amplamente. A crítica incide não sobre o procedimento em si, mas na redução da topologia lacaniana a problemáticas estritamente topológicas que deixam de lado questões fundamentais para a psicanalise.

superfície de tensão de dado nó ou cadeia — o que o autor retém da articulação apresentada por Lacan em “O aturdito” acerca da transformação de um toro em uma banda de Moebius através de uma operação de corte seguida de sutura — não seria a única forma de colocar a questão, afinal, estamos em condições de pensar as relações entre interior e exterior e entre continuidade e descontinuidade a partir da superfície tórica através de reviramentos e inversões, operações que implicam a dimensão temporal de sua efetivação.

Consideramos que o nó borromeano tem um valor de síntese justamente por articular diferentes conceitos e problemáticas, principalmente acerca das relações entre os registros, desses com as modalidades de gozo, além das identificações, o tríptico freudiano e outras categorias relativas ao objeto a e a pulsão — questões que não são abordadas por Vappereau, ao menos no que se refere à relação destas com as principais problemáticas postas por ele acerca da involução significante e da generalização do nó borromeano. A questão primordial colocada pela topologia lacaniana não diz respeito exclusivamente ao nó como objeto matemático, mas a pertinência da topologia em articular a estrutura do sujeito e, em última instância, o ato analítico como modificação da economia de gozo.