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2. Identificação em Lacan nos anos sessenta

2.2. O cross-cap: da fantasia ao desejo do analista

Em 1964 a questão da identificação retorna a pauta de Lacan, mais especificamente acerca do fim da análise guiado pelo desejo do analista. Aqui a superfície topológica utilizada por Lacan é o cross-cap, ou plano projetivo, amplamente desenvolvida pelo psicanalista no seminário em questão, acerca da fantasia e do objeto a como olhar.

Figura 13: O trajeto do oito-interior do cross-cap (LACAN, 2008b, p. 263).

A topologia do cross-cap é utilizada para elaborar um tema recorrente em Lacan, a saber, a problemática da finalidade do tratamento psicanalítico. Contrapondo-se às concepções vigentes no campo psicanalítico, coloca a questão em termos de uma análise que conduza mais além do efeito de sugestão da hipnose e da idealização do analista. O analista é convocado a se distanciar desta posição idealizada para encarnar o objeto a, tomado aqui como dejeto, como o objeto a ser descartado. Nas palavras de Lacan:

Ora, quem não sabe que foi ao se distinguir da hipnose que a análise se instituiu? Pois a mola fundamental da operação analítica e a manutenção da distancia entre o I e o a. Para Ihes dar fórmulas-referência, direi — se a transferência é o que, da pulsão, desvia a demanda, o desejo do analista é aquilo que a traz ali de volta. E, por esta via, ele isola o a, o põe à maior distância possível do I que ele, o analista, é chamado pelo sujeito a encarnar. É dessa idealização que o analista tem que tombar para ser o suporte do a separador, na medida em que seu desejo lhe permite, numa hipótese às avessas, encarnar, ele, o hipnotizado. Essa travessia do plano da identificação é possível. (LACAN, 2008b, p. 264).

Essa travessia para além do plano da identificação ao analista se pauta na noção de desejo do analisa, pois “é na medida em que o desejo do analista, que resta um x, tende para um sentido exatamente contrário à identificação, que a

travessia do plano da identificação é possível, pelo intermédio da separação do sujeito na experiência” (LACAN, 2008b, p. 265).

Logo em seguida Lacan se remete ao esquema de Freud para a constituição das massas e o comenta, substituindo o termo “objeto” pelo objeto a.

Figura 14: Esquema de Freud, apresentado por Lacan (2008b, p. 264).

Esse comentário não passa despercebido por Porge (2009), que coloca a questão de que Lacan não esclarece se o posicionamento do objeto a deve substituir onde Freud escreve “objeto exterior”, no singular, ou “objetos do eu”, no plural.

É a partir deste lapso de Lacan que Porge propõe uma releitura do esquema de Freud que leve a sério essa questão, justamente ao fazer coincidir os dois termos, transformando o esquema de Freud no esquema de perspectivação trabalhado amplamente por Lacan no mesmo seminário e tomado como equivalente ao cross-cap ou plano projetivo, definido como estrutura da fantasia, do objeto a como “olhar”, objeto da pulsão escópica.

Seguiremos então a proposta de Porge de releitura deste esquema:

Se aceitarmos a “transformação” do esquema de Freud em esquema de perspectiva, poderemos fazer corresponder, aos lugares dos termos freudianos, os lugares do esquema de perspectiva: o objeto exterior (único) corresponde ao ponto de fuga do quadro (N∞); os objetos, à linha de terra; o eu, aos pontos sobre as retas de projeção dos raios do olho; o ideal do eu, aos pontos sobre as retas infinitas. Essa interpretação do esquema de Freud tem diversas vantagens. Primeiramente, permite determinar em que lugar Lacan põe a, quando o inscreve no esquema de Freud: é no lugar dos dois, de uma só vez, visto que o objeto exterior, no lugar do ponto de fuga, se encontra sobre o plano de projeção que passa pela linha de terra. (PORGE, 2009, p. 187).

A leitura de Porge permite uma nova leitura acerca da noção de “distância” empregada por Lacan acerca da operação analítica entre os termos I e a, na medida em que “se refere à medida aritmética da divisão e à topologia da vizinhança e do corte. A divisão é a de uma incomensurabilidade, ou medida não comum, do a ao I do traço unário do ideal do eu”. (PORGE, 2009, p. 188). Para o autor, a releitura do esquema de Freud que o transforma no plano projetivo, além de subverter a oposição indivíduo-coletivo, remete ao sujeito dividido pelo objeto a e sua incomensurabilidade à unidade. Mais do que isso, essa leitura acolhe a problemática da ausência de resposta de Lacan à confusão realizada por Freud relativa à falta de distinção entre o pai da horda e o Ideal do eu, a qual somente será apresentada em 1972 (PORGE, 2009). Vejamos o que Lacan diz sobre a questão em 1972:

Uma coisa é evidente: é o caráter-chave, no pensamento de Freud, do todos. A ideia de multidão [foule] que ele herdou daquele imbecil chamado Gustave Le Bom, serviu-Ihe para entificar este todos. Não admira que ele tenha descoberto aí a necessidade de um existe, do qual, na ocasião, viu apenas o aspecto que traduziu como o traço unário, der einziger Zug. O traço unário nada a ver com o Há-um que tento abordar este ano na ideia de não haver nada melhor a fazer, o que exprimo por ...ou pior. Não foi à toa, portanto, que esse dizer eu o disse adverbialmente. Indico desde já que o traço unário é aquilo pelo qual se marca a repetição como tal. A repetição não fundamenta nenhum todos nem identifica nada, porque, tautologicamente, se assim posso dizer, não pode haver dela uma primeira. Toda essa psicologia de algo que é traduzido como das massas fracassa no que se trataria de ver aí, com um pouco mais de sorte: a natureza do não todos que a funda, natureza que é justamente a d’a mulher, a ser posta entre aspas, a qual, para o papai Freud, constituiu até o fim o problema, o problema do que ela quer. (LACAN, 2012, p. 160-161).

Faz-se necessário ressaltar que Lacan realiza este comentário no contexto da subversão que opera na lógica clássica, através da introdução da negação que incide sobre os quantificadores ‘universal’ e ‘existencial’, situando a posição do sujeito frente à castração, no que ele chama de ‘fórmulas quânticas da sexuação’. No caso, trata-se de uma báscula entre a função de exceção que fundaria o universal da castração do lado masculino e a função do não-todo que caracteriza a vertente feminina das fórmulas da sexuação. Essas novas definições no ensino de Lacan o levam a falar do uniano, diferente do unário, como relativo à bifididade do Um. De acordo com Porge:

O uniano designa o modo pelo qual o unário — traço contável, traço da diferença pura, da repetição, núcleo do ideal do eu — se une, em sua gênese contável, ao vazio, não como dizia Frege, como sucessor do 0 (zero), mas como síncrono a ele. Se o um unário funda o ideal do eu, o um uniano funda a função de exceção do pai, precisamente o de Totem e tabu, o ao menos um que faz exceção à castração, existe x não phi de x, exceção que confirma a universalidade, o “para todos” da castração, para todo x phi de x, as duas fórmulas associadas definindo a vertente masculina da não- relação sexual. A confusão entre ideal do eu e pai da horda, que Freud entretém, talvez involuntariamente, encontraria sua raiz e sua resolução no que Lacan chama de bifididade do um, ou seja, essa distinção entre o unário e o uniano. Ora, acontece que, em 1972, em ...Ou pior, Lacan aplica precisamente essa distinção à sua leitura do esquema freudiano. Com isso ele confirma a autonomia operatória do grafo freudiano transformado, mas também inverte o fundamento que se atribui, em geral, à massa de ser constituída como um todo pela exceção do líder, no modelo da horda (PORGE, 2009, p. 191).

A outra vertente, feminina, das fórmulas da sexuação permite uma leitura suplementar à questão da identificação na psicologia das massas, a qual incide diretamente sobre a oposição indivíduo-coletivo. De acordo com o autor, “se a massa freudiana inclui realmente o ideal do eu como elemento de sua estrutura, seu fundamento não deve ser procurado no ao menos um do pai, mas no não-todo que caracteriza a vertente mulher da não-relação sexual” (PORGE, 2009, p. 192-193).

Vejamos a seguir os desenvolvimentos topológicos realizados por Lacan acerca da garrafa de Klein, os quais articulam a dimensão temporal da identificação de maneira inédita em seu ensino.