quase todas as noites
quase todas as noites
Simone Brantes
© 2016 Simone Brantes
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.
Coordenação Editorial Isadora Travassos Produção Editorial Eduardo Süssekind Rodrigo Fontoura Victoria Rabello Imagem de capa
“Abril vermelho”, de Augusto Herkenhoff
2016Viveiros de Castro Editora Ltda.
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Brantes, Simone
Quase todas as noites / Simone Brantes. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2016.
isbn 978-85-421-0452-3 1. Poesia brasileira. I. Título.
16-32553 cdd: 869.1
cdu: 821.134.3(81)-1
Sumário
meus mortos
Die Aufgabe 11
Entropia 12
Se você não viajou nas férias 14
Às vezes o corpo é batido 15
Um avião passa 16
Meus mortos não estão encarapitados 17
Quem sabe a morte, no fim 19
O meu pai entra sempre 20
Madame Mim 21
Quase todas as noites 22
Arremedo 23
Reconciliação 24
Primo 25
Do quarto dos meus pais onde dormíamos 26
Quem pode 28
Tok&Stok 29
Coisas em que um poeta vem pensando 30 Os amigos se encontram tantos anos depois 31
Talvez você falasse 33
Uma menina amuada sentada na escada 35
Fico entranhada pela cidade 36
O sonho é só uma história 37
Nossos pais 38
Se 42
a moça sonha
A moça que me inspira, vista 47
As moças 48
O sol na cama 49
Quem tem boca 50
Pote 51
corpo estranho
Errou o homem cujo calo lhe gritou 55
Para que fique tudo bem claro entre nós 56
Depoimento 57
Ela me disse 58
Não se trata 59
Surto 60
Fórmula 61
Cena 62
Mudança 63
A bochecha 64
Desfile anual dos ciclistas nus 65
Izabela sonha 66
Parei debaixo de uma amendoeira 67
“Order in chaos” 68
A cor mais quente 69
no caminho de suam (2002)
Pernas desgraciosas entre duas 73
A paixão perde o vínculo de sua causa 74
Para seu governo 75
Na ordem do dia 76
Por vezes o espanto se desata 77
Res 78
Mar 79
Beatrizes 80
Tratado da argumentação 81
para Bebel e Beatriz, sempre presentes na vida, para Donizete Galvão, em memória.
Meus mortos
Die Aufgabe
Chegar em casa um pouco mais do que cansada e puxar ainda assim e aos poucos o fio longo da mortalha até fazer da noite sair enfim um dia dentre todos os dias a morrer na praia
Entropia
Há uma teoria que afirma toda iniciativa de pôr ordem às coisas
o simples ato de impor um pouco de ordem à desordem
que toda manhã impera
no quarto provoca uma nova desordem
apenas momentaneamente imperceptível
sob os lençóis estendidos
sob os travesseiros lado a lado dispostos sob os papéis recolhidos e empilhados sob os móveis livres da poeira
sob a ausência dos copos d’água vazios e borra de café no fundo das xícaras
Sob as roupas recolhidas dobradas ou postas para lavar sob tudo isso segue a desestabilização da ordem
talvez num canto (da sua perspectiva) mais remoto do planeta ele seja a mínima, a nano-ínfima gota que falta
para o terremoto que arrasa o Nepal
para o tsunami que arrasa a costa da Indonésia
para o desaparecimento do avião sobre o Oceano Índico para o avanço irresistível da mais avançada e mais tenebrosa
[fase do capital
para o sequestro da criança
para o estupro da menina pelos colegas de escola para a eleição do mais abjeto Congresso Nacional e mesmo para os seus próprios pensamentos sujos e inconfessáveis.
Talvez se pague um preço surreal por esse quarto arrumado em que você se senta esperando escrever
quem sabe algo que você possa da sua perspectiva
chamar de poema
Se você não viajou nas férias mas ficou escrevendo em casa
depois você vai ver é como se tivesse viajado se você escreveu e gostou de escrever mesmo que sobre você tenha pesado
a casa vazia (pois todos ao contrário de você viajaram), o calor, o barulho da rua,
do bar aonde todos os caminhos do bairro vêm dar, o medo de não dar conta do recado Se você escreveu, se você
gostou de escrever, se você temeu se você gozou, se o ponto final veio só quando era necessário você agora olha e sente
que fez a viagem, o texto é aquela paisagem distante que você atravessou
sem poder sequer tirar um retrato
para a Flávia Trocoli e o Alberto Pucheu
Às vezes o corpo é batido como roupa na máquina de lavar você fez tantas coisas hoje em casa que mereciam enriquecer
seu lattes
Mas essa é só a única maneira que a alma tem às vezes de sair lavada
Um avião passa
e perco as vozes das meninas lá embaixo
não sei se brigam ou se outra briga se prepara na aparente paz
Tento dar ordem às coisas aqui em cima arrumar a cozinha recolher as coisas do chão
e o equilíbrio precário lá fora encoberto nesse momento pelo som do avião
ganha os quarenta e oito vincos de minha cara