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Do romance inacabado ao livro-manifesto: uma leitura de Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, de José Saramago

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Academic year: 2021

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DO ROMANCE INACABADO AO LIVRO-MANIFESTO: UMA LEITURA DE ALABARDAS, ALABARDAS, ESPINGARDAS, ESPINGARDAS, DE JOSÉ SARAMAGO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestra em Literatura.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Simone Pereira Schmidt

Florianópolis 2018

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Mattia, Bianca Rosina

Do romance inacabado ao livro-manifesto : uma leitura de Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, de José Saramago / Bianca Rosina Mattia ; orientadora, Simone Pereira Schmidt, 2018. 191 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura,

Florianópolis, 2018.

Inclui referências.

1. Literatura. 2. Literatura Portuguesa. 3. José Saramago. 4. Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas. 5. Manifesto. I. Schmidt, Simone Pereira. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura. III. Título.

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Para minha mãe, Iloni Maria Mattia, e para meu pai, Nilo Manoel Mattia, incansáveis companheiros. [...] as palavras proferidas pelo coração não têm língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler. (José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo, 1991)

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[...] a palavra “obrigado”, sendo a que realmente diz tudo, soa sempre a pouco. (José Saramago, Cadernos de Lanzarote, 1996) Com uma imensa gratidão, registro e reitero meus agradecimentos.

À professora Simone Pereira Schmidt, pela generosidade e competência com que acolheu e orientou minha pesquisa. Pela partilha de conhecimento, pelo diálogo sempre incentivador e pelo exemplo ético na Universidade com todo respeito à pluralidade que constrói este espaço.

Ao professor Jair Zandoná, pela incessante motivação aos meus estudos desde meu ingresso na UFSC em 2014 e pela confiança em meu trabalho. Pelas conversas sempre tão necessárias nesse percurso. Pela importante leitura durante o exame de qualificação. Sou grata pela amizade que construímos.

À professora Patricia Peterle Figueiredo Santurbano, por todas as considerações, oportunas e imprescindíveis, durante o exame de qualificação.

Às professoras Tânia Regina Oliveira Ramos e Silvana de Gaspari e ao professor Cláudio Celso Alano da Cruz, pelas aulas que tive a oportunidade de participar durante o mestrado.

À professora Gabriela Silva, por compartilhar comigo seus estudos em Literatura Portuguesa e pelos livros que solicitamente me emprestou.

Às professoras Teresa Cristina Cerdeira da Silva e Patricia Peterle Figueiredo Santurbano e aos professores Jair Zandoná e Marcio Markendorf pelo aceite em integrar a banca de avaliação desta dissertação.

A Ana Luísa Amaral, pelo carinho que teve comigo para que minha viagem a Lisboa fosse possível.

A Pilar del Río, pela oportunidade do encontro e da conversa, fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa. Pelo incansável trabalho à frente da Fundação José Saramago que contribui com os estudos sobre a obra do escritor.

Aos colegas da UFSC: Aliny Sartor Nandi, Bruna Luisa Schmitz dos Santos, Elton Rodrigues, Graziele Nack, Jaíni Teixeira, Liandra Schug e Paulo Pergher, pela alegria da convivência que fez tudo ser

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mais leve e pelo incentivo que cada uma e cada um de vocês, à sua maneira, soube me dar. Sem dúvida, amigas e amigos!

Ao Programa de Pós-Graduação em Literatura, pelo comprometimento e apoio necessários ao desenvolvimento da pesquisa. Ao Núcleo de Pesquisa Literatual, pelo espaço de partilha e de construção de conhecimento. Ao CNPq, pela concessão da bolsa que possibilitou minha dedicação durante dois anos.

À minha Mãe e ao meu Pai, por serem sempre meu maior e mais sincero apoio e por terem me ensinado que os meus dias são construídos com a minha coragem.

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[...] ser escritor não é apenas escrever livros, é muito mais uma atitude perante a vida,

uma exigência e uma intervenção. (José Saramago, 1978)

[...] por que os que aqui governam falam sempre de paz enquanto este país vende a metade das armas de todas as guerras? (Eduardo Galeano, 2002)

O ser humano é maior do que a guerra... (Svetlana Aleksiévitch, 2013)

A humanidade não é uma abstração retórica, é carne sofredora e espírito ansioso, e é também uma esperança inesgotável. A paz é possível. Mobilizemo-nos para ela. (José Saramago, 2001)

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Em junho de 2010, quando do falecimento do escritor português José Saramago, em seu computador, além das anotações diárias, dentre as quais, a quinze de agosto de 2009, a de que talvez ainda escreveria outro livro, estava também o arquivo dos três capítulos deste que seria seu novo romance. Inacabado, Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas foi publicado postumamente em 2014. Nas páginas do livro, porém, além do romance inacabado, constam as notas de Saramago referentes à construção do romance, as ilustrações de Günter Grass e os textos de Fernando Gómez Aguilera, Roberto Saviano e, no caso da edição publicada no Brasil, o texto de Luiz Eduardo Soares. A temática do romance aborda a problemática da indústria armamentista como fomentadora das guerras sem deixar de interpelar os cidadãos sobre a ética da responsabilidade individual diante deste cenário. Nesta pesquisa, cujo objetivo é apresentar a possibilidade de leitura de Alabardas como livro-manifesto, um Manifesto pela Paz, proponho três momentos de análise do romance que convergem para este intento. Inicialmente, busco compreendê-lo no percurso da produção literária de Saramago em diálogo com o contexto literário no qual a obra foi escrita. Em seguida, apresento uma análise da composição editorial do livro a partir dos paratextos editoriais, momento em que sobressai o caráter engajado da paratextualidade do livro. Na parte final, a postura assumida por Saramago de não dissociar, em sua trajetória literária, o escritor do cidadão fortalece o apelo antibelicista que emerge do romance. A voz de Saramago, contudo, não é a única que ressoa a partir do livro. A leitura de Alabardas como livro-manifesto se encontra ressignificada na pluralidade de vozes presentes em suas páginas em defesa da paz. Palavras-chave: Alabardas. Inacabado. José Saramago. Literatura. Manifesto.

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En junio de 2010, cuando del fallecimiento del escritor portugués José Saramago, en su computadora, además de las anotaciones diárias, entre las cuales, en quince de agosto de 2009, estaba la nota de que quizá aún escribiría otro libro, estaba también el archivo de los tres capítulos de lo que sería su nueva novela. Inacabada, Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas fue publicada póstumamente en 2014. En las páginas del libro, sin embargo, además de la novela inacabada, figuran las notas de Saramago referentes a la construcción de la novela, las ilustraciones de Günter Grass y los textos de Fernando Gómez Aguilera, Roberto Saviano y, en el caso de la edición publicada en Brasil, el texto de Luiz Eduardo Soares. La temática de la novela aborda la problemática de la industria armamentista como fomentadora de las guerras sin dejar de interpelar los ciudadanos acerca de la ética de la responsabilidad individual ante este escenario. En esta pesquisa, cuyo objetivo es presentar la posibilidad de leer Alabardas como libro-manifiesto, un Manifiesto por la Paz, propongo tres momentos de análisis de la novela que convergen para este intento. Inicialmente, busco comprenderlo en el camino de la producción literária de Saramago en diálogo con el contexto literário en que la obra fue escrita. A continuación, presento una análisis de la composición editorial del libro a partir de los paratextos editoriales, momento en que sobresale el carácter comprometido de la paratextualidad del libro. En la parte final, la postura adoptada por Saramago de no disociar, en su trayectoria literária, el escritor del ciudadano fortalece el reclamo antibelicista que emerge de la novela. La voz de Saramago, sin embargo, no es la única que resuena a partir del libro. La lectura de Alabardas como libro-manifiesto se encuentra resignificada en la pluralidad de voces presentes en sus páginas en defensa de la paz.

Palabras clave: Alabardas. Inacabado. José Saramago. Literatura. Manifiesto.

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Figura 1 - Capa do livro Alabardas...103

Figura 2 - Capa da edição italiana Universale Economica Feltrinelli de Alabardas ...104

Figura 3 - Lobos...107

Figura 4 - Lobo em primeiro plano...108

Figura 5 - Soldados e civis...109

Figura 6 - Soldados em marcha...110

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INTRODUÇÃO ... 19

1 O CAMINHO ATÉ ALABARDAS: O ROMANCE DE JOSÉ SARAMAGO E A LITERATURA (PORTUGUESA) ... 25

1.1 DA ESTÁTUA À PEDRA: O AUTOR EXPLICA-SE: A METÁFORA DA MUDANÇA ... 25

1.2 NO INTERIOR DA PEDRA, OS NOVOS TRAÇOS DO ROMANCE ... 40

1.3 LITERATURA EM PORTUGAL E A PERSPECTIVA DA LITERATURA-MUNDO ... 51

1.4 ALABARDAS: O ÚLTIMO ROMANCE DE JOSÉ SARAMAGO...59

2 A CONSTRUÇÃO PARATEXTUAL DO LIVRO ALABARDAS...71

2.1 A PUBLICAÇÃO DO ROMANCE INACABADO E OS PARATEXTOS EDITORIAIS ... 71

2.2 O EDITOR COMO ADAPTADOR E SUPLEMENTO DE AUTORIA ... 81

2.3 ANÁLISE DOS PARATEXTOS EDITORIAIS EM ALABARDAS...92

3 ALABARDAS: UM LIVRO-MANIFESTO ... 125

3.1 JOSÉ SARAMAGO: AONDE VAI O ESCRITOR, VAI O CIDADÃO. ... 125

3.2 A PAZ É UMA MILITÂNCIA: PERSPECTIVAS PARA UM MANIFESTO... 144 3.3 A RESSIGNIFICAÇÃO DO MANIFESTO EM ALABARDAS...159 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 167 REFERÊNCIAS ... 173 INTRODUÇÃO E CAPÍTULO 1 ... 173 CAPÍTULO 2 ... 180

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INTRODUÇÃO

Eu gostaria de ter escrito um livro a que pudesse ter posto o título de Livro do Desassossego, mas já está. O Fernando Pessoa antecipou-se. O meu desassossego não seria exatamente o desassossego dele, mas o título convinha-me porque, como eu não vivo sossegado, quero desassossegar os outros, os leitores. Desassossegá-los com o contrário daquela passagem d’Os Lusíadas sobre a Inês de Castro: Estavas linda Inês posta em sossego Que é isso de posta em sossego? Posta em sossego e cortaram-lhe o pescoço, ora está! Como é que uma pessoa a quem podem cortar-lhe o pescoço está posta em sossego? (José Saramago, 2009) Em outubro de 2009, contando oitenta e seis anos, o escritor português José Saramago apresentava ao público o romance Caim, cuja última frase: “A história acabou, não haverá nada mais que contar” (SARAMAGO, 2009, p. 172) poderia indicar o fim de seu percurso literário. Na oportunidade, porém, dedicou o momento final de sua fala ao novo romance que estava a escrever. Fruto de uma antiga inquietação sua de “porquê nunca houve uma greve numa fábrica de armamento” (SARAMAGO, 2014 [2009], p. 59), sobre este novo romance, contou ao público um episódio que suspeitara ter lido no livro L’Espoir, de André Malraux, no qual um operário de uma fábrica de armas, durante a Guerra Civil Espanhola, teria sabotado uma bomba ao colocar no lugar destinado à munição um papel com a mensagem escrita em português: “esta bomba não rebentará”. Posteriormente, corrigiu o equívoco e como se pode saber pelos registros em seu diário, a história contada por Malraux fazia “uma referência (brevíssima) a operários de Milão fuzilados por terem sabotado obuses.” (SARAMAGO, 2014 [2009], p. 60), motivo que lhe foi suficiente para prosseguir com o romance.

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No dia dois de outubro de 2014, passados quatro anos do falecimento de José Saramago, o Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa, acolheu a apresentação do livro Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, um verso extraído da tragicomédia Exortação da Guerra, de Gil Vicente, que deu título àquele romance no qual o escritor trabalhava em 2009, mas que ficou inacabado, tendo concluído apenas os três primeiros capítulos até que a vida lhe faltou, em junho de 2010. Permeado pelas ilustrações do escritor alemão Günter Grass, Alabardas apresenta, ainda, as anotações de Saramago referentes ao romance e textos do escritor e ensaísta espanhol Fernando Gómez Aguilera, do escritor italiano Roberto Saviano e, no caso da edição publicada no Brasil, soma-se a eles o texto do antropólogo, cientista político e escritor brasileiro Luiz Eduardo Soares. À frente da Fundação José Saramago e uma das responsáveis pela decisão de publicar o romance inacabado, Pilar del Río, companheira do escritor durante os últimos vinte e quatro anos em que esteve vivo, afirma que Alabardas, “não é um testamento, é o livro com o qual José Saramago queria fechar o seu percurso, e fê-lo.” (RÍO, 2014, p. 4).

O romance inacabado, cujos três capítulos estavam arquivados no computador do escritor, foram publicados encerrando, assim, um percurso literário que reúne, além de romances, poemas, contos, crônicas, peças de teatro, diários, memórias, os escritos do tempo em que trabalhou como jornalista e os registros que durante certo período escreveu em seu blogue. Agora que publicado, e especialmente porque publicado em uma edição separada de um volume de obras completas, como poderia acontecer pelo fato de ser um romance inacabado, Alabardas adquire a autonomia característica das obras literárias, no sentido explicado por Carlos Reis (2015d) para o conceito de vida da obra, ou seja, de que este conceito implica

[...] que as obras literárias possuem uma existência própria, para além da vontade e do controlo dos escritores; que essa existência depende, em grande parte, das leituras (concretizações) a que ela é submetida; que a notoriedade (e também a posteridade) dos escritores é fortemente condicionada pela vida da obra; e também que a relação dos escritores com as suas obras é muito sensível aos modos como elas vão vivendo a sua vida, com as venturas e com as desventuras que as atingem. De forma ainda mais radical: uma vez publicada, uma obra

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literária ganha, em relação ao seu criador, uma autonomia e uma liberdade de movimentos tais que bem pode dizer-se que, de um ponto de vista cultural, ela deixa de lhe pertencer, para passar a ser património da comunidade em que se integra. Uma comunidade feita de leitores e de instituições literárias e paraliterárias. (REIS, 2015d, p. 15). Roman Ingarden diz que “se não houvesse quaisquer concretizações da obra ela ficaria separada da vida humana concreta como por uma parede opaca.” (1973 [1930], p. 386). A partir da sua apresentação, o romance inacabado publicado no livro Alabardas adquiriu autonomia e liberdade concretizadas pelos eventos de sua leitura. Não é senão também pela leitura que a literatura tem o seu começo, ou seja, “no instante em que o leitor abre o livro que ele entra no universo das palavras. [...] A força da leitura prevalece então sobre toda a fragilidade do texto.” (HAY, 2007, p. 11). Da mesma forma, a escritura possibilita o início da literatura, porque é a “reconquista de uma origem [...] [que] dá à obra um autor, ao ato de escritura um destino (que seja de fracasso ou de sucesso) e ao livro um nascimento.” (HAY, 2007, p. 12). Os três capítulos de um romance que ficou por terminar compõem a edição de um livro no qual outras vozes se somam à voz do autor do romance. Nesse espaço-livro que compartilham, todas percorrem um mesmo tema, uma mesma indignação e estão reunidas em uma manifestação literária que, se por um lado é distinta em gêneros, por outro, é correlata em conteúdo.

A temática do romance não ficou prejudicada pelo fato de o escritor não o ter finalizado. Questões relacionadas à guerra, à fabricação e ao comércio de armas e, como traço característico dos seus últimos romances, a descrição e indagação da condição humana perante esse cenário, constituem o mote do romance inacabado de Saramago. O que se aproxima da postura intensificada, especialmente após receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, de, também por meio dos seus romances, dialogar com a sociedade a respeito das mazelas do mundo que tanto lhe incomodavam. Escrito entre 2009 e 2010, Alabardas, como descreve Pilar del Río, é

[...] uma contribuição ética que aparece publicada no momento em que nós, enquanto sociedade, nos apagamos entre os gritos dos que perdem tudo em guerras absurdas e o poder total de quem controla tudo e organiza conflitos para manter a sua

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hegemonia. E no meio estão os cidadãos, cúmplices e vítimas ao mesmo tempo, massa silenciosa ou distraída, sem consciência do seu poder, do importante que é dizer não. (RÍO; MATTIA, 2017, p. 227).

Com Alabardas, Saramago trouxe à luz o debate sobre um problema mundial que afeta sobremaneira os direitos humanos: a guerra. Não lhe foi possível, contudo, concluí-lo. No entanto, pelo trabalho editorial, as suas últimas linhas foram compartilhadas em um livro plural que abriga em suas páginas vozes de autores também empenhados no combate, por meio da literatura e das suas palavras, à violência gerada pela guerra e fomentada pela indústria armamentista, fazendo ressoar um apelo de paz.

As novas características que os romances de José Saramago passaram a apresentar, a partir da publicação do Ensaio sobre a Cegueira, em 1995, apontam para uma nova perspectiva na produção literária do escritor. O tema da História, presente de uma maneira mais intensa nos seus romances da década de 1980, já não aparece com tanta força nas publicações que se seguiram, período este que fora marcado pela premiação do Nobel. Momento em que, por meio do discurso realizado durante o Banquete Nobel, o escritor manifestou-se contra o desrespeito e o não cumprimento dos direitos humanos por parte dos governos, salientando a necessidade da reivindicação dos deveres humanos. A proposta de Saramago foi abraçada pela sua Fundação que, em conjunto com a Universidade Autónoma do México (UNAM) e com o centro de estudos World Future Society (Capítulo México) trabalharam na elaboração e redação da Carta Universal dos Deveres e das Obrigações das Pessoas, entregue este ano – 2018 – à Organização das Nações Unidas (ONU).

Como escritor, José Saramago insistia em afirmar que esta condição não se desvinculava do cidadão que era. Dessa forma, assumia, também no seu ofício de escritor, os deveres cívicos, dentre eles, a responsabilidade ética por um mundo melhor. E não deixou de questionar, na construção de sua obra literária, a responsabilidade de cada um por ser e estar presente no mundo. Em Alabardas, não agiu diferente. A história do operário de uma fábrica de armas, “[...] que cumpre com a sociedade respeitando todas as normas e leis [e] que é bom no seu trabalho [...]. E assim, tranquilamente, participa da fabricação de armas, sem jamais perguntar-se qual é o destino desse seu

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trabalho – que é a morte de outros” (RÍO; MATTIA, 2017, p. 224-225), foi a história em que por último expôs e partilhou o seu desassossego.

A par disso, por meio de pesquisa bibliográfica, de análise literária e da reverberação dos fundamentos teóricos na produção de escrita crítica, tendo por ferramenta a historiografia literária portuguesa e a Teoria da Literatura, a pesquisa que aqui apresento tem o objetivo de investigar a possibilidade de leitura de Alabardas como um livro-manifesto. Ressalto, contudo, que, antes de buscar por uma definição ou por uma classificação do romance inacabado, a presente pesquisa quer ser, à luz das análises que propõe para o livro Alabardas, uma sugestão de leitura.

Diante de tal objetivo, percorro um itinerário que tem início com uma análise da produção romanesca do escritor a partir do movimento que sua obra faz de um estado para outro: da estátua à pedra, metáfora apresentada por Saramago durante uma conferência proferida em 1998 para explicar a transição. Em diálogo com o contexto da literatura portuguesa, destaco especialmente as características do romance português contemporâneo, o qual, desatrelado de um passado histórico e mítico, em um cenário cosmopolita, tem características também presentes nos últimos romances de Saramago, o que requer uma nova postura de leitura. O estudo, assim realizado, permite a primeira análise de Alabardas, com a qual busco compreendê-lo nesse quadro de mudanças, tanto no interior da obra de Saramago, como em um ambiente literário maior, aberto à literatura-mundo (BUESCU, 2013).

No segundo momento de análise volto-me especialmente ao trabalho de edição e publicação do romance inacabado com fundamento no estudo dos paratextos editoriais (GENETTE, 2009), os quais veiculam o texto em livro, tornando-o presente e acessível aos leitores. Pela proposta de categorização dos paratextos editoriais desenvolvida por Gérard Genette (2009), intento examinar, especificamente, as ilustrações presentes no livro, as anotações do escritor referentes ao romance e os textos dos demais autores que compõem a edição. Os paratextos editoriais, embora existam em razão de um texto, não deixam de indicar um direcionamento de leitura, daí a importância do trabalho editorial, sobretudo da subjetividade do editor no processo de presentificação do texto inacabado em livro. Cada um desses paratextos, analisados nas suas respectivas singularidades, mas também na inter-relação do todo paratextual (CHARTIER, 2014), reverbera uma tonalidade engajada que se alia à literatura de Saramago e à sua postura como escritor e cidadão.

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A possibilidade de leitura de Alabardas como um livro-manifesto considera uma proposta específica de manifesto. No terceiro e último momento da pesquisa, com base no engajamento do escritor, na sua representação pública, manifestações e intervenções em defesa da paz, apresento um quadro de perspectivas que abrange desde a problematização dos próprios conceitos de guerra e de paz no atual cenário mundial, até pesquisas centradas na maneira como as construções de gênero influenciam e condicionam o uso de armas de fogo. Tais perspectivas dialogam não apenas com o romance inacabado, mas também com os paratextos presentes na edição. Dessa forma, o Manifesto pela Paz que emerge das páginas de Alabardas tem a sua ressignificação na presença de uma pluralidade de vozes que delas ecoam.

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1 O CAMINHO ATÉ ALABARDAS: O ROMANCE DE JOSÉ SARAMAGO E A LITERATURA (PORTUGUESA)

A contar da publicação do romance Manual de Pintura e Caligrafia, em 1977, precedido de Terra do Pecado, em 1947, José Saramago escreveu e publicou em vida um total de dezesseis romances. Um ano após o seu falecimento, acrescentou-se outro mais, Claraboia, a respeito do qual o autor havia optado por não o publicar enquanto estivesse vivo. Ainda que a sua obra completa abranja outros gêneros literários, foi com os romances que sua literatura teve maior expressão. O percurso de toda a produção literária de um escritor, quando analisado, não se desprende do contexto no qual ela foi escrita, mas também da maneira como dialoga com as demais obras no cenário literário onde se encontram. Ao final de seu itinerário, o último romance de Saramago ficou inacabado e compõe-se de apenas três capítulos. Para analisá-lo, convém, então, olhar o caminho feito até ele.

1.1 DA ESTÁTUA À PEDRA: O AUTOR EXPLICA-SE: A METÁFORA DA MUDANÇA

No seu dicionário de Sessenta e três palavras, palavras-chave da sua estética do romance e um dos capítulos do livro A arte do romance, Milan Kundera (2009 [1986]) afirma que não gosta das metáforas “se são apenas para enfeite” (2009, p. 130), mas que são insubstituíveis “como meio de captar, numa súbita revelação, a inacessível essência das coisas, das situações, dos personagens.” (2009 [1986], p. 130). Na noite do dia 2 de julho de 1997, após ter finalizado Todos os nomes, José Saramago recorreu a uma metáfora para melhor explicar o que naquele momento queria dizer com a reflexão de que quando escreveu O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) era ainda muito novo para escrever o Ensaio sobre a Cegueira (1995), e, ao terminar este, não estava pronto para Todos os nomes (1997). A metáfora da estátua e da pedra foi assim sumariamente anunciada em um dos volumes dos Cadernos de Lanzarote:

[...] À noite, enquanto passeava no jardim para acalmar os nervos, tive uma ideia que explicará melhor o que quero dizer: foi como se, até ao Evangelho, eu tivesse andado a descrever uma estátua, e a partir dele tivesse passado para o

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interior da pedra. [...]. (SARAMAGO, 1999 [1997], p. 390, grifo do autor).

No ano seguinte, o escritor retomou a metáfora durante o colóquio Dialogo sulla Cultura Portoghese: Letteratura-Musica-Storia, na Universidade de Turim, na Itália. Na oportunidade, como conta Pilar del Río, Saramago “optou por não ler nenhuma comunicação, tampouco quis ditar uma aula magistral; simplesmente, como em uma conversa, foi refletindo sobre sua obra [...].” (RÍO, 2013, p. 12). A conferência foi gravada e transcrita pelos professores Pablo Luis Ávila e Giancarlo Depretis sendo, em 1999, publicada em livro pela primeira vez na Itália, sob o título A Estátua e a Pedra. Tempos depois, a editora espanhola solicitou ao autor uma atualização da conferência para lançamento em 2010, pedido este que foi atendido por Saramago e “ao revisar a tradução espanhola adicionou à já gráfica imagem de A Estátua e a Pedra um elemento que tornaria mais compreensível ainda o sentido de suas palavras e de sua trajetória literária: Da Estátua à Pedra.” (RÍO, 2013, p. 13, grifos da autora).

A referida anotação feita por Saramago para a versão em espanhol acabou por se perder e o título do livro, na Espanha e depois também em Portugal, foi publicado conforme a edição italiana. Contudo, quando da edição e publicação no Brasil, fez-se uma busca nos arquivos e a conferência veio, então, ao público com o título há alguns anos retificado por Saramago: Da Estátua à Pedra (2013a). Seguiu-se a este o subtítulo: O autor explica-se1 de modo que, conforme observa Carlos Reis, o que faz Saramago é uma explicação, mas “de forma calculada [...]. [visto que não usa] „o escritor explica‟, menos ainda „explica-nos‟. O escritor explica-se, porque pondera o que fez, em autoanálise deixada ao nosso dispor [...].” (2015a [2013], p. 177).

Em parte considerável da conferência, Saramago perpassou cada um dos seus romances até então publicados, desde o Manual de Pintura e Caligrafia (1977) até O Homem Duplicado (2002)2. Deteve-se, em sua fala, especialmente até chegar a O Evangelho segundo Jesus Cristo

1

Refere-se ao subtítulo da edição brasileira, uma vez que na citação que segue, Carlos Reis faz menção à edição portuguesa, na qual consta o subtítulo: O escritor explica-se.

2

A inserção dos demais romances publicados após a primeira versão transcrita da conferência foi realizada posteriormente pelo próprio autor quando da atualização para a edição espanhola e que, por isso, abrange os outros livros. Neste capítulo, utilizo a edição brasileira publicada no ano de 2013.

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(1991), a explicar o motivo pelo qual não considerava nenhum de seus romances como inseridos na categoria de romance histórico, tampouco rotulado de romancista histórico. Para Carlos Reis (2015a [2013]), é compreensível que Saramago se debruce sobre o tema porque se trata de uma confusão classificar tais romances como históricos. São romances em que a ficção composta pelo escritor dá-se por pessoas, episódios e cenários3 migrados da História que conhecemos, contudo, “confundidos [com romances históricos] e desse modo desvalorizados no que representam de ousada reconfiguração ficcional não do que sabíamos, mas do que julgávamos saber.” (REIS, 2015a [2013], p. 178).

As concepções de Saramago acerca da relação entre Ficção e História, de um modo geral, ou seja, não aprofundadas na especificidade de cada um de seus romances, foram tema de uma intervenção do escritor, intitulada Contar a vida de todos e de cada um, durante a Feira do Livro de Oslo, na Noruega, em 1995. E que merece acolhida nesta pesquisa, pois converge para as razões que posteriormente comporiam as ideias expostas em Da Estátua à Pedra. Em sua fala, Saramago destacou que o historiador, no seu ofício, terá de escolher fatos dentre fatos e que, assim agindo, abandonará outros tantos incontáveis dados. E agirá dessa forma por várias motivações, sejam de classe, de Estado, de política ou ainda, em outros casos, acatará “conscientemente ou não, as imposições duma estratégia ideológica que necessite, para justificar-se, não da História, mas de uma História. Esse historiador, na realidade, não se limitará a escrever História. Ele fará História.” (SARAMAGO, 1997 [1995], p. 620, grifos do autor). O historiador, dessa forma, será para o leitor “como definidor de um certo mundo entre todos os mundos possíveis. Nesse outro acto de Criação, o historiador decidiu o que do Passado era importante e o que do Passado não merecia atenção.” (SARAMAGO, 1997 [1995], p. 620).

3

Maria Alzira Seixo (2011), referindo-se ao romance Memorial do Convento, relata: “Ao estudar a presença da História nos seus romances, não pude considerar Memorial do Convento um romance histórico, mas sim um romance onde a História se trabalha como um cenário, meio de visionar criticamente o presente, como acontece na maioria da ficção pós-moderna, [...]. Porque não é o passado que interessa para Saramago. Nem sequer o passado pessoal, já que As Pequenas Memórias, por exemplo, são a descrição poetizada do „eu criança‟, imersa pela sua imaginação posterior no olival da Azinhaga junto ao rio [...]” (2011, p. 458, grifos da autora).

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Assim compreendida a maneira pela qual o historiador desempenha sua função, Saramago afirmou que a História será “o primeiro livro” (1997 [1995], p. 623), sem que se esqueça de que

o mesmo historiador poderá fazer, ele próprio, outras viagens ao tempo por onde antes viajou, esse tempo que, graças à sua intervenção, foi deixando de ser tempo informe, foi passando a ser História, e que as novas percepções, os novos pontos de vista, as novas interpretações irão tornando cada vez mais densa e substancial a imagem histórica que do Passado nos vinha sendo dada. Mas é nas grandes zonas obscuras que sempre hão-de existir, mesmo no que supomos conhecido, que o romancista terá o seu campo de trabalho. (SARAMAGO, 1997 [1995], p. 623, grifos do autor).

Ao chegar ao “campo de trabalho” do romancista, ao seu próprio ambiente, portanto, o escritor ressaltou que o que subjaz a tais preocupações não é senão a “consciência da impossibilidade duma reconstituição plena do Passado” (1997 [1995], p. 623) e que por tal razão sentia-se instigado a “corrigi-lo”. Nesse sentido, faz-se importante transcrever a explicação da qual, em seguida, lançou mão:

Quando digo corrigir o Passado não é no sentido de emendar os factos da História (não poderia ser essa a tarefa de um romancista), mas sim, se se me permite a expressão introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até aí parecera indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. Argumentar-se-á certamente que se trata de um esforço inútil, uma vez que o que hoje somos não resultou do que poderia ter sido, mas do que efetivamente foi. No entanto, se a leitura histórica operada pelo romance for uma leitura crítica, essa operação poderá provocar uma instabilidade, uma vibração temporal, uma perturbação, causadas pelo conforto entre o que sucedeu e o que poderia ter sucedido, como se, saudavelmente, os factos começassem a duvidar de si próprios... (SARAMAGO, 1997 [1995], p. 623, grifos do autor).

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Nos seus Diálogos com José Saramago, realizados em 1997 e publicados pela primeira vez em 1998, Carlos Reis lhe perguntou se sua ficção de alguma forma vem a ser uma correção ou uma revisão da História, ao que lhe respondeu Saramago acreditar que a História “não pode ser corrigida, que não pode ser reescrita infinitamente, até porque cada reescritura supostamente acrescenta algo que não se sabia, mas que se está a interpretar de uma maneira distinta.” (SARAMAGO; REIS, 2015 [1998], p. 89). Finalizou o pensamento dizendo que talvez fosse “uma espécie de reivindicação ou o ato de chamar à presença...” ao que Reis sugeriu o termo reclamar, acolhido pelo escritor: “Exatamente: reclamar a presença.” (SARAMAGO; REIS, 2015 [1998], p. 89).

Correção e revisão da História são temas que remetem especialmente para um dos romances de Saramago. Em História do cerco de Lisboa, publicado em 1989, a personagem do revisor Raimundo Silva, ao desempenhar sua tarefa em um livro homônimo, porém de História, e já “cansado de ver como a dita História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um „sim‟ um „não‟, subvertendo a autoridade das „verdades históricas‟.” (SARAMAGO, 2013b [1998], p. 82, grifos do autor). Nas páginas iniciais do romance, a conversa do revisor com o historiador vem demonstrar, não apenas a “lição da dúvida” (SARAMAGO, 2013b [1998], p. 84) que, com a personagem de Raimundo, Saramago afirmou ter aprendido, mas sinais da sua compreensão acerca da escrita da História e da relação desta com a literatura, bem como da legitimidade que tem a literatura de questionar a História, reclamar-lhe a presença e, ainda, apresentar a sua versão4. Uma versão que prescinde de um historiador, podendo ser escrita por

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Além de se colocar como uma dúvida à História, a versão construída por Saramago, em sua literatura, busca trazer à tona as personagens esquecidas ou mesmo não presentes na versão oficial. Conforme observou o escritor: “A História deve ser organizada de uma forma coerente. Mas essa coerência se consegue à custa de sacrificar muito a realidade. Já é uma barbaridade que a História se escreva do ponto de vista masculino ou do ponto de vista do vencedor. Eu tento resgatar, pelo menos, uma parte da realidade deixada de lado. Aproximar-me, compreender os milhares e milhares de seres cotidianos que vivem imersos na História, seja a de O cerco de Lisboa, seja a do Memorial do convento. E, ao escrever romances, tento interrogar a mim mesmo, interrogar o meu entorno imediato, a atmosfera ideológica do nosso tempo, as convicções, as ideias feitas, os preconceitos, tudo isso de que está feita a vida cotidiana. A literatura serve como instrumento dessa indagação para falar do que se fala e falou sempre.” (SARAMAGO; LIPSZYC, 2010 [1996], p. 297, grifos do autor).

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um leigo ou mesmo por um autodidata. No diálogo de Raimundo Silva com o historiador, o revisor não deixa de evidenciar tais concepções:

Recordo-lhe que os revisores são gente sóbria, já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lhe eu, é de história, Assim realmente o designariam segundo a classificação tradicional dos géneros, porém, não sendo propósito meu apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura, A história também, A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, [...] Quer-me parecer que você errou a vocação, devia ser filósofo, ou historiador, tem o alarde e a pinta que tais artes requerem, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser e a continuar a ser autodidactas, sorte deles, mas eu, confesso-lhe, para a criação literária nunca tive jeito, Meta-se a filósofo, homem, O senhor doutor é um humorista de finíssimo espírito, cultiva magistralmente a

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ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela grave e profunda ciência, Sou irónico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não poderia chamar-se-lhe história, [...] Então o senhor doutor acha que a história é a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós se não existisse o deleatur, suspirou o revisor. (SARAMAGO, 2011 [1989], p. 10-12).

No rumo dessas reflexões é ainda Carlos Reis quem esclarece alguns pontos sobre a temática da História na literatura ao escrever acerca daquele que considera, no conjunto da produção literária de Saramago, “uma verdadeira pedra angular, em vários aspectos” (2015c, p. 41), o romance Memorial do Convento (1982). Para o autor, é com este romance que Saramago reafirmou “a vocação para aquela interpelação da História que ficou referida e que foi retomada, em termos diferentes, na História do Cerco de Lisboa (1989).” (REIS, 2015c, p. 41). Porém, antes de chegar a tal conclusão, observa que, assim como na História, na literatura também se encontra um meio de conhecer épocas, costumes e acontecimentos, mas cuja natureza difere do meio encontrado na História porque o conhecimento permitido pela literatura molda-se em razão de fatores não comuns ao discurso científico, tais como “a configuração de mundos ficcionais, sem obrigação de verificação empírica ou de validação documental; a propensão para a elaboração simbólica, metafórica ou alegórica; [...]” (REIS, 2015c, p. 40). Com isso, o conhecimento que decorre da literatura, de acordo com Reis, tende a homologar-se ao da historiografia – e homologia, ressalta o autor, não é o mesmo que dizer analogia.

A semelhança/proximidade entre História e literatura, contudo, resta inviabilizada quando “o romance fomenta visões alternativas da História e desafia o conhecimento que dela temos.” (REIS, 2015c, p. 41). O que vem justamente ao encontro da maneira como Saramago explicava a relação entre a ficção e a História, ou seja, o romance desafia o conhecimento até então obtido pela História e se coloca a questionar a própria natureza desse conhecimento. Mais adiante, Reis finaliza sua reflexão afirmando que, a partir da historiografia oficial, Saramago “valoriza a condição dos obscuros e dos anónimos, multidão esquecida cujo esforço coletivo foi, afinal, o motor da História.

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Modela-se, assim, uma ficção em que se contempla uma dinâmica histórica anti-heróica e anti-individualista, deduzida de um labor de reflexão com a propensão doutrinária [...].” (REIS, 2015c, p. 41).

Esta última percepção apontada por Reis (2015c) vai ao encontro do que Walter Benjamin (2013 [1940]) elucidou nas suas teses Sobre o conceito da História, especialmente na Tese VII5, na qual o investigador historicista estabelece uma relação de empatia com a parte vencedora, “aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que hoje mordem o pó.” (BENJAMIN, 2013 [1940], p. 12). O método proposto por Benjamin, contudo, consiste em interpretar a História sob o ponto de vista dos vencidos, valendo-se do materialismo histórico.

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A Tese VII foi assim descrita por Benjamin: “Fustel de Coulanges recomenda ao historiador que pretenda reconstruir uma época que ignore tudo o que conhece do desenrolar histórico posterior. Não se poderia caracterizar melhor o método com o qual o materialismo histórico acabou de vez. Esse método é o da empatia. As suas origens encontram-se na indolência do coração, a acédia, incapaz de se apoderar da autêntica imagem histórica que subitamente se ilumina. Para os teólogos da Idade Média, ela era a causa última da tristeza. Flaubert, depois de travar conhecimento com ela, escreve: „Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage‟. A natureza dessa tristeza torna-se mais clara se procurarmos saber qual é, afinal, o objeto de empatia do historiador de orientação historicista. A resposta é, inegavelmente, só uma: o vencedor. Mas, em cada momento, os detentores do poder são os herdeiros de todos aqueles que antes foram vencedores. Daqui resulta que a empatia que tem por objeto o vencedor serve sempre aqueles que, em cada momento, detêm o poder. Para o materialista histórico não será preciso dizer mais nada. Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que hoje mordem o pó. Os despojos, como é da praxe, são também levados no cortejo. Geralmente lhes é dado o nome de patrimônio cultural. Eles poderão contar, no materialista histórico, com um observador distanciado, pois o que ele pode abarcar desse patrimônio cultural provêm, na sua globalidade, de uma tradição em que ele não pode pensar sem ficar horrorizado. Porque ela deve a sua existência não apenas ao esforço dos grandes gênios que a criaram, mas também à escravidão anônima dos seus contemporâneos. Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie. E, do mesmo modo que ele não pode libertar-se da barbárie, assim também não o pode o processo histórico em que ele transitou de um para outro. Por isso o materialista histórico se afasta o quanto pode desse processo de transmissão da tradição, atribuindo-se a missão de escovar a história a contrapelo.” (BENJAMIN, 2013 [1940], p. 12-13, grifos do autor).

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Nesse sentido, o teórico do materialismo histórico agirá diferente do historicista. Conforme Michael Löwy (2011),

[...] a tarefa do teórico do materialismo histórico é a de “quebrar”, de fazer explodir, de destruir o fio conformista da continuidade histórica e cultural. O materialista histórico deve, portanto, desconfiar dos pretensos “tesouros culturais”. Para ele, estes não são mais do que restos mortais provocados pelos vencedores na procissão triunfal, despojos que têm por função confirmar, ilustrar e validar a superioridade dos poderosos. (LÖWY, 2011, p. 22, grifos do autor).

A exemplificar a proposta de Benjamin na literatura de Saramago, cabe ressaltar o olhar desconfiado que teve o escritor para um grande monumento histórico como o Palácio Nacional de Mafra – também conhecido como Convento de Mafra –. Um olhar que viu, não em deslumbre, a grandiosa arquitetura e o poder inquestionável de D. João V, rei de Portugal, que ordenou a construção, mas “uma multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento, [...]” (SARAMAGO, 2013b, p. 79-80). No romance Memorial do Convento, Saramago apresentou a história pela perspectiva daqueles que, talvez, nunca são lembrados quando se está diante da magnitude de tal construção, tampouco aparecem nos registros históricos, e não deixou de, ao mesmo tempo, questionar o poder Real indagando, assim, a versão oficial firmada sob a perspectiva do vencedor, como se depreende no seguinte trecho do romance:

Quanto pode um rei. Está sentado em seu trono, alivia-se consoante a necessidade, na peniqueira ou no ventre das madres, e daí, daqui ou dacolá, se o requerem os interesses do Estado, cujo ele é, despacha ordens para que de Panamacor venham os homens válidos, ou nem tanto, a trabalhar neste meu convento de Mafra, [...] E os homens, que nunca viram o rei, os homens que o rei nunca viu, os homens, mesmo não o querendo vêm, entre soldados e quadrilheiros, soltos se são de ânimo pacífico ou já se resignaram, atados como foi explicado, se rebeldes, atados sempre se por malícia viloa mostraram ir de vontade e depois

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tentaram fugir, pior ainda se algum conseguiu escapar-se. Atravessam os campos, de terra em terra, pelas poucas entradas reais, quase sempre por carreiros de pé posto, e o tempo é o variável, sol de estarrecer, chuva de alagar, frio que gela, em Lisboa sua majestade espera que cada um cumpra o seu dever. (SARAMAGO, 2013c [1982], p. 330-331).

Para João Barrento (2016), “Memorial do Convento poderia ser o pendant ficcional quase perfeito para as teses materialistas históricas de Benjamin [...]” (2016, p. 53, grifos do autor). Isso porque na história da construção do Convento de Mafra “o que interessa a Saramago é também „a consciência de destruir o contínuo da história‟ (Tese XV), que os vencedores pretendem sempre assegurar; [...]” (BARRENTO, 2016, p. 53). Além disso, o Convento de Mafra, como “o grande „documento de cultura‟ [...] vai-se tornando no decorrer da ação, de forma cada vez mais evidente, num „documento de barbárie‟ (Tese VII)” (BARRENTO, 2016, p. 53). Saramago, no percurso da ficção que leva como ponto de partida a História, sendo esta, no romance, “apenas um instrumento, um tempo-outro que vem activar a consciência do presente” (BARRENTO, 2016, p. 49), afastou-se da versão oficial da História, distanciou-se da “transmissão da tradição, atribuindo-se a missão de escovar a história a contrapelo.” (BENJAMIN, 2013 [1940], p. 13).

Porém, diferente da proposta de Benjamin (2013 [1940]) da vinda do Messias – o que significa que, como teólogo judeu e pensador messiânico que Benjamin era, “o materialismo histórico precisa da ajuda da teologia”6

(LÖWY, 2005, p. 42) –, no Memorial do Convento, não há essa espera porque o que poderá sair, “de cada porta, de cada nicho dessa massa colossal, que quer concorrer com a basílica de S. Pedro, [...], por acção de uma estrutura narrativa contrapontística e alternante, [...] [é] a possibilidade de uma outra história e de outros sentidos para os acontecimentos.” (BARRENTO, 2016, p. 53). O messianismo em

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Ressalta-se, contudo, que, segundo Löwy (2005), “para Benjamin, a teologia não é um objetivo em si, não visa à contemplação inefável de verdades eternas, e muito menos, como poderia a etimologia levar a crer, à reflexão sobre a natureza do Ser divino: ela está a serviço da luta dos oprimidos. Mais precisamente, ela deve servir para restabelecer a força explosiva, messiânica, revolucionária do materialismo histórico – reduzido, por seus epígonos, a um mísero autômato.” (2005, p. 45).

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Saramago não pode ser compreendido como místico “pela simples razão de que o que ele [Saramago] tem para propor é uma dimensão radicalmente humana.” (BARRENTO, 2016, p. 54-55).

A maneira como Saramago compreende a construção da História não se mostra como a de quem quer, por meio da sua narrativa, reconstruir ou reconstituir a versão oficial, e por isso difere do romance histórico, mas como a possibilidade de convocar essa primeira versão para o tempo presente e, pela visão dos considerados vencidos e dos excluídos dos registros oficiais, deixar ao leitor a dúvida quanto ao que até então sabia. A escrita da História será, portanto, apenas uma versão a partir de quem a escreve e das escolhas que faz, como se pode perceber na primeira epígrafe do Memorial do Convento, a qual, conforme Barrento, apresenta um “episódio [que] dá, de forma „perfeita‟ e concisa, o modus procedendi da História.” (2016, p. 51, grifos do autor) e a visão deste modo por Saramago: “Para a forca hia um homem: e outro que o encontrou lhe disse: Que he isto senhor fulano, assim vay v. m.? E o enforcado respondeo: Yo no voy, estes me lleban. Pe. Manuel Velho” (SARAMAGO, 2013c [1982], p. 7, grifos do autor).

Por considerar a História parcelar7 na medida em que não há nesta senão uma das versões dos acontecimentos é que Saramago (2015 [1998]) afirmou ter a literatura legitimidade para dar uma nova versão a esses acontecimentos, ou seja, outra versão à versão primeira da História. Como bem observa Teresa Cristina Cerdeira da Silva, há em seus romances “uma sedução da História, que está longe de ser ingênua e de proceder a um mero relato bem escrito das fontes colectadas nas bibliotecas.” (1991, p. 177). A veracidade ou verossimilhança dos personagens e situações narradas pelo escritor, especialmente nos romances publicados até O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), conforme propõe Ana Paula Arnaut, “oscila entre a obediência, sempre relativa, a um passado cristalizado pela História oficial, e a recriação, nunca isenta de contaminações da ideologia perfilhada pelo autor, de um espaço-tempo que poderia muito bem ter sido como é imaginado.” (1999, p. 325).

Nesse rumo, convém lembrar que, na Poética, Aristóteles já observava a diferença entre o ofício do poeta e o ofício do historiador. No Livro IX, destacou que “a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis no

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Conforme afirmou Saramago, “a História é parcial e é parcelar. É parcelar porque conta uma parte apenas daquilo que aconteceu. [...]” (SARAMAGO; REIS, 2015 [1998], p. 83-84).

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ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade.” (2014, p. 28). A diferença, ainda conforme Aristóteles, não está na forma de escrever, ou seja, se em verso ou em prosa, mas no conteúdo, cabendo ao poeta a representação do verossímil e do necessário, enquanto que ao historiador cabe a narração dos fatos que aconteceram. A lição inaugural de Aristóteles não deixa de ser retomada nas entrelinhas da manifestação de Saramago acerca da diferença entre o trabalho do historiador e o trabalho do romancista. O passado recuperado na ficção, como aponta Silva “[...] é sempre um outro e permite as ousadias do criador.” (1991, p. 175) e, nesse sentido, importa esclarecer que, para Aristóteles, no ofício do poeta, na representação do verossímil, há uma “autonomia [que], frente ao discurso da história, garante a ficcionalidade da mímese8 e é gerada pela unidade interna e significante do material da fábula.” (COSTA, 1992, p. 74).

Ao defender que sua busca não era por uma correção da História, menos ainda por uma reconstrução desta, mas a de intentar uma substituição daquilo que é apresentado como verdade histórica por algo que poderia ter sido, ou, ainda, por uma verdade cujo foco não esteja na parte vencedora, mas nas minorias que, por serem “pobres em documentos, por isso se tornam pobres em História” (SILVA, 1991, p. 176), o escritor demonstrou que, ao rever o Passado, não como um “inalcançável refúgio” (SARAMAGO, 1997 [1995], p. 626, grifo do autor), à luz do Presente, torna-se possível redescobrir “as pequenas histórias que vieram a ser consequência dessa História de formato grande, [...]” (SARAMAGO, 1997 [1995], p. 626). Como esclareceu no trecho a seguir:

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Observa Lígia Militz da Costa (1992) acerca da compreensão de mímese em Aristóteles: “Discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.) recebeu do mestre a palavra mímese. Refutou, contudo, o conceito platônico, enaltecendo o valor da arte justamente pela autonomia do processo mimético face à verdade preestabelecida. Aristóteles transformou a obra numa produção subjetiva e carente de empenho existencial e alterou, com isso, a relação que ela apresentava com a sacralidade original. De ontológica, a arte passa a ter, com ele, uma concepção estética, não significando mais „imitação‟ do mundo exterior, mas fornecendo „possíveis‟ interpretações do real através de ações, pensamentos e palavras, de experiências existenciais imaginárias. Afastada da perfeição, da divindade e da verdade primigênia, a mímese afirma-se como a representação do que „poderia ser‟, assumindo o caráter de fábula. O critério do verossímil, que merecera a crítica de Platão por ser apenas ilusão da verdade, torna-se, com Aristóteles, o princípio que garante a autonomia da arte mimética.” (COSTA, 1992, p. 6).

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Nos meus livros, a História não aparece como reconstrução arqueológica, como se eu tivesse viajado ao passado, tirado uma fotografia e relatasse o que mostra essa imagem. O que eu faço não tem nada que ver com isso. Eu sei ou penso saber o que aconteceu antes e vou examiná-lo à luz do tempo em que vivo. Quando me perguntam se escrevo romances históricos, respondo que não, ao menos no sentido oitocentista da palavra, tal qual o faziam o Alexandre Dumas ou o Walter Scott ou o Flaubert em Salammbô. O meu objetivo é a busca do que ficou no esquecimento pela História. (SARAMAGO; KUPCHIK, 2010 [1994], p. 257). Aos leitores, Saramago salientou que seu objetivo estava em, especialmente por meio da ironia, negar o que de início era do conhecimento do leitor, conhecimento este adquirido naquele a que chamou “primeiro livro”, originando, com isso, “uma impressão de dispersão da matéria histórica na matéria ficcionada, o que não só não significa desorganização de uma e outra como aspira a ser uma reorganização de ambas.” (SARAMAGO, 1997 [1995], p. 625). Pode-se dizer que essa reorganização é feita sempre à luz do presente, ou seja, seus romances, e falo daqueles assinalados como históricos, acontecem como “uma forma ficcional que trabalha o passado nas suas implicações determinadas com o presente, em jeito pragmático que não perde o sentido de uma homenagem crítica mas desvanecida ao património.” (SEIXO, 1989, p. 33).

O escritor justificou a construção de seus enredos pela dificuldade de se encontrar na História, “nessa História iluminada com documentos e certificada com selos [...], a gente comum, a que parece que apenas tem existência para sofrer os avatares que outros decidem.” (SARAMAGO, 2013a [1999], p. 39). Isso porque, para Saramago, era sabido que a História não é apenas de heróis e vencedores. A ficção que construiu, como relata Silva (2011), não chega aos leitores como um conforto, mas como algo que permite questionar os relatos oficiais “porque dentro dela [da ficção] os personagens nos ajudam a encontrar a fenda no muro da história.” (SILVA, 2011, p. 75).

O tema da História, contudo, ao que se pode perceber nas pesquisas empenhadas com este objeto de estudo, no âmbito da obra de Saramago, não abrange todos os seus romances. Foi com Memorial do Convento, publicado pela primeira vez em 1982, que, afirmou o escritor,

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começou-se a falar de “José Saramago como um romancista histórico.” (2015 [1998], p. 32). Na conferência em que pela primeira9 vez discorreu sobre uma mudança de fase na sua obra, Saramago incluiu na fase que denominou estátua, os romances que mais comumente são estudados como sendo seus romances históricos: Manual de Pintura e Caligrafia (1976), Levantado do Chão (1977), Viagem a Portugal (1981), Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989) e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991).

A mudança no seu trabalho de escritor, observou, não se referiu à qualidade10 dos romances, mas à perspectiva, que passou de uma fase de descrição da estátua para outra, a fase da pedra, a pedra que está no interior dessa estátua. Esta, por sua vez, conforme explicou

é a superfície da pedra, o resultado de tirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura, é descrever o exterior da pedra, essa descrição, metaforicamente, é o que encontramos nos romances a que me referi até agora. Quando terminei O Evangelho ainda não sabia que até então tinha andado a descrever estátuas. Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com Ensaio sobre a Cegueira. Percebi, então, que alguma coisa tinha terminado na minha vida de escritor e que algo diferente estava a começar. (SARAMAGO, 2013a [1999], p. 42).

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Em entrevista a Ricardo Viel, ao falar sobre a publicação no Brasil do livro Da Estátua à Pedra, Pilar del Río afirmou: “[...]. É a primeira vez que ele [Saramago] se debruça sobre sua obra e detecta essa intenção de mudança da estátua para a pedra. É a primeira vez que verbaliza isso, que o diz publicamente.” (RÍO; VIEL, 2013, [não paginado]).

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Sobre isso, esclarece o escritor: “[...] não é que eu esteja a desconsiderar aquilo que escrevi até O Evangelho, mas é como se eu me apercebesse, a partir do Ensaio, que as minhas preocupações passaram a ser outras. Não penso que estou a escrever livros melhores que antes. Não tem a ver com qualidade, mas com intenção. É como se eu quisesse passar para o lado de dentro da pedra.” (SARAMAGO; RIOS; ALBUQUERQUE, 2010 [1999], p. 307, grifos do autor).

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A partir do Ensaio sobre a Cegueira, no continuar da sua fala, Saramago passou a analisar cada um dos seguintes romances até O Homem Duplicado, publicado em 2002, explicando os motivos pelos quais os considerou inseridos em uma nova fase no seu percurso literário, a fase da pedra. No primeiro deles, destacou que conseguia vê-lo como uma tentativa “de entrar no interior da pedra, no mais profundo de nós mesmos, é uma tentativa de nos perguntarmos o quê e quem somos. E para quê.” (SARAMAGO, 2013a [1999], p. 43). E buscando, também para si, a explicação da metáfora que criou para elucidar o movimento que sua obra fez ao passar de uma fase para outra, afirmou:

[...] acredito que assim como na nossa vida se vão sucedendo acontecimentos de todo o tipo, também na literatura se sucedem esses acontecimentos, que são expressão do que sentimos e pensamos: a criação é a forma que temos de colocar cá fora as nossas esperanças, as nossas certezas, dúvidas, as nossas ideias. E a minha ideia, ou melhor, a minha preocupação, neste momento ou mais provavelmente desde sempre, ainda que nos últimos títulos se tenha tornado mais evidente, é considerar o ser humano como prioridade absoluta. Por isso, o ser humano é a matéria do meu trabalho, a minha quotidiana obsessão, a íntima preocupação do cidadão que sou e que escreve. (SARAMAGO, 2013a [1999], p. 45). Apontada a mudança de perspectiva em sua obra e demarcada a transição no conjunto desta pelo próprio escritor, pode-se dizer que o mote percorrido por Saramago nos romances desse primeiro ciclo era outro do que o Ensaio sobre a Cegueira começou a demonstrar. Embora tenha assumido uma posição contrária ao rótulo de romancista histórico, a fase da estátua não deixa de ser caracterizada por temas que dialogam mais diretamente com a História e, frise-se, com a história de Portugal. Os interesses do escritor, nesse sentido, foram “desde a concepção da História como ficção e da Literatura como relato homologável da História, até ao questionamento da „verdade histórica‟, uma elaboração confrontada com as „outras verdades‟ arguidas no relato, [...]”. (AGUILERA, 2013, p. 54). Há que se ressaltar que a temática histórica, nessa fase da estátua, foi trabalhada pelo escritor à luz do seu tempo. Questionando a História, visava buscar novos rumos ao presente que lhe incomodava.

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Em vista disso, dessa maneira como trabalhava o passado, sob a perspectiva do tempo presente, talvez não se possa considerar que houve, de uma fase para outra, uma ruptura definitiva. A pedra, como afirma Reis, “sendo a essência da estátua, é a transcendência do romance” (REIS, 2015a [2013], p. 180-181), mas, mesmo assim, deve-se atentar ao fato de que as ficções tecidas por Saramago anteriores ao Ensaio sobre a Cegueira, “não desprezam uma reflexão exigente acerca da nossa relação com o tempo e com a morte, com Deus e com a arte, com a História e com os desafios do nosso presente, com os mitos da nossa civilização e com a necessidade de os desconstruir.” (REIS, 2015a [2013], p. 180-181). Com isso, há também, nesta fase da estátua, grandes questões que caracterizaram toda a produção literária do escritor e que repercutiram, mesmo que não diretamente, nos romances publicados posteriormente, porque, como afirma Luciana Stegagno Picchio, “a estátua e a pedra representam duas etapas, sucessivas e consequenciais, de uma única investigação expressiva.” (2013 [1999], p. 22). Feita da mesma pedra, a estátua não se apresenta em seu estado bruto, por isso escavar a estátua para chegar à particularidade da sua matéria, à pedra, não deixa de ser trabalhar com o mesmo material, porém de maneiras distintas, mas que têm ambas a mesma essência. Na literatura de Saramago, a essência talvez esteja no olhar que se volta para a singular condição humana que nem sempre se apresenta evidente, por vezes é ocultada, por outras, camuflada, sendo necessário escavar os adereços que lhe são colocados, porque é preciso, não apenas olhar, mas ver; não apenas ver, mas reparar.

Traçado, assim, “o mapa da vida literária de José Saramago” (RÍO, 2013, p. 14), o valor da conferência Da estátua à pedra não se mostra somente bibliográfico, mas também, na medida em que o escritor reafirmou algumas das convicções que orientavam sua atividade literária (PICCHIO, 1999), repercute como fonte de estudo e de orientação para compreender seu percurso literário culminado no romance Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, objeto de estudo desta pesquisa. O uso da metáfora como recurso para “explicar-se” e possibilitar a melhor compreensão daqueles que o leem e estudam contribui de forma insubstituível para a apreensão da sua produção literária.

1.2 NO INTERIOR DA PEDRA, OS NOVOS TRAÇOS DO ROMANCE

Se a fase da pedra teve início com o Ensaio sobre a Cegueira, depois deste, Saramago ainda escreveu, publicando-os em vida, os

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seguintes romances: Todos os nomes (1997), A Caverna (2000), O homem duplicado (2002), Ensaio sobre a lucidez (2004), As intermitências da morte (2005), As pequenas memórias (2007), A viagem do elefante (2008) e Caim (2009)11. Contudo, quanto a estas três últimas publicações, Aguilera (2013) propõe que comporiam uma terceira e última fase da obra a ser considerada “uma espécie de epílogo ou coda final, [...]. Assim, a produção aritmética em torno do número três organiza a arquitetura da sua produção narrativa e do seu fecho, se tomarmos em consideração o seu livro de memórias.” (AGUILERA, 2013, p. 53-54). Considerando que Alabardas foi publicado postumamente, em 2014, mas que o autor já em 2009, ano do lançamento de Caim, trabalhava nele12, importa, neste momento, sem entrar na questão de quantas seriam as fases da produção literária do escritor, percorrer as características da fase a que denominou pedra e que podem contribuir para a análise do seu último romance.

Desprendido da temática histórica, nos romances da década de 1990 e nos que adentraram o século XXI, o escritor parece traçar o perfil dos conflitos desse tempo13 “desenhando uma espécie de amplo friso civilizacional” (AGUILERA, 2013, p. 57), no qual estão, respectivamente na ordem acima transcrita dos romances, até As Intermitências da Morte (2005), “a crise da razão, [...], a necessidade do

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Cabe destacar que após a publicação do Ensaio sobre a Cegueira, em 1995, foram ainda publicados os volumes dos Cadernos de Lanzarote, um conjunto de cinco volumes dos diários do autor, sendo o primeiro deles publicado em 1994 e o último em 1998; os contos: O conto da ilha desconhecida, em 1998 e, em 2001, A maior flor do mundo; em 1999, a compilação de artigos políticos publicados em jornais entre os anos de 1976 e 1998, intitulada Folhas Políticas; em 2005, a peça de teatro Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido; e, em 2009, os textos escritos para o seu blog entre setembro de 2008 e março de 2009, sob o título de O Caderno.

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As anotações feitas por Saramago referentes ao romance Alabardas (2014), foram publicadas na edição do livro e datam de agosto de 2009 a fevereiro de 2010.

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Para Aguilera, nessa segunda fase da obra de Saramago, o escritor “intensifica o diálogo literário com o seu tempo, verte as suas preocupações e mal-estar, e apresenta um processo reflexivo ligado à perturbadora natureza das sociedades, o padrão da vida e as pessoas da modernidade tardia. O romance converte-se num lugar de interrogação e análise, onde o narrador se coloca perguntas, formula denúncias e coloca a época diante do seu espelho, incômodo e implacável, mas não isento de ternura e compaixão pelas desvalidas criaturas humanas.” (AGUILERA, 2013, p. 56-57).

Referências

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