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Linchamentos virtuais : paradoxos nas relações sociais contemporâneas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Ciências Aplicadas

KAREN TANK MERCURI MACEDO

LINCHAMENTOS VIRTUAIS: PARADOXOS NAS

RELAÇÕES SOCIAIS CONTEMPORÂNEAS

LIMEIRA

2016

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KAREN TANK MERCURI MACEDO

LINCHAMENTOS VIRTUAIS: PARADOXOS NAS

RELAÇÕES SOCIAIS CONTEMPORÂNEAS

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, na Área de Modernidade e Políticas Públicas.

Orientadora: Profa. Dra. Carolina Cantarino Rodrigues

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA EM 15/08/2016, PELA ALUNA KAREN TANK MERCURI MACEDO, ORIENTADA PELA PROFA. DRA. CAROLINA CANTARINO RODRIGUES.

LIMEIRA

2016

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FOLHA DE APROVAÇÃO

LINCHAMENTOS VIRTUAIS: PARADOXOS NAS RELAÇÕES SOCIAIS

CONTEMPORÂNEAS

Comissão Examinadora

Profa. Dra. Carolina Cantarino Rodrigues (presidente)

Profa. Dra. Marta Mourão Kanashiro

Prof. Dr. Rafael de Brito Dias

A Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros

encontra-se no processo de vida acadêmica da aluna.

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A minha filha Giulia, que faz com que meus esforços valham a pena.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu marido Fábio que soube ser companheiro, ao dividir comigo as tarefas do lar, ao suportar meus momentos de instabilidade emocional e ausência. Meu amor e minha gratidão.

Aos meus pais que, no princípio, por excesso de zelo achavam que seria sofrível para mim acumular mais uma atividade, mas com o tempo, entenderam meu propósito e apoiaram a minha incessante busca por conhecimento.

À Profa. Dra. Carolina Cantarino Rodrigues por ter aceitado meu projeto e por ter construído comigo este trabalho, num processo árduo, mas gratificante.

Aos professores doutores Rafael de Brito Dias e Marta Mourão Kanashiro pelas contribuições no exame de Qualificação, que muito enriqueceram esta Dissertação.

Aos professores do Mestrado Interdisciplinar de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, da Faculdade de Ciências Aplicadas da UNICAMP, pelas aulas, leituras e discussões que muito contribuíram para minha formação acadêmica. Nesse período foi perceptível amplição da visão de mundo, do aprendizado e de minha cultura devido à variedade de temas e aos percursos em diversas áreas do conhecimento.

Aos professores doutores Denise Bértoli Braga e Marcelo El Khouri Buzato do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, onde fiz minhas primeiras disciplinas de Pós-graduação, pelos ensinamentos sobre linguagens, tecnologias e sociedade.

Ao Prof. Dr. Rafael Costa Freria, da Faculdade de Tecnologia da UNICAMP, pelos materiais concedidos e pelas explicações sobre Legislação e Direitos Humanos.

Aos diretores e coordenadores da Faculdade de Tecnologia da UNICAMP, onde trabalho, que sempre incentivaram a minha formação acadêmica e profissional.

Enfim, aos amigos mestrandos, em especial à Queila Valentim, Dildre Vasques, Kelly Camargo, Renato Frigo, Tiago Guioti e Roberson Marcomini por dividirem comigo as mesmas aspirações e dúvidas no ingresso do curso; tensões e alegrias durante cada semestre; nervosismo pré e satisfação após banca. Sentirei saudades de nossas conversas terapêuticas, em que as posições de confitente e conselheiro alternavam-se.

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"Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as

coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,

unicamente aliança. A árvore impõe o verbo 'ser', mas o rizoma tem como

tecido a conjunção 'e... e... e'. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir

e desenraizar o verbo ser".

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RESUMO

Este trabalho propõe estudar as relações comunicacionais em redes sociais on-line, sobretudo os chamados linchamentos virtuais: exposição e humilhação pública de alguém que começam no ciberespaço, mas não se encerram nele; ou ainda, eventos do cotidiano que foram levados às redes sociais para serem julgados. Nota-se que a presença cada vez mais constante da Internet em nossas vidas tornou frágeis as fronteiras entre o atual e o virtual, o público e o privado, a liberdade e o controle, o prazer e o poder. Pretende-se fazer reflexões acerca desses paradoxos - que convivem e se reforçam -, a partir da configuração que emerge desses eventos em que há preferência pela exposição, denúncia, julgamento e justiçamento popular. Os materiais coletados são casos de linchamentos virtuais retirados de matérias jornalísticas

on-line, dos últimos dois anos. A análise tem como aporte teórico os deslocamentos e

questionamentos que vem sendo levantados por pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais sobre a relação da sociedade com as novas tecnologias da informação e comunicação, tais como: a aceleração, novas dimensões do espaço-tempo, a realidade do virtual, a subjetividade contemporânea, o exercício do poder. Devido à complexidade do objeto de estudo, optou-se por uma abordagem interdisciplinar.

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ABSTRACT

This work aims at studying the communicational relationship from social networks, particularly the so-called virtual lynching: the exposure and humiliation of individuals, which begins in cyberspace, but does not end there; or even events that are transferred from daily life to social networks for judgment. The increasingly constant presence of the Internet in our lives blurs the boundaries between the real and virtual world, public and private issues, freedom and control, pleasure and power. This work deals with reflections on these paradoxes, which coexist and become stronger, arising from events where there is preference for exposure, complaint, judgment, and popular justice. The compiled materials are examples of virtual lynching taken from online news in the last two years. The analysis has theoretical support from displacements and questions that have been raised by researchers from Human and Social Sciences on the relationship between society and information and communications technology (ICT). Examples from such relationship are social acceleration, new dimensions for space-time, virtual reality, contemporary subjectivity, and the exercise of power. Due to the complexity of this subject, an interdisciplinary approach was undertaken.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1: Discursos de ódio no Facebook ... 28

FIGURA 2: Possível, real, atual e virtual ... 48

FIGURA 3: Exemplo de remixing de imagem ... 58

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...12

2 LINCHAMENTO VIRTUAL: ANÁLISE DO OBJETO E REFLEXÕES SOBRE OS TERMOS ...20

2.1 Linchamento Virtual: entendendo e problematizando o objeto ...23

2.2 Linchamentos: caminhos possíveis para compreensão ...32

2.2.1 Perspectiva Sociológica ...32

2.2.2 Circuito de afetos ...38

2.3 Virtual: mudança nos modos de ser e de viver ...41

2.3.1 Crise da percepção de duas dimensões ontológicas: espaço e tempo...43

2.3.2 A passagem para o virtual ...46

2.3.3 A realidade virtual como ampliação da realidade ...52

2.4 Novidade e recorrência...55

3 A INTENSA PRESENÇA DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE: (RE)CONFIGURAÇÕES DA PRIVACIDADE, DO PODER E DO CONTROLE ...61

3.1 Público e Privado: redes sociais como palco público para a exposição do íntimo ...63

3.2 Prazer e poder: intervenções de um poder estratégico ...72

3.3 Na rede e para além dela: o controle ao ar livre e o disciplinamento da massa ...81

3.4 Liberdade e controle: intervenções do poder jurídico ...87

3.4.1 Criação de leis específicas para uso da Internet no Brasil ...88

3.4.2 Liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana: embate de direitos fundamentais ..96

4 DO COTIDIANO PARA A CIÊNCIA: TRAJETÓRIAS PARA TORNAR O LINCHAMENTO VIRTUAL UM PROBLEMA DE PESQUISA CIENTÍFICA ...108

4.1 Coletânea de material para a pesquisa ...108

4.2 Intervenção interdisciplinar para tratar o objeto de estudo ...111

4.3 Questões Metodológicas ...114

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...118

6 REFERÊNCIAS ...123

ANEXO ...130

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1

INTRODUÇÃO

Ao falar em sociedade contemporânea não se pode deixar de mencionar a mediação tecnológica nas relações sociais. A interação digital, sobretudo via Internet, tem estado cada vez mais presente no cotidiano das pessoas, tornando o par homem-máquina praticamente indissociável.

Essa interação se mostra bem consistente, quando se utilizam os mais variados aparelhos para se acessar a Internet, a rede mundial de computadores. Desde final do século XX, o número de adeptos à Internet vem crescendo devido a alguns fatores, dentre os quais podemos citar: barateamento de equipamentos eletrônicos, sobretudo de computadores e televisores (alguns modelos já disponibilizam a opção smart, que permite acesso à rede); uso de equipamentos portáteis (notebook, celular e tablet); progresso das telecomunicações (banda larga, por exemplo). Mundialmente, esse número chegou a três bilhões e duzentos milhões de internautas, de acordo com a União Internacional de Telecomunicações (UIT)1 das Nações

Unidas, em 2015. No Brasil, 57,6% das pessoas estão conectadas, segundo o levantamento da UIT.

Tendo em vista a expressividade desses números, considera-se importante pesquisas que contemplem as práticas da sociedade tecnificada do século XXI que é composta por quatro gerações2, a seguir:

(i) Baby Boomers: nascidos entre 1945 a 1965. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a volta dos soldados para a casa, houve um crescimento da natalidade em todo mundo. Ao chegarem na adolescência, os Baby Boomers lutaram contra os costumes e valores da época. Tiveram contato com computadores e celulares já na fase adulta.

1 Disponível em: < https://nacoesunidas.org/

no-brasil-quase-60-das-pessoas-estao-conectadas-a-internet-afirma-novo-relatorio-da-onu>. Acesso em: 12 dez 2015

2 Baby Boomers, Geração X e Geração Y. Disponível em: < https://www.facebook.com/UnicampAno50/videos/

1514823885489582>. Acesso em: 21 abril, 2016.

REIS, P. et al. O Alcance da Harmonia entre as Gerações Baby Boomers, X e Y na Busca da Competitividade Empresarial no Século XXI. In: X SEGeT, 2013. Disponível em: < http://www.aedb.br/seget/arquivos/artigos13/9418322.pdf>. Acesso em: 21 abril, 2016.

KÄMPF, C. A geração Z e o papel das tecnologias digitais na construção do pensamento. In: Revista ComCiência, n. 131, 2011.

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(ii) Geração X: são os filhos dos Baby Boomers, nascidos entre 1966 e 1977. Devido à incerteza de que a próxima geração continuaria ou não a revolução provocada por seus pais, foi denominada de “X” (incógnita). Tornaram-se jovens na década de 1980. Observaram a tecnologia entrando no cotidiano de suas casas.

(iii) Geração Y: nascidos entre 1978 a 1989. Na década de 90, houve a popularização de Internet e avanços tecnológicos tanto de hardware como de software. Isso possibilitou uma expansão da identidade da geração “Y”, já que agora lhes era acessível a conexão com qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. Compartilham ideias, pensamentos e os mais diversos conteúdos. As pessoas dessa geração também têm como características: o pensamento não linear; capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo e são altamente dinâmicos.

(iv) Geração Z: nascidos após 1990. A denominação “Z” vem de “zapear”, ou seja, fazer algo rapidamente, como digitar mensagens de texto no celular, e mudança de foco constante. É a geração que já nasceu imersa nas tecnologias e assistiram, não passivamente, o surgimento das redes sociais (Orkut, Twitter, Facebook, etc). Essa geração está totalmente integrada com as tecnologias e valorizam muito as comunicações virtuais.

Nota-se um processo de inclusão na Internet, não só por atores de diferentes idades, mas também por diferentes classes sociais e de diferentes culturas, já que os dispositivos para esse fim estão mais acessíveis e têm alcance global. Entretanto, Kanashiro (2016) adverte que, nesta década, observou-se a expansão de empresas, como o Google e o Facebook, que permitem ao usuário o acesso à tecnologia, mas em contrapartida praticam “o controle de acesso, a vigilância, o monitoramento e a identificação de pessoas, a construção de banco de dados e perfis sobre a população” (p. 20). Portanto, a Internet não está isenta das estratégias de poder que incluem alguns e excluem outros.

Sendo assim, é preciso pensar as transformações contemporâneas, sobretudo sob a óptica do funcionamento e utilização das Tecnologias da Informação e da Comunicação, doravante TICs, como mudança no capitalismo, no exercício do poder, nos modos de conhecer, de ver, de sentir (KANASHIRO, 2016).

No cerne da discussão sobre essas mudanças, propomos observar algumas práticas sociais em contexto digital. Tem-se notado que as redes soacias on-line, atualmente, tornaram-se dispositivos acessíveis para fortalecer e propagar denúncias e acusações de

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irregularidades no sistema público. No entanto, com a apropriação do mesmo instrumento, vê-se também julgamentos, humilhações, demonstrações de preconceito e violência. Sabemos que tais práticas são muito anteriores à tecnologia, mas a Internet as tem potencializado.

Para melhor compreender essas tensões presentes nas relações sociais em meio virtual, utilizaremos como objeto de estudo um fenômeno recente: o “linchamento virtual” (assim chamado pela mídia), que é fruto de agressões e humilhação pública em redes sociais

on-line, mas que não se encerram nelas, estendendo-se em efeitos e consequências para a

“vida real”.

Sem a pretensão de respostas conclusivas, esta pesquisa busca analisar o “linchamento virtual” para tentar compreender a sua própria singularidade, além do que já está posto e tido como evidente acerca do tema. Por isso, mais do que conclusões e respostas, o que se deseja é instituir um “campo problemático” em torno desse assunto.

Para isso, inciaremos o capítulo 2 levantando uma discussão acerca dos conceitos já existentes para tratar situações supostamente semelhantes – por exemplo, os linchamentos o

bullying - ao nosso objeto de estudo: o que se aplicaria ou não aos casos coletados nesta

pesquisa? A reflexão flui para questionamentos mais desafiadores, tais como forma e a necessidade de categorização e definição acerca do linchamento virtual.

Na medida em que os linchamentos virtuais tendem a ocorrer em redes sociais

on-line, mas não ficam circunscritos a elas, como foi afirmado anteriormente, outra reflexão que

será feita nesse capítulo parte de algumas indagações: no contexto atual, em que as pessoas vivem conectadas o tempo todo, o que é o “real”? Haveria uma realidade “realmente real” em relação à qual o ambiente virtual poderia ser avaliado como “menos real”, alternativo ou fictício? Neste trabalho também pretende-se discutir essa problemática à luz da Filosofia e das Ciências Sociais. Considera-se relevante essa discussão já que a intensa presença das TICs no mundo contemporâneo coloca em xeque o próprio princípio de realidade (Garcia dos Santos, 2003: p.113).

Além disso, as fronteiras habituais com as quais definíamos o tempo e o espaço deixam de fazer sentido diante do mundo virtual. Veremos ainda que essa reconfiguração do espaço-tempo, promovida pela virtualidade, impacta nas nossas percepções, pensamentos e na velocidade das narrativas.

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Nesse capítulo ainda, analisaremos o outro termo do nosso objeto de estudo: “linchamento”, também à luz da Filosofia contemporânea e das Ciências Sociais. Pretendemos conectar nosso tema com esses estudos e reflexões para que nos auxiliem a compreender, dentre outras coisas: vínculos sociais, manutenção da ordem social, atitudes violentas e a procura por meios alternativos de justiça.

Fechando o capítulo, recomponhos novamente os termos – linchamento virtual - e sintetizamos as discussões anteriores, mostrando ao leitor que há muitas transformações promovidas pelas TICs no cotidiano da sociedade. No entanto, há pensamentos e comportamentos que não se alteraram, mas somente migraram para o espaço digital, onde encontraram maior dimensão de alcance e audiência.

Em meio a esse conjunto de transformações, a organização social em redes on-line também provocou uma reconfiguração na privacidade, no exercício do poder e, consequentemente, nas formas de controle. Reflexões sobre essas questões serão vistas no capítulo 3.

A respeito da primeira questão, pretende-se demonstrar que as noções de público e privado na contemporaneidade, sobretudo com o uso da Internet, são bem diferentes do que eram na Modernidade. Tem-se tornado cada vez mais comum a exposição da vida cotidiana e até mesmo dos sentimentos mais íntimos nas redes sociais. Relacionaremos essas questões com casos de linchamentos virtuais.

Nesse terceiro capítulo, ainda, veremos como a prática da autoexposição é benéfica para a estratégica de lucro da rede e, também, vem forçando as Ciências Jurídicas a criarem jurisprudências sobre a privacidade. Nesse ínterim, descreveremos dois poderes que atuam nas redes sociais on-line: o poder estratégico e o poder jurídico.

Para se exercer o controle na Internet, novas estratégias precisaram ser traçadas. Por exemplo, oferecer uma plataforma gratuita onde o usuário possa se conectar com amigos distantes e conhecer pessoas do mundo inteiro é um bom atrativo. Todavia, ao mesmo tempo em que se incita a circulação e a sensação de prazer dos usuários, empresas e governos potencialmente os vigiam e controlam. Nesse tópico pretende-se descrever o funcionamento desse poder que opera, por vezes, de modo sútil e invisibilizado (FOUCAULT, 1976), imperceptível para a maioria dos usuários.

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Há ainda um outro exercício do poder do qual a Internet não está isenta e tão pouco seus usuários: o poder jurídico. Nesse tópico, em sua primeira parte, pretende-se apresentar as leis existentes no Brasil sobre o uso da Internet, proteção de dados, privacidade e outros crimes cibernéticos. Já na segunda parte, será exposto como se configuram a liberdade de expressão e o crime contra dignidade da pessoa humana na Constituição brasileira. Veremos que há uma linha muito tênue que separa (ou mesmo confunde e borra seus limites e contornos) esses dois direitos fundamentais em alguns casos de linchamentos virtuais.

Por fim, as motivações, coletânea de materiais e métodos de análise, bem como os próximos passos desta pesquisa serão descriminados no capítulo 4. Dentre a coletânea de material levantada nos dois anos de pesquisa, trouxemos para esta Dissertação oito casos, que estão distribuídos por todo o trabalho, iniciando ou finalizando os capítulos. Essa estrutura foi pensada para aliar a discussão teórica com as práticas comunicacionais on-line que resultaram em linchamentos virtuais.

Reunimos, então, esses e outros casos em um blog denominado “linchamentos virtuais”, de minha própria autoria (Karen Mercuri). É na formatação de postagem do blog que os casos serão aqui apresentados, com intuito de destacá-los do texto teórico, porém sem perder a conexão com os conceitos discutidos em cada capítulo. Além disso, pretende-se proporcionar uma leitura dinâmica, já que é possível lê-los também diretamente no blog, utilizando o atalho da imagem Code. Para isso, basta ter um aplicativo de leitura QR-Code instalado no dispositivo móvel (celular ou tablet).

Destacamos ainda que o conjunto de questões que compõem essa Dissertação e que apresentamos nesta introdução dão a ver como as práticas e eventos relacionados ao linchamento virtual põem em xeque aquilo que habitualmente pensamos a partir das oposições entre virtual e real3, público e privado, liberdade e controle, prazer e poder, justiça popular e justiça institucional.

Diante disso, optamos neste trabalho por utilizar a preposição “e” em vez de “versus” para demonstrar que, embora os termos indiquem uma oposição, percebemos que eles ocorrem de modo simultâneo no fenômeno estudado. Nesse contexto, partimos do

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pressuposto de que os paradoxos seriam a engrenagem das relações sociais contemporâneas mediadas pelas TICs.

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2

LINCHAMENTO VIRTUAL: ANÁLISE DO OBJETO E REFLEXÕES SOBRE OS TERMOS

Embora existam outras denominações para o objeto de pesquisa “linchamento virtual”, conforme veremos adiante, utilizaremos essa denominação adotada pela mídia eletrônica. A escolha pela utilização dessa expressão visa reforçar a presença de algo real, o linchamento, ao mesmo tempo em que almeja destacar as nuances do virtual, aqui entendido com o ambiente da Internet.

A intenção deste capítulo é decompor a expressão “linchamento virtual” a fim de fazer uma reflexão mais densa sobre os dois vocábulos, mas também agrupá-los de modo a ressaltar o objeto novo que os dois juntos representam.

Primeiramente, pretende-se discutir o que é um linchamento virtual; as semelhanças e diferenças com conceitos já existentes e a possível insuficiência de teorias para se compreender fenômenos contemporâneos tão complexos.

Posteriormente, com estudos sociólogicos sobre linchamentos físicos contrapondo à lógica do cirtcuito dos afetos, pretende-se fazer reflexões acerca da organização da sociedade, do justiçamento popular, crime de multidão e outras características que possam também estar presentes nos linchamentos virtuais.

Na sequência, analisaremos o termo virtual. Pretende-se trazer algumas teorias filósóficas contemporâneas para uma melhor compreensão da presença da virtualidade em nossas vidas, sobretudo potencializada com as tecnologias.

Por fim, traremos ao cerne da discussão o que é realmente novo nesse fenômeno de linchamento virtual e o que são meras repetições de comportamentos. Além disso, faremos uma explanação sobre as potencialidades da Internet que resultam numa ampliação do fato em si, de sua divulgação e de suas punições.

Com isso, abordaremos os paradoxos: justiça popular e justiça institucional; real e possível; atual e virtual.

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2.1 Linchamento Virtual: entendendo e problematizando o objeto

“Há uma demora cultural na mentalidade que permanece, ainda que impregnada de disfarces de uma atualidade que não é a do novo, mas a do persistente” (MARTINS, 2015).

Há outros conceitos para tratar casos semelhantes na Literatura. Neste tópico, serão descritas as categorizações encontradas e explicaremos o porquê de o nosso objeto de

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estudo ser algo tão latente que, na nossa concepção, não se enquadra nas definições já existentes.

No entanto, antes de aprofundamos nas explicações, observemos os casos descritos anteriormente. Nota-se que há semelhanças e diferenças. Então, como classificá-los na mesma categoria de “linchamento virtual”? Que relações podem ser criadas entre esses dois casos que os tornam nossos problemas de pesquisa?

Numa tentativa de aproximação, foram observadas as seguintes características: (i) as fronteiras borradas entre o atual e o virtual4 e, por isso, a impossibilidade de pensar esses dois mundos em separado. Assim, o que acontece em um tem implicações no outro, acarretando consequências graves. Os dois casos iniciaram-se na Internet e tiveram consequências fora dela; (ii) as potencialidades das redes sociais on-line no que diz respeito a suas ferramentas e suporte tecnológicos: propagação dos discursos, multimodalidade, possibilidade de anonimato, seja por estar protegido na massa apenas endossando o coro ou por trás de perfis falsos; (iii) a utopia sobre liberdade de expressão e democracia5 que muitos

adeptos acreditam ter conquistado com as redes sociais on-line e, consequentemente a ilusão de que podem driblar a lei e não serem punidos.

Ao mesmo tempo, as diferenças apresentadas também colocam em xeque a possibilidade de os dois casos estarem na mesma categorização: (i) aconteceram em países diferentes, com cultura, economia política e leis distintas. Semelhantes casos ao da Justine já encontramos no Brasil, mas será que o segundo caso aconteceria nos Estados Unidos? Mesmo que haja fatos parecidos, seriam eles pela mesma razão que motivou o linchamento aqui?; (ii) aconteceram em redes sociais, mas distintas (Twitter e Facebook), com recursos diferentes; (iii) no primeiro caso, houve ação de um usuário e reação de vários, mas no segundo a vítima não postou nada como também não era responsável das ações pelas quais fora acusada; (iv) o primeiro é baseado em um fato concreto e o outro em boato; (v) em um, as acusações e ofensas eram direcionadas a uma pessoa (nome, sobrenome foto e local de trabalho), porém no outro as acusações eram baseadas em uma história hipotética e a um estereótipo pautado em uma imagem sem identificação que teve como consequência a morte de uma pessoa inocente.

4 Lévy, P. (1996) – conceitos que serão detalhados no tópico 2.2.2.

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Na literatura, na mídia, multiplicam-se os nomes e expressões criados para se referir a essas e outras práticas de violência do mundo contemporâneo: cyberbulling, linchamentos virtuais, flaming, discursos de ódio, entre outros. Descreveremos, a seguir, a definição de cada termo fazendo reflexões acerca de nosso objeto de pesquisa.

Os primeiros artigos científicos que tratam sobre desmoralização em redes sociais virtuais, datam de 2004, no Brasil, época em que a rede social Orkut ganhava popularidade. Nessa rede eram criadas comunidades, só para malhar alguém. Os autores chamaram esse fenômeno de cyberbullying, que seria uma extensão do bullying:

(o cyberbullying) é a forma pela qual um indivíduo ou grupo de indivíduos busca causar dano a outro de modo repetitivo, com o uso de tecnologias eletrônicas, como celular e computador. Nessa modalidade de violência os autores superam a relação tempo-espaço, uma vez que agridem suas vítimas, por meio de mensagens ou imagens, como vídeos e e-mails, em qualquer horário do dia e em qualquer local (PATCHIN & HINDUJA, 2006, apud STELKO-PEREIRA & WILLIAMS, 2010, p. 52).

A princípio os estudos sobre cyberbullying visavam entender a extensão para o ambiente virtual do bullying que ocorria em instituições de ensino. Por exemplo, a turma do 6º ano do colégio “Alfa” praticava bullying com o aluno “Beta” porque ele era gordo. As mesmas piadas de mal gosto eram feitas em comunidade do Orkut, geralmente criadas para esse fim. Nesses casos, normalmente, os integrantes tinham a mesma faixa etária e a repercussão, mesmo estando na Internet, ficava em torno da mesma turma e não interessava as outras pessoas externas a ela.

Os casos estudados neste trabalho, vão muito além disso, por ultrapassarem barreiras, tais como: virtualidade, idade, espaço físico, classes sociais, níveis de instrução, entre outras. Todavia, se considerarmos a destruição moral e psicológica da vítima de

cyberbullying pode equiparar-se ao primeiro caso, da Justine. Entretanto, nem sempre a

reação dos julgadores provém de uma ação. No exemplo citado, ridicularizam o menino por ser gordo. E essa ausência de causa e consequência assemelha-se ao segundo caso, o da Fabiane.

Assim, os nossos casos seriam um neo-cyberbullying? Nos casos de linchamentos virtuais estão envolvidos outros conceitos como justiçamento e denúncia. Dito de outra forma, há casos em que a exposição de uma pessoa é com intuito de se fazer justiça e normalmente,

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tem-se aprovação popular pelo ato. O mesmo não aconteceria com o cyberbullying. Além disso, pelo conceito aqui trazido, para causar dano ao outro a ação é repetida incessantemente. Nos casos que analisamos, os agrupamentos para esses fins são momentâneos e o alvo muda constantemente, pois sempre há um assunto novo e polêmico para ser julgado.

Aranha (2011) utiliza o termo flaming, que em seu sentido restrito é uma discussão acalorada na Internet entre dois ou mais indivíduos que discordam de algum assunto. No entanto, O’Sullivan e Flanagin6 (2003, apud ARANHA, 2011) ampliam esse conceito e utilizam-no para descrever quaisquer interações hostis na Internet, considerando também a possibilidade de agressão moral unilateral e “deslocando o debate em torno de uma ideia para o processo de linchamento moral na Internet” (ARANHA, 2011, p. 124). Assim posto, o flaming - mais como humilhação, ofensas e ameaças de violência do que simplesmente um debate de ideias - talvez pudesse englobar os casos estudados, sobretudo o primeiro. Todavia, o autor não menciona as consequências fora da rede e entendemos que nos casos de linchamentos virtuais as humilhações e violências não se encerram na tela do dispositivo eletrônico (computador, celular, tablet, etc).

Outras características do flaming, segundo o estudo de Aranha (2011): (i) ser intenso, porém breve. Pensando nas redes sociais, isoladamente da vida real, os episódios de linchamentos são passageiros visto que sempre há algo para substituir determinado assunto e a vítima muda; (ii) dimensão pública. Embora existam ferramentas que possibilitem a conversa privada (chat), opta-se por uma arena pública para a “flame war”; (iii) anonimato e possibilidade de transgressão dos flamers (praticantes de flaming) que se escondem nos multi-comentários e se expressam com mais coragem do que no face-a-face; (iv) “controle moral” por um determinado grupo. São condenáveis postagens que não são aceitas pela sociedade, seja por razões culturais, políticas, religiosas ou que estejam em desacordo com a ideologia daquele grupo “controlador”.

Outro termo muito utilizado é discurso de ódio. O discurso do ódio pode ser assim definido:

6 O’SULLIVAN, P.; FLANAGIN, A. Reconceptualizing ‘flaming’ and other problematic messages. New Media & Society,

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[...] refere-se a palavras que tendam a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião ou que tem capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas (BRUGGER7, 2007, apud SANTOS e CUNHA, 2014).

Usuários ofendendo a outros usuários, sendo pessoas públicas ou pessoas comuns, em tom bem agressivo, destruindo vidas (pessoal, profissional e emocionalmente).

Tomemos como exemplo de discurso de ódio as eleições presidenciais no Brasil, em 2014, principalmente após a definição dos candidatos do 2º turno8, retratado nesta pesquisa no caso 3. Houve uma aguda polarização do debate público: cada uma das partes ocupava-se não apenas em atacar o candidato ou partido adversário, mas também os eleitores da oposição. Mesmo após as eleições os discursos de ódio de cunho político não cessaram, distinguindo, portanto do “linchamento moral”, que é de fácil esquecimento e rápida mudança de foco (pelos linchadores).

Além da política, nota-se discursos de ódio ligados ao preconceito sendo propagados com a ajuda da tecnologia. Por exemplo, o racismo no episódio envolvendo a jornalista Maria Júlia Coutinho da Rede Globo de Televisão (figura 1). As ofensas eram raciais e não por alguma atitude dela que poderia ser condenada pela sociedade. A maioria dos perfis que fizeram a ofensa eram falsos (fakes), mas mesmo assim a polícia conseguiu localizar os autores das publicações.

A intolerância é o desrespeito à diversidade e um dos principais fomentos do discurso do ódio (SANTOS & CUNHA, 2014), o qual ganhou terreno fértil no contexto da Internet, provavelmente pelos fatores: rapidez, possibilidade de anonimato e alcance global. Não há nenhuma preocupação com o efeito que palavras duras ditas em redes sociais possa magoar, entristecer ou arruinar a vida de alguém; pelo contrário, parece ser esse mesmo o objetivo (BRUM, 2015).

Há também esse mesmo discurso de ódio racista visando pessoas comuns. Há um caso em que um rapaz postou em sua rede social uma foto com sua namorada, atitude muito

7 BRUGGER, W. Proibição e proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e o americano.

Revista de Direito Público 15/117. Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, ano 4, jan-mar. 2007.

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comum entre os usuários dessa rede. No entanto, o fato de o casal ser composto por um rapaz branco e uma moça negra, causou deboche e discriminação racial9.

FIGURA 1: DISCURSOS DE ÓDIO NO FACEBOOK

Fonte: Jornal Hoje em Dia on-line, maio de 2015.

Nos dois casos de linchamento virtual aqui retratados há evidências de discursos de ódio. Observamos os trechos abaixo, atentando para os vocábulos grifados:

CASO 1: “Daqui a pouco vamos ver essa vaca @JustineSacco ser demitida. Em TEMPO REAL. E nem vai estar SABENDO que perdeu o emprego” (grifo meu). CASO 2: Essa mulher tava (sic) aqui no Areião e chamou o filho do vizinho daí o garoto correu, ontem minha prima tava (sic) na rua ai (sic) essa mulher perguntou se minha prima tinha filha e onde a filha dela tava (sic), se eu pegar eu mato ela...” (grifo meu).

9Disponível em: < http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/08/casal-sofre-racismo-apos-publicar-foto-facebook.html>.

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Nota-se nas postagens, pelos usos dos termos, que há uma certa ira e um desejo de punição. Sendo assim, temos mais um impasse: como diferenciar os casos da coletânea de materiais desta pesquisa do discurso de ódio? Será que discurso de ódio e linchamento virtual são dissociáveis? Na verdade, o discurso de ódio está implicado e/ou contido no linchamento virtual, fomentando a violência para além das redes.

Para Santos e Cunha (2014) o termo mais apropriado para esse fenômeno é violência simbólica, ou seja, a ação prática do poder simbólico (BOURDIEU10, 1989 apud SANTOS e CUNHA, 2014), definida como: “aquela que acontece através de linguagem, das imposições discursivas que criam “verdades” e são instrumento de dominação e formação de uma cultura de massa, que aliena e desorienta” (p. 11). No decorrer deste trabalho veremos outros casos em que essa teoria poderia explicar o comportamento na rede, porém nos linchamentos virtuias percebemos que a violência simbólica se transforma, algumas vezes, em violência física.

Embora os motivos sejam muito variáveis (denúncias, boatos, publicações desrespeitosas ou preconceituosas, etc) e por isso mesmo a dificuldade de classificação, identificamos basicamente duas situações que instauram um linchamento virtual. A primeira, tem princípio na própria rede social, quando alguém publica algo sem muita reflexão e isso acaba gerando polêmica e republicações com xingamentos e humilhações. Há outras, porém, em que os casos tiveram início fora das redes sociais, foram registrados por foto ou vídeo e levados a esse meio para o julgamento público, esperando uma atitude punitiva, por exemplo demitir a pessoa do trabalho ou exclui-la do convívio social, além da exposição negativa na rede.

Pelo exposto, seria o termo “linchamento virtual” apropriado para essa situação que começa ou termina no ciberespaço? Para Martins (2015 b), por exemplo, linchamento virtual não existe propriamente como linchamento, já que se trata de agressão de natureza diversa da do ato de linchar. Nesta Dissertação utilizaremos a denominação “linchamento virtual” não com a pretensão de fazer analogias ao ato de linchar, mas tratá-lo como um algo novo, admitindo que há certas semelhanças, mas principalmente ressaltando as diferenças.

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Contudo, independente do termo utilizado, devido à complexidade do tema é iminente necessidade de tomá-lo como um problema de pesquisa. Por isso, temos uma questão ainda mais provocativa: por que há necessidade de classificação e de rótulos?

A busca pela identificação – através da sua nomeação – desses eventos e práticas atuais de violência talvez indique aquilo que vem sendo discutido amplamente nas Filosofia, Ciências Sociais e Teoria Social Contemporânea: a insuficiência das teorias, conceitos, categorias e percepções habituais em se aproximar da complexidade do mundo presente. Veremos no capítulo 3 que as formas de categorizações feitas por algoritmos nas redes sociais para a criação de perfis, por exemplo, vão muito além das que eventualmente pensamos.

Portanto, a forma como definimos (linchamentos virtuais), estruturamos (em paradoxos) e abordamos (interdisciplinarmente) este trabalho é apenas uma sugestão para como se pensar essas questões.

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2.2 Linchamentos: caminhos possíveis para compreensão

Não se trata de julgá-lo, pois isso cabe a ordem jurídica, mas de compreendê-lo em face do que a sociedade não tem, do que falta, e não em face do que a sociedade tem, mas não realiza totalmente. (MARTINS, 2015, 64).

Destacaremos aqui caminhos possíveis que nos permitem problematizar as práticas relacionadas ao linchamento, a partir de diferentes perspectivas acerca da violência e seus impactos e efeitos junto aos vínculos sociais.

Para tanto, apresentaremos a perspectiva sociológica sobre o tema do linchamento, a partir de trabalhos de José de Souza Martins, que aborda a questão na sua relação com a conservação e a manutenção da ordem social (entendida como um conjunto de normas e regras).

Por outro lado, faremos contrapontos com reflexões filosóficas contemporâneas acerca da constituição do social enquanto um circuito de afetos (SAFATLE, 2016). Tal perspectiva filosófica torna-se revelante tendo em vista os modos pelos quais os linchamentos virtuais mobilizam o ódio, o medo, etc., em seus enunciados. Tais modos conectam-se as maneiras com as quais as novas tecnologias da informação e da comunicação incidem, em seu exercício de poder, sobre os modos de sentir e perceber.

2.2.1 Perspectiva Sociológica

O termo “linchamento” é uma palavra do século XVII. Deriva do nome do juiz Lynch11 dos EUA, que difundiu uma penalidade para o que hoje conhecemos como linchamento.

Segundo Martins (2014), o ato de linchar é o resquício das ordenações Filipinas e das decisões da Santa Inquisição. Para esse autor, o linchamento é uma punição radical e extintiva do corpo do réu, cujo fim é exterminar e não reeducar ou restinguir à condição civil.

11 William Lynch, um fazendeiro americano (1742-1820) de Pittssylvania (Estado de Virgínia), criou um tribunal privado

para julgar e executar criminosos apanhados em flagrante prática de crimes graves. O Julgamento e a execução incumbiriam, decididos sumariamente, por uma multidão. Daí derivaram as expressões linchamento e Lei de Linch (DE JESUS, 2015).

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Para Martins (2015) o linchamento é apenas uma das várias formas de violência coletiva que provém de uma inquietação social disseminada. É uma tentantiva da sociedade em violar a ordem onde esta foi rompida por condutas sociais condenáveis para, então, colocar a sociedade no rumo de uma sociedade almejada. Constiui-se, então, de “uma ação anômica no sentido de superar o estado de anomia” (MARTINS, 2015, p. 105).

Sendo assim, o linchamento não é uma violência original: é uma segunda violência, que deriva de um ato condenável. É sobretudo indicativo de que há um limite para o delito e, na lógica dos linchadores, para a violência há o crime legítimo (praticado por eles), embora ilegal, e o crime sem legitimidade (praticado pelo linchado).

Da perspectiva de Martins, qualquer linchamento é um fato lastimável, porque sonega à vítima o direito de se defender, o de ser julgada por um juiz imparcial, ou seja, é um julgamento moral, definitivo e sem apelo; produto da emoção e não da razão. Nesse sentido, todos os delitos são igualados: tanto o pequeno roubo quanto o assassinato

Nos linchamentos está envolvido o julgamento de quem não consegue refrear o desejo, o ódio e a ambição, e não vê limites para o desejar, o odiar e o ter, não pode conviver com os demais nem tem o direito a uma punição restitutiva que o devolva à sociedade depois de algum tempo e do castigo. Simplesmente, nega-se como humano. (MARTINS, 2015, p. 53).

Nesse ínterim, a prática de linchar indica a presença de rituais de exclusão ou desincorporação e dessocialização de pessoas, que pelo crime cometido, revelaram-se incompatíveis com o gênero humano e inaptas a conviver em sociedade (MARTINS, 2015). A violência que é característica dessa prática tem uma função social conservadora e altruísta.

A partir dessa perspectiva sociológica que estamos descrevendo, para estudar os linchamentos é necessário conhecer melhor a forma e a função do justiçamento popular que, para Martins (2015), provém da força do inconsciente coletivo e das estruturas sociais profundas:

As estruturas sociais profundas são as estruturas fundamentais remotas que, aparentemente vencidas pelo tempo histórico, permanecem como referência oculta de nossas ações e de nossas relações sociais. São estruturas supletivas de regeneração social, que se tornam visivelmente ativas quando a sociedade é ameaçada ou entra em crise e não dispõe de outra referência, acessível, para se reconstruir, fenômeno que se expressa nos linchamentos (MARTINS, 2015, p. 9-10)

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A crise social que leva à prática de justiçamento tem de um lado a deteorização de uma hierarquia social pré-existente e de outro o desejo de conquista de direitos por categorias sociais até então excluídas (MARTINS, 2015).

Por isso, os linchamentos vêm justamente como forma de contestação da má distribuição de bens de direito e de justiça. Essa é a dimensão sociológica da justiça popular: forma de “resposta restaurativa a situações de anomia e de ruptura violenta de elementos fundantes da estrutura social” (MARTINS, 2015, p. 64). Além disso, cumpre sua função social ao fornecer “aos participantes uma compreensão das rupturas sociais que não estão inscritas no previsível e tolerável da cultura popular” (MARTINS, 2015, p. 65).

A justiça popular, para Martins, baseia-se no pressuposto da vendetta, ou seja, na concepção da função social restauradora da vingança. O linchamento acaba sendo, então, uma “forma extremada de uma necessidade social de vingança”. (MARTINS, 2015, p. 65). E quando não se tem motivos para vingar, o mote do linchamento passa a ser o castigo.

Segundo esse autor, há diferentes motivações para o ato de linchar. Nos bairros populares das grandes cidades, a principal motivação é o medo de ser vítima - de roubo, de estupro, de assassinato, de pouco caso. Já nas cidades do interior, a motivação é conservadora: de cunho moral e repressivo, defesa da própria classe média, do caráter fechado das elites ao estranho e ao de fora.

Para Martins (2015), é preciso considerar dois planos: a mente conservadora e a ações coletivas violentas justificadas por essa mentalidade, já que a prática conservadora de impor um castigo a quem tenha agido contra os valores e normas que regem as relações sociais pré-estabelecidas, ou as tenha colocado em risco, movem a população à prática de linchamento.

Ainda segundo os estudos do sociólogo (2015), os casos de linchamento crescem quando: (i) aumenta a insegurança em relação à proteção do Estado; (ii) descrença nas Instituições (polícia e justiça). A população acredita que elas são ineficazes nos cumprimentos de suas funções, pois não é raro ver um policial envolvido em algum crime ou ver criminosos serem absolvidos.

Essa desmoralização da polícia e da justiça teve início durante a Ditadura Militar (1964-1985) e as práticas de tortura e extermínio perpetradas pelo Estado nesse período. E o

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fim do regime ditatorial não fez com que o Estado de direito e democrático se estabelecesse automaticamente:

Não se levou em conta a desordem do Estado ditatorial viabilizara o revigoramento e a difusão da cultura do poder pessoal, da vendeta, do arbítrio, do menosprezo pela pessoa e pelo corpo do outro, agora colocados nas mãos até de membros das forças policiais. Desprovidos, com mais frequência do que se possa tolerar, da distinção entre público e privado e da consciência de que não servidores do Estado e não de sua própria vontade, de seus instintos (MARTINS, 2015, p. 75).

Para se ter uma ideia, cresceu em 50% os casos de linchamento nos quatro primeiros anos da chamada Nova República (após o regime militar). A hipótese do autor é de que o pacto entre a burguesia e setores liberais oriundo das oligarquias rurais tenha reestimulado concepções e práticas relativas à justiça privada. Uma outra hipótese seria a contribuição dos esquadrões da morte em difundir a ideia da legimitidade da punição fora da lei, baseando-se na ineficiência das autoridades, que são lentas e complacentes (MARTINS, 2015).

No Brasil, há emergência de multidões enfurecidas, como uma espécie de explosão libertária de tensões reprimidas no regime autoritário e de afirmação da liberdade conquistada com a volta do Estado Democrático. No entanto, em nome do princípio de que a liberalidade da lei é melhor do que sua aplicação, estimula e secunda mais violência, pois a liberdade, desde então, tem soado como possibilidade de vingança, de fazer justiça com as próprias mãos.

Cabe aqui esclarecer o que vem a ser o conceito de multidão: como se organizam, por que se juntam e com qual objetivo, sobretudo para também pensarmos se as mesmas definições se aplicam para os casos de linchamentos virtuais. Para Martins (2015), a multidão, nesse contexto:

[...] não é política, não negocia com a sociedade, não reconhece a legitimidade do outro, não se vê na mediação das estruturas sociais e políticas [...] O fenômeno das multidões ativas está muito associado a momentos de transição social e de incerteza quanto aos valores que devem nortear os rumos da sociedade. Está também associado a transições concluídas, mas insuficientemente, em que os agentes sociais que a conduziram não tiveram completa e adequada consciência das tensões nela envolvidas e dos desencontrados protagonismos de um novo e diferente querer social. (MARTINS, 2015, p. 126-127).

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A multidão, a partir dessa perspectiva sociológica, coloca em segundo plano os valores da civilidade e a compreensão de que o direito é a contrapartida do dever (LE BON, 196312 apud MARTINS, 2015). Isso torna-se preocupante ao passo que a desordem acabe se instaurando como uma instituição, incorporada como algo natural (MARTINS, 2015).

Na mesma direção, Elias Canetti também escreveu, em 1930, sobre indivíduos que, tomados pela fúria da massa, agem por seus instintos irracionais e agressivos e, deixando adormecidas suas virtudes, são hipnotizados por um “mandar e obedecer” e um “matar e destruir” da massa. Para isso basta um impulso, que pode ser uma intolerância ao modo de pensar e agir do outro. Em 1960, concluiu seus pensamentos no livro “Massa e Poder”.

Para melhor entender o que esse autor considera como “massa”, extraímos uma explicação de Pelbart (2001):

Canetti lembra que na massa são abolidas todas as singularidades, nela reina a igualdade homogênea entre seus membros (cada cabeça equivale a cada outra cabeça), a densidade deve ser absoluta (nada deve se interpor entre seus membros, nada deve abrir um intervalo em seu meio), e por último, nela predomina uma direção única, que se sobrepõe a todas as direções individuais e privadas, que seriam a morte da massa. Homogênea, compacta, contínua, unidirecional, a massa é todo o contrário da multidão, heterogênea, dispersa, complexa, multidirecional (PELBART, 2001, p.41).

Como alguns exemplos de linchamentos motivados pela massa, Canetti cita: o apedrejamento de condenados; prisioneiros enterrados em formigueiros na África; fuzilamento de sentenciados pela sociedade; e o povo que condenou e crucificou Jesus Cristo. Em todos os casos não há um único executor, mas sim a responsabilidade da morte dessas pessoas é de um coletivo.

Ao contrário de Canetti que define linchamento como massa, Martins (2015), considera os agrupamentos dos linchamentos como uma multidão que:

[...] reúne pessoas que não têm entre si outro vínculo que não seja o vínculo fortuito e acidental derivado de ação orientada por um objetivo passageiro, embora compartilhada de identificação e companheirismo, uma espécie de comunidade breve e transitória. (MARTINS, 2015, p. 77).

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Os linchadores agem na multidão como se estivessem em uma comunidade subjascente da que vivem: nesta há uma sociabilidade estável da vizinhança que acolhe; naquela há uma composição súbita e imediata, que vinga, pune e exclui. Dito de outra forma, são pessoas de duplicidade sociológica (MARTINS, 2015). Le Bon (apud MARTINS, 2015) sublinhou o quanto a multidão é o sujeito coletivo e temporário, de orientação diversa da dos indivíduos que a compõem.

Nos casos de linchamentos virtuais as pessoas que se reunem para atacar alguém podem ter ou não vínculo de amizade, todavia devido aos inúmeros compartilhamentos é bem provável que a única identificação entre os usuários seja o fato que motivou a ação. Adotaremos para o objeto de estudo desta pesquisa a denominação do agrupamento em massa, sobretudo por ser unidirecional e homogêneo, embora seja transitório.

Para o autor, ainda é preciso compreender a ação dos linchadores como a de um sujeito coletivo que se oculta multidão e se manifesta quando a sociedade entra em crise. Muitos individuos quietos e amedrontados quando solitários, no volume da multidão, deixam vir à tona o seu descontentamento e a sua raiva intrínsecos. Para entender como isso reflete no contexto da multidão, multiplica-se esse ânimo exaltado individual pelos inúmeros participantes de linchamentos e tem-se uma fúria, por vezes, desproporcional aos fatores que a desencadearam.

Para esse indíviduos, que se transformam na multidão, a visibilidade de seu ato seria fatal, por isso preferem agir à noite. Paradoxalmente, os locais preferidos para os linchamentos, segundo as estatísticas de Martins (2015), são locais abertos, como ruas, terrenos e praças, para que haja um público testemunho do castigo.

Atualmente, há divulgação dos atos de linchamentos no YouTube13 com intenção de mostrar a ocorrência da punição para um público mais amplo, tal como ocorreu no linchamento no Guarujá. Assim, a Internet é usada como meio de ampliação (virtual) do espaço de visualidade. Contudo, o recurso tecnológico não é somente aliado na divulgação do castigo ou vingança dos linchadores, mas é também material de identificação e prova contra os próprios linchadores.

13 YouTube é um site que permite que os seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato digital. Disponível em:

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Todavia, o linchamento, não é visto pelos linchadores como um crime, pois acreditam que, por haver participação da população e ocorrer em locais públicos e abertos, serão respaldados ou ocultados. No próprio Código Penal brasileiro há um atenuante para a participação em crime coletivo, que pode ser um fator instigante ao justiçamento. Dessa maneira, coloca-se a justiça popular diante de “um código complexo de ações de restauração da ordem onde ela é violada” (MARTINS, 2015, p. 105).

Como não há na lei a figura de um crime coletivo, cada infrator é julgado individualmente e cabe a cada um a sua parcela de culpa. Assim, se cinquenta pessoas forem identificadas participando do crime, ocorrerão cinquenta processos criminais. No entanto, mesmo com o auxílio tecnológico, ainda é difícil identificar e julgar todos os participantes de linchamentos no Brasil.

2.2.2 Circuito de afetos

O conceito de sociedade que emerge da perspectiva sociológica de Martins é o de que ela é composta por regras e leis em um sistema relativamente claro e estável. No entanto, Safatle (2016 b) instiga-nos a pensar as relações sociais de outra forma, sob a óptica dos circuitos de afetos.

Para ilustrar como vários afetos agem sobre o indivíduo sem que ele possa ter muito controle sobre eles, citamos um estudo feito em 2012 pelo Facebook que, inicialmente, testava se o conteúdo desagradável de um amigo fazia com que o usuário desistisse da rede social em questão.

Esse experimento analisou três milhões de postagens, com mais de cento e vinte milhões de palavras, e as classificou em duas categorias: as de conteúdo positivo e as de conteúdo negativo. Depois, com ajuda de um algoritmo da empresa, que define o que o usuário verá em sua timeline durante um certo período, foi selecionado um grupo de pessoas para receber os conteúdos positivos e terem os negativos omitidos de seu feed de notícias. Responsáveis pelo estudo descobriram, após uma semana, que os destinatários das mensagens “positivas” tinham comportamento emocional similar. Já o grupo que leu somente as demais postagens publicou textos, ou compartilhou assuntos, com palavras igualmente negativas.

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These results suggest that the emotions expressed by friends, via online social networks, influence our own moods, constituting, to our knowledge, the first experimental evidence for massive-scale emotional contagion via social networks, and providing support for previously contested claims that emotions spread via contagion through a network (KRAMERA et al, 2014, p. 8789).

Tal estudo apresenta ressonâncias com a perspectiva proposta por Safatle (2016). Se a sociedade é habitualmente pensada como um sistema de normas que estruturam os modos de comportamento e interação, o filósofo propõem uma compreensão distinta: que a sociedade seja pensada como um circuito de afetos que nos fazem assumir certas possibilidades de vida e pensamento em detrimento de outros. Afetos que se repetem e definem, assim, o campo de possíveis. Afetos inauditos que criam e instauram novas possibilidades.

Trata-se, então, de conhecer as modalidades de circulação de afetos.

Historicamente, a modernidade e sua filosofia política (pelo menos desde Hobbes), o afeto que tem prevalecido e sustentado os vínculos sociais é o “medo”. A modalidade social hegemonicamente prevalecente no Ocidente, segundo Safatle (2016), constitui-se a partir da gestão do medo, sua produção e contínua mobilização: medo da morte violenta, da desposseção de bens, da invasão de privacidade, etc. (SAFATLE, 2016, p. 19). Sobre as relações pautadas no medo, Bauman (2016) afirma:

Da família à vizinhança, do local de trabalho à cidade, não há ambiente que permaneça hospitaleiro. Instaura-se uma atmosfera sombria, em que cada um alimenta suspeitas sobre quem está ao seu lado e é, por sua vez, vítima das suspeitas alheias. Nesse clima de desconfiança exagerada, basta pouco para que o outro seja percebido como um potencial inimigo: será considerado culpado até que se prove o contrário (BAUMAN, 2016).14

Nesse contexto emerge o papel soberano do Estado, centrado da figura de um salvador: para que o Estado garanta a segurança, ele precisa lembrar a população a todo instante de que há insegurança, fazendo circular incessantemente o medo.

Por conseguinte, o medo é o afeto político central e é sob ele que os vínculos sociais são constituídos. Quando se tem uma vida social pautada no medo, o “outro” é visto como aquele que irá desconstruir, despossuir a identidade daqueles que se entendem, narcisicamente, como “iguais a si mesmo”. A “massa” aqui torna-se o coletivo padronizado e

14Entrevista disponível em:

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homogêneo que passa a funcionar com parâmetro (modelo, valores, moral) diante do qual tudo será julgado.

O “outro” tolerado e permitido é apenas aquele que confirma a minha identidade. O encontro com o “outro” que me despossui, que me obriga a modificar a minha maneira de pensar sobre mim mesmo, de me reinventar nessa relação, que me empurra para fora de meus interesses, que abre meus horizontes e perspectivas, que me enriquece com outras possibilidades de vida e pensamento – esse “outro” deve ser destruído e eliminado.

Pela divergência política, por exemplo, muitas pessoas excluíram amigos não só clicando em uma função da rede social, mas de sua própria vida. Mais que isso: a divergência de opinião está resultando na impossibilidade de suportar o outro (BRUM, 2015). Com o caso 3, desta pesquisa, percebe-se bem a dimensão que isso vem tomando no Brasil. Discursos ofensivos são produzidos e reproduzidos até que o ódio tome conta dos dois grupos antagônicos e resulte em violência física, culminando em linchamento virtual não de uma pessoa, mas de todos os seus semelhantes: negros, nordestinos, cristãos, homosexuais, eleitores do partido A ou do partido B, entre outros agrupamentos.

Para Brum (2015), as redes sociais deram voz e se tornaram palco da crueldade humana. A sensação de liberdade nesse ambiente fez com que o indivíduo expressasse o seu pensamento e fosse capaz de dizer coisas aterrorizantes para o outro. Ao agir dessa maneira, deixou-se transparecer, por meio de discurso, o “eu” mais profundo e, às vezes, bárbaro. A autora ainda atribuiu o nome de “boçalidade do mal” - parafraseando “Banalidade do mal” de Hannah Arendt15 - para esse comportamento e tantos outros semelhantes que vemos na Internet.

Nessa direção, Safatle (2016 b) afirma que a violência acabará se tornando banal para o espectador e com o tempo ela não dirá e não acrescentará mais nada, devido a forma como é exposta na mídia, tanto em programas sensacionalistas como na Internet: a toda hora e sequencialmente. Cita ainda o filme “Alphaville” (Godar, 1965), em que as execuções são um momento feliz, espetacular e de entretenimento.

15 ARENDT, H.; EM JERUSALÉM, E. Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo:

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Castilho (2016)16 também escreveu em sua coluna o quanto hiperdimensionar a violência ao ponto de banalizá-la acaba sendo um ato mais nocivo do que a própria violência. Se a mídia não divulga suicídios para que eles não se multipliquem, por que isso não se aplica com as outras formas de violência? Cita o caso de um frentista sendo espancado cruelmente e a cena sendo repetida várias vezes em um programa de TV. Fala ainda do estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro em que um rapaz divulgou nas redes sociais uma jovem sendo estuprada por trinta homens. Resultado: vídeo visto e compartilhado por milhões de pessoas. Se realmente se senbibilizaram com a vítima, por que não acharam chocante ter visto a cena? E não pensaram que ao compartilharem estariam expondo ainda mais?

Veremos no decorrer deste trabalho alguns casos semelhantes que, na tentativa de fazerem uma denúncia, compartilham a foto ou o vídeo da agressão, tornando a violência espectacular. Para Castilho (2016), isso representa "narrativas que talvez estejam mais alinhadas com uma certa sanha vingativa do que com a construção de um modelo alternativo, de um mundo inclusivo, igualitário e tolerante”.

Como a função social é repetir as mesmas narrativas, os mesmos afetos, deixamos aqui uma pergunta reflexiva, talvez ainda prematura em se ter uma resposta: qual é o futuro desse humano e dessa sociedade que vive num estágio entre o presente e futuro (GARCIA DOS SANTOS, 2003; SAFATLE; 2016), mas que tem a mente condicionada a repetição?

Para Safatle (2016 a) somente alterando a forma e/ou por qual afeto somos afetados é que novas ideias e comportamentos serão produzidos.

2.3 Virtual: mudança nos modos de ser e de viver

Neste tópico será discutida a inserção do mundo virtual no cotidiano da sociedade. Por ser uma situação contemporânea, “o homem informatizado está inaugurando práticas sociais e culturais ainda parcialmente desconhecidas, assim como se aborda a costa de um continente inexplorado” (Lévy, 2000, p. 135). Portanto, é preciso refletir sobre os impactos

16 Disponível em: <

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que a Internet provocou nas relações sociais. Somente há uma certeza: que a virtualidade transformou essas relações.

Aspirando a compreensão das práticas sociais informatizadas, colocamos alguns questionamentos que nos perturbam e ao mesmo tempo nos guiam: como é viver nesses dois mundos (esse que conhecemos como real e mundo virtual, vivenciado na Internet) simultaneamente? O que se altera com a inserção da virtualidade em nossas vidas? Em que medida os casos de “linchamentos virtuais” podem ser problematizados segundo os estudos sobre a realidade virtual?

Talvez não encontremos respostas definitivas, devido à complexidade do tema, mas buscamos aportes teóricos na Filosofia e nas Ciências Sociais, selecionando autores contemporâneos que estão trazendo no cerne da discussão reflexões sobre a virtualidade, relativização do espaço-tempo e a aceleração.

Cabe aqui uma explicação sobre dois conceitos de virtual: o complexo da Filosofia e o da linguagem cibernética, este aplicado pela mídia na expressão linchamento virtual. O que a informática e a mídia entendem como virtual, Pierre Lévy (1996) e William Gibson17 denominam de ciberespaço. Entretanto, foi considerado conveniente uma

aproximação com a Filosofia contemporânea acerca do que é o virtual, devido ao nosso interesse em explorar esse conceito para mostrar seu movimento no mundo humano-técnico.

Primeiramente, traremos as considerações de Paul Virilio, filósofo que vê a era da informática como perigosa, já que para ele há perda da noção de realidade e de percepção de duas dimensões ontológicas: espaço e tempo. Segundo este autor, no mundo virtual já não há uma noção de tempo e espaço definidos: pode se estar em vários lugares e ao mesmo tempo em nenhum. Esse autor ainda cita outras perdas como a noção de grandeza e a derrota do encontro presencial perante o virtual.

Entretanto, ao contrário da visão catastrófica de Paul Virilio, Pierre Lévy e Laymert Garcia dos Santos apresentam-nos a tecnologia e a virtualidade como uma ampliação da realidade e, com isso, novas possibilidades.

17 William Gibson foi o primeiro a utilizar o conceito de ciberespaço, em 1984, no romance ciberpunk “Neuromancer”.

Veja-se: CANTARINO, C. Cyberpunk: a ficção científica contemporânea in:

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Pierre Lévy não se limita em definir o virtual como um modo de ser particular, nem tampouco analisar a passagem do possível ao real ou do virtual ao atual, mas sim interessa-lhe o movimento inverso: abordar a passagem do atual e do real ao virtual. Propõe, então, um entendimento do virtual como um processo de transformação de um modo de ser num outro. O autor considera ainda quatro transformações no mundo: realização, potencialização, atualização e virtualização (LÉVY, 1996).

Já Laymert Garcia dos Santos apresenta elementos para reflexões acerca do tema tecnologia e sociedade: as novas formas de organização perante a realidade virtual, as mudanças de percepção, do homem e do capital contemporâneo.

Talvez seja preciso redefinir a percepção de realidade que nos cerca para entender como o sujeito atua imerso nessas novas possibilidades. Neste capítulo, abordaremos esse conjunto de questões com os autores mencionados.

2.3.1 Crise da percepção de duas dimensões ontológicas: espaço e tempo

Todos os esforços do homem em sua evolução, estão focados em invenções para otimizar o tempo: fazer mais rápido e com menos esforço. Para tentar entender como se organiza a história tendo como referência a mudança de percepção do mundo e a informação ao longo do tempo, Virilio (1998), organiza-a em cinco motores:

Motor a vapor: surgido na revolução industrial. Mudança de percepção: visão em desfile, pois agora é possível ver a paisagem de dentro de um trem, ou seja, o homem parado e a imagem passando;

Motor de explosão: carro e avião. Mudança de percepção: visão aérea. É possível ver o mundo de um ângulo diferente do plano, do terrestre. Além disso, com esses meios de transporte também foi possível ter acesso a outros lugares de maneira mais rápida;

Motor elétrico: criação da eletricidade. Mudança de percepção: visão noturna da cidade. Com isso, foi possível oferecer ao homem atividades num período em que não é necessária a luz solar. Dentro período também há a criação do cinema, que muda a visão do homem sobre o mundo;

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Motor foguete: lançamento de satélites no espaço. Mudança de percepção: visão da Terra sob outra terra: a lua. A Terra, para a concepção do homem agora, torna-se pequena diante da imensidão do mundo;

Motor da informática: programação de softwares, que “vai modificar totalmente a relação com o real, na medida em que permite duplicar a realidade através de uma outra realidade, que é uma realidade imediata, funcionando em tempo real, livre” (VIRILIO, 1998, p. 128).

Para este trabalho, interessa-nos o último motor e a mudança de percepção relacionada a ele. Sobre o motor da Informática, Virílio (1998) é cauteloso e diz que é preciso ser crítico ao olhar a técnica.

Os possíveis atrativos para o uso de plataformas da Internet para a comunicação

on-line são: falar com qualquer pessoa (que também esteja conectada); de qualquer lugar; em

qualquer hora. Sobre esses três pontos da comunicação virtual, que são vantajosos aos usuários, Virilio pondera e apresenta três possíveis derrotas: da distância, do tempo e do espaço.

Para esse autor há uma derrota da distância, visto que no virtual é possível estar em qualquer lugar, ou seja, é possível estar aqui e lá ao mesmo tempo. Ao conversar com alguém por vídeo, cada um em seu local, por exemplo, Brasil e França, e ambos no local do outro (no ato da conversa). Para Virilio, trata-se de uma paradoxal “reunião à distância”. Outro exemplo seria utilizar ferramentas para conhecer lugares, como o Google Earth18, que possibilita ao usuário “caminhar” por ruas de qualquer lugar do mundo tendo uma visão real de tudo que tem naquele espaço. Ou ainda estar na sala de sua casa e ao mesmo tempo se transportar para a realidade dos games.

Com relação ao tempo, o autor cita as diferenças entre tempo local e o mundial. O tempo local é o vivido neste instante em conversas em seu próprio país. É o tempo retratado pela história. Já o tempo mundial é aquele vivido ao se transportar para a realidade virtual, como por exemplo, conversar do Brasil com alguém na Inglaterra, assistir (ou ler) a notícias em tempo real de outros países, com fusos horários diferentes. Esse tempo é o da velocidade da luz. Para o autor, isso caracteriza o fim do “aqui e agora”.

Referências

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