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Nota-se que muitos autores relacionam a interseção das TICs no cotidiano da sociedade com a ideia de transformação. Mudou, segundo Lévy (2000), a concepção de cultura, saber, ensino, ciência, história, sentido, espaço e tempo, gerando aquilo que este autor chama de uma “mutação antropológica”. Entretanto, tudo é “novo” e transformado na atualidade?

Observando as relações sociais em redes de relacionamentos on-line, sobretudo os casos aqui apresentados como linchamentos virtuais, vimos a necessária reflexão sobre o que realmente é novo e uma potencialidade da Internet e o que aparenta ser apenas uma repetição de conduta e conceitos construídos historicamente.

Naara Luna (2005), por exemplo, avalia que as novas tecnologias são utilizadas para reproduzir os mesmos comportamentos e valores. Em sua pesquisa com pessoas que buscaram a reprodução assistida, seja por meio de doadores de gametas ou por gestação substituta, percebeu-se que a concepção do humano está ainda muito ligada à biologia e a genética, ou seja ao parentesco de sangue - concepções oriundas do Ocidente Moderno – do que a outros valores como amor e a partilha que se constroem em família.

Já para Lévy (1996) a escolha da humanidade não está entre “a nostalgia de um real datado e um virtual ameaçador ou excitante, mas entre diferentes concepções do virtual” (p. 117). Para ele, ou se investe nas potencialidades de invenção de novos modos de existência pautados, por exemplo, em coletivos inteligentes (trocas de saber, escuta e valorização das singularidades, participação democrática e novas formas de cooperação, etc.) ou o ciberespaço apenas reproduzirá o que já está dado: o mediático, o espetacular e a exclusão.

Na direção da segunda hipótese de Lévy, Evangelista (2016 b) analisa que as informações mediadas por computador, hoje estão ao alcance de sujeitos historicamente explorados, mas:

[...] quando submetidas aos filtros sociais, de mercado, ou dos algoritmos das redes proprietárias, vão tendo dois destinos igualmente ruins: ou desaparecem num mar de irrelevância e futilidades; ou são tão simplificadas, para viralizarem ou se tornarem os populares memes, que pouco servem para produzir transformações sociais necessárias (EVANGELISTA, 2016 b).

Para Evangelista, é difícil produzir sínteses inteligentes de comunicação perante o desenho da rede, que foi construída para estimular o consumo de mercadorias e informações. Então, em vez dos usuários da Internet se empenharem num processo de escrita e comunicação inteligente, criativa e colaborativa, limitam-se à reprodução da comunicação padronizada, conduzida pela própria arquitetura da rede. Dessa maneira, propagam-se os “zumbis cibernéticos” nos quais o corpo e equipado tecnologicamente, mas repete ações sem que a cabeça pense e reflita, levados pelo comportamento da tribo.

Por outro lado, a primeira alternativa de Lévy não é descartável. Talvez as duas concorram nas redes sociais, mas observando especificamente os casos de linchamentos virtuais, nota-se que a inclusão de tecnologias na comunicação fez com que ficassem mais evidentes os preconceitos, a segregação e os julgamentos. O que nos levaria à conclusão de Luna (2015): estamos fazendo uso das novas tecnologias para a repetição dos mesmos comportamentos.

No entanto, a intenção não é trazer aqui os casos de linchamentos virtuais simplesmente como repetições de algo já posto, mas como um problema novo, pois a Internet traz potencialidades que os estudos tradicionais sobre linchamentos (MARTINS, 2015) não apresentam.

É preciso considerar especificidades do virtual, tais como: o deslocamento espaço- tempo (LÉVY, 1996) e a possibilidade de comunicação com mensagens multimodais. Além disso, não se está mais sozinho, mas em rede de relacionamento, onde há partilha de todos com todos e mobilização política. Como influência dessas potencialidades nos julgamentos e justiçamentos on-line, podemos destacar o que muda: a dimensão do evento, a dimensão do alcance das mensagens a ele relacionadas e também a dimensão das punições.

Essas hipóteses podem ser constatadas no caso 4, retratado no início deste tópico, quando comparamos fatos semelhantes que aconteceram com e sem o suporte das redes sociais on-line, pois nelas encontramos ferramentas disponíveis que auxiliam a propagar mensagens, aumentando seu poder de alcance.

Além das já apresentadas, também podem ser consideradas varíaveis importantes que compõem o desencadeamento de um linchamento virtual: comando compartilhar e

remixing de imagens.

O dispositivo “compartilhar” do Facebook permite que o usuário divida com seus amigos algo que ele achou interessante. Ele pode fazer isso na própria rede ou em outra (como encaminhar para um grupo no WhatsApp). Os amigos dele veem e compartilham também com outros amigos e assim sucessivamente. Tomando como exemplo os casos 1 e 4, percebe- se que a mensagem pode chegar a um número incalculável de indivíduos, muito além do seu círculo de amigos, sobretudo se a configuração da publicação estiver em domínio público, ou seja, qualquer pessoa com conta nessa rede pode ter acesso.

Somado a isso, também há a possibilidade de “metamorfose imediata” da mensagem (LÉVY, 1998), ou seja, o remixing, que segundo Bordwell (2005) são retrabalhos em mídias visuais em que o obsoleto, com uma nova roupagem, vira atual; imagens ganham novos enquadramentos e sobreposições; vídeos recebem outros áudios ou outras legendas (montagens). Com isso, “são criados novos caminhos de interpretação” (BORDWELL, 2005

apud ERSTAD, 2008, p. 185). Vale lembrar que o remixing é mais uma conquista da Web

2.023 e é feito em programas específicos, fora das redes sociais. Ao dar nova roupagem à mensagem, os usuários voltam a compartilhá-la na Internet.

Dessa maneira, cada leitor pode tornar-se emissor visto que tem diante de si não uma mensagem estática, como no jornal, mas um potencial de mensagem. O poder de inventar é uma potência do homem comum (PELBART, 2001) e se torna ainda mais forte se combinada às habilidades computacionais. O remixing pode ter fins muito positivos, como estimular a criatividade de alunos em sala de aula (BORDWELL, 2005). Ou o contrário: pode destruir a imagem de uma pessoa, distorcendo a realidade.

Na figura 3, observa-se um exemplo de remixing: a foto foi postada em três versões diferentes e causou polêmica nas redes sociais. Qual seria a verdadeira e quais seriam montagens? Ou seriam todas falsas? As primeiras postagens desta foto datam de 2012, na Venezuela, porém circulou em vários países e ainda em 2015 era alvo de debate na Web.

FIGURA 3: EXEMPLO DE REMIXING DE IMAGEM

Fonte: e-farsas.com24, janeiro de 2016.

23 O termo Web 2.0 foi criado em 2004 pela empresa americana O'Reilly Media e apresentado pela primeira vez no evento

“O’Reilly Media Web 2.0 Conference in 2004” (BUZATO e SEVERO, 2010).

24 Disponível em: <http://www.e-farsas.com/foto-de-garota-apontando-arma-para-um-bebe-e-polemica-na-Web.html>

A foto em que aparece a arma foi inúmeras vezes compartilhada. Em um dos grupos do Facebook, onde circulou essa foto, havia vários comentários ofensivos. No entanto, alguns internautas colocaram a foto com o passarinho pedindo cautela para as pessoas, pois a imagem poderia ser falsa e, com isso, a mulher estaria sendo linchada injustamente.

Por outro lado, há matérias on-line25 que afirmam que das três fotos a única que se pode garantir que é montagem é a do passarinho, pela variância na paleta de cores. Dessa maneira, se a foto da arma for a verdadeira então, nesse caso, o remixing foi feito e compartilhado com a intenção de minimizar os efeitos negativos que a (possível) imagem original tenha causado.

Conforme exposto, as opções de remixing e compartilhamento podem ser usadas tanto como estratégias de difamação on-line (por empresas concorrentes, partidos políticos opostos, por ressentimento pessoal, etc) e assim propagar linchamentos virtuais, bem como para promoção ou ainda tentar amenizar os efeitos negativos que a imagem real tenha rendido.

Como visto, muitas acusações e denúncias postas nas redes sociais nem sempre elas são fundamentadas, como ocorreu com o caso do Guarujá. A falta de cuidado com o que se escreve nas redes sociais também pode contribuir para a propagação de boatos por centenas ou milhares de pessoas. Para definir o que é um boato, utilizaremos o conceito de Renard (2007):

[...] um enunciado ou uma narrativa breve, de criação anônima, que apresenta múltiplas variantes, de conteúdo surpreendente, contada como sendo verdadeira e recente em um meio social que exprime, simbolicamente, medos e aspirações (RENARD, 2007 apud BORGES, 2010, p. 39).

As redes sociais estão repletas de boatos, sendo que alguns são implantados nessas redes propositalmente para difamar alguém ou algum produto. Por conseguinte, boatos podem gerar riscos não só para as pessoas que postam, mas também para outras pessoas, independente se possuem ou não um perfil em rede social.

Há alguns fatores prováveis para a atribuição do valor de verdade para um boato e seu rápido espalhamento (BORGES, 2010). Primeiramente, as pessoas recebem de alguém

conhecido, portanto de pessoa confiável. Em segundo lugar, a verossimilhança com um fato real (provável de ser verdade).

Além dos motivos propostos por Borges também podemos acrescentar, hipoteticamente, as seguintes variáveis para o ambiente digital: (i) devido à aceleração que o meio impõe, falta tempo para leitura de toda a matéria e também de todos os comentários, já que a quantidade de informação é muita. Como afirma Lévy (1996) a virtualização abre novos espaços, novas velocidades e ligada à emergência da linguagem surge uma celeridade no pensamento e o tempo passa a ser o tempo da própria narrativa; (ii) o fato de a tecnologia ter chegado à população antes do letramento digital e, com isso, elas são facilmente manipuladas com notícias falsas, pois falta-lhes competência para identificar, gerenciar, analisar os recursos digitais disponíveis para se comunicar com outros, no contexto específico de situações vividas, permitindo uma ação social construtiva e reflexão sobre o processo (MARTIN e GRUDZIECKI, 2006)26.

Para Evangelista (2016 b) há uma avalanche de informações na Internet e, assim, “a alta oferta acaba sendo a da informação mais irrelevante, básica ou mesmo mentirosa, muitas vezes compartilhada por pessoas que nem se deram ao trabalho de clicar no link”.

Nesse grupo (de compra e venda criado no interior de São Paulo) que acompanhamos a discussão sobre a imagem da figura 3, percebe-se uma diversidade sócio- econômica-cultural. A princípio, observando os comentários, parece-nos que essa falta de cuidado com a veracidade da informação não está ligada à classificação de gerações (Baby Boomers, X, Y e Z), mas sim ao nível de letramento digital. No entanto, seria necessário um mapeamento mais detalhado com as possíveis variáveis para responder a essa pergunta, porém foge do objetivo deste trabalho.

26 Trecho da definição de Letramento Digital do Projeto DigEuLit de MARTIN e GRUDZIECKI, 2006 (tradução livre):

“Digital Literacy is the awareness, attitude and ability of individuals to appropriately use digital tools and facilities to identify, access, manage, integrate, evaluate, analyse and synthesize digital resources, construct new knowledge, create media expressions, and communicate with others, in the context of specific life situations, in order to enable constructive social action; and to reflect upon this process.”

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A INTENSA PRESENÇA DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E