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O que é o virtual? Tentar responder a essa pergunta é o desafio para compreender as relações sociais virtuais, sobretudo o nosso objeto de estudo. Essa frase também é o título de um dos livros do filósofo francês Pierre Lévy, notório teórico do virtual, que se preocupou não só em definir, mas também em analisar e demostrar as transformações de um modo de ser num outro.

Esse autor inicia sua explicação pela etimologia da palavra virtual: virtus, do latim medieval, que significa força, potência. A significação adotada pela filosofia escolástica diz que “virtual” é aquilo que existe em potência e não em ato, que carrega em si as problemáticas, os nós de tensões e os projetos que motivam e movem um ser (Lévy, 1996).

Sendo assim, Pierre Levy (1996) alerta para uma oposição fácil e enganosa entre o real e o virtual:

O virtual não se opõe ao real, mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes [...] O virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização (LÉVY, 1996, p. 15-16).

Portanto, o virtual não é um substituto do real, mas um multiplicador das possibilidades de atualização. Assim, enquanto existência potencial, a virtualidade pode ser considerada como uma realidade, sem necessariamente concretizar-se. Portanto, o virtual não é imaginário; ele produz efeitos (LÉVY, 1996).

O atual, segundo Lévy, é “criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades” (LÉVY, 1996, p. 16). Ele não é pré- determinado, mas sim uma qualidade nova. Pode-se dizer que o virtual é o problema, enquanto o atual é a solução (aqui e agora) para esse problema.

Por outro lado, o real assemelha-se ao possível, pois ambos se referem a algo pré- determinado. Todavia, o possível é um real latente, ou seja, um conjunto de possibilidades esperando manifestação. A diferença entre o real e possível é a existência; o primeiro já existe, enquanto o segundo está pronto a espera de tornar-se real (Deleuze19, 1968 apud LÉVY, 1996).

Sendo assim, segundo Deleuze (apud LÉVY, 1996) o processo do possível está na ordem da seleção. Uma vez realizado o possível, este seria “concebido como imagem do real e o real como semelhança do possível”, porém “nunca os termos atuais se assemelhariam à virtualidade que eles atualizam” (DELEUZE, 1998, p. 340).

A fim de melhor explicar os pares: possível/real e virtual/atual, Lévy (1996) usa como exemplo um programa de computador. A programação é o possível e a execução do programa é o real. Já a interação entre humanos e esse programa assemelha-se à dialética virtual/atual. Nessa concepção de Lévy haveria, então, um polo da substância – no qual estaria o par possível-real - e polo do acontecimento - no qual estaria situado o par virtual-atual.

Pelo exposto, vimos que para Lévy (1996) o possível insiste, o real subsiste, o atual acontece e o virtual existe. Por conseguinte, há quatro processos de transformação: realização, potencialização, atualização e virtualização. Essas quatro transformações são complementares e se constituem pela passagem de uma para outra operando juntas.

Segundo o esquema de Lévy (1996), representado na figura 2, a potencialização reconstitui recursos e reservas energéticas produzindo ordem e informação.

Por outro lado, a atualização está na ordem da criação: ela interpreta, improvisa e resolve problemas. Atualizar-se seria, portanto, diferenciar-se, já que a diferenciação exprime a atualização e a constituição das soluções (LÉVY, 1996).

Então, a atualização é a invenção de uma solução exigida por um complexo problemático (que pode ser virtual), enquanto a realização é a escolha de qual estado pré- definido irá ocorrer: ela nutre a matéria selecionando entre uma cadeia de possíveis.

FIGURA 2: POSSÍVEL, REAL, ATUAL E VIRTUAL

Sobre o processo de virtualização, Lévy (1996) define como a dinâmica da passagem do atual ao virtual de uma dada entidade. Dito de outra maneira, é a transição do ato (aqui e agora) ao problema:

[...] a virtualização, passagem à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo que necessariamente põe em causa a identidade clássica, pensamento apoiado em definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos. Por isso, a virtualização é sempre heterogênese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade (LÉVY, 1996, p. 25).

Dessa maneira, contrariando Virilio que considera muitos pontos negativos, Lévy não considera a virtualização nem boa, nem má, nem neutra. Considera-a um movimento novo do humano – heterogênese – e propõe que antes mesmo de negá-la ou temê-la, que se faça um esforço para compreendê-la em toda sua amplitude.

A virtualização não é uma desrealização, ou seja, transformação da realidade em um conjunto de possíveis. Pelo contrário, a virtualização é um dos principais fatores de criação da realidade. Nela há um deslocamento do ser, que “passa a encontrar sua consistência essencial num campo problemático” (LÉVY, 1996, p. 16). É a virtualização que comanda as atualizações.

Na virtualização as coordenadas de espaço tempo precisam sempre serem repensadas, desafiando o pensamento clássico: é necessário compreendê-los como um processo de desprendimento do aqui e agora. Ao contrário do que pensa Virilio, - que espaço e tempo serão aniquilados, causando derrota dos fatos - Lévy (1996) afirma que, com a virtualização, há uma extensão do espaço e da temporariedade provocando um novo ritmo, novas velocidades e cronologia nos meios de comunicação. Assim, o pensamento e, consequentemente, a narrativa que o materializa em linguagem ganham velocidades mais aceleradas.

A sincronização no virtual substitui a unidade de lugar e a interconexão a unidade de tempo, como o exemplo citado alhures: alguém do Brasil conversando por vídeo com alguém na Europa. O autor ressalta que o tempo-espaço de referência são mantidos, já que para se conectar com o mundo cibernético é necessário um espaço físico (computador, celular,

tablet) com conexão à Internet e cada ser também se encontra no horário de seu local de

Os sistemas de comunicação e transporte modificam o sistema de proximidades e contribuem para a virtualização: não estar presente; desterritorializar-se. É, portanto, um deslocamento do ser para outra questão. Por exemplo, uma comunidade virtual está por toda parte (onde estão seus membros, que também são móveis) ou em parte alguma (não tem uma localidade física no virtual). Sobre comunidade virtual, o autor ainda complementa:

[...] uma comunidade virtual é construída sobre as afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos mútuos, em um processo de cooperação ou de troca, independentemente de proximidades geográficas ou filiações institucionais, a menos, é claro, que o ponto comum da comunidade seja reunir habitantes da região "x" ou de tal instituição. Os relacionamentos entre os membros de uma comunidade estão longe de serem frios, inclusive é muito comum algum envolvimento afetivo ou ainda discussões acaloradas que acabam transformando membros da mesma comunidade em antagonistas mútuos (LÉVY, 1999, p. 127).

Sendo assim, em uma comunidade virtual os membros se reúnem por núcleos de interesse, não sendo a geografia um ponto de partida e de coerção. Recreia-se uma nova cultura nômade de interações sociais, sem que as pessoas precisem se deslocar de seus espaços. Essa metamorfose do conceito de espaço força o humano à heterogênese.

Apesar do desprendimento, da não-presença, da desterritorialização e virtualização desses sujeitos, não se pode negar sua existência. Na verdade, estão num constante processo de passagem do interior do virtual ao exterior e vice-versa (“efeito

Moebius”, segundo Lévy). Isso provoca nos sujeitos, segundo esse autor, uma indistinção

entre os circuitos de exterioridade e interioridade.

No entanto, ao contrário do que pensa Virilio sobre a falta de sentimentos nas relações virtuais, Lévy não as vê como frias e enxerga mais possibilidades no agrupamento de cidadãos em comunidades virtuais. Por exemplo, para ele a comunicação assistida por computador é a constituição de “novas formas de inteligência coletiva, mais flexíveis, mais democráticas, fundadas sobre a reciprocidade e o respeito das singularidades” (LÉVY, 1996, p. 96). O uso de técnicas de comunicação em ambiente digital seria fruto de uma coletividade desterritorializada.

[...] o ciberespaço oferece instrumentos de construção cooperativa de um contexto comum em grupos numerosos e geograficamente dispersos. A comunicação se desdobra aqui em toda a sua dimensão pragmática. Não se trata mais apenas de uma difusão ou de um transporte de mensagens, mas de uma interação no seio de uma situação que cada um contribui para modificar ou estabilizar, de uma negociação sobre significações, de um processo de reconhecimento mútuo dos indivíduos e dos grupos via atividade de comunicação (LÉVY, 1996, p. 113-114).

A interação no formato “todos com todos” no espaço cibernético propicia a inteligência coletiva e a partilha e reinterpretação de significações no mundo virtual. Contudo, ela também é responsável pela geração de conflitos, pois a tecnociência, as finanças e os meios de comunicação, ao serem virtualizados, tendem a estruturar as relações sociais até com mais violência (LÉVY, 1996). Em se tratando do objeto de estudo deste trabalho, as pessoas se juntam em torno de um assunto, mas com o intuito de violentarem a outrem (moral, psicológica e até fisicamente).

O próprio autor alerta para que não se crie ilusões de que o espaço cibernético é um ambiente livre de conflitos, pois “nem a informática pessoal, nem o ciberespaço, por mais generalizada que seja a totalidade dos seres humanos, resolvem com sua mera existência os principais problemas de vida em sociedade” (Lévy, 1999, p. 6). O autor ainda completa: “os rituais, as religiões, as morais, as leis, as normas econômicas ou políticas são dispositivos para virtualizarmos relacionamentos fundados sobre as relações de forças, as pulsões, os instintos ou os desejos imediatos” (Lévy, 1996, p. 77).

Segundo Lévy (2000) é preciso compreender essas mutações contemporâneas para poder atuar nelas. Sobre as mudanças na sociedade devido à presença das TICs podemos citar: a implementação de governos eletrônicos (e-gov), cidades digitais, programas de ensino a distância (EaD), informações desterritorializadas (hipertexto), digitalização dos acervos das bibliotecas, operações bancárias, compras on-line, artes digitais, etc. Essas mudanças sociais e culturais afetaram intensamente as concepções que circulam em torno das relações sociais da vida no tempo e no espaço e inclusive da própria noção de humano, provocando uma “mutação antropológica”20 (LÉVY, 2000).

Em relação às mudanças ocorridas na economia, veremos no tópico seguinte que Garcia dos Santos (2003) cita a migração do mercado financeiro para o virtual e que nesse ambiente o capital passou a ser a informação e a antecipação. Exemplificaremos essas proposições, no capítulo 3, com as estratégias de obtenção de lucro das redes sociais.