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MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC SP

Patricia Rodrigues de Souza

Religião e Comida

Como as práticas alimentares no contexto religioso

auxiliam na construção do Homem

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC SP

Patrícia Rodrigues de Souza

Religião e Comida:

Como as práticas alimentares no contexto religioso auxiliam na

construção do homem

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO

2014

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BANCA EXAMINADORA

________________________________

________________________________

(4)

Minha religião é a comida, meu templo, a cozinha e meu livro sagrado, feito de receitas.

(5)

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todas as entidades e amigos do CECURE e Templo da Liberdade Tupinambá, em especial a Luiz Alexandre Junior, amigo e professor de todas as horas, sem o qual eu não teria chegado até aqui.

À minha família, por me incentivarem e compreenderem minha ausência.

Ao meu orientador Frank Usarski que sempre me deu asas na medida certa. Ao professor Silas Guerriero que há muito tempo me despertou para pensar sobre os efeitos simbólicos da comida. Ao professor Jorge de Albuquerque Vieira que me deu as lentes da semiótica para enxergar o mundo. A todos os professores do Programa de Ciências da Religião que me mostraram os caminhos deste novo horizonte. À Andreia Bisuli, com quem devemos aprender gentileza e paciência.

À amiga Sula Santana, que tão cordialmente me conduziu às ciências da religião.

À CAPES pelo apoio à elaboração deste projeto.

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RESUMO

A presente dissertação visa explorar as práticas alimentares de diferentes naturezas nos diversos contextos religiosos de forma comparativa. O principal objetivo é chamar a atenção para o fato de que todas as religiões, se não possuem uma conduta alimentar pré-estabelecida por suas doutrinas, têm algo a dizer sobre a alimentação e como esta afeta a disposição religiosa.

Esta pesquisa baseia-se em dados exclusivamente bibliográficos extraídos das próprias doutrinas religiosas, bem como de materiais produzidos por seus praticantes, além de análises de especialistas em alimentação, antropologia e sociologia da alimentação. Estudamos o homem, sua alimentação e sua religião sob a perspectiva evolucionista. Buscamos resgatar a origem da relação entre religião e práticas alimentares e seguimos observando sua construção detalhada a fim de detectar as funções que as práticas alimentares vêm a exercer de forma geral nas religiões aqui estudadas.

Concluímos que a comida tem funções comuns às religiões em diversos níveis, o que constitui um ponto significativo de comparação entre religiões muito diferentes. Os efeitos das práticas alimentares atingem o indivíduo em aspectos físicos e psicológicos, uma vez que estabelece a quantidade e qualidade do que se come. Provoca também efeitos culturais, já que aos alimentos são atribuídos valores culturais, onde mais tarde os mesmos são absorvidos ou rejeitados segundo regras culturais semelhantes às da linguagem. Da mesma forma, há efeitos sociais, uma vez que a alimentação, no caso religioso pode servir de fronteira e elemento de identidade aos grupos; deve-se considerar que em termos de efeitos sociais o acordo sobre uma mesma alimentação favorece a coesão do grupo e exclui os que aqueles de práticas diferentes. Por todos estes aspectos a alimentação constitui um recurso que auxilia a religião a representar e reforçar seus valores.

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ABSTRACT

The present study explores food practices of different natures in several religious contexts in a comparative manner. The main goal is to drive attention to the fact that all religions, if they do not have a pre established food conduct by their doctrines, they have a say about food and how it affects religious disposition.

This research is based on exclusive bibliographical data taken from religious doctrines, as well as texts produced by believers and also few analysis done by food specialists, anthropologists and sociologists of food and food practices.

Man, its food and its religion are studied under the evolutionistic perspective. We have tried to retrieve the origins of the relationship between food, food practices and religion. We have observed the construction of this relation in detail in order to detect general functions among the religions studied here.

We have concluded food has common functions at several levels in different religions, which constitutes a significant point to compare. The effects of food practices touch individuals in physical and psychological aspects, once it determines the amount and quality of what is to be eaten. It also has cultural effects, since cultural values are attributed to foods and later, these values are either absorbed or rejected according to cultural rules that are similar to rules of language. In the same way, there are social effects, since food in religious case can be a frontier and an identity element to the groups; in terms of social effects, the agreement about the same food and food practices favors the cohesion of the group and excludes those of different practices. For all these aspects food and food practices constitute a resource that helps religion to represent and reinforce its values.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

I O HOMEM E SUA ALIMENTAÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA... 16

1.1 A Realidade apresenta-se de forma sistêmica ... 17

1.1.2 Definição de Sistemas Alimentares e Sistemas Culinários... 25

1.2 A natureza animal do homem ... 28

1.3 Alimentação e programas biológicos inatos ... 31

1.4 Da escolha do homem sobre sua alimentação ... 45

1.4.1 O mal uso da arbitrariedade sobre as escolhas alimentares ... 47

II FUNÇÕES SIMBÓLICAS DA ALIMENTAÇÃO E DA RELIGIÃO ... 51

2.1 Meios simbólicos de aprendizagem ... 52

2.2 Semelhanças entre regras de linguagem e regras de alimentação ... 59

2.3 Animais e plantas nos sistemas culinários ... 63

2.4 Expressão de valores através da cozinha ... 66

2.5 A função domesticadora dos sistemas simbólicos religiosos ... 69

2.6 Ritual ... 74

III RELIGIÕES E SUAS PRÁTICAS ALIMENTARES ... 81

3.1 Jejum ... 85

Adventismo ... 85

Budismo ... 86

Catolicismo ... 87

Hinduísmo ... 87

Islamismo ... 88

Judaísmo ... 89

3.2 Dietas regulares ... 90

Adventismo ... 90

Budismo ... 91

(9)

Islamismo ... 93

Judaísmo ... 93

3.3 Interdições alimentares ... 95

Adventismo ... 95

Budismo ... 96

Candomblé ... 97

Catolicismo ... 98

Hinduísmo ... 100

Islamismo ... 100

Judaísmo ... 100

3.4 Banquetes e alimentos como símbolo específico ... 102

Budismo ... 102

Candomblé ... 103

Catolicismo ... 109

Hinduísmo ... 112

Islamismo ... 115

Judaísmo ... 117

3.5 Oferendas de alimentos ... 123

Budismo ... 124

Candomblé ... 130

Hinduísmo ... 131

3.6 Sacrifícios de animais ... 131

Adventismo e Catolicismo ... 132

Candomblé ... 133

Hinduísmo ... 137

Islamismo ... 138

Judaísmo ... 138

3.7 Regras na obtenção ou preparo da comida ... 139

Adventismo ... 140

Budismo ... 140

Candomblé ... 141

Hinduísmo ... 143

(10)

Judaísmo ... 144

3.8 Dietética associada à religião ... 146

Adventismo ... 146

Hinduísmo ... 148

IV OS EFEITOS DA ASSOCIAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E COMIDA: FUNÇÕES DA ALIMENTAÇÃO NO CONTEXTO RELIGIOSO ... 153

4.1 Descondicionamento ... 155

4.2 Partilha de alimentos ... 159

4.3 Conectividade e comensalidade ... 162

4.4 Identidade e contaminação ... 164

4.5 Sistemas culinários como marcadores de tempo ... 168

CONCLUSÃO ... 173

PÓS-ESCRITO: Quando a alimentação secular se torna religião ... 175

(11)

INTRODUÇÃO

Ao ver numa embalagem de frango congelado, um selo com a inscrição Halal1, isso nos faz imaginar que quem vai preparar este produto, provavelmente use rigjab2. Se sentirmos cheiro de dendê, podemos pensar que alguém acredita estar alimentando seres invisíveis3. Se houver na casa de uma família, sobre a mesa, dois pães trançados4 cobertos com um pano, significa que é sábado, dia de descanso. Também é comum entre aqueles que comem carne de porco e não sejam orientais, que creiam em pecado, e também em céu e inferno 5. Vegetarianos, especialmente os orientais, acreditam na reencarnação6. Algumas igrejas oferecem cursos de culinária aos fiéis.7 Quando na descoberta da América, Astecas viram espanhóis dando milho aos cavalos, perceberam que apesar de tecnologicamente muito avançados, não eram deuses8. Para os Tupinambás, comer seus inimigos em rituais antropofágicos significava absorver suas qualidades.

Em muitas culturas ocidentais, as conotações religiosas e cerimoniais do banquete têm sido esquecidas, mas as formas antigas permanecem, modelando as maneiras cujos homens comem em qualquer nível acima da mera subsistência.9

Quando estudamos alimentação, em especial questões relativas a escolhas alimentares logo esbarramos nas fronteiras da religião. Muitas dietas de pessoas religiosas são determinadas pela doutrina religiosa que seguem. Estas religiões, de muitas maneiras e graus diferentes determinam quais são os alimentos próprios ou impróprios para consumo, assim como quando se deve consumi-los, de que maneira e com quem. Mesmo em grupos mais seculares, alguns hábitos ou comidas típicas remanescentes de tradições religiosas ainda permanecem bastante arraigados.

1 Palavra do Corão que se refere aos comportamentos, formas de vestir, falar e alimentos permitidos pela religião

islâmica. No caso do selo Halal, indica os alimentos produzidos segundo os mesmos princípios.

2 Pano utilizado pelas mulheres praticantes do Islamismo para cobrir a cabeça.

3 Preparo da comida de santo, culinária litúrgica presente na Umbanda e no Candomblé.

4Challah: pão trançado que simboliza o Manah, alimento recebido no deserto pelo povo hebreu durante o Êxodo. 5 Católicos.

6 Budistas e Hinduístas.

7 A Igreja Adventista do Sétimo Dia oferece cursos de culinária regulares, pois acreditam na importância de um

corpo saudável.

8Para os Astecas o milho era sagrado e jamais seria dado aos animais.

(12)

2

De modo análogo, quando se estuda religiões, seja do ponto de vista teológico, antropológico, sociológico, econômico e, especialmente estético, em algum momento esbarraremos na questão alimentar. Diferentes práticas alimentares surgirão sob a forma de: alimentos que funcionam como símbolos importantes, tabus alimentares, rituais que envolvem alimentos, elementos promotores de coesão através de refeições coletivas ou até mesmo de elementos constituintes da identidade sociocultural de um grupo ou um individuo; sem falarmos na disciplina física que certas religiões podem impor através de uma alimentação específica e no quanto tais hábitos podem movimentar o mercado de alimentos.

Quase todas as religiões têm algo a dizer sobre os alimentos e, ainda que possamos encontrar tantos pontos de contato, há ainda um grande espaço a ser preenchido pelos estudos sobre a relação entre religião e comida. Entre as publicações desse, que constitui um campo de estudos, figuram as de informação aos seguidores, produzidas pelas próprias religiões. Mais recentemente as ciências humanas que se ocupam da religião, ou menos comumente da alimentação, têm pouco a pouco começado a identificar e até mesmo problematizar a relação entre as duas áreas.

Embora poucas, podemos nomear algumas iniciativas de estudo neste campo. O site Faith and Food reúne representantes de várias religiões num mesmo espaço, esclarecendo seus princípios e práticas alimentares. No âmbito acadêmico encontramos um grupo de estudos de religião e comida na American Academy of Religion, que investiga práticas e crenças relacionadas a comidas, bebidas, jejuns, produção de alimentos, ética em produção e consumo e quaisquer outros aspectos influenciados por religiões em questões alimentares; e o Donner Institute, na Finlândia que realiza este ano seu 24º. Simpósio em religião e comida. No Brasil, na Bienal do livro de agosto de 2012, no espaço Cozinhando com palavras do Senac, houve uma mesa de discussão sob o título Sabores da fé, que reuniu representantes de algumas religiões para conversa informal sobre práticas alimentares em suas religiões.

(13)

3

Perguntamo-nos por que, embora tão presente, a questão da comida nas religiões despertou tão pouco interesse?

Entre as experiências sensoriais elencadas nos discursos religiosos fala-se das visões e dos sons, mas quase nunca dos cheiros ou gostos. “O vocabulário é mais adequado para alguns sentidos do que para outros: a falta de uma grande variedade de conceitos do cheiro torna difícil encontrar e

analisar evidências históricas relevantes.”10 Além da falta de vocabulário, os sentidos parecem

também ter valores diferentes no que diz respeito à espiritualidade.

A tradição espiritualista e idealista os hierarquiza [os sentidos], dando os primeiros lugares à visão e à audição: esses dois sentidos têm a vantagem da mediação; tratam com imagens e sons, duas espécies de objetos que se comprometem pouco com a matéria. O gosto coloca em evidência o corpo: mastigação, deglutição, digestão, excreção, ele é excessivo ao mostrar o quanto o homem é matéria.11

Na estética das religiões fala-se a respeito da música, da arte sacra e dos rituais, mas raramente sobre a comida:

Arte do tempo e das memórias, as mais primitivas, estética da boca e do nariz, da carne, metafísica do corpo e dos órgãos, da matéria e da imanência, a cozinha nunca se beneficiou do favor dos pedantes, que não lhe dão a honra e a vantagem de figurar entre as belas-artes. Vulgar porque trata dos sentidos menos intelectuais, demasiado vil por lembrar aos homens com muita insistência, que eles também são animais e que não se alimentam apenas de ideias e reflexões.12

Veremos ao longo deste trabalho que a questão estética, aqui abordada através da alimentação, constitui um campo de evidências bastante considerável ao estudo da religião e que, embora ignoremos, a questão da materialidade do homem é contemplada em muitas religiões através da alimentação. Nas religiões que têm as práticas alimentares como parte de suas doutrinas teremos uma visão incompleta se desconsiderarmos a questão alimentar.

Cientistas da religião que trabalham apenas com textos são como cegos que falam de paisagens que lhes foram descritas, em palavras, por pessoas que podem ver. Abandonando essa postura, esses cientistas parariam de se referir à religiões alheias “de olhos fechados”. Deveríamos usar todo o nosso instrumental sensório nessa tarefa, uma

10 ENGLER, S. A Estética da Religião. In: USARSKI, F. (Org.) O espectro disciplinar da ciência da religião. São

Paulo: Paulinas, 2007, p. 217.

(14)

4 vez que os seguidores de religiões diferentes da nossa não omitem nenhum dos sentidos quando as praticam [...] eles falam sobre o matzzo13, mas na verdade, sem pretender experimentar o sabor desse pão ázimo dos judeus.14

Embora tenhamos analisado a questão alimentar em sete religiões (Adventismo, Budismo, Candomblé, Catolicismo, Hinduísmo, Islamismo e Judaísmo), este trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas ao contrário, chamar a atenção para a amplitude da questão e iniciar uma discussão. Dada a presença das práticas alimentares em quase todas as religiões levantamos algumas questões e hipóteses sobre o assunto, as quais tentaremos responder e confirmar ou refutar ao longo da dissertação. Primeiramente: Quais são estas práticas encontradas nas sete religiões designadas? Por que as religiões utilizam-se de práticas alimentares? Depois, qual a função das práticas alimentares nas religiões? Elas desempenham as mesmas funções nas diversas religiões? Se não, quais são respectivamente?

Nossa hipótese é que as práticas alimentares sejam diferentes entre as diversas religiões, mas com muitos pontos de contato, como por exemplo, a evidenciação do corpo, seja como fonte de instintos que servem de obstáculo ao desenvolvimento da espiritualidade e precisam ser educados ou reprimidos, ou, ao contrário, como um potencializador ritual de mensagens não verbais. Outro ponto em comum no uso da comida pelas religiões encontrar-se-ia no campo da linguagem, pois ainda que seja usada de maneiras diferentes, toda comida transmite informações, pois, no contexto religioso ou fora dele, é sempre um veículo de representações e materializações. E por funcionar como uma linguagem, auxilia na construção da visão de mundo da religião em questão, favorecendo assim a construção do homem.

Para explorar nossas hipóteses e responder às questões propostas nos utilizamos de um amplo quadro teórico apresentado nos dois primeiros capítulos. No primeiro capítulo, como pano de fundo temos a teoria de sistemas. Sua lente nos fornece pontos em comum, embora muito gerais, entre sistemas de naturezas muito diferentes. O homem será tratado como um sistema biopsicossocial, a culinária como sistema cultural, a religião como sistema social e cultural. Estes sistemas são interdependentes; fornecem energia, informação, bem como estabelecem limites um ao outro. Trabalharemos simultaneamente as dimensões biológica, social e cultural, pois,

(15)

5

segundo nossa visão elas não apenas influenciam uma à outra, mas muitas vezes, estão também contidas uma na outra. Após um panorama geral sobre os sistemas e suas propriedades começamos a nos direcionar para o homem e sua relação com a alimentação, começando por definir sistemas alimentares e culinários. Passamos em seguida a uma visão biológica e evolucionista do homem, já que comer é uma das principais funções biológicas de qualquer ser vivo. O homem possui outros programas biológicos inatos que condicionam e modelam suas ações e escolhas em relação a alimentação, o que também será abordado neste mesmo capítulo.

Após apresentar os aspectos sistêmicos e biológicos do homem e sua alimentação, no segundo capítulo, daremos ênfase aos aspectos simbólicos e, portanto, culturais da alimentação. Nossa intenção aliando primeiro e segundo capítulos é mostrar a evolução do homem no que tange sua alimentação; demonstrando como seus hábitos alimentares, inicialmente são materialmente determinados e depois, com o surgimento da linguagem, como estes adquirem conotação simbólica passando a serem escolhidos por tais razões, além de servir de veículo de materialização e representação de valores sociais e culturais. Neste capítulo, colocaremos também a religião como sistema cultural que modela o homem e, consequentemente suas escolhas, tais como as alimentares. Finalmente mostraremos como as práticas alimentares são acopladas à religião através dos rituais. Ainda que tenhamos reservado o capítulo III para explorar os dados empíricos, há exemplos da associação de religião e comida também nos capítulos I e II, de modo que o leitor possa, desde o início, perceber como as práticas alimentares relacionam-se às crenças religiosas.

(16)

6

As práticas foram organizadas em nove categorias. Embora o capítulo seja mais descritivo, tentamos chamar a atenção para alguns aspectos comuns e por vezes, de observações de especialistas no assunto.

(17)

7

I O HOMEM E SUA ALIMENTAÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO

TEÓRICA

Iniciamos nossa contextualização teórica abordando a teoria de sistemas de forma sintética, baseamo-nos especialmente no trabalho do professor Jorge de Albuquerque Vieira, especialista em ontologia sistêmica.

Os sistemas possuem inúmeras propriedades em comum, por isso podem ser todos considerados sistemas, apesar das diferentes naturezas. Encontramos, entretanto, grandes diferenças entre sistemas não vivos e vivos, por isso sentimos a necessidade de adotarmos também alguns conceitos de sistemas biológicos, fundamentando-nos no trabalho dos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela. A partir dos sistemas biológicos, as propriedades comuns podem também ser comuns e partilhadas por sistemas culturais e também sociais; para tal, nos apoiamos em Edgar Morin. Segundo ele, o homem é um ser biopsicossocial, portanto, em nosso trabalho tal visão é útil, uma vez que falar do homem e de sua relação com alimentação, requer litar ao mesmo tempo com aspectos biológicos, culturais e sociais. O conceito de sistemas também nos favorece na definição e delimitação dos conceitos cozinha, determinada pela geografia e

culinária determinada por aspectos culturais e sociais.

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8

1.1 A Realidade apresenta-se de forma sistêmica

A natureza, ao longo de sua evolução, tem demonstrado que os processos de adaptação mediante as perturbações do ambiente, são muito mais eficientes no grupo do que no individuo. Talvez isso se explique pelo fato de que independentemente dos símbolos que adotemos para construir o mundo em que vivemos, a realidade, ainda conhecida por nós apenas parcialmente, parece sempre apresentar-se de forma sistêmica.15 Isto significa dizer que nada existe isoladamente, tudo existe em conexão com muitas outras coisas que partilham as mesmas propriedades. Estas propriedades são funções que só podem ocorrer como resultado de ações coordenadas. Podemos pensar no sistema como uma mente, no sentido que Gregory Bateson propõe: “Uma mente é um agregado de partes ou componentes que interagem.”16 A ideia de mente é conveniente para

explicar sistemas pois, um sistema é um agregado que se auto regula e possui suas estratégias de manutenção interna e de adaptação frente às perturbações do ambiente. São sistemas: desde seres unicelulares, onde os componentes são as organelas contidas nesta única célula interagindo para o funcionamento da mesma, até sistemas sociais tais como os religiosos, onde seus membros interagem para o funcionamento de tais sistemas. A coesão de um grupo transforma-o num organismo único, assim grupos sociais de qualquer natureza comportam-se como uma entidade com identidade própria, e lutando para sobreviver num dado ambiente. Enquanto uma célula divide espaço com outras células num tecido, religiões dividem espaços sociais com outras religiões, por exemplo.

Não estamos colocando diferentes sistemas como metáfora um do outro, mas qualquer sistema é também um subsistema contido em outro: células são subsistemas que compõem tecidos, que por sua vez são subsistemas que constituem órgãos, que compõem o ser humano. Seres humanos são subsistemas que compõem os sistemas judiciário, étnico, religioso, etc. É difícil saber qual o limite dos sistemas, pois podemos falar em sistemas de moléculas ou átomos, bem como de sistemas planetários ou ainda de uma infinidade de sistemas simbólicos que, embora abstratos, em sua dinâmica seguem os mesmos parâmetros de um sistema concreto.

15 VIEIRA, J. A. Ontologia sistêmica e complexidade. Formas de conhecimento: Arte e ciência a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008, p. 24.

16 BATESON, G. Mente e Natureza. A unidade necessária. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A.,

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9

Devemos esclarecer que um sistema não é apenas um agregado de coisas, para que seja um

sistema é fundamental que estas “coisas” partilhem uma ou mais propriedades. Um grupo de

pessoas num mesmo lugar não faz delas um sistema, mas um grupo de pessoas que partilham a mesma crença política forma um sistema político.

A ideia de sistemas é a princípio generalista, uma vez que, não seria possível comparar sistemas de naturezas tão diferentes em categorias que não fossem gerais. Mesmo assim, a ideia de sistema tende a se especificar à medida que constatamos que todos estes sistemas possuem de fato, parâmetros e características comuns. A primeira característica é a permanência, isto é, refere-se à tendência que todo sistema, especialmente os vivos têm de permanecer no tempo. “O equivalente em biologia seria o termo, vagamente empregado por vezes, ‘sobrevivência’”17. É

esta característica que dará origem aos processos de adaptação. Uma segunda característica refere-se ao ambiente, ou seja, o contexto no qual um sistema está inserido. Este ambiente é muitas vezes, um sistema maior que o engloba. O sistema relaciona-se com o ambiente através das trocas de informação, matéria e energia, assim influenciam-se mutuamente.

A conectividade também constitui uma importante característica do sistema; trata-se da relação entre os componentes do sistema, elas podem ser diferentes em intensidade, no caso de um sistema social, tal qual o religioso, por exemplo, trata-se da relação entre seus membros ou ainda entre seus membros e a doutrina e seus seres sobrenaturais.

A autonomia é a característica que se refere às reservas que o sistema possui para manter-se. Trata-se de componentes (no caso de sistemas sociais, membros), energia, informação e quaisquer recursos necessários para que continue existindo, mantendo a mesma organização. A

evolução é outra característica comum aos diferentes sistemas. Todos os sistemas evoluem, não no sentido de se tornarem melhores, mas de tornarem-se mais complexos. Com a evolução, o sistema pode sofrer mudanças em sua composição (quantidade ou qualidade de componentes) e consequentemente nos aspectos de conectividade. Chamamos estrutura o conjunto de relações estabelecidas entre os componentes do sistema até um instante de tempo18, isto porque, como veremos adiante, a estrutura sofre mudanças em prol da evolução. Apesar das mudanças que a estrutura pode sofrer o sistema há de permanecer o mesmo, pois conservará sua organização.

(20)

10

Esta refere-se à forma característica pela qual determinados componentes relacionam-se produzindo um resultado específico. É a organização que determina a identidade do sistema, ou seja, aquilo que ele é. Um coelho só é reconhecido por coelho porque tem aqueles componentes, organizados daquela maneira, e embora existam coelhos de raças diferentes, há um padrão conhecido por coelho. Analogamente, há um padrão determinado para o que reconhecemos como Igreja Católica, componentes específicos organizados de modo especifico para que assim seja identificada. Devemos também chamar a atenção para uma característica exclusiva dos sistemas vivos: a capacidade de produzirem a si próprios de modo contínuo, esta propriedade é chamada por Maturana e Varela de organização autopoéitica19 (auto = si mesmo + poiesis = criação). Um

animal produz as próprias células, “repondo-se” constantemente, da mesma forma que o grupo social “repõe-se” através da formação cultural de novos indivíduos. Neste sentido podemos dizer

que o DNA e a cultura são processos similares, ambos podem ser considerados programas responsáveis pela transmissão e execução de padrões:

Assim como a ordem das bases num fio de DNA forma um programa codificado, um conjunto de instruções ou uma receita para a síntese de proteínas estruturalmente complexas que modelam o funcionamento orgânico, da mesma maneira os padrões culturais fornecem tais programas para a instituição dos processos social e psicológico que modelam o comportamento publico.20

Logo, percebemos que a capacidade de organização autopoiética funciona tanto no organismo quanto para um sistema composto de organismos, tais como grupos sociais. Em qualquer processo reprodutivo, os espécimes nunca serão exatamente iguais a seus progenitores. Eles mantêm a organização, mas apresentam estruturas ligeiramente diferentes. E até nisso os processos de reprodução celular e cultural assemelham-se: não há dois neurônios idênticos, como não há dois templos budistas idênticos. Mas apesar das diferenças entre os dois neurônios e as diferenças entre os dois templos budistas, reconhece-se os dois como neurônios e os dois templos budistas.

Além das características apresentadas acima, sistemas também podem ser observados do ponto de vista de seus comportamentos. Nenhum sistema vivo consegue permanecer estático, porém, é

19 MATURANA, F. e VARELA, F. A Árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São

Paulo: Palas Athena 2001, p.52.

(21)

11

necessário manter-se dinamicamente estável,21o que implica atender em seu interior, a numerosas condições simultaneamente.

Um animal que sente fome ou sede quando apresenta níveis baixos de certos nutrientes, ao comer e beber reequilibra tais níveis, permanecendo com o suficiente para exercer suas atividades

durante certo tempo. Esta “faixa de constante variação é conhecida como homeostática, e o

processo de obtenção desse estado equilibrado chama-se homeostase”.22 A faixa homeostática é uma faixa de variação permitida, que matem o sistema dentro de certos limites de segurança. Menos do que o necessário resulta em falência do sistema, mais, além de ser difícil obter, pode desconfigurar a organização do sistema, destruindo-o ou transformando-o em outro sistema diferente. Para Gregory Bateson, manter-se na faixa homeostática é dizer que:

sistemas adaptativos são organizados de forma que tendem a preservar como verdadeiro o valor de certas proposições sobre eles próprios em face a perturbações continuamente tentando falsifica-las23.

Isto nos faz perceber que a mesma ideia de homeostase existe nos sistemas sociais, que devem manter suas proposições mais importantes a fim de permanecerem dinamicamente estáveis.

Especialmente as proposições religiosas sofrem constantes perturbações do ambiente, seja através do confronto com proposições de outras religiões ou mesmo com proposições seculares. De mais de duzentos dias de jejum por ano (jejum neste caso significa não consumir carne vermelha ou proteína animal alguma em certos dias) que igreja católica impunha, ficamos hoje apenas com o jejum da quaresma ou simplesmente da semana santa. Isto quer dizer que, a igreja abriu mão de algumas de suas proposições menores para manter sua homeostase. Certamente, a questão alimentar pode ter levado à perda de alguns componentes (devotos) deste sistema.

Em organismos, estas “proposições” são descrições genética e fisiologicamente codificadas sobre sua estrutura e funcionamento próprio. Em sistemas sociais humanos, entretanto, proposições regentes podem ser proposições do tipo: “O Senhor nosso Deus é

o único Deus”, cuja invalidação significaria a ruína do Judaísmo.24

21 RAPPAPORT, R. Ritual and Religion in the making of Humanity. Cambridge: Cambridge University Press, 1999,

p. 410. Tradução do autor.

22 DAMÁSIO, A. E o Cérebro criou o Homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 61. 23 BATESON, G. apud: RAPPAPORT, R. op. cit., p. 6.

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12

Assim, um grupo religioso necessita manter certo número de membros e certa frequência de rituais a fim de preservar suas proposições mais importantes.

Naturalmente que, na adaptação em prol da homeostase, entra em jogo a flexibilidade. Isto significa dizer que possivelmente valores menos importantes devam ser sacrificados em detrimento de valores mais fundamentais.

O que esta mudança mantém imutável?” [...] modificações e transformações na descrição de subestruturas devem preservar imutáveis valores de proposições mais fundamentais tidos como verdadeiros considerando o sistema como um todo, frente a mudanças de condição que ameaçariam falsifica-los.25

Da mesma forma que colocamos as religiões como sistemas, colocamos as cozinhas. Seus componentes são ingredientes, técnicas culinárias, valores simbólicos, praticantes e comensais. Elas variam segundo tempos e espaço, e portanto, estão sujeitas a toda sorte de mudanças no ambiente. Por sua flexibilidade, algumas cozinhas têm conseguido permanecer por longo tempo, apesar das trocas que são obrigadas a fazer.

O traço mais importante das grandes civilizações alimentares é a capacidade imensa de deglutir as influências externas sem se descaracterizar. É como uma língua que assimilando palavras de outro idioma, não perde sua gramática. A Índia é um grande exemplo disso, pois acomodou, ao longo da história, várias influencias sem se descaracterizar. Além do período Arvan, dos grandes impérios hindus, sofreu a influencia dos mongóis, dos persas, dos turcos, dos gregos, dos chineses, dos árabes e, no período moderno, dos portugueses e ingleses.26

Embora a culinária indiana tenha sofrido muitos ataques às suas proposições, conseguiu manter sua integridade, sendo inclusive transportada para dentro de outras cozinhas, tais como nos Estados Unidos, na Europa, etc.; onde conseguiu manter-se com identidade própria apesar das adaptações a que teve de se submeter localmente.

Se somarmos religião + cozinha, formando um sistema, encontraremos exemplo da mesma dinâmica no culto africano aos orixás. Já na África, tal culto tinha como base as oferendas de alimentos locais. Com toda a movimentação do tráfico de escravos estas oferendas foram se

25Ibid. p. 7.

26 DORIA, C. A. A Culinária Materialista. Construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo:

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13

modificando pelo novo fluxo de ingredientes. Os europeus levaram muitos produtos do Mundo Novo ao continente que fornecia escravos, tais como a mandioca, o milho, as pimentas do gênero

capsicum, o amendoim, a castanha de caju, etc. Os escravos, por sua vez, traziam seus rituais religiosos e junto com eles sua culinária litúrgica repleta dos ingredientes locais, tais como: azeite de dendê, quiabo, a galinha d’angola, o inhame, a cana-de-açúcar e o arroz (os dois últimos trazidos para a África na bagagem islâmica). Apesar de todas as adaptações que necessitaram fazer em suas oferendas alimentares, mantiveram o culto dos orixás através das oferendas de alimentos resultando na cozinha afro-baiana do candomblé.27

A natureza fortemente estruturada dos sistemas alimentares se reflete em sua tendência de reproduzir modelos de referência [...] mesmo no afastamento forçado das práticas costumeiras, deve-se permanecer o mais próximo possível da própria cultura, “da linguagem” que se conhece [...] são atestadas invenções de todo tipo para adaptar recursos disponíveis às técnicas e às práticas conhecidas.28

Formas muito rígidas têm maior dificuldade de sobrevivência, mesmo assim, com objetivo de manterem sua homeostase e preservarem suas proposições, alguns sistemas reagem de forma diferente e, têm como estratégia manterem-se mais fechados, buscam isolar-se do ambiente preservando até mesmo as menores proposições:

Exemplos da natureza são fornecidos pelos moluscos de conchas pesadas cujas atividades são mais ou menos limitadas ao intermitente abrir da concha para filtragem e alimentação. Entre humanos, os mais evidentes casos podem ser regras advindas de postulados religiosos. Talvez o mais notável exemplo seja as restrições judaicas em nome de Deus.29

A cozinha Kasher tem sobrevivido com grande dificuldade, dada sua inflexibilidade e grau de exigência. Os judeus estão espalhados pelo mundo e expostos a diferentes ambientes, com outras cozinhas e práticas alimentares, logo, “apenas cerca de 10 por cento dos judeus seguem

estritamente a lei Kasher.”30

27 RADEL, G. R. A Cozinha africana da Bahia. Salvador, 2006, p. 29. 28 MONTANARI, M. 2008, op. cit., p. 171.

29 RAPPAPORT, R. op. cit., p. 411.

30 LATHAM, E. J. e GARDELLA, P. Food. In: JONES, L. (Editor in Chief) Encyclopedia of Religion. Farmington

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Além das mudanças no ambiente, outra questão também provoca variações na faixa homeostática: a necessidade de combustível para manter suas atividades. O tipo de energia necessária varia de acordo com o tipo de sistema, podendo ser matéria, idéias, informação codificada ou energia física propriamente dita. Somente se alimentando um sistema vai conseguir se desenvolver, se reproduzir e evoluir. Um ser humano precisa de ar, água e comida, um sistema social precisa de idéias e pessoas.

A homeostase do sistema depende de certas quantidades de “alimento”. Estar muito abaixo ou muito acima destas quantidades obriga o sistema a rearranjar seus subsistemas para retornar ao equilíbrio, isto significa adaptação.

Um sistema sempre sobrevive à custa de outro. Para que um sobreviva, outros serão, pelo menos parcialmente, consumidos, numa cadeia sem fim. Imaginemos uma cadeia alimentar, muito simples, apenas para efeito didático: Plantas são comidas por animais, que por sua vez são comidos por outros animais, quando os animais morrem são então decompostos por insetos e fungos e voltam a ser nutrientes dos quais as plantas vão novamente se alimentar. Os elementos químicos ora estão nas plantas, ora nos animais, ora na terra, na água ou no ar, reorganizando-se incessantemente, segundo cada nova forma. Todos os elementos a partir dos quais coisas são fabricadas na Terra, um dia estiveram nas estrelas. Cada sistema tem seu tempo de permanência e enquanto existir necessitará do fluxo de energia, isto significa dizer que, para que um sistema mantenha-se em relativo equilíbrio outro sistema se desequilibra. Isto é, para que a estrutura de um sistema seja construída ou reconstituída, algum outro sistema há que perder pelo menos parte de sua estrutura. A alimentação humana só existe à custa de vários ecossistemas. Um dia, a Índia vegetariana que conhecemos praticou sacrifícios de bovinos que eram então consumidos. Segundo o antropólogo Marvin Harris, esta prática teria sido abolida não por circunstâncias religiosas, mas imperativas do ambiente:

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15 O gado bovino tornou-se assim o foco central do tabu religioso da carne para comer.31

Portanto, as mudanças no ambiente e a relação com outros sistemas não permitem que um sistema, seja da natureza que for, permaneça imutável. Mudanças em subsistemas preservam a continuidade do sistema como um todo. Este é o principio da seleção natural. Dadas as dinâmicas de sobrevivência com tantas similaridades entre organismos de naturezas tão diferentes, concluímos que, ontologicamente, a realidade apresenta-se de forma sistêmica.

1.1.2 Definição de Sistemas Alimentares e Sistemas Culinários

O conceito de sistemas serve não apenas para compreendermos seres vivos em geral, mas também agrupamentos de coisas, ideias, e, coisas e ideias com organismos vivos, desde que tudo funcione coordenadamente para gerar uma função. Dissemos anteriormente que a cozinha pode ser compreendida como um sistema, pois, para que exista, uma gama de fatores devem ser combinados. A cozinha é o conjunto de processos que nos proporciona nutrição, num sentido amplo a nutrição e tudo o que ela acarreta é determinante na existência:

[...]dando a nutrição como causa determinante à adaptação. Considero esta palavra no seu sentido mais lato, e designo assim a totalidade das variações materiais que o organismo sofre em todas as suas partes sob o influxo do mundo exterior. [...] a nutrição não é somente a ingestão de substâncias realmente nutrientes, mas a influencia da água, da atmosfera, da luz solar, da temperatura, de todos os fenômenos meteorológicos designados pelo nome de clima. Compreendendo por nutrição ainda a influência imediata da constituição do solo, da habitação, da ação variada e importante que os organismos circunvizinhos exercem, sejam eles amigos, inimigos ou parasitas, etc., sobre cada planta ou sobre cada animal [...]. A adaptação será o resultado de todas as modificações suscitadas nas trocas materiais do organismo pelas condições externas da existência, pela influência do meio ambiente.32

O sociólogo Carlos Alberto Dória organiza o conhecimento a respeito da nutrição via alimentos, conceituando-o primeiramente em termos de sistemas alimentares:

31 HARRIS, M. Canibais e Reis. Rio de Janeiro: Edições 90 Brasil, 1977, p. 204 e 206.

32 HAECKEL, E. História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais. Porto: Lelo & Irmãos, 1930,

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16 Os sistemas alimentares correspondem ao conjunto de soluções de vida de uma população para resolver os problemas de nutrição, sempre considerando as possibilidades que o ambiente dispõe e as ideias dessa população sobre a incorporação, que podem se formar em outros domínios da cultura, como a religião. Eles variam em grandes linhas, de civilização para civilização, e essas diferenças contam muito quando observamos a alimentação de cada uma.33

Em geral, os sistemas alimentares são fruto das imposições geográficas. Relevo e clima determinam as grandes questões de nutrição, que são solucionadas através de técnicas de plantio, irrigação, seleção e domesticação de animais, métodos de conservação de alimentos, constantes mudanças de dieta por parte da população, exploração dos territórios alheios tal como nas colonizações e, mais recentemente, importação de gêneros alimentícios. Cada cultura faz a manutenção de seu sistema de forma diferente, combinando os componentes acima. “Os desafios que a natureza põe para o homem são diferentes no tempo e no espaço, e, diante deles, sociedades respondem de modo diverso, até mesmo representando essa natureza como favorável ou hostil.”34

Dentro dos sistemas alimentares podemos ainda encontrar os sistemas culinários:

O que chamaremos de sistemas culinários é algo mais restrito: uma mesma civilização ou um mesmo povo pode comportar vários sistemas culinários, como são as diferentes cozinhas dos povos ocidentais ou as diferentes cozinhas chinesas ou indianas, imersas nos respectivos sistemas alimentares.35

Os sistemas culinários são também formas de soluções de problemas de nutrição de um grupo, entretanto, além de estar contido nos sistemas alimentares, diferenciam-se destes por terem uma natureza mais cultural. Os problemas aos quais estão sujeitos parecem requerer soluções de ordem simbólica para resolver problemas concretos. Para exemplificar, podemos pensar na cozinha judaica, submetida aos diversos sistemas alimentares do mundo, ela subdivide-se em alguns sistemas culinários tais como: kasher36 (pode ser judaico ou não, mas está relacionado ao

33 DORIA, C. A. op. cit., p. 46. 34Ibid, p. 49.

35Ibid, p. 46.

36Kasher significa o que está em acordo com as leis da Kashrut (leis dietéticas judaicas). Há restrições quanto ao

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17

judaísmo); no Brasil, por exemplo, pode-se encontrar o “kit de pertences para feijoada Kasher”,

prato tipicamente brasileiro adaptado às normas kasher, há linguiça e bacon, entretanto, feitos 100 por cento de carne bovina Kasher.

Há no judaísmo outros sistemas culinários o Ashkenazita e o Sefaradita, podendo ser kasher ou não. O sistema culinário Ashkenazita, considerado como tradicionalmente judaico apresenta influências do sistema alimentar do leste europeu, com seus ingredientes e técnicas. Já o sistema culinário Sefaradita, também considerado como tradicionalmente judaico, apresenta características do sistema alimentar do Oriente Médio, com ingredientes e técnicas particulares.

De certa forma, “do ponto de vista alimentar, podemos tomar as civilizações pelo que são:

sistemas estáveis, apesar das transformações pelas quais passaram e que não abalaram a sua

lógica e organização interna.”37 Isto pode ser entendido no sentido de que a alimentação pode

auxiliar a manter uma unidade cultural. No caso dos judeus, como em muitos outros, a questão alimentar constitui um valor importante que caracteriza um grupo disperso pelo mundo. Para o estrangeiro: “Comer à judia” era um pouco como tornar-se judeu no prazer de um momento, sentir de dentro o fascínio daquilo que era difícil (talvez impossível) apreender de fora.38 A alimentação, neste caso, é uma das proposições que reforçam a coesão do grupo.

Podemos afirmar que os sistemas culinários são subsistemas do sistema alimentar, uma vez que o

compõem. Numa conveniente analogia Dória afirma: “Podemos dizer que os sistemas

alimentares são como línguas muito faladas e os sistemas culinários são como dialetos.”39

1.2 A natureza animal do homem

Uma vez que contextualizamos o homem e sua alimentação na teoria de sistemas, ampliaremos nossas lentes para melhor compreender a natureza do homem e, posteriormente, que papel tem a questão alimentar dentro desta natureza.

37 DORIA, C. A. op. cit., p. 50.

38 TOAFF, A. Cozinha judaica, cozinhas judaicas. In: MONTANARI, M. (Org.) O mundo na cozinha. História, identidade, trocas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009, p. 183.

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18

O homo sapiens surge como uma continuidade evolutiva de uma sucessão de experimentos e aprimoramentos naturais de espécies anteriores durante milhões de anos. Falamos em continuidade, pois não conhecemos o final da linha evolutiva, não sabemos se o homo sapiens evoluirá para dar origem a outras espécies, nem tão pouco sabemos se nossa espécie terá uma longa permanência na terra. Comparada a outras espécies, tais como répteis, ou até mesmo dinossauros, que embora extintos, duraram cerca 250 milhões de anos, o homo sapiens é jovem, existe apenas há cerca 80 mil anos. Mesmo tendo grandes vantagens adaptativas relacionadas a sua capacidade de raciocínio e comunicação, o homo sapiens sofre pequenas e lentíssimas mudanças e, com tudo que temos causado ao ambiente, talvez sejamos causadores de nossa própria extinção ou tenhamos que sofrer mudanças drásticas, que poderiam dar origem a uma nova espécie.

Ainda que o homo sapiens tenha chegado a um nível de desenvolvimento cognitivo e adaptativo excelente, e tenha na cultura um diferencial incomparável em relação aos outros animais, é inegável que ainda esteja subordinado em grande parte à sua condição biológica. Apesar da tentativa da antropologia de opor cultura e natureza, homem e animal, demonstraremos ao longo da argumentação que o homem não é apenas uma coisa ou outra, mas um sistema composto destes dois mecanismos. É esta combinação que denominamos humanidade.

O homem tornou-se tão complexo, tão capaz de aprender e adaptar-se que parece ter tido uma origem completamente diferente da dos outros animais:

Se o Homo Sapiens surgiu bruscamente todo armado, isto é, dotado de todas as suas potencialidades, como Atena nasceu do cérebro de Zeus, mas de um Zeus inexistente, como Adão nasceu de Eloim, mas de um Eloim recusado, nesse caso donde veio o homem? Se se concebe o ser biológico do homem, não como produtor, mas como matéria-prima da qual se modela a cultura, neste caso, donde veio a cultura? Se o homem vive na cultura, mas trazendo em si a natureza, como pode ser simultaneamente antinatural e natural?40

As maiores evidências da origem evolucionista do homem e, do quanto ele ainda está subordinado à sua porção biológica, encontram-se não no estudo do homem, mas exatamente no estudo de outras espécies e nas similaridades que elas têm com o homem. Ao estudarmos outras espécies percebemos que muitas das qualidades consideradas exclusivamente humanas já haviam

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sido testadas e aprimoradas em outras espécies. Entre tais aspectos, encontramos: a comunicação e o comportamento social.

Já entre os insetos encontramos formas complexas de organização social. Entre formigas e abelhas, por exemplo, existem papeis bem definidos em suas sociedades, além de uma comunicação bastante eficaz que faz a manutenção da hierarquia nestas sociedades. Não é necessário um líder, são sociedades que, por processos químicos se auto regulam:

Estabelece-se um fluxo contínuo de secreções entre os membros de uma colônia: eles trocam conteúdos gástricos cada vez que se encontram, desse intercambio químico, chamado trofolaxe, resulta a distribuição, por toda a população, de certa quantidade de substâncias, entre elas os hormônios responsáveis pela diferenciação e especificação de papeis. Assim, a rainha só é rainha na medida em que é alimentada de certo modo, e não por hereditariedade. Basta retira-la de seu lugar, para que, de imediato, o desequilíbrio hormonal produzido por sua ausência resulte na alimentação diferencial de larvas, que se desenvolverão como rainhas.41

As sociedades de insetos não são exceções do mundo animal, aliás, observa-se que quanto mais complexa a espécie, mais complexa a organização social, bem como a comunicação para manutenção desta organização.

A riqueza das comunicações realizadas por meio de sinais, de símbolos, de ritos, é precisamente função da complexidade e multiplicidade das relações sociais; nas aves, e, sobretudo nos mamíferos, a grande diversidade de individuo para individuo determina e aumenta essa complexidade.42

Fala-se até mesmo em sociologia animal; estas sociedades arranjam e defendem suas bases territoriais, estruturam-se hierarquicamente para resolverem competições e conflitos internos por meio de submissão/dominação, além de implicarem em solidariedades em relação a inimigos e perigos exteriores43 e assim garantem condições para alimentação e reprodução e naturalmente a permanência da espécie.

Imaginemos um rebanho de antílopes, que vivem em terrenos montanhosos. Quem alguma vez tentou aproximar-se deles notou que tão logo se chega a uns cem metros de distancia todo o rebanho foge. Em geral, correm até chegar a uma elevação maior, de onde voltam a observar o estranho. No entanto, para passar de um cume a outro precisam

41 MATURANA, H. e VARELA, F. op. cit., p. 207. 42 MORIN, E. op. cit., p. 30.

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20 percorrer um vale, o que lhes impede a visão do visitante. [...] O rebanho se move numa formação que tem à frente o macho dominante, seguido das fêmeas e dos filhotes. Na retaguarda vão outros machos, um dos quais fica para trás, no cume mais próximo, e mantém o estranho sob suas vistas enquanto os demais descem. Assim que chegam a uma nova elevação, ele volta a juntar-se ao rebanho.44

Pode-se afirmar que o homo sapiens é em grande parte a somatória e aperfeiçoamento destas soluções incitadas pela necessidade de adaptação. Como veremos posteriormente todas as

soluções “criadas” pelo homem têm seu primeiro modelo na natureza, provavelmente reminiscente de alguma memória incrustada em seu DNA. Como diz Cosnier: “a espécie humana

não inventou os comportamentos de namoro e de submissão, a estruturação hierárquica do grupo,

ou a noção de território”45 e segundo Morin: também não deixa de ser menos evidente que a

sociedade não é uma invenção humana.”46

Esse homem, contudo, já não é um animal qualquer, que segue seus instintos. Ao contrário, estes são instintos sociais, isto é, submetem-se as determinações da vida em sociedade. [...] significa que a seleção natural é a força principal que governa o aparecimento dos grupos humanos, por meio de um processo específico de aquisição e fixação de conhecimentos (de educação), sem o qual o instinto social humano não se materializaria como forma de civilização. É forçoso reconhecer, por isso, que a seleção natural determina a própria cultura, conhecimentos e comportamentos que permitem à espécie seguir existindo, fazendo com que a cultura seja a própria evolução da seleção natural dos instintos sociais.47

1.3 Alimentação e programas biológicos inatos

Embora o homem apresente o instinto social48, mais elaborado, certas circunstâncias ainda podem fazer com que ele os suprima em detrimento de outros instintos mais básicos; podemos falar, por exemplo, em comportamentos condicionados, agressividade animal; e não são poucos os relatos que demonstram situações em que o ser humano pode revelar sua faceta instintiva mais primitiva. Quando colocado em circunstâncias de muitas privações ou que ponham sua

44 MATURANA, H. e VARELA, F. op. cit., p. 209. 45 COSNIER, J. apud: MORIN, E. op. cit., p. 30. 46 MORIN, E. op. cit., p. 30.

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21

existência em risco, há uma grande probabilidade de que estes comportamentos instintivos tomem conta do sujeito. Um destes relatos pode ser encontrado na observação do psicólogo

Viktor Frankl sobre o comportamento de judeus prisioneiros em campos de concentração: “face

ao estado de extrema subnutrição em que se encontravam os prisioneiros, é compreensível que, entre os instintos primitivos que representam a ‘regressão’ da vida psicológica no campo, o instinto de alimentação ocupasse o lugar principal.”49 A fome pode fazer o homem atropelar as

regras de civilidade. Na Divina Comédia, Dante fala da fome, ela deixa a marca permanente e inconsciente de uma morte agonizante no ser humano:

a primeira das calamidades que assolam a humanidade. Sua consequência é a morte mais miserável de todas. A fome provoca um suplicio lento, dores prolongadas, um mal que habita e se esconde no interior da gente, uma morte sempre presente e sempre lenta a chegar.50

Como um de nossos instintos mais imperativos, os tempos de penúria alimentar da história evolutiva ficaram registrados de forma contundente em nosso DNA.

A fome, como expressão característica do instinto de autopreservação, é sem dúvida um dos fatores primários e mais poderosos de influência do comportamento; na realidade, a vida dos primitivos é atingida mais fortemente por ela do que pela sexualidade. Nesse nível, a fome é o alfa e o ômega – a existência em si.51

Desta maneira, a prática voluntária do jejum, seja por qual motivo for, constitui um mecanismo poderoso de descondicionamento e aprendizagem.

Quando muitos dos programas biológicos inatos do homem estavam se formando, este encontrava-se em condições de existência bastante custosas52, pois a coleta e especialmente a caça de animais que representava na carne, um alimento com mais sustância, eram incertos, o que privilegiou certos comportamentos que visavam a conservação da espécie:

[O homem] estava quase sempre faminto, sem nunca ter certeza de poder satisfazer essa fome. O homem, que vivia num clima tropical evoluindo aos poucos para as zonas

49 FRANKL, V. Em Busca de Sentido. São Paulo: Vozes, 1985, p.20.

50Apud: CHONCHOL, J. O desafio alimentar. A fome no mundo. São Paulo: Marco Zero, 1989, p. 7. 51Psychological Factors in Human Behavior, The Structure and Dynamics of the Psyche, OC 8, 237. Apud:

JACKSON, E. Alimento e Transformação: Imagens e simbolismo da alimentação. São Paulo: Paulus, 1999, p. 18.

52 LORENZ, K. Civilização e Pecado. Os oito erros capitais do homem moderno. Rio de Janeiro: Artenova S.A.

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22 temperadas, certamente sofreu muito com isso. Com suas armas primitivas, devia viver num estado permanente de alarme e medo. Nesse contexto, muitas atitudes que hoje consideramos desprezíveis ou culposas, eram perfeitamente justificáveis. Uma estratégia inspirada pelo instinto de conservação transformava necessidade em virtude e mandava que comessem o mais possível toda vez que capturavam um animal de bom porte. A sabedoria consistia em se empanturrar. O mesmo se dava com o pecado mortal da preguiça. Obter um pedaço de carne custava tal esforço que era preciso cuidar para não despender mais energia do que o necessário.53

O processo de seleção natural tem favorecido mecanismos que otimizam energia. É o corpo que ensinará ao homem as primeiras noções de economia, através de um elaborado sistema de condicionamento:

No homem, o primeiro tipo de estímulo está ligado a um sentimento de prazer, o segundo a um sentimento de desagrado. Podemos, sem muito antropomorfismo, designá-los simplesmente, nos animais superiores por noções de recompensa e castigo.54

Ou seja, sensação de saciedade e bem estar versus sensação de fome e/ou dor causada pela fome. Através de um sistema de feedback55, ou retroação que consiste em reforçar aprendizados positivos e enfraquecer ou inibir aprendizados negativos (descondicionamento), homens e animais aprendem como investir bem sua energia, buscando na maior parte do tempo, acumula-la.

Temos o instinto a favor da permanência, isto é, segundo Konrad Lorenz, uma série de programas inatos presentes em todos os sistemas vivos, e com função ultima de conservar o organismo e consequentemente dar continuidade à espécie. Entre tais programas encontram-se a agressividade para defesa de território, defesa contra agentes destruidores (contaminação), o sexo e a alimentação; “por sua importância estratégica para a vida essas duas [ultimas] atividades

constituem as fontes mais intensas do prazer carnal.”56 Contrariamente, os mecanismos de

descondicionamento visam inibir comportamentos que possam colocar o individuo e a espécie em risco.

53Ibid.

54Ibid, p. 53. 55Ibid, p. 21.

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23 Os princípios opostos da recompensa e do castigo existem para manter o equilíbrio entre preço a pagar e o lucro em perspectiva. Isso é demonstrado pelo fato de sua intensidade variar de acordo com a economia do organismo. Se a alimentação é abundante, sua força de atração diminui a tal ponto que o animal dá apenas alguns passos para alcança-la, e nesse caso qualquer estímulo negativo é suficiente para acabar com o apetite. No caso inverso, a capacidade de adaptação do mecanismo prazer-desagrado permite ao organismo, em período de necessidade, pagar um preço exorbitante para alcançar uma meta vital.57

Um animal deve conseguir superar certos obstáculos para obter o que precisa, mas não ao ponto de ter ferimentos graves ou mesmo de perder sua vida. Seria ilógico pagar seu almoço com uma parte de seu corpo, como por exemplo, ter uma pata congelada ao sair para caçar em regiões muito frias. Um risco tão alto só deve ser percorrido se for a ultima cartada na tentativa de salvar a própria vida.

Podemos observar de forma mais detalhada o que sugerimos anteriormente: uma das primeiras coisas que aprendemos com a natureza foram os princípios de economia. Nosso corpo precisa de certos recursos para manter-se, para tanto, arca com certos custos. Os custos variam de acordo com os recursos necessários e disponíveis. Qualquer ser vivo depende de administrar bem os meios de aquisição de recursos e quanto gasta para obtê-los. No ser humano, entretanto, dada sua capacidade simbólica, o instinto social transporta este jogo de negociações para outras esferas.

“Os seres humanos buscam o que percebem ser recompensas e evitam o que percebem ser

custos.”58 Assim, seres humanos podem submeter-se a certos sacrifícios ou restrições para

conseguirem o que querem. Quase todas as religiões impõem regras sobre alimentação. Aquele que deseja as recompensas ou aceita os compensadores59 oferecidos por uma dada religião, arca

com o custo de se submeter, pelo menos em parte a estas imposições. “O cumprimento das regras

57Ibid, p. 55.

58 STARK, R. e BAINBRIDGE, W. S. Uma teoria da religião. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 37. Mesmo na escolha

das religiões os homens são movidos por este mecanismo, que apesar de parecer eminentemente humano, tem raízes biológicas.

59Ibid., Compensadores são outras vantagens que as pessoas podem encontrar numa religião quando não podem

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24

de alimentação tem sempre sido parte fundamental do contrato dos crentes dos diferentes

credos.”60

O mecanismo inato de valores biológicos, que determina a relação do organismo com seu meio, porém, não é estático: “o valor biológico aumenta ou diminui ao longo de uma escala indicadora da eficiência dos estados físicos para a vida.”61 De acordo com os desafios a que é submetido,

um organismo muda suas faixas de valor biológico, tornando-se mais tolerante a um mesmo

conjunto e/ou intensidade de estímulos. “Toda combinação de estímulos de excitação, agindo de

forma repetida, perde gradativamente sua eficácia.”62 Isto equivale a dizer que quando um

organismo recebe diversas vezes um mesmo estímulo de prazer este perde seu efeito, assim como quando um organismo recebe diversas vezes um estímulo de dor, também desenvolve certa tolerância quanto a este. Desta forma atinge-se, por exemplo, a excelência em jejuns prolongados (falaremos disso com mais detalhes no item 4.1).

A ausência de uma dor previamente conhecida, bem como o momento de sua interrupção, são interpretadas como recompensa:

Se, por exemplo, ele é fortemente levado por estímulos dolorosos criadores de inibição além do seu equilíbrio, e se esses estímulos cessam de repente, o sistema não volta, em curva amortecida, ao estado de indiferença. Ultrapassa o estado de repouso e vivencia a suspensão da dor como um prazer considerável.63

Se por razões de saúde ou religiosas o individuo é obrigado a abandonar a alimentação oral ou a deixar de comer parcialmente, quando volta a comer normalmente, o alimento passa então a ter uma conotação de recompensa, de celebração, ainda seja uma comida do dia a dia. Esta evidência pode ser constatada no capítulo III, observando-se que quase todas as religiões, após um período de jejum, encerram-no com banquetes; e estes têm por esta razão, um sabor muito especial. Não se trata apenas quebrar o jejum, mas sim, comemoração.

Algumas práticas alimentares e até mesmo alimentos específicos evidenciam o caráter recompensador da comida. Não podemos deixar de citar, neste caso, o alimento que parece ser a

60 EZQUIBELA, I. J. Prescripciones y tabúes alimentarios: el papel de lãs religiones. Distribuición y consumo:

Barcelona, Novembro-Dezembro, 2009, p. 9. Tradução do autor.

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25

recompensa por excelência, trata-se do açúcar. Em todas as línguas, faz-se referência às suas propriedades: diz-se de uma pessoa, que ela é doce, quando é afável, meiga, agradável. Fala-se em doces lembranças, doces momentos, doce vida, etc. Quando damos presentes comestíveis, geralmente, são bombons, biscoitos, bebidas: produtos doces. E, não somente na esfera secular, mas também as religiões que têm no açúcar o símbolo das boas coisas da vida. Como veremos no capítulo IV, muitas são as ocasiões religiosas festivas onde os doces são símbolos importantes.

A Doutora Nicole Avena, pesquisadora em neurociência e psicologia da alimentação pela Universidade de Princeton, explica que o açúcar, em suas várias formas (glicose, frutose, lactose, dextrose, amido, mel...), quando consumido, ativa os receptores que enviam sinais para o tronco cerebral e dali se subdivide em muitas partes do prosencéfalo, é a partir deste ponto que o sinal ativa o sistema de recompensa do cérebro, causando uma sensação de bem estar. A principal moeda do nosso sistema de recompensa é a dopamina, um importante neurotransmissor. Há muitos receptores de dopamina localizados no prosencéfalo, onde também se encontra nosso sistema de recompensa. Drogas como álcool, nicotina ou heroína enviam dopamina em excesso, levando algumas pessoas a buscar constantemente essa sensação, causando dependência, o açúcar também provoca a liberação da dopamina, embora não tão violentamente quanto as drogas.64

Inferimos, portanto, que o simbolismo positivo do açúcar tem origem não numa convenção, mas em seu efeito fisiológico no cérebro humano. A sensação de prazer ao comer um doce, ainda que fosse uma fruta, deve ter se destacado entre as demais. Colocando o açúcar como sinônimo das

coisas boas, assim é comum fazer votos de “um ano doce” ou “uma vida doce”. Nas supostas visões miraculosas entre mulheres da Idade Média encontram-se relatos de que na eucaristia “a

hóstia tornar-se-ia mel ou carne na boca das mulheres.”65

Outro produto que merece destaque no sentido de estar associado aos programas biológicos é a carne. Seu consumo, inicialmente, haveria dado origem a certa “obstinação benéfica”, pelo menos no início da humanidade:

64 AVENA, N. How sugar affects the brain. TED Ed Lessons worth sharing. Disponível em: www.ed.ted.com.

Acesso em 15/12/2013.

65 BYNUM, C. W. Fast, Feast and Flesh. In: COUNIHAN, C. e ESTERIK, P. Food and Culture: a reader. New

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