• Nenhum resultado encontrado

Identidade e contaminação

Se por um lado a alimentação funciona como um verdadeiro amálgama social entre os membros de um mesmo grupo religioso, por outro ela tem a ação de uma barreira quando se pensa em vários grupos. “O modo de se alimentar deriva de determinado pertencimento social e ao mesmo tempo o revela.”478 Por isso, grupos rivais não podem nem dividir a mesma mesa, nem partilhar

as mesmas práticas alimentares.

Conforme vimos na teoria de sistemas apresentada no capítulo I, o que define um organismo são sua organização e sua estrutura. São estes dois parâmetros que delimitam a identidade do sistema, isto é, as características e a dinâmica pelas quais ele é reconhecido. Não é nossa intenção explorar o conceito de identidade em profundidade, adotamos aqui um conceito muito geral, de forma que o mesmo possa ser utilizado em diferentes sistemas: biológicos, culturais e sociais.

Colocamos a identidade como uma espécie de fronteira ou membrana que define os limites do sistema, sendo aquilo que está fora um contaminante em potencial, tanto de natureza biológica quanto cultural ou social.

477 FLANDRIN, J-L. in: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op. cit., p. 32. 478 MONTANARI. M, 2008, op. cit., p. 125.

155 Onde há sujeira há sistema. Sujeira é um subproduto da ordenação e classificação sistemática das coisas, na medida em que a ordem implique em rejeitar elementos inapropriados. [...] Sapatos não são em si sujos, mas é sujeira colocá-los na mesa da sala de jantar; comida não é sujeira em si, mas é sujeira deixar utensílios de cozinha no quarto, ou deixar comida salpicada na roupa; do mesmo modo, equipamento do banheiro na sala de visitas; roupa pendurada nas cadeiras; coisas que são para ser deixadas fora da casa dentro da casa; coisas do primeiro andar no térreo; roupa de baixo aparecendo, e assim por diante. Resumindo, nosso comportamento de poluição é a reação que condena qualquer objeto ou ideia capaz de confundir ou contradizer classificações ideais.479

Como vimos anteriormente toda alimentação possui uma gramática, uma ordem, o que está fora dela, gera entropia. Especialmente na culinária litúrgica estes padrões são ainda mais rígidos, qualquer variação significaria contaminação e poderia colocar o sistema em risco. Raramente se altera ingredientes, modos de preparo e preceitos alimentares quando os mesmos estão determinados pelas religiões, a menos que sejam circunstâncias adaptativas de grande necessidade, como ocorreu com os cultos africanos, ou como ocorre entre os judeus, dispersos pelo mundo, convivendo em diferentes sistemas alimentares. Ainda que os ingredientes mudem, preservam sua sintaxe, isso se traduz em identidade.

Sugerimos que o leitor reveja a citação 73 de Konrad Lorenz. para compreender que o mecanismo de contaminação/defesa contra contaminação tem origem na biologia, mas é projetado também nas esferas cultural e social.

Nenhum sistema consegue permanecer estático frente as perturbações do ambiente; a troca e a adaptação são inevitáveis, fazendo com que este sistema tenha sua identidade constantemente ameaçada. Se o sistema se mantém fechado não obtém recursos para sua manutenção; se troca demais, acaba perdendo os componentes que lhe definem.

Perder a identidade também é uma forma de morrer, visto que, se o organismo modificar-se a ponto de alterar sua organização tornar-se-á outro sistema. Assim, todo sistema possui seus mecanismos de prevenção contra contaminação. Cada sistema deve gerenciar a entrada de novos elementos versus o risco de contaminação. Este nosso importante programa biológico, já explorado no item 1.3.1 manifesta-se também nos níveis cultural e social, já que tudo o que fazemos não deixa de ser uma variação simbólica das soluções que a natureza formulou.

156 A questão alimentar reflete muito bem este jogo de adaptações, trocas e identidades. No caso religioso este jogo não é apenas um legado que remete a um simples passado, mas um legado que conecta os fiéis àquilo que consideram sua origem existencial, como por exemplo, a ligação aos ancestrais, aos profetas, às divindades ou princípios criadores. Sendo assim, a questão alimentar é uma parte importante na construção das identidades religiosas, “comida e cultura, da perspectiva da memória, são formas de ligar a vida cotidiana dos indivíduos com suas tradições históricas no que tange religião, ritual e status.”480

Percebemos entre as religiões comparadas no capítulo III uma série de similaridades e diferenças entre suas práticas alimentares e que, de algum modo, quando falamos em identidade, a comida passa a ser um código que revela pertencimento sócio-religioso. “A alimentação assume a função de distinguir religiosamente os povos para os quais a dieta torna-se um assunto muito mais transcendente do que a mera satisfação do estômago.”481

A alimentação e a mesa são, em geral, espaços privilegiados em que se manifestam as particularidades culturais, as reivindicações nacionais e as querelas religiosas. Abençoar os alimentos com o sinal de sua fé é conferir-lhes uma identidade precisa e impedir que os outros os consumam.482

Os indivíduos se reconhecem em seus sistemas alimentares e, demonstram naturalmente indiferença ou repulsa pela “comida dos outros”, mas no caso religioso há um receio muito maior em se contaminar com a “comida do outro”.

Após o cisma do século XI a igreja grega ortodoxa reprovará, no catolicismo romano, sua grande afinidade com o modelo cultural judeu,; e, também nesse caso, é um símbolo alimentar a causa básica da discórdia, uma vez que o ritual ortodoxo rejeita o pão ázimo da tradição judaica (evocado pela hóstia do ritual eucarístico romano) e continua fiel ao “verdadeiro” pão fermentado do cristianismo primitivo, que ele conserva com orgulho como símbolo de uma identidade religiosa diferente. Os cristãos de Roma, por sua vez, acusam os gregos ortodoxos de terem conservado tradições judaicas, como o dia de descanso no sábado.483

480 ALLEN, J. S. op. cit., p. 179. 481 CARNEIRO, H. op. cit., p. 111.

482 MONTANARI. M. Modelos alimentares e identidades culturais. In: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op.

cit., p. 312.

157 Além deste, citamos inúmeros exemplos, tais como o uso do leite e da carne de cordeiro entre judeus e muçulmanos, assim como também a carne de porco como alimento identitário entre os cristãos. Judaísmo, islamismo e cristianismo, três religiões com a mesma origem, buscaram diferenciar-se também em muitos aspectos, inclusive na alimentação. O judaísmo, a mais antiga das três teve suas regras alimentares características. Durante a Idade Média, uma das formas de reconhecer os judeus era pela alimentação diferenciada. A “comida de judeu” era aquela que, no mercado dos cristãos, era escolhida e apreciada de preferência, ou exclusivamente, pelos judeus, que sabiam como prepará-la e cozinhá-la a partir de um numero extraordinário e particular de receitas.484Depois, a mesma identidade alimentar passou a designar um sinal para encontrar e perseguir judeus:

Os próprios judeus conservam a sua personalidade de nação, flutuante no espaço mas sólida através do tempo, guardando os pratos, os doces e os pasteis que mais lhe recordam as palmeiras e as oliveiras dos seus primeiros dias de povo e cujo preparo apresenta tanta coisa de ritual ou de litúrgico. Por insistirem em comer alguns desses quitutes proibidos, vários judeus, no Brasil colonial foram denunciados à inquisição e presos. Mártires do paladar e ao mesmo tempo da fé.485

A questão da identidade representada pela comida, no campo religioso é tão contundente que houve até quem tentasse uma espécie de conversão pelo estômago:

Assim, faz sentido um curioso episódio narrado por um cronista inglês do século XIV,

Walter Map, segundo o qual os heréticos cátaros e valdenses teriam desenvolvido uma estratégia alimentar para atrair para sua fé seus hóspedes recalcitrantes: “Oferecendo-lhes pratos especiais, eles transformam em heréticos [como eles] aqueles que logram convencer com palavras.”486

Comer a “comida do outro” tem uma conotação de incorporar seus valores. As categorias tais como dietas regulares, interdições alimentares, por suas restrições promovem certa “imunidade cultural”, já que a alimentação

484 TOAFF, A. Cozinha judaicas, cozinhas judaicas. In: MONTANARI, M. (Org.) 2009, op. cit., p. 183.

485 FREYRE, G. Açúcar. Uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo:

Global, 2007, p. 74.

158 não é apenas um instrumento de identidade cultural, mas talvez seja o primeiro modo para entrar em contato com culturas diversas, já que consumir o alimento alheio parece mais fácil – mesmo que apenas na aparência – do que decodificar-lhe a língua.487

Ao mesmo tempo que as categorias dietas regulares e interdições alimentares, impedem a entrada do que é estranho, contaminação ou “sujeira”, as categorias banquetes, alimentos como

símbolo específico, reforçam a identidade para os membros do como reafirmam-na perante o ambiente.

Nos exemplos que acabam de ser apresentados observamos que esta tensão entre identidade e contaminação através da alimentação determinada pela religião encontra-se nas categorias alimentares: dietas regulares, interdições alimentares e regras de preparo e obtenção dos

alimentos exploradas no capítulo III. Estas categorias, através das regras que impõem, colocam um “limite alimentar” às religiões. Assim pode-se reconhecer estas religiões por suas regras simbólicas sobre aquilo que seus fieis podem ou não podem comer e de que forma. Da mesma forma, o próprio fiel, pode se reconhecer como parte do grupo quando partilha, por exemplo, um mesmo tipo de dieta ou interdição. Quando numa destas categorias, a alimentação do fiel torna- se parte de sua identidade religiosa.