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Banquetes e alimentos como símbolo específico

“A partir da comida que se ingere pode, portanto, carregar consigo uma espécie de carga moral. Nossos corpos podem ser considerados o resultado, o produto, de nosso caráter que, por sua vez, é revelado pela maneira como comemos.”253

Trabalharemos no mesmo item os aspectos do banquete e alimentos como símbolo específico, pois são interdependentes. O que se encontra neste item são mitos que dão origem a festas, festivais, grandes refeições coletivas, refeições familiares ou entre a comunidade, onde se servem alimentos que típicos e representativos de tais ocasiões. Dois aspectos reforçam e materializam estas ocasiões: a comensalidade e a carga simbólica dos alimentos partilhados, respectivamente. Todos os alimentos adquirem de uma maneira individual ou coletiva uma carga simbólica, mas, dentro dos sistemas simbólicos religiosos alguns alimentos parecem ocupar posições de destaque, constituindo verdadeiros pilares de exibições materiais em termos de comunicação ritual, e mesmo quando não concretamente expostos ou consumidos, constituem semióforos.254

Budismo

No Budismo, herda do hinduísmo alguns de seus mais importantes símbolos alimentares, encontrados nos Oito Símbolos da Felicidade, nos quais quatro são alimentos:

253 MINTZ, S. op. cit., p. 32.

254 Trata-se de um objeto, imagem, musica, pessoa, etc. que deixou de significar a si próprio, mas que passou a

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Ghi-teang: significa a essência da vaca. É remédio calmante e fortificante retirado do cálculo biliar do gado ou dos elefantes. Assim como um remédio, é utilizado para curar o sofrimento físico da prática do Dharma.

A fruta da madeira: Também conhecida como Fruta Bael, Maçã-de-madeira ou Fruta Bilva, representa o vazio e a dependência da natureza existencial. Possui poderes de cura e ajuda no tratamento de doenças digestivas.

Sementes de Mostarda: As sementes de Mostarda branca representam a história da mulher cujo filho morreu. Totalmente transtornada, ela veio à Buda que lhe disse para ir a cada uma das casas da região e trazer sementes de mostarda de todas as que não tivessem sofrido uma perda. Quando ela voltou de mãos vazias, ele mostrou que ela não estava sozinha em sua dor e que a morte é uma parte inevitável da vida.

Iogurte: Algumas vezes chamado coalhada, esse alimento puro e branco é o resultado de um longo processo que simboliza a pratica do budismo que supera o tempo, durante o qual as impurezas da mente são removidas. Representa o meio de vida correto, já que nenhum animal é ferido na produção do iogurte.255

Candomblé

O Candomblé possui um calendário em homenagem a suas divindades. São banquetes que combinam comemoração com preceitos religiosos. Nas festas de Candomblé são oferecidas as comidas dos Orixás aos comensais, embora não seja exatamente a mesma, pois para os Orixás há regras estritas, eles não toleram certos ingredientes, é comum que as comidas não levem sal ou açúcar, hábito a que não estamos acostumados. “Em algumas festas, a comida torna-se o centro em torno da qual cerimônias desenrolam-se e se realizam. Além de não haver festas sem comidas.”256

Em tais cerimônias há danças, cantos, oferendas das comidas ao(s) Orixá(s) reverenciado(s), assim como há uma fartura de comida aos filhos da casa e aos outros comensais. É um banquete partilhado por mortais e divindades: “Dividir o alimento com os deuses é ter a insigne honra de comer com eles, garantindo, dessa forma, a presença dos orixás em nossas vidas e da refeição em nossa mesa.”257 A festa-cerimônia, também chamada de “xirê, é o ponto máximo do ato litúrgico

numa casa de candomblé. É a festa, é o culto à fartura, é o momento do nascimento do orixá

255 MALLON, B. Os símbolos místicos: um guia completo para símbolos e sinais mágicos e sagrados. São Paulo:

Larousse, 2009, p. 107-108.

256 JUNIOR, V. C. S. O Banquete Sagrado. Notas sobre os de comer em terreiros de candomblé. Salvador: Atalho,

2009, p. 140.

94 quando este orixá está pronto a ser apresentado ao público.”258Assim, os xirês são abertos ao

público. Entretanto:

Muito mais que relacionada a um sistema nutricional, a comida se articula e se compreende a partir de um universo maior onde a oralidade constitui um dos meios mais expressivos de passar seus preceitos, a observação, um método indispensável para sua manutenção e o comer um dos verbos, que embora conjuguem, reserva-se a poucos, restringindo-se àqueles que conhecem o “tratamento” entendem o papel e o significado desta comida como Axé, a força vital e sacrifício indispensável para a conservação da vida.259

Por isso não há uma dieta regular aos fieis, as únicas interdições estão ligadas às quizilas, citadas no item interdições alimentares.

A “liturgia alimentar” começa com a Feijoada de Ogum. Ele é o senhor das coisas cortantes. É patrono dos ferreiros e lembrado como pai da metalúrgica [...] No terreiro é sob a forma de desbravador e guerreiro que Ogum vai ser lembrado, empunhando sempre uma espada.”260

Assim, ele é rogado para abertura dos caminhos e proteção para o ano que se inicia. No xirê de Ogum a comida símbolo é a feijoada que, segundo a interpretação de Eurico Ramos, por Ogum ser o orixá do ferro, “todas as comidas deste orixá são ricas no elemento ferro: o feijão, o inhame, o azeite de dendê, etc.”261

Muito concorrida é também a festa do Amalá de Xangô. Xangô é o orixá rei, teria sido o terceiro rei da dinastia de Oyó. “Conhecido com juiz e princípio da justiça, Xangô, que odeia mentira, pune com rigor e violência seus inimigos, na sua dança, relembra sua majestade, mas também sua criatividade diante do fogo.”262 Os elementos associados a Xangô são as pedras, o raio, que

teria dado origem ao fogo e seu machado duplo, que cortando para os dois lados, simboliza a imparcialidade da justiça. No seu xirê serve-se o prato chamado amalá, que de acordo com o terreiro sofre variações, mas todos levam caruru, como mais alguma coisa. “Pasta que se faz de inhame, de milho, farinha de mandioca ou arroz, sobre a qual se deita os quiabos cortados e

258 RAMOS, E. Revendo o Candomblé. Respostas às perguntas mais frequentes sobre a religião. Rio de Janeiro:

Mauad X, 2011, p. 38.

259 JUNIOR, V.C.S., op. cit., p. 90. 260 Ibid., p.125.

261 RAMOS, E. op. cit., p.37. 262 JUNIOR, V.C.S., op. cit., p.135.

95 temperados com camarão, cebola, azeite-de-dendê e às vezes pimenta, o chamado caruru.”263

“Xangô é o ícone da masculinidade e por isso recebe o quiabo, que tem uma representação claramente fálica.”264

O Olubajé é um banquete que celebra o orixá Obaluayê (o moço) ou Omulu (o velho), senhor da vida e da morte que conhece os dois mundos e é dono da terra, portanto uma ligação com os ancestrais; conhecido também como o médico dos pobres, pois era a ele a quem os escravos pediam quando estavam doentes. No banquete em sua homenagem, entretanto, há comida de todos os orixás porque segundo o mito:

Como este orixá nasceu doente, todos os demais lhe deram um pouco de sua comida para seu sustento, surgindo daí esse grande banquete. Outra explicação está relacionada com o fato de Obaluayê ser o dono da terra e graças a isso, todos os grãos lhe pertencem.265

No seu dia todas as comidas são servidas em panelas de barro e sobre uma esteira de palha, no chão, já que ele é o dono da terra. Sua comida favorita e sempre distribuída às pessoas, entretanto, é a pipoca, também chamada de doburu, deburu ou flor de Obaluayê.

Toda segunda feira é consagrada a ele, quando é feito o tabuleiro do velho,tabuleiros com pipocas enfeitadas de coco, sobre a mais branca toalha, diante do qual se entoam rezas e cantigas que lembram passagens da vida deste orixá. Em seguida o doburu, as pipocas, também chamadas flores do velho, são distribuídas a todos os presentes que a recebem com as duas mãos, comem ou levam para casa a fim de ministra-las como uma hóstia a seus doentes ou passarem no corpo e lança-las num mato.266

O Ipeté de Oxum designa o nome da festa realizada em homenagem a Oxum, a grande mãe das águas doces. Ela está ligada à fertilidade, à vida uterina e à prosperidade.

A festa realizada para Oxum visa exaltar o poder de gerar, presente em todas as mulheres. É um momento onde este orixá, exibe a todos, através de sua comida, este princípio. Dentro do balaio, o próprio ventre, representado por tudo que é redondo, a panela, símbolo por excelência de Oxum.267

263 Ibid., p.155.

264 RAMOS, E. op. cit., p. 38. 265 JUNIOR, V.C.S., op. cit., p. 164. 266 Ibid., p. 163.

96 O principal prato ligado a Oxum é o Omolucum. Este prato, assim como outras comidas de Oxum “geralmente levam ovo, que é o símbolo do nascimento, da fertilidade, da vida.” O Ipeté também é um prato de Oxum, mas não é visto pelo público ele, como tantos outros, é servido apenas ao orixá, de forma secreta. Muitas pessoas não sabem que o nome da festa tem origem no prato.

Como a prosperidade também está associada a este orixá, muitas das comidas, além das roupas e da decoração são dourados, ou amarelo intenso (variação do dourado), como o próprio prato

Ipeté. O Ipeté prato consiste em inhame bem cozido, amassado como um purê, temperado com camarão seco, cebola e dendê. Outra comida associada a Oxum é o famoso vatapá, prato popular da cozinha tradicional baiana:

Diz-se desta que é uma “comida dedicada” e não oferecida diretamente como as demais, por tratar-se de uma “guarnição” de Oxum, na cozinha dos orixás. É uma comida, que classificada, aparece relacionada à Oxum, mas que dificilmente entra no peji [quarto de santo] ao lado das outras.268

Talvez a festa mais conhecida do candomblé seja o Caruru de Ibeji. Trata-se da festa dos gêmeos, das crianças. Esta festa surge do candomblé, mas é celebrada fora dele também, especialmente na Bahia. Esta festa mistura-se com os símbolos e ritos de Cosme e Damião.

Reúnem os fieis do culto, para a festividade, um grande número de crianças, organizam com elas um candomblé-miniatura, há farta distribuição de guloseimas e um repasto especial de comidas africanas “da preferência do santo”269

Sendo crianças, os Ibeji estão ligados a Oxum, “encarregada do útero, é a mãe de Ibeji, como é mãe adotiva de todas as crianças até certa idade.”270

Ibeji é o símbolo e o protetor de todas as crianças que ocupam lugar essencial na sociedade

Yorubá. “Elas são vistas como sinônimo de benção e continuidade, garantida graças à presença

268 Ibid., p. 169.

269 RIBEIRO, R. Antropologia da religião e outros estudos. Recife: Editora Massangana, 1982, p. 139. 270 JUNIOR, V. C. S., op. cit., p. 171.

97 dos ancestrais.”271 Cada criança nascida é a certeza de que os que morrem permanecem sempre

vivos.

Tanto a festa quanto o prato típico desta ocasião levam o mesmo nome. O caruru, prato à base de quiabos é servido com uma gama de outros pratos associados a outros orixás, pois todos cuidam das crianças.

Preparada a comida, a parte de Ibeji é retirada e dividida em três pequeninos pratos de barro. Cada pratinho deve conter tudo que se preparou a fim de ser levado ao altar dos meninos. Depois é hora de preparar a mesa das crianças que, neste dia, são as primeiras que comem. É como se houvesse uma inversão na hierarquia onde comum é se comer por ordem de senioridade.272

Há também farta distribuição de comidas e doces a todos os filhos da casa, adultos ou crianças, que os comem ou os levam para casa como um objeto mágico que os auxiliará em seus pedidos a Ibeji.

De todos os orixás femininos, Iansã, também conhecida como Oiá (e suas outras qualidades) é a única que não está associada à água, ao contrário, ela está associada ao fogo, aos raios e ao vento. É a orixá guerreira, frequentemente sincretizada com Santa Bárbara, santa católica que como Iansã, também traz consigo uma espada.

Sua comida mais emblemática é o acarajé, que também nomeando sua festa, “do yorubá akará é bolinho de feijão. Jé é o verbo comer.”273 Significando bolinho de feijão para comer, uma vez

que o nome real do bolinho que vai em oferendas é apenas akará, jé designa aquele para as pessoas comerem. Também,

se prestarmos atenção em termos químicos, a mistura de feijão fradinho pilado, cebola e água é um agente extremamente oxidante, ou seja, catalisador, que “chama para si” o oxigênio, ou seja, o próprio orixá. Por essa razão, a massa do acarajé incha quando batida, fica aerada, cheia de ar.274

No dia de sua festa, Iansã mesma divide suas comida preferida que chega ao barracão do terreiro dentro de panelas de cobre ou cestos ricamente ornados com laços brancos [...] a

271 Ibid., p. 172. 272 Ibid., p. 173. 273 Ibid., p. 180.

98 comida é, assim dividida durante a cantiga que diz ser Iansã o próprio akará que está sendo dividido para as pessoas: Oiá dê, Oiá iô, akara ló bi ajaka ló!275

Outro simbolismo associado a Iansã são as próprias baianas do acarajé, tão presentes nas ruas de Salvador.

Pela tradição que se afirmou ao longo de séculos quem faz o acarajé é a mulher, a filha de santo quando para uma obrigação, ou a baiana de acarajé quando para vender na rua [...] Ao estabelecerem elos entre os terreiros de candomblé e os espaços da cidade, as baianas de acarajé tornam públicos cardápios sagrados. 276

Muitas delas recebem o oficio de baianas do acarajé como missão de vida determinada no jogo de búzios. A prática do comércio ambulante por mulheres já era tradicional na África e no Brasil passam a ser ao final do período escravocrata, quando negras recém libertas passam a vender seus quitutes nas ruas para o próprio sustento, são as chamadas negras de ganho.277 Normalmente as vendedoras ambulantes de acarajé são filhas de Iansã.

Um ciclo de celebrações de três domingos, conhecidos como “Águas de Oxalá”, encerram o ano no Candomblé. Não é por acaso, afinal ele é o orixá da criação e também o semióforo da paz. É ele quem dá a ultima palavra, por isso encerra o ano. São comidas emblemáticas de Oxalá o “ebô, comida feita à base de milho branco bem cozido, observando o preceito de não fazer uso nem de sal nem de açúcar.”278 Ou ainda, “o inhame, seja cortado, servido como farofa, ou

simplesmente amassado é iguaria por excelência do orixá da criação.” O inhame está mais ligado ao Oxalá moço (uma das várias qualidades de Oxalá), bem como à colheita do inhame novo, representando as primeiras colheitas de inhame.

Estas são as principais festas do candomblé, mas existem ainda outros orixás com festas menores e suas respectivas comidas, as quais abordaremos no item Oferendas de alimentos. Gostaríamos, entretanto, de destacar como grande alimento-símbolo do candomblé o azeite de dendê, este que

275 JUNIOR, V. C. S., op. cit., p. 180.

276 LIMA, R. G. Projetos Celebrações e Saberes da Cultura Popular. Dossiê IPHAN do Ofício das Baianas do

Acarajé. Ministério da Cultura, 2004, p. 16-17.

277 Ibid., p. 15. 278 Ibid.. p. 141.

99 parece ser comprável ao leite no hinduísmo (como veremos a seguir) é usado em quase todas as comidas sagradas e quando não, há uma boa razão:

O consumo ou não de dendê pelos orixás é marca identitária, caracteriza-se pelo uso de cores, roupas, metais, objetos sagrados, assentamentos comidas e adornos corporais. Para o povo de santo, o dendê atribui a esses elementos característica ideológica que se reflete na ética, na hierarquia, no comportamento em diversas posturas. É um tabu alimentar entre os filhos dos orixás brancos, também chamados orixás funfun, em especial, Oxalá.279

Além de ser uma marca da cozinha do candomblé devido a cor e sabor que confere aos pratos e de ser um dos mais fortes laços com a África, já que o produto veio de lá com os escravos, o dendê é tido, no culto, como uma das mais fundamentais substâncias. Tal é sua importância, que é considerado um tipo de sangue, substituindo, por vezes, o sangue animal; “o epo [azeite de dendê], ‘sangue vermelho’, àse [axé] de realização, representa tanto o poder de gestação das Ìyá-

àgbà [grandes mães] como o poder dinâmico dos descendentes, particularmente o de Èsù [exu].”280

Outro alimento, menos conhecido, mas de fundamental importância no rituais do candomblé é o

Obí, a noz de cola:

É um hábito geral oferecimento do obí às visitas; é um sinal de cortesia, amizade e compreensão, e, uma vez repartido, constitui um pacto de lealdade e comunhão.”281

“Nos rituais todas as oferendas começam pela utilização do obí, inicialmente, estabelecendo uma conversação através de uma modalidade de jogo que se utiliza dos quatro gomos do obí, denominados aláwé mérin.”282

Catolicismo

No Catolicismo, se faltam dietas regulares e tabus alimentares, abundam símbolos. Basta ver algumas passagens da Bíblia para perceber quantas das parábolas contém alimentos, ou cenas de refeições representando diversos conteúdos espirituais.

279 LIMA, R. G. op. cit., p. 30.

280 SANTOS, J. E. Os Nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petropolis: Vozes, 1986, p. 189. 281 BENISTE, J. Òrun – Àyié: O encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento Nagô-Yorubá entre o céu e

a terra. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 310.

100 Os milagres de Cristo entre outros, referem-se à multiplicação dos alimentos, seu próprio corpo e sangue consubstanciados no pão e no vinho da eucaristia repete o rito do sacrifício de uma forma sublimada. A santa ceia assume um papel central na representação de uma aliança da humanidade com a divindade fundada na comensalidade. As refeições de Cristo na casa de Simão, nas bodas de Caná e na mesa dos peregrinos de Emaús são episódios em que a alimentação serve de parábola para a mensagem cristã.283

Uma vez que comer é uma experiência conhecida de todas as pessoas, torna-se uma metáfora de grande alcance. “Esta experiência [da comida] básica e laica (comum a todos) da vida humana, é onde melhor nos comunicamos com Deus, onde melhor o conhecemos e onde melhor o experimentamos.”284 A própria história humana com Deus, no Catolicismo, começa com a falta

do homem ao comer o único fruto proibido do Paraíso, e mais tarde, após muitas passagens envolvendo alimentos, a redenção do homem será novamente feita através da boca, com a incorporação de Cristo através do pão e do vinho; que juntamente com o azeite comporão a tríade de alimentos-símbolo mais importante do Cristianismo.

O pão, o vinho é o óleo [azeite de oliva] – que, de certo modo, simbolizam o modelo mediterrâneo – tornam-se sagrados pela liturgia cristã. São instrumentos indispensáveis para o trabalho dos pregadores da nova fé. Os livros hagiográficos da alta Idade Média apresentam bispos e abades semeando trigo e plantando a vinha em volta das igrejas e dos mosteiros recém fundados. 285

Na antiguidade, temos também no peixe um importante símbolo cristão. Numa época em que o consumo de carne era regulado pelos sacrifícios aos deuses pagãos, comer peixe significava uma alternativa conveniente quando se desejava evitar este consumo. Além disso,

a palavra grega para peixe, ichthys, era um anacrônimo para as primeiras letras da sentença: Jesus Cristo filho do Deus Salvador.[...] no peixe, as iniciais da declaração de fé tornaram-se uma palavra, a palavra um signo, o signo uma imagem que remete a textos inteiros, dando origem a uma gama de interpretações alegóricas.286

283 CANEIRO, H. op. cit. p. 118.

284 CASTILLO, J. M. Jesus y la comida. Madri : Editorial Trota, S.A., 2009, p. 221. Tradução do autor.

285 MONTANARI, M. Romanos, bárbaros, cristãos: na aurora da cultura alimentar europeia. In: FLANDRIN, J-L.

e MONTANARI, M. op. cit., p. 280.

286 NORTHCOTT, M. S. Eucharistic eating, and Why many early Christians preferred fish. In: GRUMMET, D. e

MUERS, M. Eating and believing. Interdisciplinary perspectives on vegetarianism and theology. London: T&T Clark, 2008, pp. 242-243. Tradução do autor.

101 Um produto que também caracterizou os católicos, ainda que de forma menos perceptível, aliar- se-ia a esta tríade alimentar simbólica do catolicismo: o porco. No Oriente Médio e na Europa medieval somente os católicos comeriam o porco.

O porco, cuja importância é fundamental para a alimentação, ocupa na Europa cristã um papel simbólico totalizante e funciona como um verdadeiro traço distintivo, sobretudo em relação ao mundo islâmico (para judeus, na verdade, a recusa da carne de porco não passa de um interdito entre tantos outros). O outro motivo fundamental de oposição é o vinho, uma bebida de capital importância nas mesas cristas, mas excluída ideologicamente – embora nem sempre de fato – da mesa muçulmana. [...] até o pão – alimento básico tanto no mundo islâmico como no mundo cristão – assume na Europa um caráter sagrado inédito e torna-se de alguma forma um valor típico da alimentação cristã. Assim, a dupla pão-vinho, que constituía o sinal distintivo da cultura mediterrânea, tende a definir, na Idade Média – com a carne, em particular a de porco – o espaço alimentar [para não dizer o sistema culinário] da Europa continental cristã.287

Outro símbolo remanescente das práticas alimentares da Idade Média encontra-se no Bacalhau: A doutrina requeria que as pessoas se abstivessem de comer carne às sextas feiras, em