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Animais e plantas nos sistemas culinários

É um truísmo dizer que o sexo e a comida são dois polos do sentido da vida humana. E que, como tais, eles extravasam suas funções meramente materiais de assegurar a sobrevivência dos indivíduos e a da espécie para torna-los matrizes simbólicas essenciais

140 SOLER, J. in: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op. cit., p. 86.

141 FRANCO, A. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. São Paulo: Editora Senac, 2006, p. 25. 142 AGUIRRE, S. M. Fuegos, Hornos y Donaciones. Alimentación y Cultura em Rapa Nui. Um ensayo

54 de toda cultura. O poeta alemão Schiller já dizia que “o amor e a fome movem o mundo.”143

Cada um dos elementos que influencia na alimentação aparece com maior ou menor importância na comunicação cotidiana, uma vez que representam soluções ou desafios à permanência (no tempo) do grupo. Assim que a capacidade de linguagem possibilita um intenso processo de relação com o ambiente, plantas e animais, por exemplo, ganham participação simbólica na estrutura profunda dos grupos de humanos que passam “a desenvolver relações sociais com plantas e animais estruturalmente semelhantes às estabelecidas entre pessoas”144. Isto pode ser

observado através do antropomorfismo do paleolítico superior representado, por exemplo, na imagem do feiticeiro’ de Trois-Frères – uma figura pintada de pé, com pernas e mãos que parecem humanas, mas com costas e orelhas de um herbívoro, os chifres de uma rena, a cauda de um cavalo e um pênis posicionado como o de um felino.145

Também o Totemismo representa esta relação, mas “em vez da atribuição de características humanas a animais, envolve implantar indivíduos e grupos humanos dentro do mundo natural, sumarizado pela descendência de uma espécie não-humana.”146 Encontram-se muitas regras

alimentares fundamentadas no totemismo. Alguns grupos comiam o animal totêmico visando incorporar suas qualidades, enquanto outros, nunca comiam o animal totêmico temendo algum tipo de vingança por parte do espírito do mesmo.147

Mary Douglas destaca correlações entre animais, pessoas e comida da seguinte forma:

Cada sociedade projeta no reino animal categorias e valores que correspondem às categorias de pessoas com as quais se permite casar [...] Os padrões de regras que categorizam animais correspondem, em forma, aos padrões de regras que governam relações humanas. Consumações sexual e gastronômica são consideradas equivalentes por terem restrições análogas aplicadas a ambas. 148

143 CARNEIRO, H. op. cit., p. 128. 144 MITHEN, S. J. op. cit., p. 360. 145 Ibid., p. 264.

146 Ibid., p. 266.

147 BANON, P. Para melhor conhecer os tabus e as proibições. São Paulo: Claro Enigma, 2011. 148 DOUGLAS, M. Deciphering a meal. In: COUNIHAN, C. And ESTERIK, op. cit., p. 44.

55 Também fala Doria sobre o homem e os animais eleitos para comer. Cada sociedade:

classifica os animais segundo sua “comestibilidade”. Os animais domésticos nos parecem totalmente vedados. Já os animais de quintal [...] parece que foram criados por Deus para nos servir de alimentos. As caças podem ser consideradas ou não como fontes alimentares segundo a história e tradição de um povo. Os animais selvagens, por sua vez, parecem encarnar perigos: são as feras que ameaçam o homem, seus animais domésticos ou de quintal. Por fim, temos os animais mitológicos [...] servindo-nos para delimitar o mundo palpável e aquele que se estende para além da imaginação.149

Nas sociedades de caçadores e pastores, ou seja, onde a principal fonte de alimentos provém diretamente da vida de outros animais, estes ocupam um importante lugar também no sistema de crenças. O mito da regeneração dos animais, presente em diversas culturas demonstram este fato:

Nas lendas germânicas encontramos “o grande porco” [...] que na corte de Odin, basta para nutrir todos os heróis mortos em batalha, uma vez que “todo dia é cozido e distribuído para a refeição, e de noite está novamente inteiro” – assim narra “Edda”, o mais antigo poema escandinavo, escrito na Idade Média, mas expressão de uma cultura muito mais antiga, transmitida oralmente.150

O processo de simbolização de plantas, especialmente as alimentícias ocorre mais tarde e está intimamente relacionado à invenção da agricultura. “Nas sociedades agrícolas e sedentárias, os principais mitos de fertilidade e os rituais que os acompanham têm como protagonistas os cereais.”151 Certas culturas têm em seu totem, não animais, mas vegetais dos quais são

descendentes. Se não há um grau de parentesco, pelo menos estes alimentos figuram símbolos importantes nos mitos de fundação:

Recordemos a história de Perséfone, filha de Deméter, deusa da terra e da agricultura, raptada pelo deus do mundo inferior, Hades, e devolvida à mãe com a condição de retornar para baixo da terra eternamente durante um terço do ano: história de evidente caráter propiciatório, na qual se representa a trajetória da semente de trigo, enterrada durante a estação fria até que renasça com o sopro da primavera, assegurando, com o crescimento da vegetação, alimento aos homens. Outras plantas, em outras civilizações, têm o mesmo papel: o arroz é protagonista de muitas lendas e contos asiáticos, enquanto a mitologia dos povos antigos da América dá espaço principalmente ao milho.152

149 DORIA, C. A. op. cit,. p. 39. 150 Ibid., p. 31.

151 MONTANARI, M. Comida como Cultura. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2008, p. 30. 152 Ibid.

56 Quanto mais essencial um alimento se torna numa cultura, mais aumenta sua função de representar. Isto explica os inúmeros banquetes, oferendas e sacrifícios, ainda hoje praticados em nome de divindades associadas à agricultura. É necessário pactuar com deuses e ancestrais para obter deles favores. Na concepção de muitos povos, são eles que controlam a terra, as chuvas e toda a natureza por trás da produção dos alimentos.

São todas estas relações que fundamentam a estrutura da linguagem de cada grupo, da mesma forma que estas mesmas relações determinam a relação com os alimentos. Dentro uma grande variedade de alimentos, o homem escolhe-os segundo regras tão profundamente enraizadas quanto as da linguagem. Estas regras revestem-se nas concepções de alimentos considerados próprios ou impróprios, bons, sagrados, mágicos, curadores, etc. Estas concepções darão também origem aos interditos alimentares numa forma muito similar à regra mais básica das relações sexuais: a proibição do incesto. Todas as culturas proíbem o incesto, mas quais as relações que são consideradas incestuosas poderá variar muito de cultura para cultura. Analogamente, encontramos em todas as culturas regras sobre o que, quando, como, onde e com quem alimentos podem ser consumidos, estas regras, porém, são tantas quantas as culturas existentes no planeta.