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O imaginário cultural haitiano em Pays Sans Chapeau (1997) de Dany Laferrière: entre o fantástico e o maravilhoso

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

TARCYENE ELLEN SANTOS DA SILVA

O IMAGINÁRIO CULTURAL HAITIANO EM PAYS SANS CHAPEAU (1997) DE DANY LAFERRIÈRE: ENTRE O FANTÁSTICO E O MARAVILHOSO

NATAL-RN 2018

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TARCYENE ELLEN SANTOS DA SILVA

O IMAGINÁRIO CULTURAL HAITIANO EM PAYS SANS CHAPEAU (1997) DE DANY LAFERRIÈRE: ENTRE O FANTÁSTICO E O MARAVILHOSO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karina Chianca Venâncio

NATAL-RN 2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, Tarcyene Ellen Santos da.

O imaginário cultural haitiano em Pays Sans Chapeau (1997) de Dany Laferrière: entre o fantástico e o maravilhoso / Tarcyene Ellen Santos da Silva. - Natal, 2018.

152f.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem. Natal, RN, 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Karina Chianca Venâncio.

1. Dany Laferrière - Dissertação. 2. Literatura Quebequense Haitiana - Dissertação. 3. Fantástico e Realismo Maravilhoso - Dissertação. 4. Imaginário - Dissertação. I. Venâncio, Karina Chianca. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82-93.09 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/170

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AGRADECIMENTOS

A Deus, uma vez que tudo é Dele. Minha gratidão se estende à natureza Dele e tudo que ele faz; até mesmo, a poética e sua ciência.

Ao meu Allyson Muniz, por estar comigo no “ócio e no labor”. Por seu amor, paciência, dedicação e cuidado.

À Edvânia Silva e Tarcisio Viana, de quem herdei o riso fácil e a falta de tato; decidam entre os dois a quem pertencem essas características. A Tárcio Silva e Tarcísio Filho, este último por escutar-me falar sobre Dany Laferrière por horas a fio. À Gladys Picarelli, pois sem sua contribuição não teria iniciado as primeiras disciplinas. À Marayse Guimarães, por absolutamente tudo que você fez e faz por mim.

Em especial, à minha orientadora Prof.ª Dr.ª Karina Chianca. Minha gratidão não é apenas por causa do seu trabalho incansável, nessa labuta que se divide entre orientar, pesquisar e ensinar. Em outro trabalho, já lhe agradeci por essas competências. Desta vez, sou grata por ter me dado conta que foi você quem me apresentou diversos autores, dentre os quais, Dany Laferrière. Obrigada.

Aos professores que compuseram a banca de defesa deste trabalho. Em primeiro, à prof.ª Dr.ª Heloísa Moreira por ter me concedido a honra de ler meu trabalho, pela sua valiosa colaboração e pela doçura na correção minuciosa. Em segundo, ao prof.º Dr.º José Luiz por ter me recebido em sua sala de aula no mestrado, enquanto aluna. Por sempre ser solícito e não se incomodar com minhas confusões, demonstrando-se sempre acessível ao seu alunado. Obrigada pelas valiosas sugestões quanto aos textos críticos. Em terceiro, ao prof.º Dr.º Marcos Venícius por suas contribuições e por sua amizade, pois além de sempre estar disposto a me socorrer em emergências, me cedeu horas de seu tempo para engrandecer minha formação como pessoa e pesquisadora.

Ao revisor deste trabalho, meu amigo e incentivador, Valnikson Viana.

Às amigas. À Melina Rodrigues, que apesar de estar em outro continente, sempre se fez presente em todos os momentos e foi minha primeira leitora. Agradeço também por ter importado os livros de Dany Laferrière da França. À Débora Loanne, por ter sido uma leitora ávida deste trabalho. À Isabel Camila e à Ana Emília, por compartilharem comigo o mestrado, o sufoco, a alegria, os sorvetes de menta, as conversas equilibradas, o engrandecer do ser humano, a poesia do pôr do sol de Natal, o céu azul e as inúmeras tardes de biblioteca. Obrigada por todo amor que compartilharam comigo, meninas. Aos amigos Thiago Vieira e Marcelo Arturo, o primeiro pelas caronas e o segundo por nunca ter pedido o retorno dos

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livros de análise crítica. A Kleiton Silva, por me acompanhar na busca pelos gêneros literários adequados para o objeto de estudo, pela amizade e companhia.

À assistência social estudantil da UFRN, por ter me concedido um lar, durante um ano e meio. A todos que contribuíram direta e indiretamente para a realização deste trabalho.

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“[...] AO DEUS DESCONHECIDO” Atos 17:23 (A BÍBLIA, 2016).

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RESUMO

A presente proposta de investigação direciona a atenção ao trabalho de Dany Laferrière, como escritor americano que defende uma literatura mundial, mas que detém certas tradições referentes à cultura da sua pátria materna. Focamo-nos especificamente em Pays sans

chapeau (1997). Partimos do pressuposto que o autor teve como finalidade propor reflexões

acerca do imaginário cultural haitiano, com a intenção de trabalhar e problematizar uma identidade espiritual ancestral de seu país (KWATERKO, 2002), fazendo uso das métricas dos gêneros literários Fantástico e Maravilhoso. Assim, objetivamos compreender as funções estéticas desses gêneros em paralelo as discussões do imaginário. Inicialmente contextualizamos o autor Dany Laferrière, seu percurso pessoal e profissional, e sua escrita pós-moderna. Apresentamos parte de suas produções, com a intenção de construir o trajeto do narrador-personagem Vieux Os e evidenciar o uso frequente do insólito nas narrativas que possuem conexão com nosso corpus. Posteriormente, procuramos estabelecer uma definição de Imaginário, nas ideias de Durand (1989), Laplantine e Trindade (1997). Analisamos as imagens do Zumbi e os mitologemas presentes na obra. Por último, nos concentramos nos debates acerca dos gêneros Literários Fantástico, Fantástico-Maravilhoso, Fantástico-Estranho e Realismo Maravilhoso, nos apoiando em Todorov (2013; 2017), Roas (2014) e Chiampi (2015). Os resultados de nossa pesquisa demonstram que as hesitações fantásticas são primordiais para o estabelecimento dos subgêneros do Fantástico e para a adesão do Realismo Maravilhoso colabora para uma discussão sociocultural do imaginário.

Palavras-Chave: Dany Laferrière, Literatura Quebequense Haitiana, Fantástico e Realismo Maravilhoso, Imaginário.

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ABSTRACT

The current investigation proposal directs attention to Dany Laferrière‟s work as an American author who defends a worldwide literature, but who still holds certain traditions related to the culture of his mother country. Pays san chapeau (1997) was specifically focused. It was assumed that the author had as a goal to propose reflection on the Haitian cultural imaginary, intending to work and question an ancestral spiritual attitude of his country (KWATERKO, 2002), utilizing metrics of the Fantastic and Marvellous literary genre. Thus, we seek to understand the aesthetical functions of these genres in parallel to the discussions on the imaginary. Initially, Dany Laferrière‟s professional and personal path was contextualized, and his post-modern writing. Part of his production was presented, intending on constructing the trajectory of the narrator-character Vieux Os and emphasize the frequent use of the uncanny on the narratives which have connexion with our corpus. Afterwards, we pursued to establish a definition of Imaginary, we took support on the ideas of Durand (1989), Laplantine and Trindade (1997). The images of Zumbi and the mythologems present in the work were analysed. Lastly, we focused on the debates regarding the Fantastic, Fantastic-Marvellous, Fantastic-Uncanny and Marvellous Realism literary genres, based on Todorov (2013; 2017), Roas (2014) and Chiampi (2015). The results of our research demonstrate that the fantastic hesitations are essential to the establishment of the Fantastic and Marvellous Realism subgenre, the presence of the latter collaborates to a sociocultural discussion of the imaginary. Key Words: Dany Laferrière, Haitian Quebecker Literature, Fantastic and Marvellous Realism, Imaginary.

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RÉSUMÉ

Dans ce travail de recherche nous avons comme objet d‟étude l‟oeuvre de Dany Laferrière, écrivain américain mais d‟appartenance littéraire mondiale, bien qu‟il garde certaines traces de la tradition littéraire et culturelle de son pays natal, le Haïti. Pour ce faire, nous délimitons notre corpus plus particulièrement sur son roman Pays sans chapeau (1997). Nous émettons l‟hypothèse que cet auteur s‟appui sur l‟imaginaire culturel haïtien, ayant comme but de faire réfléchir sur une identité spirituelle ancestrale de sa patrie d‟origine, s‟appuyant sur les genres littéraires fantastiques et merveilleux, fruits de son expérience individuelle et collective au sein de la communauté haïtienne. Nous avons comme objectif de comprendre les fonctions esthétiques de ces genres mis en parallèle avec celles de l‟imaginaire culturel à la base de son ouvrage Pays sans chapeau. Dans ce travail de Mémoire de troisième cycle, nous situons tout d‟abord l'auteur Dany Laferrière traçant son parcours personnel et professionnel aussi bien que son écriture postmoderne. Ensuite nous tâchons de présenter une partie de sa production littéraire, avec l'intention de construire le chemin du narrateur-personnage Vieux Os ainsi que l'usage fréquent de l'insolite dans les récits qui ont rapport avec notre corpus. Pour, après, essayer d‟établir une définition de l'imaginaire, nous appuyant sur des idées de Durand (1989), Laplantine et Trindade (1997). Nous analysons aussi les images de Zumbi et les mythologèmes présents dans l'oeuvre analysée. Enfin, nous poursuivons cette analyse ciblant les discussions sur les genres littéraires Fantastiques, merveilleux, Fantastique-Étrange et le Réalisme Merveilleux, dans les concepts de Todorov (2013; 2017), Roas (2014) et Chiampi (2015). Les résultats de nos recherches montrent que les hésitations fantastiques sont primordiales pour la mise en place des sous-genres du Fantastique et du Merveilleux, la présence de ce second contribuant à la discussion socio-culturelle de l'imaginaire.

Mots-clés: Dany Laferrière; Littérature Québécoise-haïtienne; Fantastique et Réalisme Merveilleux; Imaginaire.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

LA DÉRIVE DOUCE D’UN ENFANT DE PETIT-GOÂVE ... 15

1 Do Haiti ao Quebec ... 15

1.1. Dany Laferrière: o jornalista ... 15

1.2. Dany Laferrière: o escritor ... 22

2 Vieux Os no ciclo haitiano ... 27

2.1. A voz infantil ... 27

2.2. Um narrador adolescente ... 30

2.3. A maturidade: do exílio ao retorno ... 32

3 A tradição na pós-modernidade ... 39

Pays sans chapeau: do Indigénisme à Estética da degradação ... 41

PAYS RÉEL ... 53

1 Da imaginação ao imaginário ... 53

Por uma crítica literária do imaginário ... 59

2 Traços Latino-Americanos ... 65

3 A morte dos deuses haitianos ... 76

4 Os Surrealismos: entre a Europa e as Américas ... 87

PAYS RÉEL OU PAYS RÊVÉ?... 95

1 A narrativa Fantástica: características e procedimentos em Pays sans chapeau ... 95

Entre o figurativo e o literal ... 103

2 As hesitações alegóricas: a morte como metáfora ... 115

3 O inconsciente de Vieux Os: uma abertura ao Fantástico-Estranho ... 125

4 O “sonho” de Vieux Os ... 135

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 143

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INTRODUÇÃO

Nossas relações com a obra Pays sans chapeau1 (1997) se iniciaram há três anos, ainda na graduação, na disciplina de Literatura de Expressão Francesa, lecionada pela professora e doutora Karina Chianca. Foi na sala de aula da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) que surgiram nossos primeiros interesses – tanto afetivos quanto científicos - pela escrita de Dany Laferrière. Esse contato, enquanto discente, nos rendeu frutos abundantes e desde então procuramos conhecer essa produção. Embora nosso trabalho não seja a respeito da didática da literatura ou de seu ensino, é válido frisar a importância dessas aulas para o surgimento de investigações palpáveis, mesmo que embrionárias, para futuros pesquisadores da nossa área.

Trata-se de compreender que a sala de aula é também um lugar de encontros de culturas (CHIANCA, 2004) e que a natureza do texto literário fornece esse ambiente. Foi a partir desses primeiros incentivos que iniciamos nossas análises da obra com o Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado As hesitações fantásticas em Pays sans chapeau: uma leitura

sobre o aspecto cultural em Dany Laferrière (2016), o qual é aprofundado nessa exposição.

Desde nossos primeiros passos na jornada científica procuramos meios de explicar os fenômenos da escrita de Laferrière. O componente curricular mencionado anteriormente nos ajudou a enxergar e compreender as literaturas e seus contextos, nos aproximando de culturas tão semelhantes à nossa.

Ainda com relação às disciplinas que nos instigaram às descobertas dos fenômenos literários na escrita de Dany Laferrière, sinalizamos a importância do componente curricular Literatura e Tradição, lecionado pelo professor doutor José Luiz Ferreira, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL), pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). As discussões dos nossos encontros consistiam em examinar as teorias críticas da tradição e analisar os elementos tradicionais em poemas modernos brasileiros, conciliando teoria e prática na produção de novas críticas.

A partir da compreensão do que seria a tradição – seu caráter filosófico, estético e ideológico – percebemos a presença desta em poemas que, aparentemente, se encontravam codificados pelo estilo dos autores que a renovavam ou, por vezes, rompiam com ela, configurando uma nova tradição. Tendo em vista esta “codificação” do elemento tradicional dos poemas que analisávamos, direcionamos nossa atenção ao sobrenatural na literatura de

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Salientamos que a obra em questão foi pubicada em 1996, porém nossa proposta é analisar a edição datada de 1997. Esse romance foi reeditado três vezes, porém ainda não encontramos análises sobre estas reedições.

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Laferrière, numa busca por algum “resquìcio” da tradição literária; haitiana e/ou norte-americana.

Assim, com as produções de Dany Laferrière e um novo olhar acerca das tradições, fortificamos os laços de amizades entre vizinhos, por meio das similaridades históricas vividas em nosso continente. Moreira (2010), tradutora de Pays sans chapeau, salienta as fortes ligações entre os contextos históricos do Brasil e do Haiti. Ela explica que, assim como os vários países da América Latina, o Haiti compartilha conosco de diversos momentos e características, tais como: a miscigenação, o sincretismo, a ditadura e entre outros aspectos.

Entre tantas “vozes” de imigrantes no Quebec, a de Dany Laferrière se destacou e alcançou o mundo, sendo nomeado como um dos grandes autores na Academia Francesa de Letras. Nesse pequeno parágrafo, poderíamos nos questionar sobre o sucesso de suas produções. Como um escritor negro e de uma cultura tão distinta daquela do país anfitrião logrou o sucesso? Sua literatura é distinta das demais produzidas no Haiti? Seu texto é constituído de muitos paradoxos, grandes rupturas, profundas discussões sobre a identidade cultural americana e detém abundantes duplicidades. Não seria fácil de resolver estas questões e também não é nosso foco, mas essas reflexões fazem parte de nossas inquietações particulares e nos movimenta na busca de compreender os pronunciamentos de suas ficções.

Outro fator que colaborou para nosso envolvimento com o objeto de estudo e sua análise foi a escassez de material crítico voltado para a análise literária de expressão francesa. Em nossas investigações, destacam-se os seguintes eixos: “imaginário haitiano” e “literatura quebequense e haitiana”. Em uma busca pela plataforma Lattes/CNPq, na ferramenta

assuntos, utilizando as palavras-chaves supracitadas, não se encontram trabalhos ou autores

alinhados aos eixos temáticos. Assim também, durante nossa utilização da ferramenta online Google Acadêmico, podemos encontrar poucos artigos e trabalhos que versam sobre os temas “Haiti e identidade”, “estética literária e imaginário haitiano”, “representações do Haiti” e “literatura da diáspora”.

Portanto, é evidente a carência de teóricos e textos críticos que trabalhem tanto a literatura quebequense, quanto a literatura haitiana. Nesse sentido, com o desenvolvimento de nossa pesquisa, pretendemos também fortalecer os estudos críticos acerca da literatura quebequense-haitiana, além de contribuir para o progresso dos estudos da literatura de expressão francesa no Brasil e no Mundo, em uma área de estudo que leve em consideração a representatividade cultural presente em nosso corpus.

Nessa perspectiva, a Literatura Comparada também é reconhecida por seu caráter polìtico, que por vezes “contribui para dissipar o clima de incompreensão e desentendimento

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entre povos” (JEUNE, 1994, p. 224). Isto é, uma área que viabiliza, cada vez mais, a aproximação entre as ciências e os povos, devido às demandas que seu objeto contém em sua natureza, sobretudo em seu espírito humanístico. Assim, essa área de estudo nos permite uma experiência inovadora com nosso texto, cujo teor é propício para uma análise estética e cultural do imaginário.

Pays sans chapeau é uma obra escrita por um jornalista haitiano, que enfrentou o

exílio político e se consagrou como autor no Quebec. Em suas primeiras produções, Laferrière não transparecia tanto o seu país natal, porém ele tem mostrado suas raízes ao Quebec-Canadá. Essa composição, em questão, se destaca pela abundância de elementos tradicionais da cultura materna do nosso autor. A referida narrativa reúne as histórias de um escritor expatriado haitiano, Vieux Os2, que retorna ao país com o propósito de compor uma nova obra prima. No entanto, o romance é mergulhado em uma atmosfera sobrenatural que anuncia a temática da morte com a aventura do personagem-narrador no além. O recém-chegado explora o mundo dos deuses do vodu e conversa pessoalmente com eles. Os fatores culturais e religiosos movem a narrativa e nos colocam frente a ancestralidade haitiana, mas não é algo tão simples de compreender.

Acreditamos que, em tal produção escrita, o autor teve por finalidade propor reflexões acerca do imaginário haitiano, com a intenção de indagar sobre uma identidade espiritual. Sustentamos a hipótese que a propensão desta narrativa aos gêneros Fantástico, Fantástico-Maravilhoso, Estranho e Realismo Maravilhoso – trabalhados na visão de Todorov (2013; 2017), Roas (2014) e Chiampi (2015) - é uma tentativa de negociação entre a criação estética e o mundo social. Ou seja, defendemos que por meio da exploração desses gêneros literários o autor consegue projetar o imaginário (DURAND, 1989) de um povo e, concomitantemente, problematizá-lo em sua obra. Tendo em vista esta hipótese, o presente estudo objetiva compreender e analisar o imaginário haitiano de Dany Laferrière, como escritor nascido no Haiti e residente no Quebec (Canada), na sua narrativa Pays sans chapeau, bem como promover debate crítico a respeito das diferenças e relações dos gêneros Fantástico e seus variantes, observando as funções estéticas e sociais dos mesmos para o referido romance.

Em relação à estrutura organizacional, no primeiro capítulo de nossa pesquisa, procuraremos expor sobre a vida do autor, levando em consideração os traços autobiográficos

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De acordo com Moreira (2011), Vieux Os é uma expressão haitiana para designar uma pessoa que mantém o hábito de acordar muito cedo. Esse codinome do narrador-personagem foi traduzido de forma literal, na versão brasileira da narrativa. Sendo assim, ficou como: Velhos Ossos. Apesar dessa proposta, optamos em manter o nome do personagem em língua francesa, sempre que se tratar de nossas análises da obra. Em caso de citação direta da versão em português, manteremos a tradução de Moreira (2011).

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ficcionalizados em suas obras, na intenção de compreender seu percurso profissional e constatar a temática da ditadura em seu projeto autoficcional. Buscaremos apresentar o ciclo haitiano, segundo a história do narrador-personagem Vieux Os, a fim de identificar as conexões entre nosso objeto de estudo e essas narrativas. Também discutiremos sobre alguns movimentos literários haitianos e momentos históricos que antecedem o autor Laferrière, com o propósito de interpretar os aspectos tradicionais e as rupturas em nosso objeto de estudo.

Já no segundo capítulo desse trabalho, discorreremos sobre a concepção de imaginário (DURAND, 1989; LAPLANTINE & TRINDADE, 1997), visando uma conceituação psicossocial e antropológica, a fim de compreender as construções imagéticas das manifestações culturais de um povo. A partir desse conceito discutiremos sobre como ocorre a análise do imaginário na literatura, pelo viés da crítica Estruturalista, com a finalidade de entender as necessidades dos estudos analíticos pioneiros no campo mitológico e narratológico.

Em seguida, desenvolveremos uma leitura que viabiliza o diálogo entre o referente literário, a obra, e o extraliterário, as manifestações imaginárias coletivas, como uma possibilidade para as análises e interpretações do sobrenatural em nossa narrativa. Nesse mesmo raciocínio, discutiremos sobre as imagens dos deuses do panteão Vodu, presentes no romance, e iremos contrapô-las à narrativa mítica dos estudos religiosos e antropológicos, visando à cosmogonia da religião de matriz africana. Ao longo de nosso trajeto, indicaremos ainda as características que aproximam nosso objeto de estudo das demais produções literárias americanas, sobretudo as possíveis influências do movimento artístico Surrealista no referido contexto.

Por conseguinte, em nosso terceiro capítulo, introduziremos os conceitos de Todorov (2013; 2017) acerca do Fantástico e da Hesitação Fantástica, demonstrando a constância dessa última na narrativa, com recortes nas reflexões e reações do narrador-personagem, durante sua investigação acerca do exército zumbi. Subsequentemente, mapearemos os eventos sobrenaturais conforme as características que solicitam as variantes do Fantástico, sendo elas: Fantástico-Maravilhoso e o Fantástico-Estranho. Por último, destacaremos o capítulo homônimo à obra em questão e o analisaremos por meio das métricas de Chiampi (2015), com o Realismo Maravilhoso, na tentativa de capturar a essência do fenômeno que ocorre com Vieux Os em seu trânsito entre o mundo dos vivos e dos mortos.

Nossa pesquisa se ancora na abordagem qualitativa e de caráter bibliográfico, visto que se alinha à noção da realidade que se constrói na literatura quebequense-haitiana e na busca de material bibliográfico crítico, assim como o próprio objeto de estudo. Realizar-se-ão

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análises literárias por meio de um estudo de aspecto exploratório, devido à escolha de trabalhar com o imaginário haitiano. Portanto, percorreremos boa parcela do nosso corpus. Vale ressaltar que optamos por analisar o livro Pays sans chapeau em língua francesa, cotejando sua tradução editada no Brasil por Heloisa Moreira, sendo produto de sua dissertação de Mestrado, na Universidade de São Paulo - USP, defendida em 2006.

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LA DÉRIVE DOUCE D’UN ENFANT DE PETIT-GOÂVE3

O primeiro capítulo deste trabalho tem como proposta apresentar o autor Dany Laferrière, expondo alguns momentos de sua biografia, com destaques em sua trajetória intelectual enquanto escritor. Discutiremos sobre parte de sua produção literária, aproximando-a do nosso objeto de estudo, o romance Pays sans chapeau, por meio da discussão sobre o conceito de tradição, visando também compreender os principais movimentos literários haitianos que irrompem na referida narrativa.

1 Do Haiti ao Quebec

1.1. Dany Laferrière: o jornalista

As dez primeiras obras publicadas de Dany Laferrière, nomeadas de Autobiographie

Américaine, contém forte teor autobiográfico. Elas se dividem em dois polos: o ciclo

norte-americano e o ciclo haitiano. Estas publicações não seguem uma cronologia que corresponde aos acontecimentos de sua vida; trata-se na verdade de uma espécie de quebra-cabeça que funde ficção e realidade. Em sua entrevista à Revista Brasileira do Caribe (2008), ele afirmou que estes dez romances surgiram de suas histórias íntimas e que não as escreveu obedecendo a uma ordem cronológica por pensar que seria tedioso. Na ocasião, ele ainda revelou que decidiu construir sua produção desse modo por causa da sua própria forma de lembrar os fatos que viveu.

Até o presente momento, encontramos poucos trabalhos que se propõem a estudar o aspecto autobiográfico nas obras do autor, mas percebemos que existem posicionamentos consistentes para defender a possìvel inclinação à autoficção na escrita de Laferrière, como é o caso dos estudos de Figueiredo (2007). A estudiosa usa a classificação de Doubrovsky; a

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O título do presente capítulo faz mensão ao documentário dirigido e roteirizado por Pedro Ruiz em parceria com o autor Dany Laferrière, que veio ao ar em 2009 nos cinemas do Quebec (Canadá). Trata-se de uma biografia cinematográfica que aborda com vivacidade os olhares de Laferrière sobre seu próprio percurso intelectual e pessoal, em quase todas as cidades por onde o escritor passou. Não nos baseamos neste material para a elaboração e organização desta primeira parte do nosso estudo. No entanto, decidimos homenagear esse trabalho imagético, em específico. Esta é uma obra de cunho biográfico do haitiano-quebequense e ela nos permite uma experiência mais prática aos pronunciamentos que o autor exprime sobre si e sua pátria-mãe.

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autofiction, para analisar os romances Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer4

(2010) e Cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une arme ou un fruit? (2013). Conforme a autora destaca, ao dissertar sobre o termo de Doubrovsky, a autoficção seria uma modalidade pós-moderna da autobiografia, a qual é adotada pelo autor haitiano-quebequense. Trata-se de uma forma de escrita que permite o compartilhamento das obsessões do autor com seu público, garantindo uma ficcionalização não só dos aspectos autobiográficos, como também de fatos históricos. Ela disserta que, na verdade, Laferrière faz uso da autoficção para falar sobre sua história pessoal, já que o gênero permite “[...] recortar a história em fases diferentes, dando uma intensidade narrativa própria do romance” (FIGUEIREDO, 2007, p. 59).

Entretanto, observamos que, ao analisar as obras de Laferrière, Figueiredo (2007) não leva em consideração a temática da ditadura. Ela destaca a insistência dos seguintes temas: clichés sexuais e raciais, exìlio polìtico e problemática imigrante – esses dois últimos se equivalem –, como composição do rol das obsessões do autor haitiano-quebequense. O trabalho desta estudiosa nos faz concluir que a adesão da autoficção em Laferrière se propõe a uma autorrecriação do seu universo ficcional, como uma espécie de “[...] desdobramento narcìsico que permite ao sujeito inventar para si um duplo” (FIGUEIREDO, 2007, p. 81).

Deste modo, o autor cria para si um personagem, compartilhando com o leitor caracterìsticas de sua personalidade e fatos de sua vida, tais como: nomes de pessoas que pertencem à sua famìlia e nomes do seu ciclo de amigos, fases de sua vida como a infância, a profissão, os sentimentos de não pertencimento do exilado, entre outros aspectos.

Não temos a intenção de problematizar a respeito das diferenças entre os gêneros, autobiografia e autoficção, pois este trabalho já foi feito por Figueiredo (2007). Todavia, pretendemos articular vida e obra do autor intencionando observar os aspectos autobiográficos ficcionalizados nas obras que compõem a Autobiographie Américaine, especificamente aquelas que possuem o enfoque na temática da ditadura haitiana e em seu exìlio polìtico, posto que esta questão não foi explorada profundamente, até agora.

Apesar da escassez de materiais documentais oficiais sobre a vida do autor Dany Laferrière, constatamos que há ferramentas importantes que podem nos auxiliar na presente exposição sobre a vida dele. Assim sendo, utilizaremos os paratextos, ou seja, os anexos das

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Essa obra foi traduzida por Heloísa Moreira sob o título: Como fazer amor com um negro sem se cançar, pela editora 34.

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edições dos livros digitais5 do referido escritor, bem como os dados disponíveis no site da

Académie Française6. Nessa perspectiva, buscaremos aqui apresentar este autor, pouco conhecido no Brasil, extraindo os traços autobiográficos do nosso corpus: a narrativa Pays

sans chapeau e de suas outras obras.

Windsor Klébert Laferrière nasceu em Porto Prìncipe-Haiti, em 1953, durante a ditadura de Magloire. Filho de Marie Nelson, que era servidora pública, e de Windsor Klébert Laferrière, o qual foi um jornalista engajado e grande intelectual, de quem ele herdou o nome, o ofìcio e o exìlio polìtico. Em boa parte de suas obras, a personagem Marie, mãe do narrador-personagem, representa a própria mãe do autor. Elas compartilham o mesmo nome e possuem a mesma ocupação, ambas são servidoras públicas.

O autor não se satisfaz em apenas criar uma personagem e referenciá-la a uma pessoa de sua famìlia, estabelecendo uma confusão entre ficção e vida, como consegue construir uma intertextualidade por meio da personagem que hora é apenas mencionada em alguns de seus romances, como é o caso de L’Odeur du café (2016), e hora é parte integrante da narrativa, como encontram-se nos romances Le Cri des oiseaux fous (2015) e Pays sans chapeau.

Dany Laferrière, como é conhecido hoje, conviveu pouco tempo com seu pai, que experimentou a expatriação durante a era Duvalier7, no ano de 1959, momento que é

mencionado passageiramente na narrativa Pays sans chapeau. Esta obra direciona-se ao retorno ao Haiti do narrador-personagem Vieux Os, que compartilha nitidamente de algumas características com seu autor, tais como: o nome das mães, as profissões de jornalista e escritor, os exílios políticos e a perseguição por parte dos ditadores haitianos. Este narrador-personagem, ao refletir sobre suas escolhas profissionais, revela as consequências que ele enfrentou por ter exercido seu ofìcio de jornalista em um paìs gerido pelo sistema ditatorial.

No enredo, a figura do pai é apenas rememorada, como alguém que também compartilha de um mesmo destino: “Com dezenove anos, virei jornalista em plena ditadura Duvalier. Meu pai, também jornalista, tinha sido expulso do país por François Duvalier. O

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A coleção de livros digitais de Dany Laferrière está disponível gratuitamente na plataforma de empréstimos da

Bibliothèque des amériques. Este site é uma iniciativa do Centre de la Francophonie des Amériques.

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Como não há nome do autor e data do texto biográfico sobre o autor Dany Laferrière no site da Academia Francesa de Letras, e não havendo ainda uma regra na ABNT a respeito deste tipo de caso, optamos por fazer referência sempre ao nome da academia em francês. Manteremos o seguinte padrão: no caso de citação direta será em maiúsculo, e em itálico quando se tratar da citação indireta.

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Dois ditadores marcaram a história política haitiana, responsáveis pelo que hoje chamamos de dinastia Duvalier (1957-1986). Fançois Duvalier, conhecido pela população como Papa Doc, foi um presidente eleito em 1957. Após agradar a política internacional controlando as revoltas que aconteciam no país por causa da revolução cubana que “perturbava” as autoridades do Caribe, ele se nomeou presidente vitalício. Antes de sua morte conseguiu legalizar uma lei que nomeava seu filho, Jean-Claude Duvalier ou Baby Doc, como herdeiro da sua posição presidencial (GRONDIN, 1985).

(19)

filho dele Jean-Claude, me empurrou ao exìlio. Pai e filho, presidentes. Pai e filho exilados” 8 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 121).

É possível observarmos, na obra, a ausência do pai de Vieux Os como um esboço da situação vivida pelo filho Dany Laferrière. Contudo, Miraglia (2011), ao comparar as produções Pays sans chapeau (1996) e L’Énigme du retour (2009), revela que o autor haitiano-quebequense insiste na imagem de uma ausência do pai e da avó do seu narrador com o propósito de garantir a temática da morte.

Ademais, em Le Cri des oiseaux fous (2015), que foi publicado no ano de 2000, encontramos uma conexão entre a citação acima, que destacamos a respeito do exílio do pai e filho, e uma passagem com o mesmo conteúdo. Neste romance, Vieux Os narra seus últimos dias no Haiti, antes dele partir para as terras frias de Montréal. Desta vez ele apresenta uma divagação a respeito das consequências de sua partida:

Os homens da casa partem em exílio antes dos trinta para não morrer na prisão. As mulheres ficam. Minha mãe foi apunhalada duas vezes em vinte anos. Papa Doc caçou meu pai do país. Baby Doc me caça, por sua vez. Pai e filho, presidentes. Pai e filho, exilados 9 (LAFERRIÈRE, 2015, p.59). O episódio mencionado acima se encontra no contexto de despedida entre Marie e Vieux Os, intitulada de L’adieu. (16h 18)10. Há um contexto melancólico e triste em um

diálogo entre a mãe preocupada e seu filho que é forçado a deixar tudo para trás. Neste momento, ao refletir sobre seu exìlio, o narrador-personagem relata a dor de sua mãe. Em contraponto, na citação de Pays sans chapeau, o narrador-personagem desenvolve seu discurso a respeito da labuta do ofìcio de jornalista, tanto para si mesmo quanto para seu pai. Ou seja, em Le Cri des oiseaux fous (2015), o olhar do narrador-personagem repousa sobre o significado do exìlio para a sua mãe, para as “mulheres” que ficam e perdem o contato com seus filhos e maridos, enquanto em Pays sans chapeau, ele pondera sobre as consequências de sua própria escolha ao imitar seu pai.

Destarte, a infância do pequeno Laferrière se passou com seus avós, Amélie Jean-Marie e Daniel Nelson, na cidade de Petit-Goâve. Ele foi enviado aos cuidados de seus avós

8

“À diz-neuf ans, je devenais journaliste en pleine dictadure des Duvalier. Mon père lui aussi journaliste, s‟était fait expulser du pays par François Duvalier. Son fils Jean-Claude me poussera à l‟exil. Père et fils, présidents. Père et fils, exilés” (LAFERRIÈRE, 1997, pp. 149-150).

9

“Les hommes de sa Maison partent en exil avant la trentaine pour ne pas mourir en prison. Les femmes restent. Ma mère a été poignardée deux fois en vingt ans. Papa Doc a chassé mon père du pays. Baby Doc me chasse à son tour. Père et fils, présidents. Père et Fils, exilés.” (LAFERRIÈRE, 2015, p.59)

10

Os subtítulos da obra Le Cri des oiseaux fous (2015) possuem uma marcação temporal, como se fosse um registro do tempo que ainda resta ao narrador-personagem, que vivencia o exílio político.

(20)

no ano de 1957. Após sete anos de convivência com os parentes, ele teve que ser enviado de volta à mãe, por causa de um surto de malária que ocorreu na cidade. O autor não fala muito sobre esta fase de sua vida, embora dois de seus romances estejam dedicados à figura infantil de seu narrador-personagem. L’Odeur du café (2016) e Le Charme des après-midi sans fin (2016), a primeira publicada antes de Pays sans chapeau e a segunda depois, contendo todas as travessuras de Vieux Os, sua relação com a avó, que é chamada de Ba11, e seu amor por Vava; uma garotinha que mora próximo de sua prima. Laferrière empresta o apelido de sua avó à personagem secundária dessas duas produções.

Essas obras são interligadas e contam com a narração do narrador-personagem enquanto criança, a qual descreve a ditadura militar em seu olhar infantil. Embora este Vieux Os não saiba o que seja a ditadura, ele descreve situações vividas na cidade de Petit-Goâve que permitem ao leitor identificar as características do contexto hostil do início do absolutismo Duvalier. A exemplo de Le Charme des après-midi sans fin (2016), a ditadura se apresenta de forma mais clara: por meio do relato da criança que percebe os desaparecimentos de alguns homens da cidade, ou por causa dos momentos em que há toques de recolher ao meio dia, e ainda em virtude das situações vividas pela personagem Ba, ao lidar com um homem que surge quase morto e coberto de sangue em frente à sua casa.

Outro momento que podemos destacar desta narrativa é quando, no fim do romance, o garoto deve deixar a cidade dos avós e viver com a mãe, em Porto Príncipe, devido a uma possível ameaça. Através da conversa entre a avó e um amigo dela, percebemos esta situação:

- O que vai ser da gente, meu filho? Aqui estou eu obrigada a fazer meu neto partir. Antigamente uma cidade tão calma... Parece, Nèg-Feuilles, que isso que a gente vive atualmente não é nada comparado ao que está para vir. Vi, com meus próprios olhos, criminosos ameaçarem gente respeitável com armas mortíferas. Este mundo está de pernas para o ar. O sangue vai escorrer, tenho certeza. Não estou preocupada12 (LAFERRIÈRE, 2016, p. 196, Tradução nossa).

Por causa do diálogo entre a avó e seu amigo, conseguimos compreender que a partida do garoto se deve ao perigo da ditadura, a qual se instala na cidade. O relato da avó, ao

11

Moreira (2006) traduziu o nome da avó de Vieux Os como Ba, ao invés de manter Da de acordo com a versão em língua francesa. Uma vez que nos utilizamos de sua tradução, ao que concerne a País sem chapéu (2011), manteremos o padrão Ba, para evitar confusões durante nossa exposição. Mas reafirmamos que nosso objeto de estudo é a obra Pays sans chapeau (1997), em língua francesa.

12

“- Que va-t-on devenir, mon fils? Me voilà obligée de faire partir mon petit-fils. Une ville autrefois si calme... Il paraît, Nèg-Feuilles, que ce qu‟on vit actuellement n‟est rien à coté de ce qui se prépare. J‟ai vu de mes propres yeux des vouyous menacer avec des armes meurtrières des gens respectables. C‟est le monde renversé. Le sang va couler, j‟en suis sûre. Je ne suis pas inquiète. [...]” (LAFERRIÈRE, 2016, p. 196)

(21)

enfatizar a presença das “armas mortìferas” nos faz crer que Laferrière, mais uma vez, ficcionaliza um fato de sua vida e o liga ao contexto ditatorial. Um surto de malária na infância do autor se transforma em mais um pretexto para trazer à tona a imagem de um país hostil, o qual enfrenta consecutivamente três ditaduras. A obsessão da temática encontra espaço em todas as fases da vida deste autor, inclusive em sua infância.

Em sua obra Le Cri des oiseaux fous (2015), o narrador adulto afirma que a época em que viveu com sua avó, na verdade, foi a primeira vez que experimentou o exìlio: “Conheci, então, meu primeiro exílio com cinco anos de idade. Em Petit-Goâve, na casa da minha avó Ba” 13 (LAFERRIÈRE, 2015, p. 50, Tradução nossa). O trecho citado reafirma a insistência da temática da ditadura na fase infantil do narrador-personagem das dez obras de Laferrière. O traço autobiográfico de Laferrière é contaminado pela ditadura, através do diálogo entre o narrador enquanto criança em L’odeur du café (2016) e Le Charme des après-midi sans fin (2016), assim como na posição do adulto que foge mais uma vez dos ditadores em Le Cri des

oiseaux fous (2015).

Já em Pays sans chapeau, Ba está presente de uma forma diferente. Ela surge como uma espécie de rememoração de alguém que perdeu um ente querido. O narrador recém-chegado ao Haiti menciona sua avó em vários momentos, porém com uma espécie de melancolia e saudosismo, como é o exemplo do episódio em que ele a rememora ao beber uma xícara de café:

Primeiro o cheiro. O cheiro do café de Palmes. O melhor café do mundo, segundo a minha avó. Ba passou toda a sua vida bebendo esse café. Aproximo a xícara fumegante do meu nariz. Toda a minha infância me sobe à cabeça. [...] Jogo três gotas de café no chão para saudar Ba.14 (LAFERIÈRE, 2011, p. 20)

O cheiro do café que faz Vieux Os lembrar da infância e de sua avó, nos revelando uma referência a Marcel Proust (1871-1922) e suas Madeleines, dos volumes de Em Busca do

Tempo Perdido (1913-1927). Quando o personagem principal proustiano é tomado pelas

lembranças de seu passado por meio dos sabores e odores deste pequeno biscoito francês. Entretanto a diferença deste empréstimo, em Dany Laferrière, encontra-se na autorreferência, produzida no trecho destacado anteriormente. “L‟odeur du café des Palmes”

13

“J‟ai donc connu mon premier exil à l‟âge de cinq ans. À Petit-Goâve, chez ma grand-mère Da.” (LAFERRIÈRE, 2015, p. 50).

14

“D‟abord l‟odeur. L‟odeur du café des Palmes. Le meilleur café au monde, selon ma grand-mère. Da a passé toute sa vie à boire ce café. J‟approche la tasse fumante de mon nez. Toute mon enfance me monte à la tête. [...] Je jette trois gouttes de café par terre pour saluer Da.” (LAFERIÈRE, 1997, p. 21)

(22)

aponta, na verdade, para a sua obra L’odeur du café (2016), na qual encontramos uma avó dedicada, que faz o papel de mãe, e uma apaixonada pelo gosto e perfume do café: “O melhor café, segundo Ba, é o café da região de Palmes. Em todo caso, é isso que ela bebe sempre. [...] É o café de Palmes que Ba prefere, sobretudo por causa de seu cheiro. O cheiro do café de Palmes. Ba fecha os olhos” 15 (LAFERRIÈRE, 2015, p. 18).

Portanto, a lembrança de Vieux Os a respeito de sua avó, em Pays sans chapeau, é a proposta de rememoração de uma personagem. Através de um ritual de saudação aos mortos, costume cultural haitiano, ele anuncia a morte da avó Ba, que deixa de habitar o plano físico e passa a ser um espírito. Ela surge como um fantasma que habita o seu antigo quarto na casa das filhas, Marie e Renée. A mãe de Vieux Os lhe relata que, certa vez, esqueceu-se de lhe servir seu café e ela se rebelou quase arrancando a taça de sua mão. Sendo assim, a personagem Ba deixa de habitar o plano físico do universo ficcional de Laferrière, para viver no mundo dos mortos, ou seja, no país sem chapéu16. A obra também pode ser compreendida como uma homenagem à avó do autor, pois foi publicada em 1996, no ano de sua morte.

Ademais, em 1972, Dany Laferrière se formou no Collège Canado-Haïtien, onde estudou a língua francesa. Iniciou-se no jornalismo por meio da crítica artística, e aos dezoito anos de idade escrevia para a coluna de pintura do jornal haitiano Le nouvelliste. Ele frequentou as galerias de artistas haitianos célebres representantes da arte naïf17, como Rigaud Bênoit (1911-1986), Jasmin Joseph (1924-2005) e Robert Saint-Brice (1983-1977). No ano seguinte, desenvolveu trabalhos na Radio Haïti Inter e no L’hebdomadaire politico-culturel

Le Petit Samedi soir. Seu conhecimento sobre arte costuma aparecer em todas as suas dez

obras, posto que frequentemente encontramos alusões a pintores e quadros naïf haitianos. Em

Pays sans chapeau, por exemplo, seu narrador-personagem até se compara com um pintor

naïf (LAFERRIÈRE, 1997, p. 11).

Devido à morte de seu amigo íntimo e colega de trabalho Gasner Raymonde (1953-1976), em 1976, durante a ditadura de “Baby Doc” Duvalier 18

(1971-1986), Laferrière deixou seu país de origem para se refugiar no Canadá, na cidade de Montréal, fazendo parte da

15

“Le meilleur café, d‟après Da, est le café de la région des Palmes. En tout cas, c‟est ce qu‟elle boit toujours. [...] C‟est le café des Palmes que Da preférère, surtout à cause de son odeur. L‟odeur du café des Palmes. Da ferme les yeux.” (LAFERRIÈRE, 2015, p. 18)

16

Em Pays sans chapeau, Laferrière explica que esse título provém de um ditado popular haitiano que remete ao além. Segundo o autor, para o imaginário popular haitiano o além é um local onde não se usa chapéu, uma vez que ninguém nunca é enterrado com ele.

17

Arte Naïf ou arte “primitiva” recebe esse nome por ser considerada como uma expressão puramente instintiva, que não se enquadra nas produções acadêmicas ou na arte popular. Muitos pintores do movimento surrealista adotavam o estilo gráfico naïf, como é o caso de Joan Miró (FER; BATCHELOR & WOOD, 1998).

18

A Ditadura Duvalier teve início em 1957 com Françoi Duvalier (Papa Doc) e prolongou-se até 1986 com Jean-Claude Duvalier (Baby Doc) no poder.

(23)

segunda diáspora haitiana19. A morte de seu amigo, sua decisão de ir embora e todo o contexto político do país são relatados por Vieux Os em Le Cri des oiseaux fous (2015). Até mesmo os dois ambientes de trabalho do autor são mencionados neste livro. Esta é a única obra em que Laferrière aborda explicitamente a temática da ditadura. O narrador-personagem descreve as torturas praticadas na prisão de Fort-Dimanche, semelhantes àquelas de 1964, que eram praticadas durante a ditadura militar brasileira20. Vieux Os relata a presença cotidiana dos torturadores na cidade, os quais perambulavam sempre por Porto Príncipe. O narrador-personagem conta sobre o ambiente massacrante do sistema totalitário de Duvalier.

1.2. Dany Laferrière: o escritor

Apesar do contexto difícil vivido pelo autor, Laferrière explorou literaturas diversas. Segundo a Académie Française, em sua lista21 de leitura constam os seguintes autores: Ernest Hemingway (1899-1961), Henry Miller (1891-1980), Denis Diderot (1713-1784), Jun'ichirō Tanizaki (1886-1965), Witold Gombrowicz (1904-1969), Jorge Luis Borges (1899-1986), Alejo Carpentier (1904-1980), Marie Chauvet (1916-1973), Charles Bukowski (1920-1994), Mikhaïl Boulgakov (1891-1940), James Baldwin (1924-1987), Blaise Cendrars (1887-1961), Yukio Mishima (1925-1970), Gabriel García Márquez (1927-2014), Mario Vargas Llosa (1936-), J. D. Salinger (1919-2010), Günter Grass (1927-2015), Italo Calvino (1923-1985), Jacques Roumain (1907-1944), Réjean Ducharme (1941-) e Virginia Woolf (1882-1941).

Ao chegar ao país anfitrião, Laferrière exerceu atividades muito distantes das que costumava desempenhar no Haiti. Ele trabalhou em fábricas e morou no subúrbio de Montreal. Sua obra Chronique de la dérive Douce (2014) possui grande referência a respeito deste momento de sua vida. O narrador, Vieux22, conta sobre sua rotina e relações enquanto imigrante. Um operário trabalhador de uma grande fábrica, que enfrenta um dilema: se assumir como exilado ou permanecer como imigrante na cidade de Montréal. Ele narra sua jornada e modo de vida, suas relações sexuais com as mulheres e sua preferência por literatura

19

De acordo com Moreira (2006), a diáspora ocorreu a partir de 1960. Segundo ela, em resposta a ditadura Duvalier, os intelectuais que se opunham ao governo deixaram o país e encontraram refúgio na África, Estados Unidos, França e Quebec. Em sua tese, a tradutora faz um levantamento histórico a respeito desses autores e as suas contribuições para uma nova literatura haitiana.

20

Sobre as torturas praticadas durante a ditadura brasileira (1964-1985) indicamos como leitura o livro Torturas

e torturados (1996), de Márcio Moreira Alves. Trata-se de um relato detalhado de casos de tortura e das práticas

adotadas pelos torturadores brasileiros, durante a fase do sistema totalitário no Brasil. 21

Esta lista também se encontra em seu livro Comment Faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer (2010), que também foi mencionada nos estudos de Figueiredo (2007).

22

O nome do narrador-personagem Vieux Os possui diversas variações, nas obras de Dany Laferrière, tais como: Vieux Os, Vieux, vieux, Laferrière e entre outros.

(24)

clássica. Todas as dificuldades e prazeres encontrados em um país completamente diferente do seu, o Haiti, são evidenciados por este narrador-personagem, o qual decide se demitir e comprar uma máquina de escrever, uma Remingtong 22, com o propósito de se concretizar como escritor; este é o desfecho do romance.

Essa obra se aproxima, nitidamente, dos momentos vividos pelo autor. Segundo a

Académie Française, em certo momento de sua rotina, Laferrière também decidiu comprar

uma máquina de datilografar para alimentar seu sonho de ser um escritor, a mesma Remington 22 presente em várias de suas obras. Assim ele deixou as ocupações operárias de lado. Após esta compra, o autor ganha o público com a o seu primeiro romance, Comment

faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer23

(2010), em 1985. O que todos pensavam ser um manual, como o Kama sutra, na verdade era um romance que contava a história de Vieux e seu amigo Bouba. Este narrador-personagem relata sua tentativa de escrever seu primeiro romance de sucesso, como alguém que alcança seus objetivos por meio dos próprios esforços, mas que é rodeado de clichés raciais e preconceitos, até no âmbito sexual. Com esta publicação Dany Laferrière se tornou conhecido no mundo francófono, garantindo diversos prêmios durante sua carreira. Nesse período nasceu o escritor haitiano-quebequense.

Por causa do seu primeiro sucesso, ele foi convidado a compor a banca do jornal da

TV Quatre Saisons, apresentando a meteorologia. Com esta primeira experiência na televisão

a mídia quebequense descobriu o jornalista Laferrière. Mais tarde, foi convidado a fazer parte do quadro La Bande de six, na Radio-Canada, como cronista para a imprensa quebequense, e ainda retornou ao Haiti como colunista no diário para o jornal Le nouvelliste, para cobrir o fim da era Duvalier (1986) e da força paramilitar haitiana, os Tontons Macoutes.

Dividindo-se entre jornalista e autor, ele publicou, em 1987, Éroshima (1998), que dá continuidade à temática sobre os clichés sexuais das raças; o narrador discursa sobre o exotismo que o negro possui, na visão dos orientais. Nesse romance, o narrador-personagem mantém uma relação amorosa com uma fotógrafa famosa do meio jornalístico, de descendência oriental. Este casal mantém uma relação aberta e costuma ser cercado de amigos que se relacionam entre si, em orgias e momentos luxuriosos. Neste curto romance, Laferrière propõe a comparação entre o sexo e a morte. Em um texto anexado ao livro digital, o autor explica que a ideia do enredo da obra surgiu ao imaginar um casal no ato da relação sexual, em pleno orgasmo, durante a explosão da bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki.

23

Bem mais tarde, este livro foi adaptado para o cinema, por volta de 1989 e foi censurado pela mídia estadunidense, devido ao grande teor de racismo contido no filme.

(25)

Destarte, por volta de 1990, o autor decidiu deixar Montréal para se instalar em Miami, junto com a sua esposa e filhas. Sua temporada nesta cidade favoreceu a composição de mais oito obras. Entre 1985 e 2000, Laferrière finalizou este projeto, ao qual ele chamou de

Autobiographie Américaine. De forma cronológica, elaboramos uma lista24 com os tìtulos que

compõem a proposta do autor, segundo o ano de publicação, acompanhada das premiações que ele obteve com cada obra em seus respectivos anos, destacando-se a obra que constitui o nosso corpus de estudo:

1985- Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer

1987- Éroshima

1991- L’Odeur du café (Prix Carbet de la Caraïbe, em 1991)

1992- Le Goût des jeunes filles (Prix Edgar Lespérance, em 1993)

1993- Cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une arme ou un

fruit? (Prix RFO du livre, em 2002)

1994- Chronique de la derive douce

1996- Pays sans chapeau

1997- La Chair du maître

1997- Le Charme des après-midi sans fin

2000- Le Cri des oiseaux fous

Segundo a Académie Française, após esta fase da sua escrita, Laferrière retornou ao Quebec em 2000 e decidiu reescrever suas obras, construindo conexões entre elas, para assegurar seu projeto autobiográfico. Contudo, neste mesmo ano, com a publicação de Je suis

fatigué, o autor surge com uma obra inédita que se aproxima do gênero ensaio, e decide

iniciar uma nova fase na sua escrita, declarando o fim de sua autobiografia ficcional.

No período de 2004, ele publica duas obras: Comment conquérir l’Amérique en une

nuit, cuja temática é novamente o exílio, e Les Années 80 dans ma vieille ford, um livro de

crônicas sobre a vida de um escritor. Já no ano de 2006 ele trouxe a prelo o romance Vers le

Sud, com um texto erótico para adultos, e o conto Je suis fous de Vava, para crianças. Este

último, inspirado em sua obra L’odeur du café (2016).

24

A referida lista também foi adaptada a partir de outra composição de Moreira (2006). Em seu trabalho, ela enumera os títulos romanceiros de Dany Laferrière, de acordo com os anos de publicações das respectivas produções.

(26)

O autor demonstra-se extremamente perspicaz e publica em 2008 seu romance Je suis

un écrivain japonais. Esta narrativa conta a história de um célebre escritor negro, que da noite

para o dia tornou-se famoso no Japão. Mais uma vez, Laferrière consegue a empreitada de promover uma profunda reflexão sobre a questão racial.

No ano seguinte, ele continua com sua proposta de escrever para o público infantil e traz à tona uma nova obra: La fête des morts. Uma curta narrativa ilustrada que conta as aventuras do garotinho Vieux Os e suas descobertas sobre o mundo dos mortos. Ainda em 2009, o autor publica L’Énigme du retour (Prix Médicis em 2009 e Prix des libraires du Québec em 2010). Neste período ele foi homenageado com o documentário: La Derive douce d’un enfant de Petit Goâve, de Pedro Ruiz.

Em 2010, Laferrière publicou Tout bouge autor de moi, uma obra que versa sobre o terremoto que atingiu o Haiti neste mesmo ano. Após a tragédia, o autor retornou a Montréal e foi convidado para participar de uma conferência que lhe rendeu um texto publicado pela The

University of Alberta Press, intitulado Un art de vivre par temps de catastrophe. Esta

conferência lhe rendeu inspiração para duas publicações, uma em 2011, L’art presque perdu

de ne rien faire, e a outra em 2013, Journal d’un écrivain en pyjama.

Por volta de 2015, mais uma produção surge, Tout ce qu’on ne te dira pas, Mongo. Um romance sobre o encontro entre dois homens, o recém-chegado Mongo e um velho escritor morador de Montréal. Esses dois tentam desvendar a cidade e promovem uma leitura aguçada acerca das relações na sociedade desenvolvida da província quebequense, com uma experiência intercultural.

Em 2016, a editora Grasset publica a obra Mythologies Américaines, que reúne alguns dos títulos anteriores de Dany Laferrière, com base na seleção do próprio autor. Neste presente ano, o haitiano-quebequense fez uma grande surpresa a seu público. Ele produziu uma espécie de „roman dessiné‟, intitulado de Autoportrait de Paris avec chat. Trata-se de um romance, literalmente, desenhado por ele mesmo.

Laferrière ganhou vários prêmios, como o Grand prix Metropolis bleu de 2010, em virtude do conjunto de suas obras. Uma de suas grandes conquistas foi a entrada na Académie

Française, na qual assumiu a cadeira de Hector Bianciotti (1930-2012) e tornou-se um

imortal da literatura em língua francesa no ano de 2013.

Salientamos ainda que Laferrière possui experiência com a sétima arte. Em 1989, ocorreu a adaptação cinematográfica de seu primeiro romance, Comment faire l’amour avec

un nègre sans se fatiguer. Em 2004, o autor participou, como roteirista, da adaptação de seu

(27)

conquerir l’Amerique en une nuit, roteirizado e dirigido pelo próprio Laferrière. Já em 2005,

surgiu o filme Vers le sud, produzido e dirigido por Laurent Cantet em parceria com o autor, que tinha como proposta a adaptação das novelas que Laferrière publicava na revista Grasset. As conquistas de Laferrière, enquanto autor, colocam-nos frente a questões pertinentes a respeito de sua escrita. Foi por meio do país anfitrião, o Canadá, que ele encontrou a possibilidade de publicação, para assim tornar-se conhecido no mundo francófono, sendo traduzido em várias línguas.

Dany Laferrière não é um entusiasta da literatura da Negritude25, mas tem como proposta a problematização dos discursos raciais, dos preconceitos entre negros, da história do oprimido, da luta do imigrante, e promove diversas críticas ao sistema totalitário que governou o Haiti. Ele se recusa a tomar parte do discurso de exilado, como é o caso das literaturas propagandistas que se estabeleceram em diferentes continentes, durante a diáspora haitiana, segundo Kwaterko (2002).

Todavia, a vida política haitiana é uma resistência em seus textos, mas não como uma propaganda exacerbada de denúncias constantes. Seus narradores: Vieux Os, Vieux, Laferrière (FIGUEIREDO, 2007), possuem as características de um único narrador, em diferentes momentos de vida, que evolui na história, assim como o percurso do seu autor. Apesar de alguns trabalhos apresentarem as produções de Laferrière, no viés caribenho-antilhano, gostaríamos de destacar que sua escrita se aproxima cada vez mais de uma literatura mundial26, e que embora não exista uma exclusividade nacionalista em Dany Laferrière, há características do nacional haitiano presente em suas obras, sobretudo a respeito dos elementos culturais, existentes no ciclo Haitiano.

Procuraremos apresentar, no próximo tópico, este polo destacando exatamente estes elementos, com a intenção de compreender os arranjos de Pays sans chapeau, obra pertencente a este grupo. Destacamos também que não faremos um trabalho comparativo entre os dois polos que dividem a Autobiographie Américaine de Dany Laferrière, uma vez que nosso trabalho não pretende destacar a evolução estética do autor. Nosso interesse com esta exposição é compreender as possíveis ligações entre nosso objeto de estudo e as outras obras dele.

25

A negritude foi um movimento literário que surgiu na França com as revistas Légitime Défense e L’Étudiant

Noir. Esta literatura tinha como foco a consciência negra, num viés pan-africano. Quando se fala desta

manifestação literária o nome de Léopold Sédar Sanghor recebe um grande destaque, pois ele foi o escritor e pensador que revolucionou a escrita africana e fundou este movimento.

26

Já propomos, em outros trabalhos, a análise da literatura de Laferrière pelo viés da literatura mundial, como no artigo Pays sans chapeau (1997) de Dany Laferrière: uma escrita entre espaços culturais.

(28)

2 Vieux Os no ciclo haitiano

A divisão da Autobiographie Américaine27 de Dany Laferrière foi estipulada pelo próprio autor, após finalizar o seu projeto de reescrita das dez obras que contém seus traços autobiográficos ficcionalizados. Logo, ele decidiu que quatro de suas obras se dirigem ao polo norte-americano, enquanto as outras seis correspondem ao ciclo Haitiano. Este último será exposto aqui, segundo os eventos que conectam Pays sans chapeau às demais obras.

Nossa intenção é apresentar essas seis obras do referido autor, de modo que possamos contextualizar nosso objeto de estudo dentro deste grupo. Não pretendemos uma análise exaustiva de cada narrativa, mas expor as obras segundo os elementos religiosos e culturais haitianos, posto que Pays sans chapeau é o romance que mais explora esse viés. Ressaltamos que a sequência escolhida para a seguinte apresentação não corresponde à ordem de publicação dos romances. Pretendemos reconstituir as fases de Vieux Os, respeitando as seguintes etapas: Infância, Adolescência, Vida adulta (Exílio e Retorno).

2.1. A voz infantil

Um garotinho de dez anos de idade, que mora com sua avó, é o narrador de L’Odeur

du café (2016). Neste romance destacam-se as situações vividas por uma criança que convive

com adultos e passa muito tempo na varanda da casa dos avós maternos, na companhia de sua avó Ba e de seu cachorro Marquis. Vieux Os, seu nome secreto que foi designado assim por Ba, conta o seu cotidiano e suas pequenas aventuras na cidade de Petit-Goâve, assim como seus momentos de enfermidade, tal qual as febres que o faziam delirar corriqueiramente.

É comum encontrar relatos de Vieux Os a respeito de seus sonhos e medos, sobretudo ao que concernem as possíveis assombrações e seres sobrenaturais que habitam a casa da avó, ou até mesmo, histórias assustadoras que se passam na cidade. Um exemplo disto é a história que sua avó lhe conta. A senhora lhe diz que, certo dia, viu o espirito de um antigo conhecido, diante do espelho oval que ficava no salão de sua casa, local no qual o menino evitava transitar por medo do ambiente aparentemente assustador. O garotinho conta que Ba viu este ser quando a filha dela, Ninine, estava se penteando em frente ao espelho. A senhora diz ao garoto que a assombração queria violar sua filha, tomando o reflexo dela e colocando-o em uma garrafa, para assim torná-la escrava dele.

27

(29)

Em outros momentos da narrativa, o menino cede a narração à sua avó que lhe conta várias histórias de seu passado: conforme a vez em que confessou que sua casa foi construída sobre vários túmulos antigos. Não é apenas Ba que conta histórias à criança, mas todos os adultos que são próximos a casa. Essas histórias miraculosas ou, até mesmo, da rotina de uma cidade pequena ganham versões diferentes de acordo com a visão apresentada pelos personagens, e todos eles direcionam seus discursos aos ouvintes: Ba e Vieux Os, que pacientemente as analisam.

Além da presença do próprio narrador, a obra L’odeur du café (2016) possui ligações pertinentes com nosso objeto de estudo. Podemos destacar costumes da cultura haitiana presentes nas duas obras. Tomemos como exemplo a prática de saudar os mortos. Em ambas as narrativas encontram-se os relatos desta tradição, porém em L’Odeur du café (2016) é Ba quem a pratica:

Ba pega o copo d‟água e a joga três vezes no chão. Ba diz que devemos saudar os mortos.

Eu digo a Ba:

- Os mortos estão no cemitério.

Ba me olha e sorri. Para Ba, os mortos estão em toda parte. E desde que as pessoas morrem, deve haver mais mortos que vivos sobre a terra. [...]

- O verdadeiro cemitério está em toda parte 28 (LAFERRIÈRE, 2016, p. 85). Anteriormente, na exposição sobre o autor, destacamos uma passagem muito semelhante a esta, para exemplificar o modo como Vieux Os anuncia a morte de Ba. Na verdade, esta referência encontrada em Pays sans chapeau, além de estabelecer conexão com a citação acima, reafirma uma prática cultural que é um ensinamento passado para Vieux Os, ainda na infância.

Vale salientar que Ba é a personagem que demonstra vasto conhecimento cultural haitiano. L’Odeur du café (2016), obra dedicada a esta senhora, consequentemente reúne muitas práticas tradicionais da cultura popular do Haiti, tais como: a briga de galo, a figura da curandeira ou rezadeira que promove milagres, pronunciamentos sobre os deuses haitianos, Baron Samedi, Passilus e Érzulie.

28Da prend le gobelet d‟eau et jette l‟eau trois fois par terre. Da dit qu‟il faut saluer les morts. Je dis à Da:

– Les morts sont au cimetière.

Da me regarde et sourit. Pour Da, les morts sont partout. Et depuis le temps que les gens meurent, il doit y avoir plus de morts que de vivants sur la terre. [...]

(30)

Esta fase infantil possui continuação em Le Charme des après-midi sans fin (2016), mas este retratará o último ano de Vieux Os com sua avó, pois ele descobre que retornará à Porto Príncipe, para junto de sua mãe; fato que é revelado apenas no fim do romance. Vieux Os, aos onze anos de idade, conta novas histórias sobre sua vivência na cidade, e especialmente suas aventuras com os amigos Frantz e Rico e sua paixão por Vava.

A obra citada acima ainda é tomada por muitos eventos misteriosos e estranhos, que estabelecem um ambiente místico e ameaçador. Diversas situações acontecem com o narrador-personagem. Em um dia chuvoso, o grupo de amigos tenta se abrigar embaixo do telhado de Nozéa, personagem que aparentemente possui poderes místicos. A senhora diz ser noiva do Baron Samedi, o deus haitiano considerado o mestre dos cemitérios. Além de ver pessoas que já morreram, esta mulher faz previsões sobre o futuro dos garotos.

Ao pedir para ler a mão de cada um deles, acaba por concentrar-se enfaticamente em Frantz. Nozéa percebe que o amigo de Vieux Os é habitado por algum espírito. Ela invoca esse ser, pedindo-o que se revele no corpo do garoto. Em seguida, apresenta grande receio em ter lhe perturbado: “- Sim papai... Desculpe-me por ter lhe incomodado. Sim, sim, sim... Sim, papai” 29

(LAFERRIÈRE, 2016, p.76, Tradução nossa). Com este balbuciar e olhando fixamente para o garoto, Nózea assusta os amigos. Ela aproveita e também faz uma previsão sobre o narrador-personagem: “Pouco antes de se recostar, ela me lança um olhar de uma doçura insuportável. - Você viajará, repete ela, mas você virá morrer em Petit-Goâve” 30 (LAFERRIÈRE, 2016, p.77, Tradução nossa). Vieux Os desacredita em toda a conversa que se passou entre a velha e seus amigos, e assim que a chuva passa decide seguir seu passeio pela cidade.

Outro episódio intrigante na obra é quando o narrador-personagem se esconde em um cômodo da casa da sua avó para ouvir a conversa entre ela e uma amiga, Thérèse. A jovem noiva procura Ba para se aconselhar sobre a sua noite de núpcias que se aproxima. Ela revela que é virgem e que seu futuro marido não poderia saber disso, já que uma de suas amigas lhe disse que os homens haitianos não gostavam de mulheres inexperientes. Ba a questiona por causa de sua condição, posto que ela já teria sido companheira de outro homem. Desta maneira, a idosa pergunta como a moça se manteve virgem. A jovem revela algo insólito a respeito de sua relação com o primeiro homem de sua vida. Ele era casado com a deusa

29

“- Oui papa... Escuse-moi de t‟avoir dérangé. Oui, oui, oui... Oui, papa...” (LAFERRIÈRE, 2016, p.76) 30

“Juste avant de s‟allonger, elle me jette un regard d‟une douceur insoutenable.

Referências

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