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Como sabemos, a cidade de Bombardopolis é o alvo de acontecimentos sobrenaturais, em Pays sans chapeau. Os camponeses da cidadezinha demonstram ser superdesenvolvidos. A ausência de fome, consequência da pureza da língua créole, é uma das características que os colocam como superiores aos demais haitianos daquele universo ficcional. O sobrenatural desses humanos sugere a existência do gênero Maravilhoso na obra, constatado no tópico posterior. Em nosso objeto de estudo, percebemos que Laferrière faz o uso das hesitações fantásticas para transferir a narrativa ao âmago do gênero Maravilhoso, mecanismo comum às obras que adotam o Fantástico como gênero evanescente (TODOROV, 2013; 2017; ROAS, 2014). Todavia, há uma situação ainda a ser abordada: a probabilidade da existência do gênero Estranho em convivência com o Maravilhoso, em nosso corpus.

Todorov (2013; 2017) diz que as narrativas do Estranho reúnem acontecimentos que parecem ser sobrenaturais, mas que possuem uma explicação racional. As hesitações fantásticas funcionam como agentes do sobrenatural, insinuando a sua possível existência numa dada narrativa, porém essas dúvidas recebem uma explicação racional no fim da obra. O teórico divide o subgênero em dois eixos: Fantástico-Estranho e Estranho Puro. Nosso

interesse se volta para este primeiro. Segundo o estudioso, o Fantástico-Estranho é caracterizado pelo agrupamento de oposições em seu jogo narrativo. São elas: a) “real- imaginário”, em que nada aconteceu e tudo é fruto de uma imaginação desregrada (resultado de sonho, loucura, droga etc.), e b) “real-ilusório”, na qual os acontecimentos se produziram realmente, mas explicam-se de modo racional (TODOROV, 2013, p. 156-158). Como podemos constatá-lo em nosso corpus? Observemos alguns episódios da obra.

A partir das descobertas científicas de um linguista Belgo, os americanos chegam à conclusão de que os haitianos daquela cidadezinha tinham „evoluìdo‟ geneticamente. Eles estavam se transformando em árvores, fator pelo qual os moradores de Bombardopolis comiam apenas uma vez a cada trimestre. Essas conclusões são refutadas no penúltimo capìtulo da obra, intitulado “Pays sans chapeau”. Nesse episódio, Vieux Os vai ao mundo dos mortos e conversa com os deuses ancestrais do Haiti. Assim que chega ao lugar, o narrador- personagem se dirige à mercearia e conversa com a dona do local. Percebendo a poeira no ambiente, Vieux Os diz que a senhora recebia poucos clientes por ali. Em resposta, ela argumenta:

- Às vezes passa um, mas na verdade é raro... Exceto quando volta de Bombardopolis.

- Quem vai a Bombardopolis?

- As pessoas daqui, elas sempre tiveram o hábito de ir lá. - Por que vão justamente para Bombardopolis?

- Não sei, nunca fui lá... Estou aqui para receber os novatos que ainda não sabem que não precisam mais comer. As pessoas custam a se livrar de certos hábitos. Então, chegam e me pedem um sanduíche e uma limonada. Entende?, Estou no caminho deles.149 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 199)

O diálogo acima sugere outra explicação sobrenatural, para o caso de Bombardopolis. Os camponeses da pequena cidade são, na verdade, moradores do além que frequentam o lugarejo e, por isso, não possuem o hábito de comer constantemente. Com as indicações da dona da mercearia também podemos concluir que os cidadãos do mundo dos vivos estariam visitando o país sem chapéu, e foram orientados a abandonar o hábito de comer, com as dicas desta mulher.

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“- Il en passe de temps en temps, mais à vrai dice c‟est rare... Sauf quand ils reviennent de Bombardopolis. - Qui va à Bombardopolis?

- les gens d‟ici, ils ont toujours pris l‟habitude d‟aller là-bas. - Pourquoi vont-ils précisément à Bombardopolis?

- Je ne sais pas, je n‟y jamais été... Moi, je suis ici pour recevoir les nouveaux qui ne savent pas encore qu‟on n‟a plus besoin de manger. On a de la dificulte à se défaire de certaines habitudes. Alors, ils arrivent et me demandent un sandwich et une limonade. Tu comprends, je suis sur leur chemin” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 252).

Outras histórias do Pays rêvé também são justificadas nesse capítulo, como o caso do soldado americano casado que matinha relações extraconjugais com a deusa do panteão vodu Erzulie, dedicando-lhe dois dias da semana. O narrador-personagem descobre que o casamento dos deuses haitianos estava em crise e, devido a esta situação, a senhora do desejo buscava parceiros entre os mortais. Novamente, percebe-se a insinuação do sobrenatural para eventos que já haviam sido explicados como irracionais: o casamento entre mortais e divindades. Essa deusa estaria causando um distúrbio no mundo dos vivos que afetavam até humanos de outras nações.

No segundo capítulo da obra, Marie entrega um espelho à Vieux Os, com o propósito de ajudá-lo a identificar os zumbis. Agora, nessa última explicação sobre os fatos da nossa narrativa, o narrador-personagem retoma essa questão. Quando Vieux Os volta do além, acompanhado de Lucrèce, ele desce o morro L‟Hôpital para atravessar a barreira que divide os dois mundos: o portão de sua casa. No momento em que vai se despedir do padrinho de sua tia, ele suspeita que não era mais Lucrèce quem o acompanhava de volta para o mundo dos vivos.

Com isso, ele procede como Marie o havia indicado. Mediante a suspeita da natureza do homem que estava com ele, Vieux Os narra sua ação: “[...] Tiro bruscamente o espelhinho oval que minha mãe me deu para coloca-lo na frente de Lucrèce. Naturalmente, nenhum reflexo. – Era exatamente o que eu pensava – digo antes de cruzar o portão”150 (LAFERRIÈRE, 1997, p. 206). Apesar de hesitar quanto às histórias de sua mãe, o escritor demonstra confiar em suas dicas, comprovando que o homem que lhe acompanhou na viagem não era mais o passador do mundo dos mortos e, nem mesmo, o padrinho de sua tia. Ele não tinha reflexo. Já que Marie indica que a ausência de reflexo é uma das características do zumbi, o leitor pode se questionar sobre a possível veracidade do relato da mulher.

Onde estaria a ameaça ao Maravilhoso? O sobrenatural ainda é colocado como explicação, nas situações citadas até agora. A probabilidade do gênero Estranho reside na natureza da viagem de Vieux Os ao além, pois esse evento é dotado de certa obscuridade. No capìtulo antecedente à “Pays sans chapeau”, Vieux Os retorna de sua visita à casa de seus antigos amigos e vai descansar na cama com sua mãe. A conversa entre eles se desenvolve a respeito do pai do escritor. O narrador-personagem se cansa e decide dormir. Ele se despede

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“[...] Je sors brusquement le petit miroir ovale que m‟avait donné ma mère pour le placer en face de Lucrèce. Naturellement, pas de reflet. – C‟est bien ce que je pensais, dis-je avant de franchit calmement la barreire.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.262)

de sua mãe: “– Durma bem, você também”151

(LAFERRIÈRE, 2011, p. 194). O capítulo termina com a despedida entre os dois e, em seguida, inicia os episódios do capìtulo “Pays sans chapeau”:

Sinto uma mão rugosa no meu pescoço. Tenho um sonho estranho e nesse sonho me perseguem. Uma pequena multidão de pessoas furiosas quer me pegar. Corro. Normalmente em situações parecidas, consigo sempre desaparecer no momento crítico. Dessa vez, minhas pernas se recusam a mover-se. E a multidão se aproxima perigosamente. Alguém acaba me pegando pelo pescoço. Uma mão rugosa. 152 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 196) Notemos que o inìcio e o fim dessa citação são marcados por um elemento “une main rugueuse” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 248). A impressão que temos é que Vieux Os está nos relatando o sonho que teve naquela noite do capítulo anterior. Talvez um sonho aflito, no qual pessoas o perseguiam e, do nada, ele se sente paralisado. Uma mão o salvaria. O diálogo e a narração que ocorrem, em seguida, demonstram que há probabilidade desta mão pertencer a de Lucrèce:

- Está na hora. - Hein! O que?

O rosto enigmático de Lucrèce na minha frente. - Devemos ir agora.

- Onde vamos? - O Senhor vai ver ...

- Ok- digo me levantando -, vou me lavar rapidamente e nos encontramos no portão.

- Não – Diz secamente. – É uma viagem que a gente faz mantendo o cheiro do sono.”153

(LAFERRIÈRE, 2011, p. 196)

A forma como Lucrèce aparece não é também muito clara. O narrador-personagem apenas indica “O rosto enigmático de Lucrèce”154 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 196) que surge do

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“- Bonne nuit, toi aussi” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 245). 152

« Je sens une main rugueuse sur mon cou. Je fais un rêve étrange, et dans ce rêve, on me poursuit. Une petite foule de gens en colère veut m‟attraper. Je cours. D‟ordinaire, dans de pareilles situations, je parviens toujours à m‟envoler au moment critique. Cette fois, mes jambes refusent de bouger. Et la foule s‟approche dangereusement. Quelqu‟un finit par me prendre par le cou. Une main rugueuse.(LAFERRIÈRE, 1997, p.248) 153

- C‟est le temps. - Hein! Quoi?

Le visage énigmatique de Lucrèce en face de moi. - On doit partir maintenant.

- Où va-t-on ? - Vous verrez...

- Ok. Je dis en me levant, je vais faire un brin de toilette et je vous retrouve à la barrière.

- Non, dit-il sèchement... C‟est un voyage qu‟on fait en gardant sur soi l‟odeur du sommeil. (LAFERRIÈRE, 1997, p.248)

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nada, junto com a mão rugosa que destacamos anteriormente. A mão pertenceria mesmo ao padrinho da tia de Vieux Os? Vieux Os acordou ou ele continua sonhando? Mesmo que na situação acima fique claro o desejo do narrador em querer se aprontar: “[...] vou me lavar rapidamente”155

(LAFERRIÈRE, 2011, p. 196), as ações daquele momento não são tão evidentes em sua narração. Tudo é muito confuso. O leitor fica sem informações precisas do que aconteceu. Isso pode ser explicado com a adoção do tempo psicológico156, na narração de Vieux Os.

Sem dicas de como e quando as coisas estão acontecendo, a Hesitação fantástica mantém sua forma implícita. O narrador-personagem não oscila, não duvida daquilo que ele está vivendo. Ele relata com naturalidade tudo o que acontece no além, mas o leitor pode se questionar se esse capítulo seria a continuidade do episódio anterior de Pays réel. A narração é um sonho contado em um momento posterior ou seria o principio da narração de um evento sobrenatural, consistindo numa viagem ao além?

Há um sonho nesta passagem, o problema seria delimitá-lo. Questionamo-nos se ele continua até o momento em que Vieux Os recebe a visita do deus Damballah, no mundo dos mortos. Ou seja, até o final deste capítulo que se encerra com uma promessa do narrador- personagem, na qual ele se compromete em escrever algo sobre os deuses do vodu. Ou se o sonho se estende até o momento em que Lucrèce surge, despertando o narrador-personagem para leva-lo ao mundo dos mortos, onde de fato ele vivenciou todo o sobrenatural que o texto aparenta indicar. Vale salientar que em outras narrativas de Laferrière, como em L’Odeur du

café (2016) ou Le Charme des après-midi sans fin (2016), Vieux Os vivencia sonhos

parecidos com este, nos quais acontecem perseguições ao narrador-personagem infantil. Nessas duas narrativas há explicitação do sobrenatural em diversos momentos. No entanto, em nosso corpus o sobrenatural é um paradoxo que se confunde ao sonho e a ilusão da mente de Vieux Os.

Junto à utilização do tempo psicológico, notemos outro aspecto marcante da narração de Vieux Os: sua habilidade de promover o “subentendido”. A hesitação fantástica “se esconde” na inacessibilidade da linguagem utilizada por ele, ao contar como teve acesso ao além. Com isso, Laferrière cria para o seu narrador-personagem uma distância das resoluções para com o evento insólito, gerada também pela narração pouco detalhista e raramente

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“[...] je vais faire un brin de toilette” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 248). 156

Segundo Yves Reuter (2004), as indicações temporais na narrativa, quando são precisas e correspondentes às nossas noções de tempo da realidade, podem garantir a concretização dos fatos na narrativa. Ela argumenta que o tempo psicológico, por sua vez, garante a fragmentação temporal e se distancia da percepção real dos fatos na narração.

opinativa. As explicações sobrenaturais são sempre pronunciadas por personagens secundários, não por ele. Este penúltimo capítulo é o único momento em que, de fato, o narrador-personagem nos concede um relato experiencial.

O texto garante uma última hesitação, como consequência do efeito de “estranhamento”157

causado pela narração imprecisa deste sonho. Se reconstituirmos o percurso feito por Vieux Os, neste capítulo, veremos que há como alegar que este sonho possui algo sobrenatural. Basta que investiguemos a forma como Lucrèce nega o “despertar” ao narrador, quando Vieux Os o pede para se lavar. Ele diz que é necessário manter “o cheiro do sono” para realizar o tipo de viagem que eles estavam prestes a fazer. O que seria essa condição? Ela pode designar uma forma figurativa para designar o estado crepuscular do sono; momento em que não se distingue se estamos acordados ou não. Justamente, esta é a imprecisão sobre o estado físico do narrador-personagem que se impõe ao leitor implícito da obra.

Silva (2016) argumenta que se considerarmos a ideia de que Vieux Os não acordou e tudo não passa de um sonho narrado em um tempo distante, estaremos apontando a existência do gênero Fantástico-Estranho como uma ameaça ao Maravilhoso da obra. Contudo, notamos que não se trata de tensão permanente dos gêneros. Embora os mistérios que se apresentam em nosso corpus recebam explicações sobrenaturais, percebemos que a existência do Fantástico-Estranho é uma sugestão intrínseca à percepção do leitor. Mesmo que neste capítulo os eventos sobrenaturais recebam novas resoluções, desta vez contada por nosso narrador-personagem, o leitor pode optar por ignorar as declarações de Vieux Os, voltando-se para a estranheza de sua narração. Nesse caso, caberá a ao leitor conferir a sobrenaturalidade ou a inexistência dela aos eventos presentes neste capítulo.

O que acontece na narrativa? Por que o texto não garante a existência deste gênero ou a indicação do Maravilhoso? O testemunho de visita ao além do narrador-personagem pode ser considerado mais uma explicação duvidosa sobre os mistérios da obra. É como se ela fosse mais uma sugestão entre tantas outras fornecidas por personagens da narrativa. Nosso objeto de estudo não nega a existência do Fantástico-Estranho ou do Maravilhoso, por causa das características que apontamos em relação a narração obscura de Vieux Os. Os aspectos que apontamos favorecem ambos os gêneros.

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De acordo com Todorov (2017), o estranhamento é um sentimento correlacionado a uma imagem originada ainda na infância do indivíduo, que por vezes pode suscitar medo, espanto, dificuldade de percepção e entre outras reações.

Contudo, a função interna, ou estética, do Fantástico-Estranho é desestabilizar o sobrenatural. Aqui, ele se impõe como antagônico ao Maravilhoso e, ao mesmo tempo, convive com este gênero, como um recurso metaficcional. Por que metaficcional? Lembremos também da possibilidade de estarmos lendo uma obra que “aparentemente” foi escrita pelo narrador-personagem.

Desde o primeiro capítulo da obra, Vieux Os anuncia seu projeto de escrever um livro, sobre seu país, e termina este penúltimo episódio, no capítulo “Pays sans chapeau”, com a promessa da escrita a respeito dos deuses: “[...] escrever um livro sobre esse curioso paìs onde ninguém usa chapéu158” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 213). Nossas análises sobre a hesitação fantásticas também impõem que estamos diante do imaginário do nosso narrador-personagem. Como? A narração de Vieux Os destaca-se pelo procedimento de autorreferência. Observemos dois recortes que comprovam nossa indicação desta característica na referida narrativa.

No segundo capítulo, pertencente ao Pays réel, Vieux Os faz sua primeira refeição na terra natal, na casa de sua mãe. Quando a mulher percebe que seu filho está com calor pede para sua irmã, Renée, abrir a porta da casa:

- Abre a porta da frente, Renée, faz muito calor a esta hora... Você vai ver, Velhos Ossos, tem um ventinho gostoso aqui...

Tia Renée corre até a porta que dá para a pequena varanda. Reparo em suas pernas frágeis e brancas.

- Virou uma obsessão para a Renée... Ela fecha todas as portas. Cada vez mais, ela se fecha em si mesma. 159(LAFERRIÈRE, 2011, p. 25)

De acordo com a passagem acima, Renée é a responsável por fechar as portas da casa, como uma atitude de cunho emocional, pois “ela se fecha em si mesma”. Dois capìtulos depois, no Pays rêvé, a situação é outra. Vieux Os retoma essa passagem a reconfigurando. Quando Marie, sua mãe, o conta sobre a investida do exército zumbi na cidade de Porto Príncipe, o filho lhe questiona sobre o que os haitianos têm feito para lidar com o fato da ameaça desses seres, que perambulam pela cidade em todos os horários do dia. O seguinte diálogo se apresenta:

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“[...] écrire un livre sur ce curieux pays où personne ne porte pas de chapeau.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.271) 159

- Va ouvir la porte en avant, il doit faire chaud maintenant, Renée... Tu vas voir, Vieux Os, il y a un bon petit courant d‟air...

Tante Renée court vers la porte qui donne sur la petit galerir. Je remarque ses jambés frêles et blanches.

- C‟est devenu une obsession chez Renée... Elle ferme toutes les portes. De plus en plus, elle se referme sur elle- même” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 29).

- De dia também?

- Também. À noite são bizangos. De dia, zenglendos. Às vezes, já nem sabemos se é de dia ou de noite.

- E o que fazemos?

- Fechamos as portas ao meio-dia.

- Ah! é por isso que as venezianas estão sempre fechadas? – perguntei para tia René, que fingiu não entender.160 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 41)

As venezianas fechadas retomam o fato destacado à pouco. Desta vez, o motivo de se fechar as portas da casa não está ligado ao emocional de Marie, como na primeira situação. Nesta passagem são as venezianas do lugar que se encontram fechadas e não permitem que a luz de fora penetre no ambiente. Por causa disso não há distinção ente o dia e a noite para as personagens que moram ali. Se no primeiro caso Renée fecha as portas do lar, na indicação de Marie, agora são todos que praticam o “confinamento”, por causa do medo daquilo que se apresenta no ambiente externo a casa.

Nosso objeto de estudo possui diversas autoreferências como esta que garantem confusões entre Pays réel e Pays rêvé. Para nós, este é mais um procedimento adotado por Laferrière para garantir a característica metaficcional de sua obra. Estamos diante não somente de uma obra escrita por Dany Laferrière, como estamos diante da imaginação de seu narrador-personagem, que simula ser o autor da obra que lemos. Essa dimensão da nossa narrativa propõe outras dúvidas: qual imaginação seria conferida a Vieux Os, a que se encontra em Pays réel ou em Pays rêvé? Como distinguir ambas? Quais foram os fatos “inventados” por nosso narrador? Não temos intenção de responder nenhuma dessas indagações, mas de demonstrar como a ambiguidade de nossa obra solicita outros subgêneros como o Fantástico-Estranho, o qual intercede por uma discussão sobre o real-imaginário.

O sonho de Vieux Os, considerado como fruto do seu inconsciente, e a auto referência entre os universos que dividem a obra nos confere uma discussão ocidental acerca do imaginário. O sobrenatural como fruto do inconsciente seria o campo ideal para uma análise psicanalítica, de leitura das psiquês do narrador-personagem e do autor Dany Laferrière. Todorov (2017) indica-nos que a psicanálise é uma ciência estruturalista e, consequentemente, uma ferramenta para a técnica de interpretação literária: “No primeiro caso, descreve um mecanismo, aquele, digamos, da atividade psíquica, no segundo, revela o sentido último das

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“- Le jour aussi?

- Oui. La nuit, ce sont des bizangos. Et le jour, des zengledos. Des fois, on ne sait plus si on est le jour ou la nuit. - Et que fait-on?

- On ferme les portes à midi.

- Ah! C‟est pour ça que vou gardez toujours les volets fermés. J‟en ai parlé à tante Renée, et elle a fait celle qui n‟a rien entendu” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 48).

configurações assim descritas. Ela responde às perguntas “como” e “o que”” (TODOROV, 2017, p.158).

Entretanto, ele salienta que a análise da pisquê do autor não é algo que possa ser considerado relevante no viés da crítica literária, já que nosso foco é o corpus e não o autor: “Supor que a literatura não é senão a expressão de certos pensamentos ou experiências do autor é condenar de imediato a especificidade literária, atribuir à literatura um papel secundário, o de médium entre outros.” (TODOROV, 2017, p. 107)

Neste sentido, o linguista búlgaro-francês aponta que essa ciência nos é útil para