• Nenhum resultado encontrado

O Surrealismo surgiu na França, entre duas guerras mundiais. Diante das tragédias da humanidade e do campo de batalha, os artistas necessitavam romper com tudo aquilo que poderia representar uma humanidade racionalista. Para eles, até a arte tornou-se sinônimo de “tolice” (NADEAU, 2008, p.27). Apesar do contexto problemático, os artistas não se entregaram, inicialmente, a um frenesi destrutivo.

Tal movimento “[...] foi precedido pelo cubismo, pelo futurismo, pelo dadaìsmo” (NADEAU, 2008, p.14), porém manteve-se mais próximo desse último. O dada, também chamado assim, mantinha uma proposta muito parecida com aquela que desejavam os surrealistas. Nomes como: Paul Valéry (1871-1945), Léon-Paul (1876-1947), André Breton (1896-1966), Blaise Cendrars (1887-1961), Jacques Vaché (1895-1919), Guillaume Apollinaire (1880-1918), Pablo Picasso (1881-1973), Tristan Tzara (1896-1963), Francis Picabia (1879-1953), Conde de Lautréamont (1846-1870) ou Isidore Ducasse (1846-1970) e entre outros, são a prova de que vários movimentos estavam próximos e mantinham um diálogo, com um novo propósito. Não é atoa que a maioria dos artistas do Surrealismo surgiram da vertente dadaísta.

A ruptura era algo que se pretendia em todos os níveis, tanto na arte quanto na filosofia. Essa era a modernidade se anunciando e seu grito de guerra consistia em “abaixo ao racionalismo!”. O Dadaísmo se comprometeu, fortemente, com a causa e conseguiu fazer da

revista Littérature, editada por André Bréton (1896-1966) e Tristan Tzara (1896-1963), o seu meio para as críticas mais severas da arte. Eles desejavam romper com tudo o que era e poderia ser clássico, e (ou) tradicional. Nem mesmo a arte moderna da época escapava: “[...] Dada negava tanto a arte moderna quanto a arte tradicional, como a arte simplesmente” (NADEAU, 2008, p.35). Diante do poder autodestrutivo, produzido no dadaísmo, vários artistas e pensadores decidiram abandoná-lo. Encabeçados por Breton, esses homens fazem surgir um novo cenário para a produção artística.

Segundo Nadeau (2008), André Breton (1896-1966) foi o precursor e grande influenciador desse movimento. Foi ele quem redigiu os dois manifestos do Surrealismo, cujo conteúdo se voltava para a definição desta nova expressão e filosofia, assim como para as discussões a respeito da produção artística de sua época. No primeiro Manifesto Surrealista (1924) podemos perceber que Breton inspirou-se em Guillaume Apollinaire (1880-1918) para a nomenclatura do movimento:

Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morrera há pouco, e que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupaul e eu designamos com o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos. (BRETON, 1924, s/p.)

Breton (1978) demonstra que este termo foi escolhido a partir da produção de Apollinaire, cuja letra detinha a “profecia” do Surrealismo ainda não teorizado. Ele declara que seu ídolo foi a inspiração basilar desta nova empreitada, uma vez que é na escrita do italiano que Breton se debruça para compreender que já nascia o projeto de suas aspirações.

Neste mesmo documento o teórico surrealista define o movimento como a capacidade de exprimir o “[...] Automatismo psìquico puro” (BRETON, 1978, s/p.). Para ele, a expressão do pensamento humano e do inconsciente seria o conteúdo e a regra característica do Surrealismo. A necessidade de Breton (1978), bem como de seus amigos artistas contemporâneos, era produzir algo que se libertasse da imposição estética, da moral da sociedade francesa, e, sobretudo, do exercício racional. O inconsciente foi declarado como matéria e, antes de tudo, a primazia das produções desta escola. Para isso, o referido autor incorpora as discussões sobre as atividades cerebrais do inconsciente, e ainda toca na questão da imaginação:

Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão (BRETON, 1978, s/p.).

Nessa declaração, o teórico francês se refere exatamente ao sonho; como produto da vida psíquica noturna do ser humano. Ele discorre especificamente sobre as literaturas que se apropriam desta matéria e torna-a parte integrante da realidade. Numa espécie de nostalgia, Breton (1978) procura tecer elogios aos contos de fadas, que chegam ao auge no século XIX, e acusa o racionalismo de se desfazer da imaginação, concedida ao homem apenas no período da infância, um espaço curto de tempo.

Apesar de creditar ao romantismo a introdução da imaginação nas artes, ele entendeu que a instância imaginativa poderia ser mais expandida, por esta razão ele interroga por duas partes do pensamento humano: o consciente e o inconsciente. Esse último, nunca antes explorado, compreenderia: “O medo, a atração do insólito, as chances, o gosto do luxo são molas às quais não se apela em vão. Há contos a escrever para adultos, contos de fadas, quase” (BRETON, 1978, s/p.).

De acordo com Batchelor (1998), essa citação mostra que Breton „enxergava‟ as limitações da imaginação, no contexto romântico. Para ele, o surrealista francês percebeu que a concepção de imaginação estava correta ainda no século XIX, porém ela deveria ser expandida a outra instância. Por isso a prioridade do teórico surrealista foi explicar, didaticamente, em seu manifesto, que seu interesse maior seria o “[...] depósito do inconsciente do instinto, da experiência e do desejo” (BATCHELOR, 1998, p. 50).

É certo que por causa desta nova dimensão do pensamento humano, adquirida em Sigmund Freud (1856-1939), as produções do movimento se desfizeram de várias “amarras” das tradições estéticas de movimentos anteriores. Mesmo assim, Breton (1978) faz elogios tanto à aptidão de escritores de seu tempo, como é o caso dos seus colegas de trabalho citados na obra, quanto a artistas de outro tempo, como o caso de Dante Alighieri (1265-1321), William Shakespeare (1564-1616), Marquês de Sade (1740-1814), Bertrand Russell (1872- 1970), Charles Beaudelaire (1821-1867), Arthur Rimbaud (1854-1891) e entre outros.

A maioria dos leitores de Breton (1978) enxergara e enxerga o Surrealismo como algo extremamente psicanalítico e quase emparelhado ao caos, contudo encontramos, em seu manifesto, vários elogios às produções maravilhosas. As literaturas que conservavam fantasias e demonstravam as inquietações inerentes ao homem.

Nesse raciocínio, segundo Breton (1978), os surrealistas deveriam buscar na profundeza de si mesmo a inspiração, ao invés de olhar para o externo, como outros movimentos artísticos fizeram. Dessa maneira, a produção artística se voltou para o “sentir”, não apenas o pensar sistemático, ou o racional. Batchelor (1998) explica que os artistas do movimento seguiram à risca as ideias de seu precursor e procuraram aplicar, até mesmo, as técnicas terapêuticas da psicanálise para produzir, como a “escrita automática” empregada frequentemente nas composições de obras literárias. Esse procedimento era comumente utilizado por psicanalistas, com o propósito de identificar e compreender o modo como funciona o inconsciente do paciente:

Para os surrealistas, a teoria do inconsciente e a técnica do automatismo funcionariam, não como um meio de ajudar os indivíduos a ajustar-se às normas sociais estabelecidas, mas como um meio, em primeiro lugar, de sistematicamente desviar-se dessas normas, e em seguida de equipar-se do material necessário para demonstrar seu caráter limitado e repressivo. (BATCHELOR, 1998, p. 52)

A escrita automática aparenta ser uma técnica bastante coerente com o movimento surrealista, inclusive com a definição desse verbete, visto alguns parágrafos acima. Entretanto, gostaríamos de chamar a atenção para nosso objeto de estudo.

“Escrevo tudo que vejo, tudo que ouço, tudo que sinto. Um verdadeiro sismógrafo”113

(LAFERRIÈRE, 2011, p.12). Essa passagem encontra-se no primeiro capítulo de Pays sans

chapeau, intitulado de Um escritor primitivo114. No momento em que Vieux Os reflete sobre sua atividade de escrita, enquanto autor, em pleno exercício da profissão, ele confessa ao leitor que escreve apenas o que sente. Com certo automatismo, o narrador-personagem descreve seu engajamento com o ato de composição de uma obra: “[...] Opa, um pássaro atravessa meu campo de visão. Escrevo: pássaro. Uma manga cai. Escrevo: manga. As crianças jogam bola na rua entre os carros. Escrevo: crianças, bola, carros” 115

(LAFERRIÈRE, 2011, p.13). Essa passagem indica que tudo quanto Vieux Os sente em sua volta, ele escreve.

O narrador-personagem nos coloca frente à sua composição desregrada e automática. Logo, essa passagem seria uma referência ao movimento surrealista, produzida por

113

“J‟écris tout ce que je vois, tout ce que j‟entends, tout ce que je sens. Un vrai sismographe” (LAFERRIÈRE, 1997, p.13)

114 Na versão em francês encontra-se como Un écrivain primitif. 115

“Tiens, un oiseau traverse mon champ de vision. J‟écris: oiseau. Une mangue tombe. J‟écris: mangue. Les enfants jouent au ballon dans la rue parmi les voitures. J‟écris: enfants, ballon, voitures.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.14)

Laferrière? Na verdade, existem diversas referências e críticas ao Surrealismo. Por exemplo, nossa discussão sobre o imaginário, desenvolvida anteriormente, possibilitaria uma reflexão acerca do inconsciente da imaginação, pretendida por Bréton. Entretanto, o interesse desse teórico aparenta se ater aos interesses da abolição de uma moral do inconsciente, mais do que as discussões sobre as manifestações do imaginário humano (CHIAMPI, 1980).

Não podemos alegar que não há consciência na escrita de Laferrière. Pelo contrário, a pena do nosso autor revela-nos forte tradição e uma grande fundamentação na história do país. Novamente, estamos diante de um paradoxo: Pays sans chapeau seria surrealista ou não? Essa questão nos ocorreu assim que adentramos as discussões sobre a definição de imaginário, pois Laplantine e Trindade (1997) nos encaminham para a problematização do Surrealismo francês e sua propagação no território ocidental.

Quando observamos o imaginário cultural multifacetado do nosso objeto de estudo compreendemos que Laferrière é um desses autores que está além do projeto surrealista. Contudo, com Pays sans chapeau, o autor haitiano-quebequense muito se aproxima da perspectiva surrealista latina.

O Surrealismo foi um movimento que alcançou diversos países e continentes. Maurice Nadeau (2008) evidencia sua presença em toda a Europa, em parte da Ásia, da África e das Américas. Ela destaca a Exposição Internacional do Surrealismo (1938), realizada em Paris, que contou com a exibição de obras diversas, provindas de diferentes locais do mundo. O movimento teve uma grande divulgação e propagação em nosso território, mas se desenvolveu de forma distinta aqui. Não poderíamos demarcar todas as características do Surrealismo latino, pois seriam muitas e não é nosso foco, porém é conveniente que compreendamos a sua realização no novo mundo. Não se trata de identificar superioridade de um movimento sobe o outro, mas de compreender o deslocamento do Surrealismo francês e sua adaptação no território americano.

Laplantine e Trindade (1997) salientam que ao invés de manter um Surrealismo “acadêmico”, mergulhado completamente na psicanálise, o surrealista americano preferiu voltar-se à própria cultura, ao interior de seu paìs. Eles destacam: “Não é uma atitude intelectual, mas uma atitude vital, existencial. É a do índio que com uma mentalidade primitiva e infantil, mistura o real e o imaginário, o real e o sonho” (LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p.24).

Nesse sentido, o pressuposto desses dois teóricos consiste na afirmativa de que, as ideias surrealistas francesas apenas estimularam os artistas americanos a compreenderem a matéria surreal abundante em nosso território; nossa cultura. Não era necessário buscar o

automatismo, ou qualquer tipo de estímulo para a fantasia, posto que aqui já vivíamos o Surrealismo, embora não concretizado nas artes:

Os surrealistas europeus procuram fugir de sua civilização enquanto os surrealistas latino americanos (e também, sob vários aspectos, os modernistas brasileiros) procuram reencontrá-la. Os primeiros se deixam seduzir pela fuga e exotismo, enquanto para os segundos o estranho, o irreal e o fantástico constituem o que todos eles chamam de "nossa realidade". (LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p.23)

Desta maneira, compreendemos que o Surrealismo foi de grande importância para a América Latina, como um todo, pois foi a partir desse movimento que o homem americano foi impulsionado a conhecer a si, não apenas sua profundeza psíquica, porém também sua identidade. Nesse sentido, ao trazer o contexto histórico e religioso para a sua obra, Laferrière nos demonstra sua atitude mediante uma realidade territorial, que mergulha em uma discussão cultural do imaginário. Essas características nos revelam que ele, assim como outros autores, compreende-se enquanto parte de seu povo, mas também nos mostra que sua pena se inspirou em suas leituras surrealistas116, tanto francesas quanto conterrâneas.

Essa atitude de voltar-se para as origens culturais não quer dizer que não houve recepção do movimento. Pelo contrário, foi ele quem colaborou como combustível para esse contexto. Entretanto, não sejamos simplórios e aleguemos que nosso autor escreveu Pays sans

chapeau com o propósito de reafirma sua identidade. Como verificamos, Laferrière propõe

discussões profundas sobre o identitário, assim como promove diversas rupturas, logo a influência surrealista em sua obra não é apenas o fantasioso. Sua proposta é, acima de tudo, mostrar uma realidade cultural americana. Nesse aspecto ele se aproxima um tanto de Alejo Carpentier (1904-1980).

De acordo com Irlemar Chiampi (1980), Alejo Carpentier (1904-1980), citado entre os autores117 preferidos do escritor haitano-quebequense, foi um dos responsáveis por incitar uma nova produção literária nas Américas com sua proposta do Realismo Maravilhoso, por volta de 1940. Nessa perspectiva, o estudioso acentua que Carpentier estimulou diversos escritores “[...] latino-americanos a se voltarem para o mundo americano, cujo potencial de

116

Vale salientar que encontramos nas obras de Laferrière diversas passagem que fazem referência ao movimento surrealista, tanto francês quanto americano. Indicamos como leitura, duas crônicas de sua obra La

Chair du maître (2002): Un tableau naïf e Un mariage à la campagne. Nesta primeira, ele chega a citar um

trecho do manifesto surrealista de Breton (1924), enquanto na segunda ele cita diversos nomes de pintores e escritores do Surrealismo latino.

117

Há uma lista de nomes dos autores citados por Dany Laferrière, os quais são considerados inspirações para o escritor haitiano-quebequense, segundo a Académie Française.

prodìgios, garantia o autor, sobrepujava em muito a fantasia e a imaginação europeias” (CHIAMPI, 1980, p.32).

Com a citação acima, podemos perceber que, inicialmente, Alejo Carpentier procurava estabelecer uma supremacia do Surrealismo americano sobe o Surrealismo francês. Contudo, Chiampi (1980) comenta que este autor cubano estava fortemente influenciado pelo movimento francês quando propôs, no prólogo de uma de suas obras, as concepções sobre o Realismo Maravilhoso. Segundo o estudioso, ao falar a respeito do texto Maravilhoso, Carpentier pretendia questionar a definição de realidade na literatura, e nas artes como um todo:

A intenção evidente é deslocar a busca imaginário do maravilhoso e avançar uma redefinição da sobre-realidade: esta deixa de ser um produto da fantasia – de um “dépaysement” que os jogos surrealistas perseguiam – para constituir uma região anexada à realidade ordinária e empírica, mas só apreensível por aquele que crê. (CHIAMPI, 1980, p.36)

Para Chiampi (1980), esta característica da problematização da realidade, pretendida por Carpentier, evidencia seu envolvimento profundo com as ideias do Surrealismo europeu. Enquanto Breton (1924) procura refletir sobre o Maravilhoso, em seu manifesto, demonstrando a importância para a questão da imaginação e das inquietações do homem francês, Carpentier traz a discussão para a sua realidade americana na tentativa de abolir as oposições real-irreal da literatura. O artista e teórico cubano, procura sua poética diretamente na fonte do primitivo e do religioso, tornando-os os elementos reais de sua escrita. Nesse viés,

Pays sans chapeau se aproxima desse autor, demonstrando-se também adepta de uma

realidade cultural. Não é em vão que Laferrière busca „misturar‟ o real e o sonhado, o noturno e o diurno, assim como a vida e a morte.

A insistência da temática da morte, o zumbi, o ser sobrenatural haitiano, a presença dos mitos do panteão Vodu, a correlação entre as narrativas míticas e nosso objeto de estudo e entre outros aspectos, analisados até o presente momento, são parte das manifestações de um imaginário vivido cotidianamente. Esses eventos sobrenaturais não são fantasiosos em suma, mas são insólitos, poéticos e parte da realidade cultural de um povo, que solicita do leitor a fé; tão pretendida também por Carpentier. Ele “[...] invoca justamente essa América primigênia, não contaminada pela reflexividade, como um universo de mitos e religiosidade primitivos, capaz, portanto, de efetivar o projeto de poetizar o real maravilhoso” (CHIAMPI, 1980, p.36). Chiampi (1980) demonstra que de fato a proposta literária de Alejo Carpentier possui fortes ligações com o movimento surreal, embora essa relação seja problemática. No entanto,

para ela o “[...] identificador cultural americano” (CHIAMPI, 1980, p.50) é o material do Realismo Maravilhoso. Nessa perspectiva, Laplantine e Trindade (1997) encontram motivação para atrelar o Realismo Maravilhoso ao Surrealismo latino. Nas palavras deles:

“O que uns chamam de "realismo mágico" (Astúrias) ou "realismo alucinado" (Caillois), outros de "realismo maravilhoso" (Carpentier), ou ainda de "realismo mítico" (Octavio Paz), são na verdade várias maneiras de se designar o que na Europa chamamos de surrealismo, que "encontramos em estado bruto, latente, onipresente em tudo que é latino-americano" (Carpentier). (LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p.23)

Impulsionados pelo elogio ao campo cultural, esses teóricos aparentam confiar que o Surrealismo latino nunca chegou ao fim, em nosso território. Com efeito, eles relacionam o sobrenatural presente nas literaturas de nosso continente, como expressão de uma identidade cultural, com o projeto surrealista americano. Ou seja, para Laplantine e Trindade (1997) o Realismo Maravilhoso e seus variantes são sinônimos de Surrealismo, porque a cultura do nosso povo é proveniente de um imaginário manifestado (DURAND, 1989).

Concordamos que o surgimento desse gênero literário, considerado também uma escola para a literatura de língua espanhola, é proveniente da materialização da realidade cultural no texto literário, mas essa afirmativa não quer dizer que necessariamente o Surrealismo perdura até os nossos dias. Conquanto, a influência das ideias surrealistas se propaga na literatura, até os dias atuais, por causa dessa estreita conexão entre a identidade cultural americana e o empreendimento surrealista formulado no nosso continente.

Dito isso, resta-nos compreender como o Realismo Maravilhoso se caracteriza na obra de Laferrière. Ressaltamos que Pays sans chapeau é detentora de diversas duplicidades e complexidades. Portanto, não aplicaremos apenas as teorias instituídas por Chiampi (1980). Tentaremos resgatar a discussão sobre os gêneros literários Fantástico e Maravilhoso francês em outros teóricos, ditos tradicionais, dos estudos estruturalistas. Nesse sentido, nosso estudo se voltará para a estrutura da narrativa. Trabalharemos essa outra problemática no próximo capítulo.

PAYS RÉEL OU PAYS RÊVÉ?

O terceiro capítulo de nosso estudo tem como objetivo analisar a narrativa Pays sans

chapeau a partir dos estudos de Tzvetan Todorov (2013; 2017) e Irlemar Chiampi (2015) no

que diz respeito aos gêneros literários que utilizam o sobrenatural como elemento importante em sua constituição: Fantástico, Fantástico-Maravilhoso, Fantástico-Estranho e Realismo Maravilhoso. Assim, focaremos o acontecimento sobrenatural, com a intenção de compreender o estabelecimento desses gêneros em nosso corpus.