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O retorno de Vieux Os ao país é um verdadeiro reencontro com suas origens e um complexo emaranhado de acontecimentos (sobre)naturais. O narrador-personagem surge como um explorador no meio urbano de Porto Príncipe à procura dos bairros e lugares que antes frequentava. Vieux Os encontra seus amigos e familiares, deixados para traz por causa do seu exílio, e tenta se enquadrar no cotidiano agitado da sua cidade natal.

Ele relembra a comida, a língua créole, os aromas e as paisagens da sua antiga vida, mas sua história pessoal é solapada por acontecimentos estranhos. Em uma de suas caminhadas pela cidade, por exemplo, ele é abordado por um engraxate, que oferece seus serviços. Durante a conversa, o rapaz aconselha-o a não ficar ali por muito tempo, argumentando que o país havia mudado em função das pessoas que já não estavam mais vivas:

- É tudo que tenho a dizer... se fossem seres humanos de verdade – continua -, acha que sobreviveriam a essa fome, a todo esse monte de imundícies que se encontra em cada esquina...? E, além disso, o senhor não vê que todas as outras nações estão no país? (Ele se refere aos soldados das Nações Unidas que ocupam as ruas de Porto Príncipe.) o que o senhor acha que eles estão fazendo? Pesquisas, meu amigo. Eles vêm aqui para estudar quanto tempo o ser humano pode ficar sem comer nem beber. Mas eles não sabem que já estamos mortos. Os brancos só querem acreditar naquilo que conseguem entender. Então, vá embora enquanto é tempo 76 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 48).

As situações narradas por Vieux Os instauram este clima sombrio de que algo está acontecendo ou vai acontecer, como o suspense comum às literaturas de terror, porém em outros momentos há a aceitação de explicações surreais a favor dos acontecimentos sobrenaturais, assim como a história sobre o exército zumbi, citada no primeiro capítulo de nosso trabalho. Relembremos a origem deste evento precisamente.

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- C‟est tout ce que j‟ai à vous dire... si on était vraiment des être humains, continue-t-il, vous croyez qu‟on survivrait à cette famine, à tous ces tas d‟immondices qu‟on trouve à tous les coins de rue... Et puis, vous ne voyez pas que toutes les autres nations sont dans le pays ? (Il fait référence aux soldats des Nations unies qui occupent les rues de Port-au-Prince.) Que croyex-vous qu‟ils sont en train de faire ? Ils font des études, mon ami. Ils viennent ici pour étudier combien de temps l‟être humain peut rester sans manger ni boire. Mais ils ne savent pas qu‟on est déjà morts. Les Blancs ne veulent croire qu‟à ce qu‟ils peuvent comprendre. Alors, partez pendant qu‟il est encore temps. (LAFERRIÈRE, 1997, pp. 56-57)

Vieux Os escuta uma conversa entre sua mãe e a vizinha acerca de sua experiência com seres sobrenaturais. Marie, a mãe, relata que certa vez viu um Bizango77, coberto de cinzas, nu, de olhos vermelhos e cuspindo fogo, procurando por uma nova presa. Ela conta que ficou apavorada diante deste ser, mas teve cautela e guardou para si o segredo.

Quando percebe o interesse do filho em sua conversa, a senhora decide falar-lhe sobre a situação atual do país, revelando o estado calamitoso que os haitianos alcançaram. Marie menciona que não há mais distinções entre vivos, mortos e assassinos. A mulher atribui este fato aos sacerdotes vodus, que procuravam despertar todos os mortos dos cemitérios, com o propósito de formar um exército para tomar Porto Príncipe, e alega ter visto fileiras de pessoas que seguiam uma caminhada de cabeça baixa, falando coisas horríveis. A senhora também relata sobre uma tradição cultural, feita em sua família, de prevenção para impedir que um morto seja acordado:

[...] As pessoas colocam nas mãos do morto, quando desconfiam que sua morte não é natural, um carretel de linha e uma agulha. É assim que a gente mantém um morto ocupado [...] Até a ressurreição - completa com orgulho – Só Deus pode Despertá-lo...78 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 43).

Diante do teor místico de sua mãe, Vieux Os reflete sobre os aspectos do tempo, especificamente, sobre o poder da noite haitiana. Para ele:

É como se dois países caminhassem lado a lado, sem jamais se encontrar. Um povo humilde se debate de dia para sobreviver. E esse mesmo país, à noite, é habitado somente por deuses, diabos, homens transformados em bestas. O país real: a luta pela sobrevivência. E o país sonhado: todos os fantasmas do povo mais megalomaníaco do planeta79 (LAFERRIÈRE, 2011, pp. 40-41).

Nesta passagem encontramos, além de uma afirmação sobre o poder de ressignificação do povo haitiano, uma justificativa para as divisões de mundos que acontecem na estrutura do livro. É como se Laferrière quisesse ilustrar, em sua obra, essa cisão entre as práticas do

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Segundo Moreira (2011) este ser é uma entidade mitológica: “Um homem dotado de poderes diabólicos, antropófago de hábitos noturnos que, antes de iniciar suas caçadas, despe-se da própria pele, o que lhe permite voar” (LAFERRIÈRE, 2011, p.50).

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[...]Les gens mettent dans les mains du mort, quand ils supçonnent que cette mort n‟est pas naturelle, une bobine de fil et une aiguille sans chas en lui demandant de filer l‟aiguille. C‟est comme ça qu‟on occupe un mort [...] Jusqua‟à la Résurrection, lance-t-elle fièrement. Seul Dieu peut le réveiller... (LAFERRIÈRE, 1997, p.50) 79

On dirait que deux pays cheminent côte à côte, sans jamais se rencontrer. Un petit peuple se débat le jour pour survivre. Et ce même pays n‟est habite, la nuit, que de dieux, de diables, d‟hommens changés en bete. Le pays réel : la lutte pour la survie. Et le pays rêvé: tous les fantasmes du peuple le plus mégalomane de la planète (LAFERRIÈRE, 1997, p. 46-47)

cotidiano, „compreensìveis‟ ao ocidente, e o irracional do misticismo praticado na noite, costumeiro ao povo haitiano. O real seria o equivalente do dia, e o irreal correspondente da noite. Isto não quer dizer que os capítulos correspondentes ao Pays réel se atém a ações e histórias diurnas, ou que as passagens pertencentes ao Pays rêvé se mantém na instância noturna.

Pelo contrário, há grandes fusões e confusões80 nos dois universos. Pays réel conta com a narração de todos os passeios pela capital haitiana, as reflexões sobre lugares e os momentos com os amigos e familiares, mas sempre com um alerta de perigo constante e comparações entre vida e morte. Enquanto Pays rêvé relata a busca por informações sobre o exército zumbi, acontecimentos estranhos, eventos sobrenaturais e histórias sobre seres místicos. Laferrière impõe uma divisão, nomeando estes universos, porém não consegue manter uma separação. Confiamos que há grande probabilidade dessa característica da obra ser proveniente da própria indivisibilidade proposta pela história do exército zumbi, relatada por Marie.

A mãe relembra ao filho que o exército é proveniente de um trato entre os dois antigos presidentes haitiano e americano. Um havia espalhado seu batalhão pela cidade durante o dia, para controlar os haitianos, enquanto o outro optou por “reinar” à noite com seu exército zumbi. Logo Vieux Os toma consciência da importância da noite para os haitianos:

[...] O tempo é invisível. Começo a compreender e a apreciar ao mesmo tempo esse curioso pacto. Então os soldados americanos voltam para suas casernas, à noite. No mesmo momento, o exército dos zumbis se prepara para sair. Claro como o dia. É preciso dizer que o único pavor do soldado americano – como esse jovem de Ohio -, era circular na noite haitiana. Todos eles ouviram falar do vodu antes de chegar a Porto Príncipe, e todos têm medo de enfrentar o inimigo invisível cujo riso congela os ossos. De dia, são apenas pobres negros mal equipados – sua arma mais recente data da Segunda Guerra Mundial – mas à noite...81 (LAFERRIÈRE, 2011, pp. 54-55)

Deste modo, Vieux Os declara que o trato entre os presidentes era perfeito, posto que o dia seria para o Ocidente enquanto a noite restaria à África. Receosa, Marie acaba revelando

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Constatamos que já foram desenvolvidos trabalhos que versam sobre esta questão, como o estudo de Courcy (2006). Ao analisar Pays sans chapeau, ela ilustra por meio de uma tabela as divisões, confusões e fusões entre os mundos, trabalhando as categorias textuais e estruturais do livro.

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[...] Le temps, lui, est invisible. Je commence à comprendre et à apprécier du même coup ce curieux pacte. Donc, les soldats américains rentrent dans leurs casernes, le soir. Au même moment, l‟armée des zombis s‟apprête à sortir. Simples comme bonjour. Faut dire que la seule panique du soldat américain – comme ce jeune soldat de l‟Ohio -, c‟était de circuler dans la nuit haïtienne. Ils ont tous entendu parler du vaudou avant d‟arriver à Port-au-Prince, et ont tous peur de faire face à l‟ennemi invisible dont le rire vous glace les os. Le jour, ce ne sont que de pauvres Nègres mal équipés – leur plus récente arme date de la Seconde Guerre mondiale – mais la nuit... (LAFERRIÈRE, 1997, p.64-65)

que a situação poderia ser tranquila se o exército zumbi tivesse respeitado o trato e não saísse também durante o dia:

- Seria bom – murmura finalmente –, se eles não saíssem também de dia. - Eles quem?

- O exército zumbi... Talvez você esteja brincando, Velhos Ossos, mas é sério o que estou dizendo. Dá uma volta no cemitério, que você vai ver. - Escuta, mãe, se eles fazem isso, quer dizer que romperam o trato em relação ao tempo (o dia para eles, a noite para nós), e aí os americanos não vão demorar a atacar.

- Os americanos, meu filho - diz minha mãe com um sorriso no canto da boca -, não sabem nem distinguir um negro instruído de um negro analfabeto, e você lhes pede agora para fazer diferença entre um negro morto e um negro vivo82 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 55).

A conversa entre mãe e filho se estende ainda com a indicação de que o escritor tenha cuidado em seus passeios pela cidade. Ela o aconselha a usar um espelho para verificar se a pessoa diante dele seria um zumbi ou não, indicando que este ser não teria reflexo. A partir desta história, Vieux Os procura novas explicações sobre este exército.

Percebemos diversas referências aos eventos históricos do país: a ocupação Norte- Americana (1915-1934), que Moreira (2006) destacou como um dos eventos „fantasmas‟ presente na obra, revoluções haitianas (1791-1804), e, ainda, uma correlação com os exércitos e a milícia, constituídos durante a era Duvalier (1957-1986). Por que tantas referências históricas em Pays sans chapeau? Esta insistência dos acontecimentos históricos é uma das características do imaginário da literatura de nosso território.

Segundo Laplantine e Trindade (1997), as literaturas Latino-Americanas possuem a tradição de parodiar o grotesco da realidade do seu povo. Lembremos os milhares de massacres enfrentados pelos nativos haitianos, na época da colonização, assim como em nosso país sobe o domínio de Portugal, a importação massiva de escravos nas colônias e entre outros:

Se é pelo paródico e o grotesco que essas obras nos convidam a entrar na realidade das sociedades da América Latina, é porque a própria realidade é

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- Ce serait bien, finit-elle par murmurer, s‟ils ne sortaient pas aussi le jour. - Qui ça “ils”?

- L‟armée des zombis... tu blagues peut-être, Vieux Os, mais c‟est sérieux, ce que je te dis là. Va faire une visite au cimetière, tu verras.

- Écoute, maman, s‟ils font ça, la veut dire qu‟ils ont rompu le contrat à propôs du temps (le jour pour eux, la nuit pour nous) et tu vas vois que les Américains ne tarderont pas à sévir.

- Les Américains, Mon fils, me dit ma mère avec un sourire au coin des lèvres, ils n‟arrivent même pas à distingues un Noir instruit d‟un Noir illetré, et tu leur demandes maintenant de faire la différence entre un Noir mort et un Noir vivant (LAFERRIÈRE, 1997, p.65-66).

grotesca e tende a parodiar a si mesma. Lendo-as, mergulhamos nos meandros do sórdido e do ignóbil. Ambiente de pesadelo. Comportamentos delirantes. Despotismo exacerbado. Brutalidade megalomaníaca. Corrupção e suspeita generalizadas. Derrocada e decomposição da sociedade. O ditador parece dotado de todas as abjeções do mundo. Mas esses livros se inspiram em tiranias reais, em figuras sinistras de torturadores psicopatas que nada têm de imaginários. Não são apenas as narrativas fabulosas que são extraordinárias e extravagantes e muitas vezes, para nós, incríveis, mas a própria realidade que se apresenta como uma realidade alucinada. Realismo, hiper-realismo, surrealismo das tiranias por si mesmas desmedidas e fazendo apelo a uma escrita do desmedido (mas também da extrema concisão) (LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p. 23).

A narrativa Pays sans chapeau ostenta muitas dessas caraterísticas apontadas por estes teóricos, na citação acima. Uma obra que representa os contextos fatídicos, transgressores, opressores e políticos de um povo. Um exército de mortos-vivos, que hora encontra-se em sua literalidade sobrenatural e hora remete ao metafórico, se empenha na sua função de parodiar o histórico-social haitiano, lhe conferindo um aspecto de „putrefação‟.

A história do Haiti é marcada por grandes transgressões, basta compreendermos o que se passou durante os eventos históricos. Durante a luta pela independência Boukman não só popularizou o Vodu, considerado herança cultural de forte tradição na nação. Ele também muniu-se dos discursos de ódio ao colonizador, ao branco, e conseguiu repetir os erros que seus colonizadores cometeram. Uma “[...] liberdade conquistada com sangue e morte” (MARQUES, 2017, p.150).

Quando voltamos ao contexto da ocupação Norte-Americana percebemos novamente o surgimento das oposições das raças; as segregações em um território em que a maioria era miscigenada. As Nações Unidas no território era praticamente a perda da independência (GRONDIN, 1989). É óbvio que houve retaliação de ambos os lados. Uma frase memorável surge na obra de Laferrière em relação a este contexto, além daquela que acabamos de lembrar; sobre o preconceito do branco que não distingue o negro iletrado do negro morto.

No momento em que Vieux Os, acompanhado por seu amigo Philippe, se depara com a presença de um soldado americano, em um supermercado da cidade, ele diz: “- Na primeira ocupação, de 1915, o governo americano mandou os piores racistas do sul dos Estados Unidos para reprimir os negros do Haiti. Sei lá, estou falando como um nacionalista puro-sangue, mas vivo em Miami”83

(LAFERRIÈRE, 2011, p.148-149). O pequeno diálogo entre os amigos,

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“- Lors la première occupation de 1915, le gouvernement américain avait envoyé, pour mater les Nègres d‟Haïti, les pires racistes du sud des États-Unis. Enfin, je parle comme un nationaliste pur crin, alors que je vis à Miami” (LAFERRIÈRE, 1997, p.187).

que se encontra na divisão Pays réel, nos concede uma informação sobre as possíveis tensões instauradas no Haiti com a ocupação Norte-Americana.

Outro exército parodiado nesta obra seria a milícia84 instaurada pelos ditadores haitianos, Papa Doc Duvalier e Baby Doc Duvalier. Seus homens, assim como o exército haitiano, desempenhavam a função de controlar o povo (GRONDIN, 1985). Novamente, erros são cometidos. Durante o período de opressão, a nação enfrentou grandes massacres.

Segundo Grondin (1989), Duvalier pai subiu ao poder com a estratégia religiosa. Para conquistar a massa, este ditador declarou-se a favor do Vodu, e foi considerado o primeiro Houngan, uma posição de grande destaque entre os praticantes da religião. Após subir ao poder e instaurar a ditadura, este homem passou a ser conhecido por suas investidas contra a oposição, ele praticava desde a tortura em público, como também autorizava mortes de pessoas públicas e intelectuais. Uma de suas criações foi a construção de Fort-Dimanche, uma prisão subterrânea para seus inimigos.

Papa Doc dominou o paìs com „punhos de ferro‟. Por meio do medo, ele “[...] havia estabelecido no país a maior paz conhecida em muitas décadas: a paz dos cemitérios. Já não se torturavam as pessoas: o terror havia sido de tal forma internalizado pela população que esse método já era desnecessário” (GRONDIN, 1985, p.47-48). Seu filho, Baby Doc, deu prosseguimento com o terror.

Com promessas de melhorar a economia do país, Duvalier filho herda85 a função de seu pai. Todavia, não foi bem assim que se procedeu esta investida econômica. Em doze anos ele conseguiu afundar o país na miséria. Diversos intelectuais foram obrigados a fugir, obtendo o exílio político em outros países e continentes. Sem contar, dos diversos “[...] cadáveres de haitianos encontrados nas praias de tantas ilhas do Caribe” (GRONDIN, 1985, p.50).

É provável que o Exército Zumbi seja uma paródia desses eventos, dos massacres enfrentados na história. O mundo dos mortos é a temática principal em Pays sans chapeau

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Quando Duvalier chegou ao governo estabeleceu um novo corpo de forças armadas, ele “[...] acabou com a oposição do seu exército eliminando oficiais favoráveis ao setor mulato e substituindo-os por oficiais de sua corrente, treinados por oficiais americanos; criou o corpo de milìcias “populares”, os temidos Tontons-Macoutes (o nome provém de “tio-mochila”, figura lendária que rouba crianças e as leva em sua mochila) para equilibrar o poder do exército oficial e controlar o interior do paìs.” (GRONDIN, 1985, p.47) Os homens que pertenciam aos Tontons-Macoutes eram também reconhecidos como “bicho-papão”.

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De acordo com Grondin (1985), antes de falecer Papa Doc conseguiu elaborar um documento em que declarava seu filho como seu sucessor. Ele fez com que as autoridades do governo assinassem o ofício e garantiu que este fosse cumprido após sua morte.

devido a este contexto histórico grotesco86 presente na própria história da sociedade haitiana. Vale ressaltar que esses são alguns dos massacres, enfrentados pelo povo haitiano, dos quais se possuem registros, e são eles parodiados na obra. Laferrière tenta, até mesmo, reproduzir a luta pela sobrevivência, enfrentada no cotidiano pela massa, por intermédio das reflexões de Vieux Os. As oposições dia e noite recebem uma configuração importante; a representatividade da religião vodu para o povo, humilhado e maltratado, mas que supera as adversidades.

Dany Laferrière compõe o Exército Zumbi em vários sentidos, crítico e imagético; no intuito de evidenciar o imaginário. Ele o conecta ao vodu, na tentativa de discorrer também sobre o insólito. Se retomarmos a continuação sobre a história do Exército Zumbi, veremos que o relato de Marie será deixado de lado. O Professor J.-B Romain dá uma nova resolução ao caso. Ele conta a Vieux Os que tudo começou com uma revolta camponesa.

Os camponeses de uma fazenda se revoltaram contra o dono das terras, o senhor Désira Désilus. Consequentemente, ele convocou alguns soldados para controlar o levante. Nesta confusão, dispararam tiros contra os resistentes, mas eles continuaram a avançar contra os soldados, que por sua vez acabaram fugindo. Depois de certo tempo, um soldado que vivenciou esta situação identificou um dos homens, e sinalizou que este deveria ter morrido no combate. No entanto, o camponês estava andando pela cidade. Deste modo, Vieux Os constata: “ – Então, era um zumbi”87

(LAFERRIÈRE, 2011, p.64).

Se fizermos a comparação entre a história contada por Marie e o desfecho pelo olhar do personagem J.B. Romain, perceberemos a unificação nas descrições deste ser. A cabeça sempre baixa, em estado de subserviência e a falta de reação ao contexto em que estão inseridos. O professor ainda traz a explicação de que as únicas novidades são os comportamentos reacionários, por parte dos zumbis. Seria a primeira vez que estes seres demonstrariam vontade própria. Vieux Os indica que não é uma surpresa saber de proprietários de terras, no Haiti, usufruindo da mão de obra zumbi. A reunião dessas diretrizes colabora para a insistência do insólito na obra.

É certo que há um grande teor crítico neste episódio, como foi verificado em nosso primeiro capítulo sobre as ideias marxistas na literatura de Laferrière. Não temos intenção de ignorar este viés, mas nossa proposta é de observar o ser sobrenatural, neste momento. No Haiti há um número de relatos sobre a zumbificação, desde notícias que surgem na mídia até

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Esse termo é utilizado por Laplantine & Trindade (1997), referente às problemáticas históricas que as civilizações do continente americano sempre vivenciaram. Esses teóricos argumentam que a literatura americana detém uma forte tradição ao que diz respeito ao paródico de uma realidade histórica, massiva e difícil.

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cientistas que já tentaram revelar o mistério a respeito deste procedimento praticado no país.