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É certo que a tradição literária haitiana penetra a escrita pós-moderna de Laferrière, mas antes de expor sobre a questão vejamos algumas concepções de Tradição no texto literário, nas perspectivas de Cândido (2002), Eliot (1989) e Paz (2013).

Em Cândido (2002), a tradição é percebida como uma “espécie de tocha” que é passada de geração em geração, ou seja, o sentido primeiro da tradição “[...] transmissão de algo entre homens” (CÂNDIDO, 2002, p. 24). Por sua vez, a literatura é observada como um sistema de obras interligadas, que possuem elementos de compartilhamento desta tradição. Nessa perspectiva, a obra literária, quando observada em sua totalidade, apresenta uma integração a um sistema que revela os seus aspectos em comum às outras obras, as quais podem ser notadas nas características, nos elementos, estilos e (ou) temas que elas apresentam. Sendo assim, para este teórico, a tradição na literatura seria uma espécie de herança.

A analogia desse literato brasileiro implica que enxerguemos a tocha como a própria obra literária e seu sistema como o percurso no qual a tradição se instalaria. Portanto, a analogia da tocha implica na participação de um alguém que a acenda, a carregue ao “outro”. O estudioso afirma que uma nova criação que foge conscientemente deste esquema torna-se o ponto inicial para a formação de outros sistemas. Ou seja, rupturas que podem iniciar uma nova herança. Assim, a tradição não surge do acaso, como o próprio Cândido (2002) argumenta sobre a formação da literatura brasileira. Antes que haja o „novo‟, o „antiquìssimo‟ resiste e atravessa os tempos.

Eliot (1989) aparenta concordar com Cândido (2002) ao dissertar sobre a consciência de se ater à tradição durante o exercìcio do “escrever”. Porém, ele rejeita a ideia de observar o autor como um herdeiro dela. Para o crítico literário inglês, a tradição deve ser algo a

conquistar-se por meio do esforço de um dado autor, que na atividade de sua maturidade observa o passado literário histórico para ter consciência de sua própria temporalidade:

[...] e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas da sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero, e nela incluída, toda a literatura de seu próprio país tem uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea (ELIOT, 1989, p. 39).

Nesse sentido, o autor tradicional seria aquele que percebe o fator histórico que a tradição exige; trata-se de uma formulação da escrita presente que possui a consciência do seu passado. Ou seja, o novo se adequa e entra em harmonia através desse conhecimento do passado, que para nós pode ser exemplificado na formação do cânone literário, que procura sempre a inclusão de novas literaturas. Sendo assim, para perceber a tradição e os elementos tradicionais de uma obra podemos recorrer aos próprios movimentos anteriores que interligariam um dado sistema literário, como em uma espécie de investigação diacrónica. Esse movimento de “olhar” para o passado histórico, apontado por Eliot (1989), nos ajuda a compreender as composições que os autores do século XXI têm produzido.

O aspecto histórico apresenta-se, em Octávio Paz (2013), na definição da expressão “tradição moderna”, a qual consiste em outra espécie de tradição:

[...] tradição moderna: é uma manifestação de nossa consciência histórica. Por um lado, é a crítica do passado, uma crítica da tradição; por outro, é uma tentativa, repetida frequentemente ao longo dos últimos dois séculos, de assentar uma tradição no único princípio imune à crítica, já que se confunde com ela: a mudança, a história (PAZ, 2013, p. 21-22).

Dessa forma, em Octávio Paz (2013), a tomada de consciência histórica se transforma em uma convivência temporal do passado, presente e futuro. Diferentemente do “olhar” que Eliot (1989) sugere, a tradição, em Octávio Paz (2013), consiste em um passado plural e diverso, o qual recebe uma nova roupagem. Ou seja, a proposta da tradição na modernidade é o “novo”, a criatividade através daquilo que já existe e existiu e, sobretudo, o “diferente”.

Embora a modernidade seja conhecida por ter promovido rupturas que negam o passado a fim de desenvolver uma “autodestruição criadora” (PAZ, 2013, p. 17), sua autocrítica frutificou em arte, que aderiu à concepção de criticar a si mesma. Para sermos mais claros, podemos exemplificar com a obra Pays sans chapeau de Laferrière, na qual se destacam discursos sobre o ato de escrever um romance e, ao mesmo tempo, expressa-se

sobre a pintura naïf, entre outros aspectos. Porém, a própria crítica pode ser percebida na narração de Vieux Os, que compartilha com seu autor a profissão de escritor. Trata-se de um personagem que é um escritor exilado que assume, na obra, seu amor por viajar. Ressaltamos que, em uma entrevista concedida à Revista Brasileira do Caribe (2008), o autor Dany Laferrière comenta sobre essa interpretação de sua obra, assumindo que os intelectuais haitianos exilados têm receio em assumir que o país anfitrião possibilita uma vivência mais concreta para o exercício da escrita literária, e que seu romance faz parte de sua declaração a respeito desta temática.

Entretanto, segundo Paz (2013), o interesse da modernidade fundamenta-se não apenas no novo, mas no diferente. Este último seria o responsável por negar ou aceitar o que foi feito tanto agora quanto anteriormente. Logo, o passado pode ser contemplado como contemporâneo devido à sua conotação de novidade que surge na contemporaneidade: “Ungido pelos mesmos poderes polêmicos que o novo, o antiquíssimo não é um passado: é um começo. A paixão contraditória o ressuscita, reanima e transforma em nosso contemporâneo” (PAZ, 2013, p. 17). Isso explica, segundo o estudioso, o surgimento da produção de várias civilizações antigas na arte moderna e a justificativa se encontraria na inclinação desta modernidade à sua percepção temporal que considera a convivência do passado com o agora.

Esta convivência dos tempos que se estabelece na tradição moderna é consequência de uma aceleração temporal: “Aceleração é fusão: todos os tempos e todos os espaços confluem num aqui e agora” (PAZ, 2013, p. 19). Ou seja, se estendemos esta fusão à pós-modernidade, perceberemos que temos vivido o encontro entre o passado, presente e futuro em uma só linha temporal.

As três concepções de tradição, aqui apresentadas, ajudam-nos a compreender que ela pode residir em uma literatura a partir de três diretrizes: a) o elemento tradicional que pode manifestar-se através da participação de uma dada obra em um determinado sistema, b) a tradição que ocupa lugar no texto proposital e conscientemente, e c) a tradição pode surgir como o “novo” e “diferente”. Se há uma tradição em Laferrière, quais destas três formas se adequam à sua escrita?

Pays sans chapeau: do Indigénisme à Estética da degradação

Até agora levantamos questionamentos a respeito da tradição na literatura de Laferrière. Terminamos dois tópicos de nossa discussão com duas questões: a primeira

pressupõe a tradição por meio dos eventos e elementos sobrenaturais nas narrativas do ciclo haitiano do autor, e a segunda se dispõe a compreender que tipo de Tradição seria essa. Para fins de compreensão da tradição46 na escrita haitiana imigrante do Quebec de Dany Laferrière, iremos refletir a respeito do Indigénisme47. Esta seria a principal característica das obras do ciclo haitiano de Laferrière.

Segundo Charles (1984) o Indigénisme não nasceu em 1927, com a revista haitiana

Indigène, apesar de ser um marco na história da literatura nacional haitiana com o surgimento

do movimento Indigéniste. A tese da estudiosa colabora com a visão de que o Indigénisme sempre esteve presente na literatura haitiana, todavia em graus diferentes. Em sua exposição, ela aborda historicamente a evolução estética e temática da literatura haitiana, revelando-nos que, na verdade, o Indigénisme não é apenas o louvor à cultura do negro, mas a própria identidade haitiana. A prova disso é que, para ela, este termo se aproximará cada vez mais do

haïtianisme. Ou seja, é uma identidade propriamente Haitiana. O surgimento do termo

“Indigénisme” vem desde as lutas pela independência. Portanto, está atrelado aos fatos históricos do Haiti. Para fins de nossa compreensão, acerca dessa literatura, gostaríamos de discutir especificamente sobre dois momentos da História haitiana: as revoltas do exército negro e a ocupação norte-americana.

Inicialmente, o Haiti foi uma rentável colônia dominada por espanhóis (1492) e posteriormente por franceses (1697). O primeiro grupo foi responsável pelas mortes de quase toda a população autóctone, enquanto o segundo instaurou o tráfico negreiro, fazendo da ilha a sua colônia mais rentável. Dessa maneira, Saint-Domingue, antigo nome do Haiti, marcou o mundo com as primeiras revoltas impulsionadas, arquitetadas e comandadas pela grande população de negros libertos e escravos:

A revanche dos africanos recentemente escravizados ou dos filhos de africanos manifestou-se com a Guerra da Independência: arrasaram e eliminaram os brancos da ilha, conseguindo a primeira revolução e independência das colônias do sul e estabelecendo a primeira república negra do mundo. (GRONDIN, 1985, p. 38)

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Nossa intenção de dissertar sobre Indigénisme e correlacioná-lo às leituras da obra Pays sans chapeau é uma tentativa de observar como funcionaria a concepção de tradição dentro do sistema literário, na visão de Cândido (2002).

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A concepção de Indigénisme proposta aqui se encontra mais próxima da visão trabalhada por Charles (1984), como uma espécie de essência nacionalista, cujos movimentos literários haitianos colaboram para uma manifestação. Todavia, Moreira (2006) possui uma concepção de Indigénisme como corrente literária, possuindo uma cisão com o Noirisme, estes não foram abordadas por Charles (1984). Observando que os dois estudos se complementam, decidimos utilizar ambos nesta exposição.

Durante essas revoluções, travadas entre os brancos franceses e negros africanos, as raízes patrióticas foram cada vez mais estimuladas à imposição de uma nova língua e religião, a qual unificou as várias etnias espalhadas pela ilha. Nas palavras de Grondin (1985):

Assim como o créole serviu de língua franca, o vodu serviu de religião franca entre os escravos africanos de múltiplas tribos. [...] os escravos integraram crenças, ritos, músicas e danças originários de suas diferentes tribos para formar uma religião sincrética, símbolo de sua unidade e diversidade (GRONDIN, 1985, p. 78).

Desse modo, o vodu e a língua créole surgem nesta terra dando prosseguimento à ancestralidade vinda da África, contrapondo-se ao francês e ao catolicismo do colonizador. Charles (1984), ao dissertar sobre o conceito de Indigénisme, lembra que este momento da história haitiana é muito importante para a compreensão do termo, posto que foi a partir das investidas de Boukman, sacerdote vodu e comandante do exército Indigène, que a religião de matriz africana tornou-se vital para a vida dos haitianos. O comandante foi responsável por fazer uma cerimônia vodu antes do ataque ao exército napoleônico, durante a luta pela independência haitiana (1791- 1804). Com a conquista da independência, o nome de seu exército foi atrelado à identidade nacional.

Por consequência, as primeiras literaturas nacionais haitianas48 proveram-se da cultura popular como inspiração e conteúdo para as suas produções dando prosseguimento com as “[...] tradições, contos, lendas, crenças e provérbios das diversas culturas africanas, fundidas em um todo harmonioso”49

(CHARLES, 1984, p. 16). Estas características seriam suficientes para compreendermos a abundância dos elementos e eventos sobrenaturais, em Dany Laferrière, como provenientes das crenças historicamente populares e parte da herança literária haitiana. Sendo a “tocha acesa” (CÂNDIDO, 2002) que permanece até os dias de hoje. Porém, há algo mais complexo nesta tradição.

O Indigénisme não será apenas a valorização cultural impressa na literatura, mas o próprio haïtianisme. Charles (1984) afirma que os autores haitianos sempre enfrentaram essa questão identitária: a defesa do país, da raça e cultura negras, e o social. Nesse sentido, as obras de Dany Laferrière manteriam a tradição (CÂNDIDO, 2002)? Não. O nosso objeto de estudo está longe de ser uma ode à identidade nacional.

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Segundo Moreira (2006), o período de 1830-1930 é marcado como o romantismo haitiano. Com romances e poemas de imitação, direcionados a vida local, o meio campestre e rural. As literaturas destacadas no trabalho da tradutora revela que a temática de identidade social já era recorrente destes períodos. Os movimentos literários agrupados deste período, no trabalho dela, são os seguintes: La Ronde, La Nouvelle Ronde, L’École patriotique. 49

“[...] les traditions, contes, légendes, croyances et proverbes des diverses peuplades africaines, amalgamés en un tout harmonieux” (CHARLES, 1984, p. 16).

Nas outras obras do ciclo haitiano, vemos um narrador-personagem que sente medo e, consequentemente, acredita nessas divindades do panteão vodu e compreende a cultura local. Na fase infantil e adolescente, havia uma identificação com o nacional. Contudo, em Pays

sans chapeau, sua postura é completamente diferente. Há um estranhamento aos deuses, à

mentalidade haitiana e até mesmo a sua identificação com o país é conturbada, afinal, Vieux Os é um expatriado.

Percebemos esse fato em uma dada situação na obra. O nosso narrador-personagem se encontra com Pierre, o vizinho e amigo de sua mãe. O senhor conta-lhe que o haitiano foi o primeiro homem a andar na lua. Ele explica que o americano Armstrong pensava estar sozinho na planície do satélite natural da terra, mas constatou a presença de mais alguém. Era um espírito de um homem haitiano que pedia-lhe um cigarro. Vieux Os reflete atentamente sobre isso, mas não consegue compreender, em seguida assume: “Não, eu ainda não tinha entendido, mas não queria dizer isso ao senhor Pierre para não decepcioná-lo. É nisso que dá passar quase vinte anos fora do seu país. Já não entendemos as coisas mais elementares”50 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 96).

A incompreensão do narrador-personagem diante de vários acontecimentos na obra pode ser um indicativo da sua aculturação, ao que se refere à identidade nacionalista. A realidade local já não surte o mesmo efeito que em outros momentos de sua vida. Entretanto, é exatamente o que movimenta a obra. Diante da própria incompreensão e dúvidas, ele investiga o exército zumbi e encaminha a obra a um desfecho: o encontro com os deuses.

Esta mudança em sua identidade, proveniente do exílio, não é apenas a ruptura com o

Indigénisme, mas também o surgimento de uma nova Tradição: o “réenracinement”. Segundo

Kwaterko (2002), este termo se refere a uma reconstrução do passado. Para ele, um dos autores precursores desta nova característica na literatura haitiana pós-moderna é o próprio Dany Laferrière. Aqui, encontramos a tradição na visão de Paz (2013): o passado que se constitui no presente. Esse “réenracinement” também pode ser atribuìdo à própria presença das figuras míticas nas obras. Os mitos de fundação da pátria, que estiveram presentes durante as lutas pela independência, rompem nas obras e permanecem em uma pós-modernidade literária como o “novo”, embora primitivo; no sentido de antiquíssimo.

Destarte, o apogeu do Indigénisme é alcançado após a ocupação militar norte- americana (1915-1934). Devido ao interesse pela situação política e rentabilidade que o Haiti

50 “Non, je n‟avais pas encore compris, mais je ne voulais pas le dire à M. Pierre pour ne pas le décevoir. Voilà ce que c‟est que d‟avoir passé près de vingts ans hors de son pays. On ne comprend plus les choses les plus élémentaires” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 115).

ainda podia fornecer, sobe o pretexto da instabilidade política de Cuba, os Estados Unidos firmam um trato com o governo haitiano e se instalam no país:

Desde a construção do canal do Panamá (1904), o Haiti adquiriu uma importância estratégica particular para os Estados Unidos. Um dos objetivos da invasão americana e da ocupação (1915-1934) era precisamente assegurar o controle da linha marítima que conduzia ao canal – o que foi feito com a eliminação das forças rebeldes e através do apoio aos governos submissos ao seu poder hegemônico. O fortalecimento da revolução cubana e seu efeito de demonstração no Caribe, ameaçando o controle norte-americano sobre a região [...] levaram os Estados Unidos ao rompimento com Cuba e a intensificação de sua vigilância sobre os países da América Central (GRONDIN, 1985, p.46).

Com essa interferência na nação, os haitianos sentem a perda da sua independência, mais tarde surge a temporada de ditaduras no Haiti. A literatura sofre várias mutações, tanto de forma quanto de conteúdo, munindo-se sempre do contexto político, social e cultural do país. Em reação ao ambiente de ocupação, surge o movimento literário Ingéniste (1927-1934), por meio da revista Indigène, citada no início deste tópico. Com uma proposta de ética racial e conscientização nacional sobre as raças, tal corrente intencionou trabalhar a identidade nacional retornando à ancestralidade africana, para se proteger da cultura ocidental dos ocupantes americanos (CHALES, 1984).

A adição da Négritude e as ideias do movimento Indigéniste originaram a revista

Griots (1934-1940), que, por sua vez, se concretizou enquanto corrente literária. Com uma

busca exacerbada pela doutrinação e retificação da mentalidade haitiana, os escritores pertencentes ao Les Griots mergulharam no misticismo negro, caracterizado pelas divindades, pelo vodu, o zumbi, entre outros elementos. A partir dessa corrente, a literatura haitiana passa a dispor de um estilo de escrita próprio: o romance Paysan 51. Segundo Charles (1984), este seria o projeto Indigénisme, materializado em conteúdo e forma. Seria um romance de ação, tomado pelo misticismo religioso: “[...] ele permite também ao autor de voltar até as raízes originais de seu povo. O fundo, folclórico ao máximo”52

(CHARLES, 1984, p.84).

Essas duas correntes são os destaques entre os movimentos literários haitianos, porque representam a identidade haitiana mais próxima de sua ancestralidade africana, conforme aponta Charles (1984). Nesse raciocínio, seria a literatura haitiana cada vez mais africana?

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A palavra “Paysan” corresponde a “rural” ou “camponês”, no português. 52

“[...] il permet aussi à l‟auteur de remonter jusqu‟aux racines originelles de son peuple. Le fond, folklorique au maximum” (CHARLES, 1984, p. 84).

Tais correntes literárias representam a miscigenação da nação ao tratarem as questões raciais? Não temos a intensão de responder estas questões, apenas de colocá-las em evidência.

Gostaríamos de salientar que usufruímos, até o presente momento, do trabalho de Charles (1984) para falar do Indigénisme em sua plena essência. Percebemos que sua leitura sobre os movimentos literários é precisa e consistente, em sua totalidade, porém, salientamos que as suas conclusões sobre os dois movimentos destacados aqui não são plausíveis. Não se sustenta a ideia de que a “pureza” ancestral africana adotada pelos movimentos Indigéniste e

Les Griots representa aquilo que é de fato haitiano, embora haja uma confirmação de que

houve sempre uma busca pelas essências adotadas por esses movimentos. As conclusões de Charles (1984) conectam-se às ideologias radicais de um movimento literário, que vigorou durante as ditaduras haitianas (1957-1986), ocorridas logo após a ocupação norte-americana: o Noirisme.

A discussão sobre as duas correntes literárias confirma o raciocínio adotado por Moreira (2006) ao dissertar sobre Indigénisme53 (1930-1960) em aproximação ao Noirisme54. A tradutora defende que a exploração exacerbada da “África mìtica” foi a base para a ideologia do Noirisme, corrente literária vigente durante a ditadura Duvalier (MOREIRA, 2006, p. 35). Já Charles (1984) destaca o nome do ditador Papa Doc como parte dos integrantes do grupo Les Griots.

Para Moreira (2006), o Indigénisme está além do romance Paysan e não se restringe ao misticismo africano. Os estudos de Moreira (2006) contribuem para a visão de que a literatura haitiana recorre não só às questões raciais, mas também ao social e ao político. Observamos que esses dois últimos aspectos seriam as marcas que se destacam na literatura haitiana. A prova disso são as literaturas que se opuseram à ditadura Duvalier e que continuaram a se alimentar do contexto social.

Poderíamos agora compreender uma das propostas de Laferrière em Pays sans

chapeau: se a ditadura Duvalier está ligada aos movimentos literários Indigéniste, Les Griots

e Noirisme, que radicalizam a valorização das culturas africanas, qual seria a reação de um autor que foi banido durante este tempo? Escrever uma literatura exótica em prol de uma imagem do país caribenho ou se opor, em todas as formas possíveis, ao sistema totalitário que

53 Para Moreira (2006) o Indigénisme encontra-se mais atrelado ao movimento literário Indigéniste, como explicamos anteriormente.

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A referida corrente literária não foi teorizada por Charles (1984) e há pouquíssima teorização deste movimento. Apontamos que esta pode ser uma lacuna que deveria ser preenchida, porém não temos a intenção de abordá-la profundamente. Acreditamos que as correntes Indigéniste e Les Griots são suficientes para demonstrar a tradição em Laferrière, assim como as rupturas que sua escrita promove.

mudou a paisagem cultural e intelectual do Haiti? Laferrière decidiu pela segunda opção ao propor reflexões profundas a respeito das raízes patrióticas.

É provável que o misticismo surja nas obras55 de Laferrière como uma forma de resistência da tradição, mas recebe uma nova configuração em Pays sans chapeau. Por isso,