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Motta (2002) destaca que a pluralidade de imaginários na América Latina é proveniente da propagação imagética vivida historicamente em nosso território. O que isto quer dizer? Desde o passado se promoviam os encontros das diversidades e das manifestações, mesmo que inicialmente algumas expressões do imaginário fossem lidas como bárbaras, profanas, entre outros. O professor indica que o fenômeno da globalização, atualmente, apenas intensificou e propiciou o encontro e o compartilhamento dos imaginários, revelando as pluralidades. Com este contexto torna-se favorável a representação do imaginário manifestado nas narrativas literárias.

O vodu haitiano, por exemplo, expresso nas obras de Dany Laferrière ganha sua popularidade em solo quebequense, mesmo sendo posto como algo ficcional. Por meio das imagens, viabilizadas pelo texto literário, o cultural haitiano propaga sua imaginação. Assim, o imaginário se expande no território do „outro‟, com imagens das manifestações religiosas; os mitos. De acordo com Motta (2002), se nossa finalidade é compreender essas expressões do imaginário, bem como as imagens dos mitos, podemos nos munir da análise do mitologema, conceituado por E.C. Whitmont:

As imagens mitológicas particulares representam forças religiosas vivas, coletivamente válidas enquanto estiverem de acordo com a essência e as formas das correntes psicológicas que surgem da psique objetiva para a

maioria dos indivíduos de um período e ambiente cultural particular. Toda vez que o mitologema tradicional perde sua adequação como uma representação simbólica, ele parece estar „morto‟. Não foi Deus quem morreu, então, em nossos dias, mas um mitologema ou uma imagem particular. A força criadora de mitos não morre, pode-se esperar que mitologemas recentemente válidos surjam (WHITMONT apud MOTTA, 2002, p. 118).

Conforme a citação acima, o mitologema é a imagem religiosa, formada a partir do coletivo, detentor de essência e forma; segundo a experiência psíquica dos indivíduos de um tempo e lugar específico. Nesta perspectiva, ele é resultado da imaginação (DURAND, 1989), aquela onde se encontram as epifanias manifestadas. Quando o mito sofre uma alteração e se distancia do padrão estabelecido, experimenta o enfraquecimento e torna-se nulo. A ilustração sobre a morte de Deus, exemplo retirado das análises de Friedrich Nietzsche92 (1844-1900), revela que a representação simbólica do mito deve estar de acordo com suas imagens tradicionais, para que ele se perpetue mantendo-se „vivo‟.

Nesse sentido, poderíamos afirmar que os mitos representados em Pays sans chapeau são fundados a partir de um mitologema, e através dessas imagens representadas, o leitor, seja ele qual for, entra em contato com o religioso haitiano. Todavia, resta-nos uma questão: como estariam representados os mitos93 na referida obra? Para responder nossa indagação retomemos a narrativa, nos momentos de pronunciamentos e contextos que envolvem as imagens dos deuses94 do vodu, na perspectiva do narrador-personagem.

Durante sua pesquisa sobre o exército zumbi, Vieux Os recebe um convite de Lucrèce, padrinho de sua tia. Este homem simples do campo descobre que o narrador-personagem está escrevendo um livro sobre o Haiti e o convida a conhecer o mundo dos mortos. Após este momento, Vieux Os procura uma segunda opinião. Ele recorre ao professor J.-B. Romain, na tentativa de se informar sobre as possíveis consequências de sua ida ao além. O professor, por sua vez, argumenta que assim como os ocidentais avançaram em sua ciência os haitianos

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Nietzsche foi um filósofo alemão que escreveu sobre diversas áreas do conhecimento humano. Sua empreitada maior foi diagnosticar as concepções religiosas alemãs sobre Deus, no imaginário social. Quando escreveu a frase “Deus está morto”, este escritor e pensador fornecia um quadro descritivo e reflexivo sobre a imagem deturpada e distorcida que a sociedade alemã tinha do ser superior, estabelecido pela Bíblia Sagrada protestante. Entretanto, este assunto não é tão simples assim. O trabalho de Mário de Paula (2010) mostra as contradições que se encontram ligadas às análises de Nietzsche sobre a reforma protestante e o reformado Lutero, que às vezes são sinônimos de atraso quanto ao retorno da imagem de um cristianismo medieval. Recomendamos a leitura deste estudo para compreender mais sobre esta questão.

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Adotamos a concepção de mito de Durand que o definiu como: “[...] um esboço de racionalização dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas. [...] o mito promove doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, como bem viu Bréchier, a narrativa histórica e lendária” (DURAND, 1989, p.44).

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Devido à falta de material teórico sobre as entidades haitianas no Brasil, nos ateremos apenas a analisar as imagens de Ogou, Erzulie e Damballah.

também progrediram: “Eles fizeram progressos, nós também progredimos, mas não costumamos falar disso” 95

(LAFERRIÈRE, 2011, p.129). Deste modo, o narrador- personagem, convencido da possibilidade de explorar o além, passa a refletir sobre a finalidade de sua visita:

- Talvez os deuses do vodu queiram que falemos agora. Talvez eles queiram simplesmente um reconhecimento internacional... Porque, professor, o que vale Santa Cecília comparada a Erzulie Dantor, dita Erzulie dos olhos vermelhos? O que vale um simpático São Cristóvão comparado ao terrível Ogou Badagri, o mestre do fogo, ou o inocente São Francisco de Assis comparado ao Baron Samedi, o zelador dos mortos? Essas pessoas querem, talvez, que o mundo inteiro reconheça seu poder, e me escolheram para esse trabalho de propaganda [...]96 (LAFERRIÈRE, 2011, pp. 129-130).

Estas são as primeiras imagens atribuídas aos deuses haitianos. Aqui, Vieux Os destaca as entidades principais da religião vodu, atribuindo-lhes poder e contraponto com os santos católicos. Os deuses haitianos seriam realmente mais fortes ou temíveis que os demais? Na verdade, a correlação entre o panteão vodu e os santos da igreja católica, cujos poderes demonstram-se enfraquecidos perante a força das divindades haitianas, revela o sincretismo histórico dos mitos:

No contexto do Haiti, o sincretismo manifesta-se na mistura entre os ritos católicos e do Vodu. [...] Na religiosidade popular que se manifesta no povo haitiano, há uma especificidade marcante: a devoção à Maria e as festas dos padroeiros de santos assimilados a alguns espíritos da religião vodu (JOSEPH, 2014, p. 75).

Conforme Joseph (2014) aponta, os haitianos praticantes do vodu fazem aproximações entre as entidades que eles cultuam e os santos católicos, por intermédio da leitura simbólica dos elementos referenciais; a partir de alguma característica que lembre a entidade, e vice-versa. Nesse raciocínio Bernand (2016) indica que Ogou, um espírito de batalha e guerra, se aproxima do santo Jacques ou santo Santiago, por causa das lanças que ambos carregam.

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“Ils ont fait des progrès, on a fait aussi des progrès, mais nous on n‟en parle pas” (LAFERRIÈRE, 1997, p.161).

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- Peut-être que les dieux du vaudou veulent qu‟on en parle maintenant. Peut-être qu‟ils veulent tout simplement une reconnaissance internationale... Car professeur, que vaut sainte Cécile face à Erzulie Dantor, dite Erzulie aux yeux rouges? Que vaut un sympatique sait Christophe face au terrible Ogou Badagri, le maître du feu, ou l‟innocent saint François d‟Assise face à Baron Samedi, le concierge des morts? Ces gens-là veulent peut-être que le monde entier reconnaisse leur puissance, et ils m‟ont choisi pour ce travail de propagande [...] (LAFERRIÈRE, 1997, p. 161-162)

Assim, o pronunciamento de Vieux Os promove uma abertura ao sincrético, mesmo que ele procure o distanciamento estabelecendo a supremacia do religioso haitiano sobre o católico. O procedimento que Laferrière utiliza aqui é a ironia. Através desta tensão entre as religiões, ele evoca a disputa histórica vivida na nação. Grondin (1985) atenta que desde a colonização, o vodu é combatido no território haitiano. Enquanto na ocupação norte- americana, houve uma luta pela erradicação da religião:

Em 1941, foi decretada pelo governo mulato uma campanha de destruição do vodu e de saneamento do conteúdo do catolicismo. A campanha correspondeu a um verdadeiro empreendimento de desculturação, como nos primeiros tempos da colônia, na época da Inquisição: destruição geral de tambores (muitas vezes peças de valor artístico extraordinário), cântaros, imagens, garrafas, postes, cruzes, pedras, colares, templos (GRONDIN, 1985, p. 83).

Se o professor J.B. Romain argumenta que o haitiano nunca fala dos seus avanços na ciência noturna, deve-se ao fato da ocorrência desta „caçada‟ aos templos vodus e seus praticantes. Enquanto Vieux Os, oposto ao silêncio, se dispõe a propagar a imagem dos deuses e aceita o convite de ir até o além, com o pressuposto de que encontraria coisas realmente inspiradoras para a escrita de seu livro. Todavia, essa postura do narrador- personagem não se mantém assim por muito tempo.

A partir do dialogo entre o professor J.B Romain e Vieux Os, fica subentendido seu consentimento em visitar o mundo dos mortos. Lucrèce não é avisado sobre a decisão do escritor, tudo fica subentendido. Mais tarde, o escritor sai para reencontrar seus antigos amigos e saber sobre os desfechos do mistério do Exército Zumbi, e retorna à sua casa para dormir e acaba tendo um sonho estranho.

Sem saber se está acordado ou não, o narrador-personagem relata que Lucrèce surge diante dele para conduzi-lo até o além. O momento de transição, entre o mundo dos vivos e o país sem chapéu, é um dos maiores mistérios da narrativa de Laferrière, e nos encaminha para uma discussão sobre o gênero literário97 da obra, pois o seu caráter é tão insólito que nos faz questionar a natureza deste „sonho‟. Entretanto, independentemente da natureza de sua passagem ao além, o escritor atravessa a barreira entre os dois mundos e conhece os deuses do vodu pessoalmente.

Assim, Vieux Os tira suas próprias conclusões acerca das divindades. Este evento se desenvolve no penúltimo capítulo da narrativa, onde encontramos o subtítulo Deuses de

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Posteriormente trataremos sobre esta questão do gênero literário da narrativa, uma vez que esta discussão nos ajudaria a compreender a estruturação dos eventos sobrenaturais da obra.

classe média; passagem que marca a crítica mais ousada de Vieux Os. Ao falar das divindades

haitianas, durante sua visita no além, ele descreve uma espécie de desentendimento entre a famìlia dos deuses Erzulie, Ogou e Marinette. Logo, ele reclama: “Estaria eu aqui para ouvir um deus me contar suas dificuldades com a mulher? E principalmente, é com esse monte de besteiras pequeno-burguesas que o vodu pretende enfrentar os mistérios do catolicismo?”98 (LAFERRIÈRE, 2011, p.202).

Ele conta que Ogou estava programando um casamento com a sua filha Marinette, e consequentemente abandonara seu primeiro matrimônio com a deusa do sexo, Erzulie. Diante desta confusão, o escritor escapa da deusa, que pretendia mantê-lo como escravo sexual dela. Ela estava furiosa por causa do adultério do marido e queria se vingar com o mortal, como vinha fazendo durante este tempo em que estava morando sozinha em um casebre. Esta confusão entre os deuses pode também ser percebida como mais uma paródia produzida por Laferrière. Desta vez, ele tenta trazer para sua obra a narrativa lendária dos mitos. Nos estudos religiosos e antropológicos sobre o vodu, há uma leitura que diz respeito ao envolvimento íntimo entre Ogou e Erzulie.

Joseph (1014) explica que na base da narrativa mítica99 do vodu, Mahou é o deus criador, a divindade principal. As outras entidades, Jany e Iwa, são seres inferiores que fazem a intermediação entre Mahou e os homens. Em sua pesquisa, este estudioso tenta caracterizar os principais seres do panteão vodu para perceber os símbolos que promovem o sincretismo no Haiti.

Ele revela que Ogou é considerado um símbolo de guerra e batalha, mas também representa fertilidade, devido a seu envolvimento íntimo com a deusa Erzulie. Três personalidades são conferidas a esta deusa: “[...] Erzulie Fréda que representa o amor sensual, Erzulie Dantor que é o amor paixão e é simultaneamente criadora e destrutiva e enfim, Erzulie Zilá que seria a mãe criadora” (JOSEPH, 2014, p. 90). A característica de matriarca lhe é atribuída por causa de Legba, considerado seu filho. Este último é um mistério no vodu. Ele assume formas diferentes e está associado à Dambalah, considerado uma espécie de revelação, que assume o formato de cobra para os praticantes da religião.

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“Étais-je ici pour entendre un Dieu me raconter ses misères avec sa femme? Et surtout, est-ce avec ce ramassis de ragots petit-bourgeois que le vaudou compte faire face aux mystères du catholicisme?” (LAFERRIÈRE, 1997, p.256)

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É provável que existam várias versões sobre as relações entre os deuses haitianos, o que torna mais complexo a sistematização para uma comparação entre nosso objeto de estudo e a narrativa do mito. Vale salientar que as dificuldades para uma exposição sobre os mitos são várias, dentre elas, a falta de material científico no Brasil. Acreditamos que não nos convém nos apropriar deste debate, neste momento, mas confiamos que a nossa proposta pode indicar lacunas a serem preenchidas nos estudos antropológicos e religiosos, os quais devem servir como ferramentas para o auxílio na análise do mito presente no texto literário.

É possível perceber a correlação entre as narrativas mítica e nosso objeto de estudo. Dany Laferrière subverte as relações dos deuses Ogou e Erzulie, proclamando uma efêmera briga entre a família das divindades. Ao observarmos a imagem de Ogou, percebemos que Vieux Os destaca-o como um trabalhador: “[...] um pai, supostamente Ogou ferreiro, que mais parece um pobre operário afundado até o pescoço em frustrações matrimoniais [...]” 100 (LAFERRIÈRE, 2011, p.202). A imagem do mito Ogou, um deus que é considerado o “[...] espìrito guerreiro e protagonista da emancipação do paìs” (BULAMAH, 2015, p.92) e uma divindade poderosa de combate e de guerra, ganha ares de um ferreiro trabalhador, lutando para se resolver com suas mulheres.

Erzulie Dantor, que segundo a narrativa mítica é a matriarca do espírito mais misterioso do panteão vodu e é comprometida com Ogou, desenvolve outro papel. Aqui ela enfrenta a falta de reciprocidade do amor marital e se entrega a vingança. Ela ainda tenta manchar a reputação de seu marido, para Vieux Os: “[...] desde que o caro Ogou não dá mais no couro, sou obrigada a buscar parceiros entre os mortais” 101

(LAFERRIÈRE, 2011, p.203). O escritor se percebe cercado pela mulher que planeja a vingança e reflete: “[...]Érzulie Fréda Dahomey, a mais terrível deusa da cosmogonia vodu, tentando me seduzir para que eu vá ferir, com a arma do ciúme, o coração de seu marido, Ogou Badagris ou Ogou Ferreiro, o intratável deus do fogo e da guerra”102

(LAFERRIÈRE, 2011, p.205-206).

Damballah, este ser que assume o formato de uma cobra vinda do mundo invisível e revela-se ao praticante da religião, é atribuído ao personagem J.-B Romain, no romance. No fim da narrativa, quando Vieux Os retorna do mundo dos mortos, ele se encontra com o professor e depois de um longo diálogo este homem revela-se como Damballah:

Bem no momento em que ele atravessa o portão, reconheço seu andar ondulante, visto que Damballah o magnífico sempre é representado por uma cobra na iconografia do vodu. Esta manhã, ele tinha tomado os traços do estimado professor J.-B. Romain para vir tentar, pessoalmente, me convencer a escrever um livro [...]103 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 213)

100

“[...] un père, supposément le terrible Ogou Ferraille, qui m‟a plutôt l‟air d‟un pauvre ouvrier pris jusqu‟au cou dans des frustations matrimoniales.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.256)

101

“[...] depuis que ce cher Ogou ne bande plus, je suis obligée de trouver mes partenaires chez les mortels [...]” (LAFERRIÈRE, 1997, p.258)

102

“[...] Érzulie Fréda Dahomey, la plus terrible déesse de la cosmogonie vaudou, tentant de me séduire pour que j‟aille piquer, avec l‟arme de la jalousie, le coeur de son mari, Ogou Bagadris ou Ogou Ferraille, l‟intraitable dieu du feu et de la guerre.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.261)

103

Juste au moment où il franchit la barrière, je l‟ai reconnu à sa démarche ondulante, puisque Damballah le magnifique est toujours représenté par une couleuvre dans l‟imagerie vaudouesque. Ce matin, il avait pris les traits de l‟estimable professeur J.-B. Romain pour venir tenter, personnellement, de me convaincre d‟écrire un livre [...] (LAFERRIÈRE, 1997, p.271)

Laferrière promove uma verdadeira sátira, com a imagem desse ser misterioso e sua conexão ao nome J.B. Romain. J. Michael Dash (2013) comenta que este personagem, em nosso objeto de estudo, já é uma crítica ao etnógrafo Noiriste J.B. Romain, um teórico muito citado nos estudos sobre identidade cultural religiosa haitiana:

Irreverentes e disruptivos, os romances posteriores de Laferrière se envolvem diretamente com o resíduo fantasmagórico de um discurso identitariano duvalierista. Em Pays sans chapeau, seu romance de retorno à sua" terra natal ", ele ridiculariza o etnógrafo haitiano noiriste JB Romain, um discípulo de Price-Mars. Neste retrato satírico do professor Romain, o autor o visita e entra em um minúsculo escritório que está completamente desconectado do mundo real [...]104 (DASH, 2013, p. 228, Tradução nossa).

Dash (2013) mostra que Laferrière promove grandes críticas apenas incorporando os nomes dos “filhos do Haiti”, os quais possuem a missão de propagar a bandeira haitiana. Concordamos que esta leitura é viável e possui grande relevância. Ela nos ajuda a compreender que além de rechaçar a supervalorização nacional, Laferrière planejou satirizar os mitos de fundação desta pátria, aliando-os aos que defendem o vodu e sua perpetuação como prática religiosa. Certamente, trata-se de uma mesma crítica às duas imagens, ao etnólogo Noiriste e ao deus Damballah, que se antropomorfiza em J.-B. Romain.

O diálogo que ocorre entre o narrador-personagem e Damballah é extremamente crítico e apologético, como se o mito fosse realmente dotado de um conhecimento científico sobre a temática religiosa. De um lado constatamos o catolicismo e do outro o vodu; duas religiões opostas na obra, mas que se mantém ligadas pelo sincretismo. No entanto, o deus haitiano assume o enfraquecimento do panteão vodu, antes constatado por Vieux Os: “[...] nossa reputação está em baixa. E pedimos a todos os filhos do Haiti que façam um esforço suplementar para restabelecer a honra de nossas raìzes e de nossos deuses...” 105

(LAFERRIÈRE, 2011, p.211). Dash (2013) não percebeu que para Laferrière, não é apenas o etnógrafo que está sendo criticado, mas também os deuses. Na narrativa, J.-B. Romain é aproximado de Damballah, como se a imagem do professor fosse mais convincente para Vieux Os, do que a sua forma comum; a cobra.

104

Irreverent and disruptive, Laferrière's later novels engage directly with the ghostly residue of a Duvalierist identitatian discourse. In Pays sans chapeau, his novel of a return to his 'native land', he mocks the haitian noiriste ethnographer J.B Romain, a disciple of price-mars. In this satiral portrait of professor Romain, the author visits him and enters a tiny office that is completely disconected from the real world [...]" (DASH, 2013, p.228). 105

“[...] notre réputation est au plus bas. Et nous demandons à tous les fils d‟Haïti de faire un effort supplémentaire pour remettre à l‟honneur nos racines et nos dieux ...” (LAFERRIÈRE, 1997, p.268)

O que Laferrière pretendia quando decidiu caracterizar os principais mitos da religião vodu deste modo? Em seu pronunciamento sobre Pays sans chapeau, na entrevista a Revista

Brasileira do Caribe (2008), ele diz que os haitianos não gostaram muito desta parte sobre os

deuses:

[...] o capítulo sobre o vodu os incomodou um pouco de destacar um capítulo „Os deuses de classe média‟, eles não gostaram muito disso, eles sentem que há uma ironia nele. Eu não vejo ironia, são deuses de classe média! Os deuses que não mudam. Mas como isso não me interessa, não mais, de cuspir nas coisas e que é ridículo de adorá-las, eu digo que são deuses de classe médica. Se você cospe nisso eles pensam que você é um inimigo, então isso os tranquiliza, mas se você diz „não é tão bom assim‟, daí, eles ficam chateados! 106 (PAULA, 2008, pp. 310-311, Tradução nossa)

Como podemos observar, na citação acima, o autor Dany Laferrière ignora o possível teor irônico de seu texto, posto que para ele trata-se de algo claro em sua obra. Ele não tem interesse em esconder sua opinião sobre os deuses e o vodu, ou de discutir as questões concernentes à religião. Apesar deste posicionamento, por parte do autor, sua narrativa retém um debate profundo acerca da cosmologia vodu, especificamente no diálogo entre Damballah e Vieux Os. Por exemplo, o pedido que a entidade faz ao escritor - que ele escreva seu livro para aumentar a popularização dos deuses - revela uma espécie de negociação. O narrador- personagem ainda pergunta se haveria uma garantia de que os deuses estariam do seu lado, caso ele escrevesse algo.

Esta troca se assemelha muito as relações que as divindades estabelecem com seus seguidores, na prática vodu. De acordo com Bulamah (2015) o relacionamento entre as