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A crítica filológica nas tessituras digitais: arquivo hipertextual e edição de textos teatrais de Jurema Penna

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA

ISABELA SANTOS DE ALMEIDA

A CRÍTICA FILOLÓGICA NAS TESSITURAS DIGITAIS:

ARQUIVO HIPERTEXTUAL E EDIÇÃO DE TEXTOS TEATRAIS DE

JUREMA PENNA

V.1

Salvador 2014

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A CRÍTICA FILOLÓGICA NAS TESSITURAS DIGITAIS:

ARQUIVO HIPERTEXTUAL E EDIÇÃO DE TEXTOS TEATRAIS DE

JUREMA PENNA

v.1

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Rosa Borges dos Santos

Salvador 2014

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Sistema de Bibliotecas da UFBA

Almeida, Isabela Santos de.

A crítica filológica nas tessituras digitais: arquivo hipertextual e edição de textos teatrais de Jurema Penna / Isabela Santos de Almeida. - 2014.

2 v.: il.

Orientadora: Profª. Drª. Rosa Borges dos Santos.

Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2014.

1. Penna, Jurema, 1927-2001. 2. Crítica textual. 3. Teatro brasileiro - Bahia. 4. Teatro (Literatura) - Técnica. 5. Arquivo hipertextual. I. Santos, Rosa Borges dos. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. III. Título.

CDD - 801.959 CDU - 801.73

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Este trabalho é dedicado a meu pai, minha mãe, minha irmã e a Rosa.

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A Deus, pelo dom da fé e da crença inabalável de que o impossível está em suas mãos. Aos meus pais, Fátima e Idelson, a quem devo a gratidão e amor eternos.

A minha irmã Carol, companheira de todos os momentos.

A minha orientadora, Dra. Rosa Borges, por me ensinar a ver além do óbvio. A minha Tia Alice, por todos os momentos de oração e confiança em meu trabalho.

A toda minha família, em especial, minhas primas Fabi e Dani e Tia Ana, pelo carinho e pela presença.

A Daniel Franca, pelo contraponto à tese, durante a reta final.

Aos meus amigos de grupo de pesquisa, pelo carinho e apoio. Em especial, a Eduardo Dantas, com quem dividi as primeiras experiências na iniciação científica e com quem compartilho esse momento de finalização de um ciclo.

A Alan Nunes, as minhas duas mãos extras na construção do arquivo hipertextual.

Às minhas colegas do Setor de Filologia Românica do ILUFBA, pelo apoio e compreensão na reta final desse trabalho, pela palavra de conforto.

A Ari Sacramento, meu irmão filológico, que esteve presente em todas as etapas do meu trabalho.

A Reinaldo Nunes e Arlindo Henrique Franca, pelos depoimentos.

Aos meus ex-colegas e ex-alunos do IF Baiano, que também fizeram parte dessa história. Aos meus alunos da UFBA.

Ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura. À banca, pela leitura atenta e arguta do meu trabalho.

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Caminante, son tus huellas el camino, y nada más; caminante, no hay camino,

se hace camino al andar. Al andar se hace camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca

se ha de volver a pisar. Caminante, no hay camino sino estelas en la mar. Antonio Machado, 1982.

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Durante o exercício filológico de editar a dramaturgia de Jurema Penna, deparamo-nos com uma intensa modificação empreendida nesses textos. Tratam-se de intervenções de cunho autoral e não autoral, que dão a conhecer aspectos da sua elaboração, transmissão, circulação e recepção. A construção de um produto editorial para esse conjunto documental em suporte papel acarretaria em limitações à integração dos diversos aspectos presentes nesses textos. Em virtude dessas características, defendemos o uso do meio digital para apresentar a edição da dramaturgia de Jurema Penna, sob a forma de arquivo hipertextual, visto que este permite trazer os resultados do trabalho editorial de forma relacional, integrada, flexível e legível. A fim de compor o arquivo hipertextual, selecionamos dois textos da dramaturgia de Jurema Penna, a saber: Iemanjá – rainha de Aiocá, O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças. Para a elaboração da edição, foi preciso compreender as especificidades do texto teatral como objeto de encenação e de leitura, bem como o uso do meio digital na preparação de edições. Ao submeter tais textos ao método filológico, observamos que uma edição crítica seria insuficiente para mostrar aos leitores a riqueza desse conjunto documental. Realizamos, então, para cada texto, três tipos de edição: uma edição fac-similar, uma edição sinóptica e uma edição crítica, dispostas em um arquivo hipertextual, apresentado em volume digital. Acrescentamos ao arquivo hipertextual a edição crítica dos textos Negro amor de rendas brancas e Bahia livre exportação, editados na dissertação de mestrado desta pesquisadora, em suporte papel. Reunidos, esses quatro textos dão a conhecer uma Bahia dos anos 1970. A fim de entender tal contexto, desenvolvemos uma leitura dessas representações, que integram aspectos diversos da cultura baiana, amalgamados nas vivências dos soteropolitanos. Por meio do estudo realizado, foi possível elaborar propostas de edição que permitiram evidenciar a diversidade de materiais associados à produção dramatúrgica de Jurema Penna. O uso do meio digital, portanto, possibilitou ao editor construir o seu trabalho interpretativo de uma forma integrada e relacional, permitindo-lhe elaborar e compartilhar suas leituras por meio das tessituras que o meio digital engendra.

PALAVRAS-CHAVE: Crítica Textual. Dramaturgia baiana. Jurema Penna. Arquivo hipertextual.

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En el ejercicio filológico de editar la dramaturgia de Jurema Penna nos encontramos frente a un cambio intenso llevado a cabo en estos textos. Estas son intervenciones hechas por el dramaturgo u otros sujetos y nos revelan aspectos de su preparación, transmisión, circulación y recepción. La construcción de un producto editorial para este complejo conjunto documental en suporte papel traería limitaciones para la integración de las informaciones presentadas allí. A causa de esas características, defendemos el uso del suporte digital para presentar la edición de la dramaturgia de Jurema Penna, pues permite traer los resultados de nuestro trabajo de manera relacional, integrada, flexible y legible. En el intento de componer un archivo hipertextual, hemos seleccionado dos textos de la dramaturgia de Jurema Penna: Iemanjá – rainha de Aiocá, O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças. Para la preparación de la edición, fue necesario entender la especificidad del texto teatral como un objeto de escenificación y de lectura, así como la utilización de los medios digitales en la preparación de ediciones. El corpus fue sometido al método filológico y luego hemos comprehendido que presentarlo sólo en una edición crítica sería insuficiente para mostrar a los lectores la riqueza de este conjunto de documentos. Por lo tanto, se optó por realizar, para cada texto, tres tipos de edición: una edición facsímil, una edición sinóptica y una edición crítica dispuestas en un archivo hipertextual, en volumen digital. Añadimos a este las ediciones de Negro amor de rendas brancas e Bahia livre exportação, presentadas por esta investigadora, en suporte papel, en su disertación de master. Este conjunto nos da a conocer la Bahia de los años 1970. Para entender el contexto, desarrollamos una lectura de estas representaciones, que integran diversos aspectos de la cultura bahiana amalgamados en las experiencias de los soteropolitanos. A través de este estudio, fue posible elaborar propuestas para la edición que nos han permitido evidenciar la diversidad de textos y materiales asociados a esta producción dramatúrgica. El uso de los medios digitales, por lo tanto, fue importante por activar el editor para construir su labor interpretativa de un modo integrado y relacional, que le permite desarrollar y compartir sus lecturas a través de lo que engendra las tesituras del medio digital.

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Figura 1 – Jurema Penna e Mário Gusmão em Auto da Compadecida, 1959 ... 17

Figura 2 – Acréscimos feitos pelo ator em T91 BNV ... 19

Figura 3 – Virar a página de um texto digital ... 77

Figura 4 – Representação do padrão – F de leitura dos textos na web ... 88

Figura 5 – Xanadoc ... 93

Figura 6 – Interface gráfica do E-Dictor ... 104

Figura 7 – Interface da edição Bill-Crit-O-Matic ... 107

Figura 8 – Interface da edição Comedy of Errors ... 107

Figura 9 – Interface da Edición electrónica variorum del Quijote ... 109

Figura 10 – Comparação entre o fac-símile e a transcrição obtida com o uso do OCR ... 120

Figura 11 – Tela inicial do Juxta Commons ... 122

Figura 12 – Visualização da colação no modo Heat Map ... 123

Figura 13 – Visualização da colação no modo side-by-side view ... 124

Figura 14 – Ferramenta User annotations ... 125

Figura 15 – Visualização de histogramas ... 126

Figura 16 – Output em formato XML ... 127

Figura 17 – Aparato gerado pelo Juxta Commons ... 127

Figura 18 – Estrutura da edição crítica ... 130

Figura 19 – Acesso ao arquivo hipertextual a partir da capa do volume 2 ... 133

Figura 20 – Página inicial do arquivo hipertextual e página inicial da edição ... 133

Figura 21 – Arquivo hipertextual: Fac-símile e descrição (visão geral) ... 135

Figura 22 – Arquivo hipertextual: Fac-símile e descrição (visão do detalhe) ... 135

Figura 23 – Tela inicial da edição sinóptica ... 136

Figura 24 – Edição sinóptica disponibilizada, no aplicativo Juxta Commons, modo de visualização heat map ... 136

Figura 25 – Edição sinóptica disponibilizada, no aplicativo Juxta Commons, modo de visualização side-by-side ... 136

Figura 26 – Edição crítica de O bonequeiro Vitalino... ... 139

Figura 27 – Aparato crítico da aba construção do texto ... 140

Figura 28 – O texto do ator como suplemento da leitura ... 141

Figura 29 – Os documentos da recepção como suplemento da leitura... 141

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Figura 33 – Referência à estrela nos desenhos do T91 BNV ... 198

Figura 34 – Estrela do presépio sendo trazida pelos atores da peça ... 199

Figura 35 – Parto de Maria ... 206

Figura 36 – Ameaças do boneco cangaceiro ... 207

Figura 37 – Diferentes espaços cênicos de O bonequeiro Vitalino – Pelourinho ... 208

Figura 38 – Diferentes espaços cênicos de O bonequeiro Vitalino – Biblioteca Pública do Estado. ... 208

Figura 39 – Espaços cênicos do TCA... 209

Figura 40 – Xilogravura para a divulgação do espetáculo O bonequeiro Vitalino ... 216

Figura 41 – Intervenções do ator no texto de O bonequeiro Vitalino ... 285

Figura 42 – Intervenções do ator no texto de O bonequeiro Vitalino ... 286

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Quadro 1 – Comparação entre os dois paradigmas da filologia ... 52 Quadro 2 – Modificações textuais ... 156 Quadro 3 – Diferentes caligrafias em T91, O bonqueiro Vitalino ... 201

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BLE Bahia livre exportação

CBC Companhia Baiana de Comédias CSS Cascading Style Sheets

D.P.F. Departamento da Polícia Federal

DCDP Divisão de Censura de Diversões Públicas e. d. Erro de datilografia

ETBA Escola de Teatro da Bahia

ETTC Equipe Textos Teatrais Censurados

f. Folha

FCEBA Fundação Cultural do Estado da Bahia FUNCEB Fundação Cultural do Estado da Bahia HTML HyperText Markup Language

HXML eXtensible HyperText Markup Language

L. Linha

LdoD Arquivo digital do Livro do Desassossego NARB Negro amor de rendas brancas

s. a. Sem acento s. asp. Sem aspas s. dp. Sem dois pontos s. dtq Sem destaque s. e. Sem exclamação s. int. Sem interrogação s. p. Sem ponto s. par. Sem parênteses s. p-e-v Sem ponto e vírgula s. r. Sem reticências s.d. Sem data s.v. Sem vírgula

SBAT Sociedade Brasileira de Autores Teatrais SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SR/BA Superintendência Regional / Bahia

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T72* Testemunho apógrafo, de 1972, do texto Negro amor de rendas brancas T75a Testemunho de 1975, do texto Bahia livre exportação

T75b Testemunho de 1975, do texto A moça de cabelos verdes, pertencente a tradição do texto Iemanjá – rainha de Aiocá

T76 Testemunho de 1976, do texto Bahia livre exportação T80 Testemunho de 1980, do texto Iemanjá – rainha de Aiocá

T91 Testemunho de 1991, do texto O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças

TEI Text encoding initiative

Tsd Testemunho sem data do texto O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças

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VOLUME I

1 PRIMEIRAS PALAVRAS ... 11

2 UM TEXTO PARA LER: INTERSEÇÕES ENTRE A CRÍTICA TEXTUAL E O TEATRO ... 15

2.1 ESCREVER PARA ENCENAR: A DRAMATURGIA DE JUREMA PENNA ... 15

2.2 O TEXTO TEATRAL COMO OBJETO DE EDIÇÃO ... 45

3 O USO DO MEIO DIGITAL NA PREPARAÇÃO DE EDIÇÕES DE TEXTOS TEATRAIS ... 74

3.1 GESTOS DE LEITURA E ESCRITA NA TELA: CONTINUIDADES E RUPTURAS ... 74

3.2 PROPOSTAS EDITORIAIS: EXPLORANDO A PLASTICIDADE DO SUPORTE .. 98

4 O ARQUIVO HIPERTEXTUAL DA OBRA DE JUREMA PENNA ... 116

4.1 A CONSTRUÇÃO DO ARQUIVO HIPERTEXTUAL ... 116

4.2 CRITÉRIOS DE EDIÇÃO ... 133

4.3 TEXTOS, TESTEMUNHOS, TRANSMISSÃO ... 143

4.3.1 Iemanjá – rainha de Aiocá ... 143

4.3.1.1 Texto crítico de Iemanjá – rainha de Aiocá ... 158

4.3.2 O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos Deus e das crianças ... 193

4.2.2.1 Texto Crítico de O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças ... 218

5 LEITURAS DA DRAMATURGIA DE JUREMA PENNA: EXERCÍCIO DE CRÍTICA FILOLÓGICA ... 240

5.1 O NEGRO NA BAHIA ... 240

5.1.1 Bahia livre exportação e as representações da cultura negra ... 241

5.1.2 O cotidiano da cidade e o povo de santo, em Iemanjá – rainha de Aiocá ... 252

5.1.3 Dilemas negros na conquista de outros espaços, em Negro amor de rendas brancas ... 272

5.2 CONFLUÊNCIAS ENTRE SERTÃO E LITORAL, EM O BONEQUEIRO VITALINO ... 280

5.2.1 O espaço da feira livre como encontro de culturas... 281

5.2.2 A arte de Vitalino como linguagem integradora do nordeste ... 292

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REFERÊNCIAS ... 307

VOLUME II

ARQUIVO HIPERTEXTUAL

IEMANJÁ – RAINHA DE AIOCÁ

Fac-símiles e descrição Edição sinóptica Edição crítica

O BONEQUEIRO VITALINO OU NADA É IMPOSSÍVEL AOS OLHOS DEUS E DAS CRIANÇAS

Fac-símiles e descrição Edição sinóptica Edição crítica

NEGRO AMOR DE RENDAS BRANCAS

Fac-símiles e descrição Edição sinóptica Edição crítica

BAHIA LIVRE EXPORTAÇÃO

Fac-símiles e descrição Edição sinóptica Edição crítica

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1 PRIMEIRAS PALAVRAS

Neste trabalho, propomo-nos ler e editar a dramaturgia de Jurema Penna (1927-2001), tomando como referencial teórico-metodológico a Filologia. Para desenvolver esse estudo, orientamo-nos pela prática da crítica filológica, com o intento de evidenciar o complexo cultural no qual esses textos estavam inseridos, a fim de não incorrer em uma simplificação do nosso objeto de pesquisa.

Na referida produção dramatúrgica, contamos vinte e cinco títulos, nos quais se incluem os destinados ao público adulto e ao infantil, publicados e inéditos, além de adaptações de clássicos. A maioria das peças foram escritas e encenadas predominantemente nas décadas de 1970 a 1980 e, por isso, estão atravessadas por uma conjuntura de forte repressão política, homogeneização cultural e silenciamento das manifestações artísticas. Cada título traz, em geral, duas versões, fazendo-nos conhecer as diferentes motivações da dramaturga para empreender mudanças ao texto.

Nas modificações textuais realizadas, Jurema Penna mostra-se preocupada em manter-se alinhada à norma culta, sobretudo na rubrica, espaço de trabalho do dramaturgo, onde manter-se pode descrever as marcações cênicas das peças e investir nos traços narrativos presentes no texto dramático. O uso da norma culta constitui-se também como instância de legitimação da autora, uma vez que se espera essa modalidade no registro escrito. Vale pontuar que as variantes populares também se fazem presentes, principalmente na fala dos pescadores, cantadores e feirantes, numa tentativa de transpor o plano da oralidade para a escrita.

Em relação à temática desse corpus, destacamos o sentido político que sempre está manifesto. O conflito entre Juliana e Paulo, em Negro amor de rendas brancas, não se resume a uma briga de casal, mas desencadeia uma série de discussões acerca do papel da mulher na sociedade e do preconceito contra o negro; a história da Bahia, contada em Bahia livre exportação, não planifica ou mitifica o estado, mas problematiza as perseguições aos negros e aos índios no decurso da história.

Por se tratar de uma dramaturgia construída nos e para os palcos, sua autoria era sempre compartilhada. Apesar de Jurema Penna assinar as peças e se apresentar como uma autora individual, a interferência da cena sobre o texto confirma o caráter coletivo dessas produções, em detrimento da emergência de uma “genialidade individual”. Nesse sentido, é preciso ler tal dramaturgia nas suas especificidades, considerando os diferentes sujeitos intervenientes em sua

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elaboração, vinculando-a ao momento de sua produção, circulação e recepção na sociedade baiana, em tempos de ditadura militar.

O escopo teórico-metodológico da Crítica Textual, a Filologia em sentido estrito, nos permite, a partir do cotejo dos documentos recolhidos desta produção dramatúrgica, lê-los em sua elaboração e transmissão, compreender a cena em sua composição e vislumbrar a peça em sua circulação. Os textos foram estudados e submetidos ao método filológico. O meio digital foi o suporte escolhido para a apresentação das edições, por se mostrar flexível e alinear, permitindo a integração entre o texto crítico, as modificações realizadas, podendo ser estas autorais ou não. Acrescente-se a esse estudo os documentos da recepção, que possibilitaram uma leitura das relações entre os mesmos de maneira dinâmica. A reunião dessa diversidade de materiais editados formou aquilo que denominamos arquivo hipertextual, um ambiente virtual que reúne e inter-relaciona os documentos de uma tradição textual, proporcionando a interação, e que é flexível para agregar novos materiais digitais após sua consolidação (PORTELA, 2013). Selecionamos quatro textos da dramaturga Jurema Penna para compor este estudo, a saber: Bahia livre exportação (BLE), Negro amor de rendas brancas (NARB), Iemanjá – rainha de Aiocá (IMJ) e O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus ou das crianças (BNV). BLE e NARB já haviam sido estudados por esta pesquisadora na dissertação de mestrado intitulada Três fios do bordado de Jurema Penna: leituras filológicas de uma dramaturgia baiana (ALMEIDA, 2011). Nesta, editamos, os referidos textos em suporte papel, além de Auto da barca do rio das lágrimas de Irati, cuja edição foi construída em suporte digital. No trabalho que ora apresentamos, revisitamos as edições feitas, a fim de adequá-las para o meio digital. Este trabalho, no entanto, não se configurou como uma simples transposição de suporte, mas implicou o desenvolvimento de uma série de tarefas críticas não contempladas na edição em papel, o que marca a significativa diferença entre as propostas de edição apresentadas, deixando evidente que o meio virtual é um espaço em que se ampliam as atividades críticas do editor.

A tese apresenta-se em dois volumes, um em suporte papel e outro em suporte digital. No primeiro volume, estabelecemos o percurso da construção de uma leitura filológica dessa dramaturgia, para a qual foi necessário levantar os pontos de convergência entre o trabalho da Crítica Textual e as especificidades do texto dramatúrgico, bem como as relações entre esta disciplina e a Informática. Na segunda seção, intitulada Um texto para ler: interseções entre a crítica textual e o teatro, discutimos questões acerca do script como objeto de edição, desdobrado em dois aspectos principais, a questão da escrita dramatúrgica de Jurema Penna, particularizada por ter a cena como presença, e as especificidades do texto teatral e suas

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consequências para o labor filológico. Na terceira seção, O uso do meio digital na preparação de edições de textos teatrais, buscamos levantar elementos para compreender o texto no meio digital como objeto plural e multifacetado, elencando as consequências desses novos gestos de leitura para uma proposta editorial, além disso, apresentamos algumas edições em meio digital que já foram desenvolvidas em centros de pesquisa nacionais e internacionais.

Segue-se a essa seção a exposição da proposta d’ O Arquivo Hipertextual de Jurema Penna. Nela, discutimos o percurso metodológico para a preparação do arquivo hipertextual, detalhando as ferramentas informáticas utilizadas, os critérios para o desenvolvimento das edições, além de apresentar uma visão geral do arquivo hipertextual. Ainda nessa seção, passamos a analisar as situações textuais de Iemanjá – rainha de Aiocá e O bonequeiro Vitalino..., nas quais abordamos os testemunhos, a transmissão e, quando possível, a recepção desses textos.

O primeiro volume é finalizado pela seção Leituras da dramaturgia de Jurema Penna: exercício de Crítica Filológica, em que abordaremos dois aspectos da cultura baiana, evidenciados nas subseções, a saber: O negro na Bahia, para tratar da representação do negro e de seu papel na história da Bahia, sua vivência cotidiana na cidade de Salvador e os enfrentamentos decorrentes da ascensão social; Confluências entre sertão e litoral, para discutir as interseções identitárias entre a cultura sertaneja e a cultura litorânea, destacando-se três eixos organizadores, a feira livre, a arte de mestre Vitalino e o catolicismo popular. Seguem-se a esta seção, as Considerações Finais e as Referências.

No segundo volume, apresentamos o Arquivo Hipertextual de Jurema Penna. O volume encontra-se em suporte digital e é acessível a partir do site www.juremapenna.com/inicio.html1. Elegemos este meio para a sua composição e disponibilização, pois as possibilidades de apresentação que são trazidas por ele engendram formas de ler diferentes do texto impresso, nesse sentido, a linguagem do meio virtual torna-se constitutiva da experiência de leitura e da construção de sentidos desse volume. Da mesma forma, a referida linguagem é parte do exercício crítico que culmina na elaboração do arquivo hipertextual; assim, se este tomasse a forma de impresso, perderia o seu sentido.

A organização do volume digital assemelha-se a dos sites da web, o que favorece o reconhecimento da sua estrutura por parte do “leitor-navegador” (RODRIGUEZ DE LAS HERAS, 1991), tornando a experiência de acesso ao Arquivo Hipertextual bastante intuitiva,

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além de possibilitar a construção dos caminhos de suas leituras pelos textos. Ainda assim, trazemos os Critérios de edição, além de breves instruções para a navegação.

O ponto de partida para a leitura desse volume são os textos teatrais de Jurema Penna, para cada um deles, construímos três possibilidades de edição, que listamos: a) edição

fac-similar, na qual trazemos os fac-símiles e a descrição física dos testemunhos de cada um dos

textos, a fim de evidenciar as marcas presentes nos suportes; b) edição sinóptica, na qual expomos o confronto entre as versões, por intermédio do aplicativo Juxta Commons, focando o contraste entre os testemunhos de cada texto, dois a dois, acompanhados de comentários das modificações textuais realizadas; c) edição crítica, quando trazemos o texto crítico, pondo em evidência as modificações textuais realizadas. Compõem ainda o arquivo hipertextual os

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2 UM TEXTO PARA LER: INTERSEÇÕES ENTRE A CRÍTICA TEXTUAL E O TEATRO

Nesta seção, serão levantados alguns dos problemas atinentes ao trabalho de edição de textos de teatro. Para tanto, discutimos os principais elementos que os constituem e os caracterizam e como estes podem demandar questionamentos e revisões da prática editorial. Interessa assinalar o estudo filológico da dramaturgia de Jurema Penna como possibilidade para compreender os sentidos do fazer teatral na Bahia, em tempos de ditadura militar, bem como refletir acerca da Filologia, seus métodos e pressupostos teóricos.

2.1 ESCREVER PARA ENCENAR: A DRAMATURGIA DE JUREMA PENNA

Para pensar o texto teatral censurado como objeto de edição e estudo, destacamos a produção dramática de Jurema Penna. Esta escolha deve-se ao fato de podermos pensar, a partir dela, momentos distintos do teatro baiano, com destaque para o movimentado cenário cultural das décadas de 1970 e 1980. Tratam-se dos princípios da profissionalização do teatro na Bahia, que tem como um de seus marcos a formação da primeira turma da Escola de Teatro/UFBA, da qual Jurema Penna fez parte. Nesse tempo, um dos problemas enfrentados pelo teatro profissional na Bahia eram os escassos recursos financeiros disponíveis. Essa dificuldade motivava os atores e produtores a recorreram à inciativa pública a fim de obter patrocínio para seus espetáculos, pois os valores gerados pela bilheteria não eram suficientes para mantê-los. Jurema Penna estabelece, então, parceiras com o Teatro do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), e em seguida passa a atuar na Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB). Como esclarece em entrevista publicada em 1979,

[t]eatro é um investimento. Você não pode escapar disso, por mais que você seja amador vai ter sempre que possuir uma aparelhagem de som, uma pesquisa. E nada disso é feito sem investimento. É uma coisa mesmo da sociedade capitalista. Então as pessoas que são voltadas para isto como nós todos, são pessoas pobres e precisam de dinheiro. A gente cai num círculo vicioso porque combatemos o paternalismo e exigimos uma atitude paternalista do Governo para que nos dê dinheiro. A gente cai numa coisa quase contraditória porque depois que você começa a ser subvencionado pelo Governo você começa a ser cerceado, inclusive naquilo que vai dizer (CADA DIA, 1979).

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A clareza de Jurema Penna, ao tratar do patrocínio no teatro, aponta para a vivência das dificuldades de se produzir teatro na Bahia por conta própria. Na ausência de mecenas, a solução era buscar o auxílio junto aos poderes públicos, e, para tanto, uma série de negociações são estabelecidas entre estes e o artista, algumas delas construídas a partir de uma “ética de fundo emotivo” (HOLANDA, 1996, p.148). Este posicionamento alude àquilo que Holanda (1996) denomina de “homem cordial”, cuja consequência para as instituições públicas é a interferência de interesses privados sobre o funcionamento destas. Nesse processo de conciliação de interesses, a liberdade artística vê-se interpelada pela dependência financeira do estado, resultando em uma limitação daquilo que pode ser dito ou do que deve ser silenciado.

Como sujeito de seu tempo, Jurema Penna estava atenta às questões políticas e sociais que perpassavam a vida na Bahia de meados do século XX. Nesse momento, a dramaturga começava a participar mais ativamente dos movimentos artísticos e intelectuais da cidade de Salvador, mediante a conclusão do curso de Bacharelado em Direito pela UFBA e início de suas atividades como atriz, em 1949. Num contexto histórico em que ser atriz significava ser tida como prostituta, muitos enfrentamentos fizeram-se necessários. Sua personalidade e postura foram fundamentais para estabelecer uma resistência a essas imposições e assumir um comportamento de insubordinação às regras postas. Em entrevista a Vieira Neto, Jurema Penna afirma:

Toda minha vida, você sabe, foi só de reivindicações pelos direitos da mulher. Tudo o que enfrentei nas minhas atitudes, no meu ser, fumar e público (um escândalo naquela época), ir saborear as deliciosas batidas do Mercado Modelo, com tira-gosto de lambreta; entrar para a faculdade de Direito, quando as mulheres quase que não tinham acesso à ela, não era de “bom tom” mulher pensar em advocacia. Basta dizer que quando entrei para a Faculdade, só tinha duas colegas. Tudo isso já era uma luta visceral, minha, em prol dos direitos da mulher, quando ainda nem se sonhava em organizar movimentos feministas (VIEIRA NETO, 1980).

Além das restrições impostas ao gênero feminino, a questão do negro também atravessava a sociedade baiana. A população negra estava submetida a uma forte segregação social, em um contexto cujas estruturas e instituições mantinham práticas de discriminação e exclusão do afrodescente, relegando-o a posições sociais subalternas. Ainda na década de 1960, o sofrimento do negro era minimizado, invisibilizado ou naturalizado. A herança da ideologia escravocrata e das teorias racialistas presentes na Escola de Medicina, legitimavam a inferioridade intelectual dessa população, o que se refletia na dificuldade de acesso à educação e um direcionamento desta aos subempregos, mantendo a sua posição serviçal.

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A atitude de enfrentamento dessas questões, por parte de Jurema Penna, traduzia-se, por exemplo, na escolha de atores negros para suas peças. Num momento em que boa parte dos diretores escalavam atores brancos maquiados para representar personagens negros, a escolha de Jurema Penna concretizava seu posicionamento político. Destaque-se a parceria entre Jurema Penna e Mário Gusmão que contracenaram em diversos espetáculos ao longo de suas carreiras, como em Auto da Compadecida (1959), conforme figura 1.

Figura 1 – Jurema Penna e Mário Gusmão em Auto da Compadecida, 1959

Fonte: JUREMA, 1995.

Tais questões eram condicionadas pela presença de um poderio militar instituído, inclusive na regulação das práticas teatrais. Some-se a isso o estabelecimento de um poder local ainda muito arraigado às questões do coronelismo e clientelismo e que estava em embate direto com um desejo de modernização do pensamento político fomentado pelas diversas camadas da sociedade. Todas essas referências encontram-se amalgamadas na dramaturgia de Jurema Penna, que buscava representar, no palco, as questões do seu tempo, trazendo à baila problemas que muitas vezes tendiam a ser silenciados, apagados ou deliberadamente esquecidos. Essa posição manifestava as suas reflexões intelectuais e sua postura, problematizando causas e consequências do preconceito étnico, da injustiça social, as questões da mulher, dentre outros temas. Verificamos, no conjunto de sua obra, um projeto de escrita dramatúrgica, manifesto na materialidade linguística do texto, em que há uma preocupação não somente no que se refere ao conteúdo, mas também à forma que as suas ideias adquirem na modalidade escrita da língua.

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O estudo dessa dramaturgia, sob a perspectiva da Filologia, interessa-nos por possibilitar pensar o texto teatral como suporte sobre o qual esta multiplicidade de fazeres artísticos, de linguagens e de papéis desempenhados pelos sujeitos se inscrevem, deixando os rastros do processo da escritura e da encenação. Considerar tal multiplicidade resulta em lidar, não somente com o componente verbal do espetáculo, mas com uma diversidade de documentos e materiais presentes no palco, que se fazem registrar em meios diversos.

Nesse sentido, entendemos que o texto de teatro e os demais documentos resultantes de sua produção, transmissão, circulação e recepção são permeados pelos condicionamentos das questões sociais, históricas e culturais, constituindo-se como documento e monumento não só do texto escrito, mas também da cena (LE GOFF, 1990; SANTOS, 2008a). Como documento, é a prova que atesta as circunstâncias de sua elaboração, tanto por meio da leitura de sua materialidade, como do seu conteúdo. Do ponto de vista material, trata-se de um documento heterogêneo, composto pelo script e que pode conter marcas de diversas mãos, compreendendo as correções autorais ou não, indicações cênicas, desenhos ilustrativos do cenário ou do figurino, além de documentos do processo de censura. Do ponto de vista de seu conteúdo, traz as representações de um tempo pretérito, que dão a conhecer as ideologias, os posicionamentos sobre fatos e acontecimentos, que elucidam o pensamento individual ou coletivo, no que se refere à produção cultural da época.

Como monumento, entendemos o texto de teatro como memória dos modos de fazer artes cênicas na Bahia (SANTOS, 2008a). Nele se registram as etapas da produção de um espetáculo teatral, as alianças e dissidências entre os diferentes grupos, os acordos com os patrocinadores, a ação e a possibilidade de negociação com as instâncias da censura, além da circulação desses documentos, como datiloscritos ou impressos. Nesses termos, ao se pensar a produção dramatúrgica baiana, como objeto dos estudos filológicos, os scripts normalmente são o ponto de partida, na medida em que oferecem o enredo, a lista de personagens, descrição de cenários além de notas sobre a peça de natureza diversa. Todos estes elementos guiam o pesquisador em busca dos outros documentos resultantes de sua produção. Interessa, assim, aos filólogos partir do texto em direção à cena e aos vestígios deixados por ela.

Reproduzimos, em sequência, um excerto retirado da folha 18, testemunho de 1991 (cf. figura 2), d’ O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças (T91 BNV), que traz o registro e a memória dos fazeres teatrais baianos em tempo de ditadura militar. Como documento, apresenta a intervenção do ator em dois momentos diferentes, em tintas diferentes e com grafias também diferentes. Nele se registram a transmutação do texto no palco, em que os tipos nordestinos saem do lugar, recitam versos ou cantam uma cantiga e em

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seguida retornam ao lugar. A inscrição “pastoril”, por sua vez, indica que esta cena deve ser realizada como um pastoril, compreendendo “cantos, louvações, loas, entoadas diante do presépio na noite do Natal, aguardando-se a missa da meia-noite” (CASCUDO, 1999, p.682) e que pode, ou não, aparecer em outras montagens.

O registro de “la la ri ê e” também indica que os versos podem ter sido cantarolados. Além disso, marca-se a movimentação dos atores no espaço cênico, com a inserção de “2 troca roda / 2 troca junto / 2 troca volta”. Este trecho constitui-se, assim, como monumento por trazer a memória daquela encenação, o momento em que o ator registra como o texto é oralizado, acrescentando as formas do gênero pastoril sobre as falas, escritas em linguagem de cordel.

Figura 2 – Acréscimos feitos pelo ator em T91 BNV

Fonte: PENNA, 1991, f.18.

Transcrição do acréscimo manuscrito: Pastoril/ [↑ Tipos nordestinos] / 2 – dp. lavrados / 2 troca roda / 2 troca junto / 2 troca volta / Nasceu, nasceu / é menino, menino home / Emanuel e Emanuel será seu nome / La la ri ê e / ao lugar

Nesse sentido, a perspectiva do texto como documento e monumento difere da relação texto-acontecimento e texto monumento. Conforme Bezerra, faz-se preciso

[...] atenuar as fronteiras e as pseudo-diferenças que alguns teóricos insistem em apontar, entre um “texto-acontecimento” (texte-événement) e um “texto monumento”. O primeiro seria fruto das condições materiais da sua locução e o segundo, o “texto monumento”, seria edificado pelas condições da sua difusão escrita (manuscrita ou impressa) e de sua preservação. Neste ponto preciso da discussão, abro um parêntese para, a exemplo de Roger Chartier (1991), brincar com o sentido do termo inglês

performance, o qual remete geralmente à ideia de produção ou mesmo de ação, antes

de designar uma representação teatral específica; [...] como falar de texto dramático sem evocar a sua dimensão performativa? (BEZERRA, 2011, p. 18)

Nesse caso, a construção do sentido de texto como monumento evoca a ideia deste como detentor de um saber digno de admiração por parte do leitor e cujo valor deve ser transmitido à posteridade. Depreendemos, a partir dessa ótica, que a cultura livresca termina por selecionar

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textos merecedores da publicação, no meio impresso, em detrimento de outros, apresentando um juízo de valor sobre as obras. Tal fato não convém aos propósitos almejados nesse estudo, pois interessa-nos divulgar as diferentes materializações assumidas pelo drama, por meio dos manuscritos, datiloscritos e impressos. Entendemos que “[...] para além do caráter de difusão, é necessário também defender, nessa travessia, a leitura de textos teatrais como um (grande) prazer… Um prazer de outra ordem!” (BEZERRA, 2011, p. 18).

Diante disto, pretendemos aqui estudar a dramaturgia de Jurema Penna, tomando como ponto de partida o texto, mas também considerando, na medida do possível, a interface que este estabelece com os outros sistemas de signos que compõem o espetáculo. Acrescentem-se a isso, os registros de sua circulação na sociedade baiana e a recepção por seu público. Esta escolha decorre do propósito do estudo desenvolvido, qual seja, atualizar os textos teatrais de Jurema Penna, entendendo-os como parte da literatura dramática baiana. Nesse intento, não se pode desconsiderar o projeto de dramaturgia idealizado pela autora, bem como o seu propósito com o teatro baiano. Em reportagem, Jurema Penna (O CICLO, 1977), afirma que o “teatro só é teatro no momento em que está sendo realizado, vivo, no espaço cênico, junto com o público e dialogando com ele, através dos atores vivendo o que o autor escreveu. Antes disso acontecer, que sei eu?”. Uma vez que Jurema Penna escrevia e montava suas próprias peças, é fundamental considerar o embricamento dos papéis de dramaturga e diretora, bem como as interferências mútuas resultantes dessa interação para o processo de escritura e para a montagem do espetáculo.

Nesse sentido, torna-se necessário compreender a relação entre o texto teatral e a cena, a fim de elucidar algumas questões que são basilares para pensá-lo como objeto de edição. Ao longo da história do teatro ocidental, esses dois elementos têm adquirido papeis antagônicos na construção do espetáculo, postulando um fazer teatral polarizado entre duas vertentes: a que enfatiza uma tendência cenocentrista e a que segue uma tendência textocentrista.

Sob a primeira visão, a cena ocupa o lugar central na leitura do espetáculo. Ela possui primazia sobre o texto, é a partir da ação que o espetáculo irá se constituir, podendo ou não dar origem a um registro escrito ao fim dos trabalhos. O diretor ocuparia a posição principal da construção da peça, seu olhar de demiurgo seria o responsável por organizá-la, regendo, como maestro, todas as demais linguagens do espetáculo. Assim, “o texto não se beneficia mais de um estatuto de autoridade ou de exclusividade: é apenas um dos materiais de representação e não caracteriza nem organiza os elementos não verbais” (PAVIS, 2011, p. 191).

Na contramão, estaria a perspectiva textocentrista, segundo a qual o texto é o ponto de partida para o espetáculo, é o portador dos sentidos que deverão estar presentes na montagem.

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Busca-se uma completa semelhança entre o script e a sua performance no palco, sendo o primeiro a causa do segundo. Neste, o autor ocupa o protagonismo na construção da montagem e suas palavras deverão, então, ser preservadas numa cena que é espelho do texto e, por isso, não pode ser descaracterizado. De acordo com Pavis (2011, p. 190), na tendência textocentrista, “o texto é então concebido como uma reserva, ou até mesmo depositário do sentido que a representação tem como missão extrair e expressar”.

Patrice Pavis defende ainda a conciliação entre as duas visões, partindo do princípio que [...] não há sentido em querer prender a encenação em elementos potenciais ou incompletos dos textos, mesmo se acabando sempre por encontrar um índice textual no qual a encenação pode “legitimamente” se agarrar, não há pré-encenação já inscrita no texto dramático, mesmo se o texto só possa ser lido imaginando situações dramáticas nas quais se desenvolve a ação. (PAVIS, 2011, p. 192)

Ainda que a leitura do texto só se realize com a suposição de um espetáculo imaginário, a construção da ação sempre emancipa-se dele. Apesar de Pavis destacar as interferências existentes entre texto e cena como via de mão dupla, pontuamos que estas proposições encontram-se calcadas em uma visão estruturalista, na qual os elementos do teatro são compreendidos em termos de causa e efeito, sendo um dependente do outro, de maneira hierárquica. No bojo dessa dicotomia, ambos componentes são considerados desconexos e a relação entre eles é algo externo à construção do espetáculo. Desconsidera-se, dessa forma, que estão imbricados e são participantes de uma mesma relação.

Ryngaert (1998, p.8) postula a existência de estilos na escrita do teatro contemporâneo

[...] um ainda clássico, de uma escrita informativa e, no fim das contas, fechada, ao menos tanto quanto autoriza a aspiração imposta pela cena seguinte; o outro, cheio de vazios, de uma escrita que não se esforça para fornecer narrativa, mas que, se é bem-sucedida, impõe suas ‘ausências’ como ímãs para atrair sentido, para construir a cena seguinte.

Observamos, assim, a multiplicidade de formas presentes na escrita dramatúrgica. Denominada “clássica”, esta escrita ainda se encontra muito arraigada ao teatro burguês e à tradição do século XVII e XVIII, que tem por meta a representação de uma vida cotidiana e objetiva construir um script finalizado para ser levado ao palco. A estas se opõem os dramaturgos que buscam novas linguagens para a escrita do texto cênico, com vistas a contemplar as necessidades do teatro na contemporaneidade, onde o imperativo de falar por outros meios que não o verbal adquire importância fundamental para o espetáculo, sobretudo na interação com o público.

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Williams (2010), por sua vez, indica que a interface entre texto e cena se constitui em um contínuo, em progressivas aproximações ou distanciamentos. Essa relação pode ser decorrente de inúmeros aspectos, mas recebe significativa influência das teorias de teatro que vigoram em certos períodos históricos. Assim, analisa obras da literatura dramática universal e propõe uma categorização destas em quatro grupos, a saber:

a) Fala encenada: “quando um texto desse tipo – Antígona, por exemplo – é adaptada nas circunstâncias cênicas para as quais escreveu o poeta trágico, todos os detalhes são tidos como predeterminados” (WILLIAMS, 2010, p. 218).

De uma forma geral, esse tipo de comportamento está presente nas montagens de peças pertencentes à literatura dramática canônica, cuja obra é bastante conhecida. Tanto o diretor, quanto o público buscam estabelecer uma identidade com tais obras, conhecidas sobretudo a partir dos impressos. Nesse caso, o encenador opta por manter todos os detalhes indicados nas rubricas, no que se refere ao cenário, figurino, marcações de palco etc. E, em geral, tenta preencher os vazios do texto (ISER, 1979), tomando por referência a conjuntura social, histórica e cultural em que foi escrito, buscando se aproximar da época do autor. Essas são obras que recebem a atenção das editoras para a publicação e que são consumidos como literatura dramática.

b) Representação visual: “aqui, a relação entre texto e cena varia de acordo com o grau de utilização de convenções do que deve ser encenado visualmente” (WILLIAMS, 2010, p. 218).

O diretor tende a deslocar a interpretação da obra para outras linguagens do palco, preservando o texto. A palavra do autor estará quase sempre a salvo de modificações e a recriação da obra, fator inerente à montagem do espetáculo, será deslocada para o figurino, o cenário, a iluminação, a sonoplastia etc. Por sua vez, o público mais tradicional deseja encontrar a “obra de ...” encarnada no palco, aguarda para escutar os diálogos já conhecidos, até aceita que haja alguma atualização no vocabulário, no entanto, reage negativamente a trechos suprimidos e outras alterações que modifiquem a letra do autor. Tratam-se de peças consagradas, também conhecidas por meio da leitura, além de serem veiculadas em edições comerciais.

c) Atividade: “aqui, embora o texto, de modo geral, possa prescrever a ação, o resultado da encenação geralmente será bem diferente do efeito do texto por si só” (WILLIAMS, 2010, p. 219).

Nesse caso, o compromisso não está em seguir o texto do autor, mas em reinterpretá-lo, propondo-lhe novos sentidos, seja por meio dos elementos cênicos, seja sobre o próprio

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componente verbal do espetáculo, modificado em função das necessidades da encenação. Por meio dos diversos materiais utilizados, o diretor reescreve um roteiro, a partir do formato que pretende dar à sua montagem. De uma maneira geral, não são dados à leitura, pois as modificações empreendidas pelo encenador são consideradas como pertencentes ao plano da cena e não do texto.

Devemos considerar, no entanto, uma tendência de se publicar os cadernos de encenação, contendo as anotações do diretor ou de outros sujeitos. Estes registros trazem o processo de construção dos personagens, os elementos da cenografia e iluminação, a performance dos atores etc. Kaghat (2013, p.426) lista os seguintes títulos publicados pela Editions du Seuil, a saber Mise en scène de Phèdre, de Jean-Louis Barrault; Mise en scène d’Othello, de Constatin Stanislavski. Note-se que o título da obra faz referência direta à montagem e a autoria é atribuída ao encenador. Kaghat (2013, p.426) também chama a atenção para a forma dessas publicações, marcadas por duas características:

1) o texto da encenação é relatado nas páginas do lado direito do livro e o texto dramático nas da esquerda, de modo que as anotações e comentários do diretor se encontram em frente aos diálogos dos quais eles tratam; 2) quando esses livros contêm outros textos relativos ao trabalho do diretor, eles se colocam a parte e constituem outros capítulos do livro.

Nesse sentido, ainda que os registros da construção da peça sejam incompletos e fragmentários, podem assumir a forma impressa, com potencialidades comerciais, a que se atribui uma autoria2. Publicar tais textos é reconhecer o trabalho de direção como criação, dotado de traços característicos, idiossincrasias, além de um estilo próprio, que conferem ao conjunto de suas montagens o estatuto de obra.

Williams (2010) apresenta o último estágio de sua classificação para a relação entre texto e cena, em que os esforços para a elaboração do espetáculo concentram-se prioritariamente sobre esta:

d) Comportamento: “[...] a encenação a um texto desse tipo é baseada menos no texto do que na reação ao texto. Ele, muitas vezes, é mais próximo de ‘uma história que os outros adaptam para a cena’ do que do texto que, para ser totalmente representado, baste que seja vocalizado” (WILLIAMS, 2010, p. 219).

Neste estágio, o grau de distanciamento é bastante acentuado. O texto configura-se apenas como argumento para uma intensa atividade de criação que tem como ponto de partida

2 A partir da publicação do caderno do encenador como livro a ler, entendemos que as anotações de encenação

constituem-se um texto e como tal, demandam, para inscrever-se no sistema dos livros impressos, um nome de autor, a quem se podem atribuir os sentidos de sua obra, conforme teoriza Foulcault (1992 [1969]).

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os sentidos construídos pelos atores e demais sujeitos nas experimentações cênicas. O resultado desse processo de criação pode ser tão intenso e rico que promove a escrita de um outro script, podendo resultar em sua posterior publicação.

Notamos que o distanciamento ou proximidade entre texto e cena não é decorrente do estatuto da escrita para o teatro, mas advém da postura do diretor na elaboração do espetáculo, resultando em diferentes graus de recriação. Cumpre, também, relativizar a distinção estanque entre o texto escrito antes do palco e aquele elaborado após a improvisação cênica, concepção que ignora as idas e vindas que o dramaturgo faz do gabinete ao palco. Entendemos, assim, que os momentos de escrita e encenação não possuem primazia absoluta um sobre o outro, mas podem se configurar como tempos distintos com diferentes graus de acabamento, caracterizados por uma mútua interferência. Mesmo ao se tomar obras da literatura dramática canônica, em que se busca uma “fala encenada”, conforme o modelo proposto por Williams (2010), a oralização da réplica no palco promoverá sua reformulação.

Outra perspectiva que promove a superação da referida oposição é levantada por Pereira (2006), que toma como chave de leitura para pensar esta relação no teatro contemporâneo, os escritos de Artaud (1987), Grotowski (1992) e Brecht (2005). Apesar das diferenças nas propostas cênicas defendidas, as obras dos três resultavam em um desmantelamento das noções consolidadas sobre a ação e a dramaturgia. A partir do esboroamento dessas barreiras e da desconstrução dos conceitos pertencentes a distintos campos do saber, estes passam a ser entendidos de forma integrada. Conforme afirmam Barba e Savarese (1995, p. 69), “a palavra ‘texto’, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, significa ‘tecendo junto’. Nesse sentido, não há representação que não tenha texto”.

Ao retomar a etimologia da referida palavra, Barba e Savarese (1995) chamam a atenção para a ação presente em sua construção. A dramaturgia da cena elabora-se, então, a partir da integração entre ator, diretor e público espectador, podendo ser definida como “[...] um discurso produzido na relação entre cena e espectador, ou em outras palavras, de uma prática de encenação e suas articulações discursivas” (PEREIRA, 2006, p.143). Assim, supõe entender o fazer teatral de forma socializada, uma produção de sentido que seja compartilhada por todos em um processo de criação colaborativa. Concebendo-o em sentido lato, concluímos que não é possível fazer um espetáculo sem texto.

No âmbito da produção dramatúrgica baiana durante a ditadura militar, a segmentação entre o script e a peça contava com alguns complicadores. A instituição da censura militar considerava os fazeres teatrais com base nessa separação, sendo que o primeiro sempre gozaria da anterioridade. Assim, para serem encenados, os textos necessariamente deveriam passar pelo

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crivo da censura, constituída de uma comissão com três técnicos em censura. A avaliação das peças pautava-se na Lei nº 5.536, de 1968, que indicava como critério para veto as produções que fossem “contrárias à segurança nacional e ao regime representativo e democrático, à ordem e ao decôro públicos, aos bons costumes, ou ofensivas às coletividades ou as religiões ou, ainda, capazes de incentivar preconceitos de raça ou de lutas de classes.”. Uma vez liberado, emitia-se o certificado de censura e autorizava-emitia-se o espetáculo com ou emitia-sem cortes, com a devida classificação etária.

Na ótica da censura militar, o texto deveria determinar a cena, baseado nisso, o censor ia assistir ao ensaio geral, analisando a continuidade entre o script e o espetáculo. A presença do sensor teria como finalidade assegurar que todas as falas seriam realizadas conforme o registro escrito, que fora previamente aprovado ou censurado. O relatório do ensaio geral do Serviço de Censura de Diversões Públicas de Sergipe, emitido para a peça Dona Clara Clareou ou Simplesmente destroços, de Jurema Penna (RELATÓRIO, 1982), evidencia esta dicotomização. Impresso e datiloscrito, o relatório é composto por quatro itens: texto, encenação, observações e parecer. No item texto, analisa-se o tema e indica-se se este sofreu alterações em relação ao script encaminhado para a censura, se essas alterações são significativas, se sofreu cortes e se os cortes foram obedecidos. Quanto à encenação, o censor designa se o cenário, a iluminação, a música, o guarda-roupa, a projeção de ‘slides’ e a expressão corporal estão de acordo ou não com as normas censórias. O registro escrito guardaria os sentidos permitidos pela censura que deveriam ser obedecidos na transposição para o palco, e esta, por sua vez, congregaria as demais linguagens cênicas do teatro.

A obrigatoriedade da censura prévia à peça não barrou inovações nas quais a encenação se desvincula do componente verbal, em busca de novas linguagens teatrais. A experimentação torna-se característica preponderante do teatro produzido na Bahia, no bojo das vanguardas teatrais dos anos 1970. O texto teatral, nessa circunstância, perde seu estatuto de centralidade e de elemento organizador da cena, desconstrói-se a posição de supremacia e é, por fim, considerado como mais um dos elementos presentes no teatro. Leão (2011) esclarece que esta tendência do teatro baiano recebia influências das experiências cênicas desenvolvidas no eixo Rio-São Paulo, a exemplo do Teatro de Arena, Grupo Opinião e Teatro Oficina, denotando uma rede de permeabilidade entre essas produções.

Absorvendo as experiências artísticas desenvolvidas no eixo Rio-São Paulo, os encenadores sediados em Salvador trabalham sua escritura cênica de maneira pessoal, ainda que deixem visíveis filiações ou afinidades eletivas. Mesmo sem a rapidez proporcionada pelas novas mídias que permitem a aceleração da informação, os indivíduos e as ideias circulam; rompem-se fronteiras e o trânsito entre os artistas é

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construtivo para que a experimentação se configure como uma prática alimentadora do espaço teatral que se vê movimentado por novos desafios (LEÃO, 2011, p. 184).

O intercâmbio com sujeitos de diferentes movimentos teatrais do Brasil e de outros países promovia trocas culturais que repercutiam na construção do espetáculo e nas experimentações das formas cênicas, ainda que a individualidade da escrita dramatúrgica estivesse presente. Leão (2011) aponta algumas peças teatrais em que essas questões se mostram, citando as produções da década de 1960 em que se observam

[...] elementos recorrentes da estética tropicalista: a alegoria, a mistura de gêneros teatrais impregnados de deboche, o melodrama, o escracho, a chanchada, o teatro de revista, uma pitada operística e ingredientes da cultura de massa utilizados não apenas de forma crítica mas assumidos como parte da poética do espetáculo (LEÃO, 2011, p.184).

O teatro baiano, do referido período, apropria-se das tendências presentes nos diversos âmbitos das artes nacionais e num movimento antropofágico, atualizado pela estética tropicalista, promove a amalgamação destas referências na construção dos espetáculos. Para a década de 1970, o autor destaca Natal em Gotham City, de Deolindo Checchucci, e Macbeth, de Enrique Ariman. Esta última peça suscitou uma série de questionamento acerca do fundamento teórico sobre o qual se assentava o teatro baiano:

De um lado, as ideias defendidas por segmentos conservadores; do outro, aquelas pregadas por defensores da inovação, da vanguarda, do experimentalismo na cena. Tornam-se pauta de argumentação e também de questiúncula as formas de conceber o espetáculo. Opõem-se os aristotélicos aos antiaristotélicos, esses últimos aproximando-se das proposições do teatro da crueldade artaudiano em processo de absorção por alguns encenadores baianos. (LEÃO, 2011, p. 186)

Nesse sentido, observamos que a resistência instituída pelo teatro baiano durante a ditadura militar não se restringia ao conteúdo, mas abarcava também a forma da encenação, ainda que, muitas vezes, estivesse submetida aos desígnios do texto. No entanto, essas novas formas cênicas encontravam dissidentes entre os próprios sujeitos dos movimentos teatrais baianos, constituindo tendências inovadoras e conservadoras.

Integrada a esse momento cultural, Jurema Penna elege a escrita como fundamento para suas peças, ao mesmo tempo em que a reelabora a partir da interação com os atores. Fazendo-se a análiFazendo-se dos documentos recolhidos, percebemos que a dramaturga procedia à construção do texto em um momento prévio à elaboração da montagem, sendo este apresentado aos atores em um processo avançado de acabamento. No entanto, era comum que as diferentes temporadas de uma peça resultassem em alterações ao script. Essas modificações textuais implicavam

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ampliações decorrentes de partições de réplicas, acréscimos de elementos que instigassem o conflito na trama, ou ainda que fossem fruto de uma pesquisa realizada sobre um dado tema.

Para elucidar as questões atinentes à escrita para a encenação, tomamos o trabalho de Rewald, Caos e Dramaturgia, em que são apresentados o processo de elaboração do texto teatral e do espetáculo. Na situação discutida, o dramaturgo participa da montagem de duas peças, Narraador e Gabinete de Joana, analisando sua própria escrita, bem como refletindo teoricamente sobre este processo, a partir de alguns conceitos da Teoria do Caos.

A proposta de Rewald empenha-se em discutir a presença das outras linguagens na escrita do texto teatral. O dramaturgo discorre acerca dos processos intervenientes no seu trabalho, por exemplo, os motivos que o levam a reescrever passagens, reestruturar personagens etc. Pondera a sua atividade como escritor e as funções do script em diálogo com a cena. A discussão interessa por trazer uma reflexão detalhada desse processo e por dar a conhecer a dinâmica presente na elaboração do espetáculo no teatro contemporâneo, bem como o lugar do escritor nessa dinâmica.

Ao se pensar o papel do dramaturgo, a partir do trabalho de Rewald, desconstrói-se a ideia pré-estabelecida de um texto de teatro terminado, bem como de um escritor que conclui sua participação na montagem com a entrega do script para os diretores e atores. No percurso empreendido por Rewald, a perspectiva que se solidifica é a da obra que está sempre submetida à apreciação daqueles que a irão encenar. Atores, diretores, cenógrafos, figurinistas e iluminadores analisam ativamente, projetando, no momento da leitura, as ações necessárias para a realização do espetáculo, conforme o papel desempenhado. Dessa forma,

[o] dramaturgo não é artista soberano na construção da obra. Suas idéias e propostas têm de ser aceitas e discutidas pelo grupo. No entanto, é a partir de tais discussões que surgem novas idéias e material de trabalho para uma evolução da obra, o que caracteriza tal prática como um processo colaborativo (REWALD, 2005, p. xiv).

E como há uma transposição de linguagens no momento da construção da cena, abre-se o precedente para que outros elementos sejam agregados ou mesmo interfiram no componente verbal do espetáculo, tanto no que diz respeito aos diálogos, como nas rubricas, ocasionando um movimento em que as ações do palco intervêm sobre o texto dramático, configurando um processo de criação baseado na troca de experiências. Nesses termos, a noção de dramaturgo-demiurgo que, no exercício solitário de gabinete, estabelece seu universo ficcional, se desfaz, para a emergência de um sujeito que acompanha os ensaios, atento à reação provocada pelo seu texto nos participantes da cena, o que poderá motivar momentos de reescrita.

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A fim de caracterizar o trabalho dramatúrgico, Magaldi (1997, p.16) afirma que

[a]o escrever a peça, o dramaturgo autêntico já supõe a encenação, da qual participa obrigatoriamente o público. Se ele quisesse prescindir da representação, preferiria outro gênero literário. Pode o autor não se importar com a acolhida do público, mas nunca deve esquecer que as suas palavras precisam ser encontradas em função de uma audiência.

De acordo com Magaldi, a encenação permanece como presença durante a escrita da peça. O dramaturgo vislumbra a participação das outras linguagens do espetáculo, bem como o papel desempenhado pelo público. Esse exercício projetivo de antever a ação durante a escrita, no entanto, não é suficiente para o teatro contemporâneo, devendo ser somado à vivência da preparação do espetáculo. Assim, o dramaturgo, quando possível, deve ir a campo, deslocando-se de sua visão escritural e linear para perceber como deslocando-seu texto reverbera no processo de encenação. Dessa forma,

[...] mais do que exercer a função de autor da obra, constitui-se como o intérprete textual das experiências vividas durante o processo […]. Para tanto, é fundamental um exercício de escuta incessante praticado pelo dramaturgo. Afinal ele é a “antena” do processo (REWALD, 2005, p. 23).

Para além da produção textual, esse sujeito assumiria o papel de tradutor da construção da cena para o plano da escrita. A fim de entender esta faceta, Rewald (2005) propõe a noção de autor-espectador, partindo das ideias de autor-scriptor e autor-leitor, discutidas por Almuth Grésillon (1990) e retomadas por Philippe Willemart (1993). Ampliam-se, assim, as possibilidades de leituras de sua obra, antes restritas à “leitura de gabinete”, assumindo um campo mais amplo, dessa forma,

[o] autor-espectador é o escritor forçado a sair do seu gabinete, da sua clausura, da sua solidão imaculada. Para criar, ele necessita olhar o outro, entender a criação do outro, dialogar com o outro, aceitar as regras do outro e fazer com que o outro aceite as suas. O autor-espectador tem de olhar para si e para o mundo ao mesmo tempo, e sua criação é a própria medida deste colocar-se no mundo. Ele não pode se anular aceitando totalmente as questões do outro em detrimento das suas, como também não pode impor a qualquer custo as suas ideias, sem ouvir o outro. Em ambos os casos o processo se empobrece, pois perde a dimensão do diálogo, da interação, necessários para sua evolução (REWALD, 2005, p. 40).

Durante o processo de reescrita, essas leituras e percepções do dramaturgo são registradas, analisadas e incorporadas aos textos. As versões resultantes terminam por constituir um espaço de memória da cena, em que ficam postas certas escolhas. Na comparação dessas

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múltiplas versões, torna-se evidente aquilo que foi suprimido, ou seja, o que não se adequou à proposta da dramaturgia:

Nesse sentido, reforça-se a ideia de que toda discussão ocorrida na história do processo, mesmo que tenha sido abandonada, faz parte de sua memória, e de um certo modo, nunca desaparece. No máximo, pode ser encoberta por outras discussões e informações posteriores, sendo, porém, passível de voltar à tona, ou então de ser descoberta por uma leitura mais aprofundada. A estrutura de um processo pode ser aproximada à de um palimpsesto, ou seja, o seu corpo guarda marcas de sua história, algumas plenamente visíveis, outras encobertas por camadas construídas ao longo do tempo. (REWALD, 2005, p. 24)

A noção do palimpsesto da cena reforça a multiplicidade do texto teatral e suas diferentes camadas textuais, além de apontar para a história de sua construção. Vale ressaltar a necessidade de um olhar atento do pesquisador, pois é por meio dele que tal multiplicidade poderá ser evidenciada nas marcas que o próprio processo de escrita se empenha em apagar.

Nesse sentido, “a memória do processo faz com que todas as versões do texto estejam vivas e não sejam simplesmente substituídas e esquecidas” (REWALD, 2005, p. 32). É graças aos registros da cena, lidos em paralelo ao texto em estágio terminal, que é possível se perceber tais versões vivas. Na ausência de documentos mais completos do espetáculo teatral, os seus vestígios postos em fotografias, matérias de jornais, anotações de palco etc. permitem compreender as supressões, deslocamentos, inserções como parte do processo, já que a retirada de um personagem, rubrica ou cena, cumpre uma função dentro da textualidade do espetáculo e, portanto, sua ausência também constitui sentidos.

Como não se espera que a transição do script para o palco se faça de forma linear, as questões direcionadas ao texto do dramaturgo são desafios a ele impostos e que se constituirão como elemento de inovação na narrativa já conhecida. Por isso, a escrita é entendida como lugar de instabilidade, de confronto, em que

[o] texto tem que levantar problemas e não resolvê-los. Quanto maior o número de questões suscitadas pelo texto, melhor. Não se trata de uma retração no espaço de atuação do dramaturgo e nem de um desejo do dramaturgo de se colocar fora do processo, mas de uma estratégia que visa a interação como forma de evolução. Deixando questões em aberto para serem resolvidas pela direção e pelos atores, o dramaturgo espera por novas soluções, diferentes das que havia pensado, para aproveitá-las numa evolução do texto dramático. (REWALD, 2005, p. 64)

O texto necessariamente problematiza e é problematizado pela cena. Ao mesmo tempo em que impõe seus desafios ao elenco, é questionado pelos atores, diretores, cenógrafos, figurinistas etc. Nesse terreno de instabilidade, em que surgem os problemas, há também lugar

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para a invenção e para a construção coletiva. É no espaço de experimentação cênica e ao assumir a posição de dramaturgo-espectador, que se torna possível a colaboração entre as diferentes esferas da produção teatral. Devemos considerar também, que na elaboração da encenação, para além das questões artísticas, atuam, inevitavelmente, as questões da vida prática, como a proximidade da estreia, a emergência de um festival, ou um convite para a apresentação. A necessidade de mostrar o espetáculo tende a forçar o processo criativo para a delimitação de uma forma, em lugar da experimentação livre, levando a encenação e o texto a assumir formatos mais estáveis,

[…] a peça deixa de ser um corpo aberto, sem forma fixa, passível de se configurar de inúmeras formas possíveis, e passa a ser um corpo fechado, com uma estrutura cristalizada, embora sujeita a mutações espontâneas (improvisações, erros dos atores) ou propositais (mudanças propostas pelo diretor, dramaturgo ou pelos próprios atores) (REWALD, 2005, p. 76).

Fica evidente a passagem de um formato mais amplo e aberto para outro mais fechado e cristalizado. O que não significa a impossibilidade de modificações, apenas que tais mudanças estarão mais vinculadas ao que já está pronto, sem necessariamente promover profundas alterações no âmago da peça. Nesse sentido, observamos que por mais amplo e aberto que o texto e o espetáculo teatral sejam, haverá sempre uma tensão entre forças que tendem a estabilizá-lo e outras que o forçam a manter-se na instabilidade. Apesar desse terreno movediço, no momento da constituição do espetáculo teatral, todos os elementos confluem para a manutenção da sua identidade, de acordo com uma estrutura ou roteiro que deve ser seguido, uma ideia orientadora. Conforme descreve Rewald, em alguns momentos a mudança é indesejada, pois

[t]oda alteração de texto tinha que ser suave e gradual. Um dia uma fala, outro dia outra, e assim por diante. Desse modo, criação e construção estariam sempre em movimento, sem a necessidade de uma crise. Nesse momento de apresentações públicas a crise torna-se indesejável, pois traria instabilidade e vulnerabilidade ao espetáculo, acarretando más apresentações, o que afugentaria o público e conseqüentemente provocaria a morte do processo (cancelamento da peça por falta de público) (REWALD, 2005, p.77).

Com o início da temporada de encenações e a inserção do público no processo, o espetáculo tende a um nível de estabilidade, uma vez que “mudanças drásticas” poderiam ocasionar problemas em sua estruturação e logo interfeririam na recepção. Isso permite concluir que o improviso e as modificações ao espetáculo diminuem progressivamente na medida em que o espetáculo vai tomando sua forma final, e possuem, portanto, finalidades distintas nos

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