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A vinculação da gestão de bens públicos às funções sociais da cidade DOUTORADO EM DIREITO

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PUC/SP

Sylvio Toshiro Mukai

A vinculação da gestão de bens públicos às funções sociais da

cidade

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Sílvio Luís Ferreira da Rocha.

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PUC/SP

Sylvio Toshiro Mukai

A vinculação da gestão de bens públicos às funções sociais da

cidade

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

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Existe um filme do qual sempre gostei muito e que tem a frase da qual sempre me lembro em momentos difíceis: “Nenhum homem é um fracasso se tem amigos”. Afinal, são os amigos e as pessoas que nos acompanham em nossas jornadas que as tornam mais seguras e menos complicadas.

Essa jornada, cujo o fim principia, começou em 2010 e gostaria de externar os meus agradecimentos a todos que me acompanharam.

Primeiro a Deus, pois sem ele nada me é possível!

Aos meus pais e irmãos, que tem fé em mim, mesmo quando ela me falta.

Ao meu orientador Sílvio Luís Ferreira da Rocha, que iluminou essa tese com suas lições e paciência, mesmo quando a minha parca capacidade a jogou na escuridão.

Aos professores Daniela Libório Di Sarno e Nelson Saule Jr., que por meio dos seus apontamentos e sugestões imprescindíveis para o aprimoramento da tese.

Ao amigo Attilio Brunacci pela ajuda inestimável na revisão da tese.

A Ana Cândida de Mello Carvalho pela imprescindível ajuda na tradução de textos.

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BANCA EXAMINADORA

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“As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor do seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam outras coisas.”

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(7)

A presente tese tem como objetivo demonstrar que a gestão de bens públicos encontra-se vinculada ao desenvolvimento das funções sociais da cidade, como exigido na Constituição Federal e nas leis de regência.

A vinculação - que se pretende demonstrar - retira parcela da discricionariedade que o Poder Público detinha para gerir diretamente ou por meio de outorga de uso privativo de bem público em favor de particular. Isso decorreria da necessidade de a Administração Pública, em especial a municipal, empreender ações e atividades voltadas a concretização dos objetivos da política de desenvolvimento urbano traçados no Texto Constitucional e, para isso, devendo observar as diretrizes gerais insculpidas no Estatuto da Cidade. Assim, de uma análise do quadro atual das cidades brasileiras e sua relação com direito a cidades sustentáveis, busca-se conceituar as chamadas “funções sociais da cidade”, relacionando-as com o direito a cidades sustentáveis e os direitos sociais, para que se possa delimitar por meio do exercício de funções públicas – que demandam ampla participação popular – o conteúdo e a forma como o desenvolvimento pretendido das citadas funções sociais da cidade incidem sobre os usos de bens públicos e retiram parcela do poder discricionário do Poder Público para gerir os bens sob seu domínio, seja diretamente ou por meio de instrumentos de outorga de uso por particulares. Busca-se, assim, contribuir com aqueles que demandam claro e efetivo atendimento dos objetivos e finalidades da política pública juridicamente constituída para o desenvolvimento urbano das cidades brasileiras.

Realizou-se o presente estudo utilizando-se de uma interpretação sistemática das disposições constitucionais e legais incidentes no tema e, também, de uma análise das posições doutrinárias e jurisprudências relacionadas com o ponto central estudado.

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This thesis has the purpose of demonstrating that the management of the public assets is linked to the development of the city`s social function, as required by the Brazilian Federal Constitution and applicable law.

The link which this thesis aims at demonstrating withdraws parcel of the discretionary power the Public Administration had to manage its assets directly or by means of granting the private use of the public assets on behalf of a private party. The reduction of the discretionary power results from the necessity of the Public Administration, especially the Municipality, of performing actions and activities aiming at achieving the goals of the urban development policies set forth in the Brazilian Federal Constitution and, in doing so, abiding by the general guidelines provided in the City Act (in Portuguese, “Estatuto da Cidade”). Therefore, from an analysis of the current scenario of the Brazilian cities and their relationship with the right to sustainable cities, this thesis aims at defining the so-called “social functions of the city”. It also aims at establishing the relationship of the city`s social functions with the right to sustainable cities and the social rights, in order to define, by means of the exercise of the public functions – which require broad popular participation – the way the content and the shape of the intended development of the social functions of the city influence the uses of the public assets and limit the discretionary power of the Public Administration to manage the public assets, directly or by means of grants of the use of such assets by private parties. The goal is to contribute with the ones who require clear and effective fulfillment of the objectives and purposes of the public policy legally formed for the urban development of the Brazilian cities.

The preparation of this thesis was based on a systematic interpretation of the applicable constitutional and legal provisions, and also an analysis of Scholar`s opinions and judicial precedents related to the core matter under analysis.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 03

CAPÍTULO I AS CIDADES BRASILEIRAS E A CONSECUÇÃO DO DIREITO A CIDADES SUSTENTÁVEIS ...10

CAPÍTULO II - FUNÇÕES SOCIAIS DA CIDADE... 29

2.1 Conceituação das funções sociais da cidade... 33

2.2 Funções sociais da propriedade urbana pública... 41

CAPÍTULO III - O EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES PÚBLICAS E SUA RELAÇÃO COM AS FUNÇÕES SOCIAIS DA CIDADE ... 45

3.1 Planejamento urbano ... 48

3.2 Princípios e diretrizes norteadores da elaboração do Plano Diretor ... 56

3.3 Licenciamento urbanístico e ambiental ...62

3.4 Natureza jurídica da licença ambiental e da licença urbanística ... 70

CAPÍTULO IV - BENS PÚBLICOS ... 75

4.1 Definição de bens no código civil e sua relação com bens públicos . 76 4.2 Direitos reais e bens públicos ... 82

4.2.1 Posse ... 87

4.2.2 Propriedade ... 91

4.2.2.1 Regime Jurídico de Propriedade de Bens Públicos ... 93

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4.2.2.3 A utilização de bens públicos ... 101

4.3 Uso e bens público ... 105

CAPÍTULO 5 - GESTÃO DE BENS PÚBLICOS ... 106

5.1 Uso de bens públicos privativos por particulares ... 112

5.2 Autorização de uso ... 113

5.2.1 Autorização de uso de área pública para fins comerciais ... 122

5.3 Permissão de uso ... 124

5.4 Concessão de uso ... 132

5.5 Concessão de direito real de uso ... 137

5.6 Concessão de uso especial para fins de moradia ... 160

5.7 Concessão do direito de superfície ... 181

5.8 Concessão urbanística... 188

5.9 Locação ... 194

5.10 Competência para realizar a outorga do uso privativo ... 198

5.11. Desnecessidade do dever de licitar em determinados casos ... 201

5.12. Dever do poder público de observar as funções sociais da cidade na gestão de bens públicos ... 204

CONCLUSÃO ... 209

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INTRODUÇÃO

As maiores cidades brasileiras têm algumas características comuns - apesar de desenvolvimento em áreas distintas - com peculiaridades geográficas próprias, mas que cresceram e chegaram ao seu estágio atual de forma muito semelhantes, com problemas idênticos ou muito parecidos.

Um desses problemas encontra-se no fato de que o planejamento urbano favoreceu o surgimento de grandes ocupações e assentamentos irregulares. Acrescente-se a esse fato a reconhecida ausência de políticas públicas voltadas para as camadas da população de baixa renda, que objetivassem a inclusão dessas camadas no universo de direitos garantidos em nosso ordenamento jurídico, ou reconhecidos como tal para uma real qualidade de vida em centros urbanos. Daí que tais espaços se caracterizam por sub-habitações; ausência de serviços públicos de saneamento; transporte público insuficiente; falta de espaços para lazer e cultura; distância enorme do local de trabalho (o que aumenta exponencialmente a questão do transporte público); carência de equipamentos de saúde; precariedade das instituições de ensino. Em suma, todo o necessário para que os habitantes dos centros urbanos tenham o que se possa caracterizar como algo que lhes proporcione uma vida saudável e garantidora do exercício de direitos constitucionalmente protegidos.

Nesse ponto, o último censo demográfico realizado pelo IBGE torna evidente o quanto tais aglomerações encontram-se distantes do pleno exercício dos seus direitos garantidos e consagrados em nossa Carta Magna.

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Com efeito, os dados desse censo1 apontaram que os chamados

aglomerados subnormais ocupam uma área de 169,2 mil hectares, comportando 3,2 milhões de domicílios particulares permanentes ocupados; isso dentro dos 6.329 aglomerados subnormais identificados.

Outro dado relevante observado pelo censo é que os referidos aglomerados subnormais se concentravam em áreas localizadas em aterros sanitários, áreas contaminadas, áreas próximas a gasodutos e oleodutos, linhas de transmissão e em áreas de preservação ambiental permanente.

De fato, o citado mostra que “a Região Metropolitana de São Paulo possuía o maior quantitativo de domicílios em aglomerados subnormais predominantemente às margens de córregos, rios ou lagos/lagoas (148.608), que ocupavam uma área de 2.571,0 hectares”2. Em que pese a maioria de tais

espaços ocorrerem em áreas de propriedade privada, eles têm especial proteção em nosso ordenamento jurídico, a Lei nº 12.65, de 25 de maio de 2012, que estabelece no inc. I de seu art. 4º, que as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, desde a borda da calha regular até determinada metragem disposta no citado diploma legal, constituem área de preservação permanente, ou seja, não poderia ocorrer intervenção humana, salvo disposições legais e normativas autorizando tal intervenção.

Essas residências, por óbvio, se constituem em domicílios precários, com pouca ou nenhuma infraestrutura urbana, já que a mera localização torna-se um obstáculo à implantação de determinada infraestrutura, bem como óbices para consecução dos direitos englobados pelo direito a cidades sustentáveis, sem falar nos riscos para a população que lá habita e para aquela que depende desses cursos d’água.

É evidente que essas deficiências das grandes cidades brasileiras não se resumem aos espaços ocupados ou aos assentamentos irregulares. Na verdade, elas são uma característica comum a todas as nossas cidades em

1 IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

2<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/aglomerados_subnormais/

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menor ou maior grau. Isso porque são levadas em conta as insuficiências dos espaços urbanos brasileiros, somadas a uma clara exclusão de parcela significativa da população dos ditos espaços quanto ao usufruto da totalidade dos serviços públicos, de acesso ao lazer e cultura, das dificuldades com o transporte público, e com a necessidade de grandes deslocamentos para poder exercer uma atividade produtiva, dentre outras insuficiências.

Deve-se considerar que, apesar da substancial ascensão das condições econômicas de grande parcela dos cidadãos brasileiros, isso não refletiu em uma efetiva melhora das condições de vida das populações urbanas.

Todos os problemas anteriormente relacionados continuam, e a esses somam-se outros que já existiam; esses problemas, porém, são exacerbados com o aumento da capacidade de consumo das camadas mais pobres da nossa sociedade, beneficiadas pela melhora do seu poder aquisitivo, mas que não refletida totalmente no seu bem-estar existencial.

Afinal, por exemplo, dada a baixa qualidade do sistema de transporte público, e com a possibilidade financeira de se adquirir um veículo automotor, é óbvia a preferência pelo transporte individual em detrimento do coletivo; esse fenômeno agrava ainda mais a qualidade de vida da cidade, e coloca o Poder Público em um dilema: ampliar as vias públicas para o deslocamento de veículos particulares ou privilegiar o transporte público.

Considere-se, ainda, o fato de nossos centros urbanos concentrarem em determinadas regiões não apenas a grande maioria dos aparelhos do Estado (escolas, universidades, hospitais, órgãos públicos), mas também as melhores oportunidades de emprego e, por óbvio, o grosso das ações estatais realidade que conduz à necessidade de enormes deslocamentos das referidas populações, o que resulta em horas perdidas em um trafego infernal e quase totalmente parado.

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regiões específicas das grandes cidades; geralmente na área com camadas da população de renda mais alta, em se tratando de locais pertencentes a particulares, ou em áreas mais centrais, quando se refere a espaços públicos.

Em algumas cidades, esse cenário de desigualdade exige novamente deslocamentos consideráveis. Com efeito, os reais problemas de transporte público, somados à área referente às vias de tráfego totalmente insuficiente para atender às demandas de deslocamento, e ainda acrescida do número crescente de veículos, configuram uma clara dificuldade para o desfrute do momento de lazer e relaxamento. Essas agravantes transformam a atividade de lazer em algo claramente contrário ao que se pode entender como um momento de relaxamento ou de prazer. Na verdade, no mais das vezes, viver nesse ambiente urbano configura um verdadeiro padecer no inferno.

Ora, essa situação não é uma novidade nas grandes cidades brasileiras; eles vêm desde o momento em que o fluxo migratório do campo para os centros urbanos inverteu a condição do Brasil, transformando-o de país eminentemente agrícola em um de perfil industrializado com grande concentração urbana. Nesse sentido, e a partir daí, os dramas habitacionais, a questão do trânsito e dos empregos, as dificuldades de acesso aos serviços públicos, as instituições de educação e saúde insuficientes para atender à demanda, ou de baixa qualidade, a ausência de serviços de água e esgoto, dentre outros, são problemas que acompanham as grandes cidades brasileiras.

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A almejada política pública traduziu-se na edição do Estatuto da Cidade, diploma legal que regulamenta o art. 182 do Texto Constitucional, e que objetiva ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus cidadãos.

A importância do Estatuto da Cidade pode ser traduzida pelo que lecionam Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf:3

O Estatuto da Cidade estabelece as diretrizes gerais para a política urbana, para administração das cidades, tornando-as, na medida do possível mais próximas do modelo de cidade sustentável, ou seja, passíveis de fornecer para os seus habitantes condições adequadas de habitabilidade, viabilizando-lhes uma vida digna, humana, com acesso aos bens indispensáveis para a vida, como a moradia, o saneamento básico, o transporte, a educação, o lazer, a memória popular. Enfim, um local seguro e agradável para o indivíduo se desenvolver. Para tanto, restringe, através dos instrumentos urbanísticos, a liberdade de atuar do particular em benefício da coletividade, impondo-lhe severas limitações à sua propriedade.” (g.n.)

É importante destacar que o Estatuto da Cidade impõe ao Poder Público municipal uma série de diretrizes, bem como princípios - aqui entendidos como normas de otimização - que objetivam a garantia do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, e o bem-estar dos seus cidadãos. Significando também limitar a liberdade de uso da propriedade pelos particulares, atrelando-o à necessidade de observância da função social da propriedade imóvel urbana, caracterizada pelo atendimento das exigências fundamentais de ordenação dos núcleos urbanos expressas no Plano Diretor.

Essa perspectiva fica evidente quando se observa o inc. I do art. 2º do mencionado diploma legal. Com efeito, ao estabelecer as diretrizes gerais da

3Comentários ao Estatuto da Cidade Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. São Paulo: Atlas, 2011, p.

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política urbana, como meio de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, evidencia a ligação umbilical entre as referidas funções sociais e o pleno exercício de determinados direitos pelos habitantes dos centros urbanos, como se pode verificar:

"Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e

futuras gerações;" (g.n.)

Deve-se lembrar que, no parágrafo único do art. 1º do diploma legal em comento, encontra-se insculpido que o Estatuto da Cidade estabelece normas de ordem pública e de interesse social as quais regulam o uso da propriedade urbana em favor do bem da coletividade, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como garantindo o necessário equilíbrio ambiental.

Ao estabelecer que as referidas normas são de ordem pública, o legislador deixou claro que elas não podem ser derrogadas em favor do interesse particular; pôs ainda em evidência que são imperativas, no sentido de que devem ser observadas obrigatoriamente, para que a política de desenvolvimento urbano possa ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar dos cidadãos; sendo que, do mesmo modo, ao estabelecer a observância obrigatória de tais normas, não o fez apenas para os entes privados, mas também para o Poder Público lato sensu.

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É importante ressaltar que o já mencionado art. 182 da Constituição Federal em seu caput estabelece que a política de desenvolvimento urbano será executada pelo Município, objetivando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar dos seus habitantes, como anteriormente exposto. Mesmo assim, entretanto, fato é que tal objetivo não se limita ao ente federativo municipal, mas, também, aos demais entes da Federação. Isso decorre dos fundamentos da República e dos objetivos do Estado, como visto anteriormente.

Outrossim, ressalte-se o que dispõe o art. 174 do Texto Constitucional, que o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica exercerá, na forma do disposto em lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo que este último é determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

Considere-se que, para o desenvolvimento urbano alcançar os seus objetivos é fundamental utilizar-se como seu instrumento básico o denominado Plano Diretor; este nada mais é do que um dos elementos constituintes do planejamento urbano. Fica evidente, pois, que os pontos que integram o mencionado Plano Diretor são de observância obrigatória para o Poder Público.

Isso significa, obviamente, a necessidade de que a gestão de bens públicos seja realizada com o objetivo de concretizar plenamente as funções sociais das cidades.

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CAPITULO I - AS CIDADES BRASILEIRAS E A CONSECUÇÃO DO DIREITO A CIDADES SUSTENTÁVEIS

Como referido em páginas anteriores, são inúmeras as desigualdades existentes entre a população moradora dos espaços urbanos. É inegável que persistem as dificuldades de uma ampla parcela da população dos centros urbanos brasileiros em ter garantido o seu direito a cidade sustentáveis, tal qual preconizado no já mencionado inc. I, do art. 2º da Lei 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade).

Com efeito, o IBGE, no Censo 2010, como visto anteriormente, utilizou-se do conceito de aglomerações subnormais para as ocupações ilegais (sejam elas invasões e loteamentos ilegais, sejam mesmo áreas recentemente regularizadas) cuja urbanização realizou-se fora dos padrões vigentes, ou que tenha a prestação de serviços públicos essenciais realizada de forma precária.

Nesse sentido, é importante verificar o conceito utilizado pelo IBGE,4 posto que, na análise dos dados levantados pelo mencionado censo

evidencia-se de modo categórico o quanto persistem as desigualdades que afastam a consecução do direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.

Consigna o IBGE:

“Aglomerado subnormal

É um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas, etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando

4 Censo Demográfico 2010 Aglomerados Subnormais Informações Territoriais. Rio de Janeiro: IBGE,

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ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e/ou densa.

A identificação dos aglomerados subnormais é feita com base nos seguintes critérios:

a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em terrenos de propriedade alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção do título de propriedade do terreno há dez anos ou menos); e

b) Possuir pelo menos uma das seguintes características:

• urbanização fora dos padrões vigentes - refletido por vias de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos; ou

• precariedade de serviços públicos essenciais, tais quais energia elétrica, coleta de lixo e redes de água e esgoto.

Os aglomerados subnormais podem se enquadrar, observados os critérios de padrões de urbanização e/ou de precariedade de serviços públicos essenciais, nas seguintes categorias: invasão, loteamento irregular ou clandestino, e áreas invadidas e loteamentos irregulares e clandestinos regularizados em período

recente.”(g.n.)

Observa-se que, pelas definições do IBGE as ocupações originariamente ilegais, que foram objeto de recente legalização foram apenas quanto à titulação; ou seja, ficaram adstritas a títulos de propriedade ou garantia jurídica da posse, sem que isso refletisse verdadeiramente na prestação de serviços públicos essenciais, ou mesmo, em uma urbanização de acordo com os preceitos legais.

Por sua vez, na referida análise dos dados coletados pelo Censo, o IBGE5 utiliza-se de um entendimento histórico que merece ser reproduzido

para uma melhor compreensão não apenas dos citados dados, mas, também, da situação de uma parcela considerável da população urbana no Brasil.

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Ipsis litteris:

“A análise do processo de urbanização brasileira serve de orientação para explicar não somente a presença majoritária de aglomerados subnormais em certos pontos da rede urbana, mas também para iluminar o entendimento sobre sua distribuição no espaço intraurbano. A organização interna das cidades brasileiras, especialmente das maiores, é caracterizada pelos fatores inter-relacionados: forte especulação imobiliária e fundiária, grande espraiamento territorial do tecido urbano, carência de infraestruturas as mais diversas, incluindo de transporte e, por fim, pela periferização da população (SANTOS, 2005).

Deve-se considerar, ainda, a especificidade da dinâmica habitacional, que integra a lógica de organização interna da cidade e influenciará fortemente na distribuição dos aglomerados subnormais no espaço urbano. A habitação reflete uma divisão social do espaço urbano, característica esta que remonta ao surgimento das primeiras cidades. Na cidade capitalista, a localização da moradia é condicionada, de um lado, pela intensidade dos mecanismos de especulação imobiliária e fundiária, que orientam o valor do solo e do imóvel, e de outro, pela capacidade diferenciada dos diversos grupos sociais de pagarem pela habitação (CORRÊA, 1994). Os aglomerados subnormais surgem, nesse contexto, como uma resposta de uma parcela da população à necessidade de moradia, e que irá habitar espaços menos valorizados pelos setores imobiliário e fundiário dispersos pelo tecido urbano.” (g.n.)

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Ocorre, então, como certo que a questão fundiária urbana e o direito à moradia ganharam uma ênfase maior no tocante aos vários problemas das cidades brasileiras. E isso decorreu do fato de que a ocupação de áreas periféricas se deu pela busca de espaços menos valorizados, seja porque a fiscalização do Poder Público foi mais deficiente, para possibilitar a criação de moradias para as pessoas, seja porque estavam excluídas da possibilidade de ter moradias em áreas mais centrais e providas de infraestrutura.

Os movimentos sociais organizados em suas ações em torno da busca pela propriedade urbana, ou mesmo pela segurança jurídica necessária para garantir o direito à moradia, são um exemplo da ênfase dada à questão fundiária e à luta por moradia. Em alguns momentos, até em choque com os direitos de outras pessoas não integrantes desses movimentos, ou mesmo causando colisão de direitos.

Os conflitos são tão grandes, e seus efeitos tão deletérios, que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu por bem criar um Grupo de Trabalho para Conciliação de Conflitos Fundiários.6 O que, diga-se de

passagem, é altamente salutar, pois é preciso que a solução para esses embates não seja feita pelo uso da força policial, que, em muitos casos, só contribui para o aumento das tensões.

Nesse contexto, até os habitantes de aglomerados subnormais, com seus esforços de construir por conta própria de suas residências (que, em muitos casos, transformavam-se naquele conhecido ato de “encher uma laje”, onde amigos e familiares se reuniam para ajudar na construção da residência, bem como para realizar outras atividades de convívio social), foram levados a uma preocupação maior com a regularização jurídica de sua posse ou da própria edificação. Isso porque, no mais das vezes, tais edificações eram realizadas sem qualquer segurança jurídica da posse ou em claro confronto com a lei no tocante às normas urbanísticas relativas à edificação propriamente dita.

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Porém, as demandas pela regularização jurídica da posse, assim como das próprias edificações, não implicam que essas populações tenham abandonado outras demandas essenciais para elas, como se pode depreender das lições de James Holston:7

“Por meio da autoconstrução, as classes trabalhadoras transformaram as regiões longínquas dos anos 1940 nas periferias densamente habitadas, socialmente organizadas e urbanizadas dos anos 1990 em todas as principais cidades brasileiras. Elas as tornaram não apenas seu principal espaço residencial dentro das regiões urbanas do Brasil, como também um novo tipo de espaço político e simbólico na geografia nacional do país. Em especial, a ilegalidade das moradias estimulou uma nova participação cívica e uma nova prática de direitos: as condições que criou mobilizaram moradores a exigir incorporação integral à cidade legal, que os havia expulsado, por meio da legalização de suas reivindicações de propriedade e da provisão de serviços

urbanos.” (g.n.)

Observa-se, portanto, que a ênfase ao reconhecimento da propriedade, ou a segurança jurídica da posse encontram-se em uma posição de destaque entre as várias demandas dessa parcela da população.

Ocorre que, o direito constitucionalmente garantido à moradia traduz-se não apenas pela existência, pela propriedade ou pela posse de uma residência, mas, sim, por um conjunto de fatores que, alinhados, pode-se dizer que são consonantes com os direitos que caracterizam o direito a cidades sustentáveis.

José Renato Nalini8 define bem tal entendimento:

7Cidadania Insurgente Disjunções da Democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia

das Letras, 2013, ps.30 e 34.

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“Essa categoria de direito fundamentalda moradia é reconhecido em inúmeros tratados e instrumentos internacionais. A humanidade é pródiga em previsões normativas e incompetente em concretizá-las. Basta mencionar que o Comentário Geral n. 4 do Comitê das Nações Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais define os elementos do direito à moradia que devem ser objeto de proteção e garantia da forma como segue: “a) Segurança jurídica da

posse: todas as pessoas devem possuir um grau de segurança de posse que lhes garanta a proteção legal contra despejos forçados, expropriação, deslocamentos e outros tipos de ameaça; b) Disponibilidade de serviços e infraestrutura: acesso ao fornecimento de água potável, fornecimento de energia, serviços de saneamento e tratamento de resíduos, transporte, iluminação pública; c) Custo da moradia acessível: adoção de medidas para garantir a proporcionalidade entre os gastos com habitação e a renda da pessoa, criação de subsídios e financiamentos para os grupos sociais de baixa renda, proteção dos inquilinos contra o aumento abusivo do aluguel; d) Habitabilidade:

a moradia deve ser habitável, tendo condições de saúde física e de salubridade adequadas; e) Acessibilidade: constituir políticas habitacionais contemplando os grupos vulneráveis, como os portadores de deficiências, os grupos sociais empobrecidos, vítimas de desastres naturais ou de violência urbana, conflitos armados; f) Localização: moradia adequada significa estar localizada em lugares que permitam o acesso às opções de emprego, transporte público eficiente, serviços de saúde, escolas, cultura e lazer; g) Adequação cultural: respeito à produção social do hábitat, à diversidade, cultural, aos padrões habitacionais oriundos de usos e costumes das comunidades das comunidades e grupos sociais.

Morar é essencial à dignidade da pessoa humana. Como fruir do direito à inviolabilidade da casa se a pessoa não mora?” (g.n.)

É inegável que, nas maiores cidades brasileiras não são atendidos esses requisitos apontados pelo autor, utilizando-se do Comentário Geral n. 4 do Comitê das Nações Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

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claramente que um número considerável de pessoas não exerce efetivamente o direito à moradia, tampouco o direito à cidade sustentável.

Assevera, ainda, o citado autor9 o quanto o sistema normativo relativo à ordem

urbanística contribuiu para excluir essa considerável parcela da população da possibilidade do exercício dos direitos apontados, como se verifica:

“A ordem jurídico-urbanística desconheceu, durante longo período, as massas desvalidas que se amontoam como podem nessas submoradias. Os espaços por elas ocupados são desconsiderados, ostentam verdadeira não inserção na legislação de uso e ocupação de solo em vigor. São reconhecidos apenas pelo aparato fiscalizatório ou mediante demandas lideradas por movimentos populares ou pelo clientelismo político. Através desse sutil mecanismo, ‘as formas de inserção irregular são simultaneamente estigmatizadas e legitimadas em uma escala micro; na macroescala, porém, a legalidade do direito de propriedade é reforçada. O efeito urbanístico desse dispositivo jurídico-político é impressionante: são milhares de hectares de terrenos e quilômetros de vias públicas que não se sabe, a princípio, se constituem ou não parte integrante da cidade, se devem ou não ser objeto de investimento público, se podem ou não ser integrados às redes de serviços, informação, saúde’10.

Não se pode negar a existência de duas cidades em um mesmo espaço físico: aquela, cujos habitantes têm e exercem em certo grau todos os direitos que caracterizam o já mencionado direito à cidade sustentável, e outra, na qual os habitantes lutam diuturnamente pela consecução desse mesmo direito.

Não cabe aqui utilizar o conceito empregado por alguns autores de fazer a divisão entre a cidade legal (ou seja, aquela que se encontra dentro do ordenamento jurídico urbanístico) e cidade real (que ignora por completo tal ordenamento), já que é um fato incontestável que, mesmo edificações

9 Ob. cit. p. 42

10 Rolnik, Raquel. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São

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localizadas em regiões centrais das nossas cidades - e, portanto, com acesso a serviços públicos, infraestrutura urbana, e demais condições superiores às que os imóveis localizados em regiões periféricas usufruem - não atendem às normas urbanísticas.

Essa condição parece inerente ao contexto da cidade capitalista, onde existe um confronto entre a lógica de reprodução do capital e a necessidade de atendimento as demandas sociais, visto que para o chamado “mercado” não existe interesse maior que não seja o acumulo de capital, mesmo que isso ocorra em detrimento das necessidades da sociedade em geral.

Nesse sentido, ressalte-se o posicionamento esposado por Boaventura de Souza Santos:11

“A cidade capitalista é a expressão territorial da socialização contraditória das

forças produtivas no modo de produção capitalista. A socialização, longe de se circunscrever à fábrica, estende-se às condições gerais de produção (a reprodução do capital no seu todo) e aos próprios meios de consumo coletivo, tais como o ensino, a cultura, a saúde, a habitação, os transportes (a reprodução

da forma do trabalho no seu todo). É conhecido o “desinteresse” do capital pela

reprodução do trabalho. Esta está fora do processo de produção e, portanto, não sujeita à lei do valor. As despesas de consumo são improdutivas, daí que seja necessário manter baixo os custos de reprodução do trabalho e socializa-los (transferi-los para sociedade no seu todo) na medida do possível. No entanto, a estrutura e as condições de consumo têm-se vindo a alterar substancialmente com a intensificação da socialização da produção (o desenvolvimento das forças produtivas pelo incremento da mais-valia relativa). De fato, a socialização do processo de consumo corre de par com a socialização do processo de produção.

Daí a importância crescente dos meios de consumo coletivo (tais como transporte, ensino, assistência hospitalar, infraestruturas, espaços verdes).”

11 O Estado, o direito e a questão urbana In: Invasões Urbanas – conflitos de direito de propriedade,

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Esse embate entre a lógica do mercado e as demandas sociais em certo grau alimentou a construção de uma ordem jurídico-urbanística que, em vários pontos, contribuiu para um quadro de exclusão social, o que pode ser mais bem compreendido pelas lições do já referido James Holston:12

“Vou estabelecer essa ficção legal para desmascarar não só o apelo à história nesses casos, como também o que permanece sendo o princípio central na formação jurídica acadêmica brasileira no tocante à ideia da lei e de sua explicação por função, ou seja, que o fundamento social da lei como instituição é o seu papel na manutenção da coesão social. De acordo com essa visão, a lei serve à ordem essencialmente ao resolver conflitos, reforçando a conformidade às normas e estabelecendo clareza nas relações, em geral com base em noções do que é certo, justo e bom; e sua incapacidade para fazer isso é resultado de fatores alheios à sua natureza, como a incompetência, a corrupção e a política. Assim, numa discussão acerca da lei brasileira, Shirley (1987:89) atribui suas disfunções a uma ‘lacuna entre o direito formal e o aplicado [que] é real em todos os países, mas no Brasil alcançou proporções quase surrealistas’. A formação jurídica em geral atribui as incapacidades das instituições legais à lacuna que Shirley eleva a um conceito analítico. Estudantes de direito aprendem que a lei formal se fundamenta na lógica científica dos valores legais transcendentes e liberais, quase sempre corrompidos pelos interesses do mundo real.

Essas visões da lei são funcionalistas, pois afirmam que, quando a lei processa um conflito, tanto a lei como o conflito canalizado favorecem a coesão. Esse funcionalismo caracteriza a antropologia clássica do direito. Assim, Schapera (1995:xxv) justifica por que ele exclui os ‘muitos subterfúgios empregados para contornar a lei’ de seu manual da lei dos Tswana ao afirmar que os próprios nativos poderiam se ressentir da ‘inclusão do que são, afinal de contas, abusos da lei e não parte da própria lei’. É claro que antropólogos de diversas vertentes teóricas têm descrito esses chamados aspectos extrínsecos dos sistemas legais. Mas, em uma observação astuta que continua válida até hoje, Nader (1965:21) escreve: ‘A maior parte da inclusão dessas funções extralegais na literatura antropológica tem sido anedótica. [Elas] não pretendem ilustrar a lei, e sim são exemplos do que deveria ser incluído em qualquer verdadeiro estudo etnográfico da lei’.

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Influenciada por Marx, Foucault e estudos legais críticos, a antropologia subsequente rejeita essa visão essencialista e funcionalista da lei. Em vez disso, seus estudos focam a lei como um sistema de poder, tomando os múltiplos interesses que a mobilizam, sua incoerência na prática e sua racionalidade como um tipo de discurso. Esses estudos confirmam a observação de Foucault (2007:230) de que a ‘existência de uma proibição legal cria em torno dela um campo de práticas ilegais’, assim como a crítica de Marx às injustiças da lei. No caso em questão, gostaria de enfatizar não apenas que a lei produz ilegalidade e injustiças, mas também que a ilegalidade e a injustiça produzem a lei. Ademais, embora seja previsível que a lei gere caos, com frequência isso se faz por propósitos estratégicos que pouco têm a ver com a justiça. O estado de direito tem tanto a ver com essas produções como com objetivos de probidade, clareza e resolução. Com certeza, a lei precisa promover esses ideais, caso contrário, seu arbítrio comprometerá a possibilidade de justiça. No entanto, a compreensão de que múltiplos interesses informam sua aplicação e sua elaboração evita a suposição de que a lei é justa (ou democrática) sem a investigação das formas pelas quais um específico estado de direito se liga a um regime de cidadania.

O caso do conflito de terras que analiso apresenta um papel historicamente específico da lei, que provoca conflitos e, assim, a torna produtiva. Aplicada dessa maneira, nem a lei nem os conflitos têm chance de resolver problemas na rede mais ampla das relações sociais, como supõe o funcionalismo. Ao contrário, operacionalizada através de conflitos, a legislação fundiária brasileira, perpetua a dominação, legitima a usurpação, acentua a desigualdade e promove a instabilidade de forma regular e previsível. Esses processos submergem quaisquer ideais de justiça que o sistema legal brasileiro apregoe, transformando-o em mau governo.

Estaremos, portanto, obrigados a repensar a lei se o litígio for sobretudo uma forma de perpetuar e obscurecer disputas, em vez de resolvê-las? Meu argumento ressalta a intenção e a norma, pois a legislação fundiária no Brasil produz tanta confusão em seus próprios termos que podemos desconfiar não apenas da incompetência e corrupção, mas principalmente da força de um conjunto de intenções a respeito de sua elaboração e aplicação diferentes das que têm por objetivo a justiça e uma resolução justa. No que se segue, portanto, minha principal preocupação é com as consequências teóricas e sociológicas da eliminação, do modelo explanatório, de tudo aquilo que é disruptivo. Não duvido que possam existir na lei modelos utópicos nem de que, de fato, sejam desejáveis, mas sim de que as distopias da lei sejam externas a sua elaboração”.

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De várias formas, a questão fundiária urbana e os problemas relativos à regularidade das edificações seguem um roteiro em que a injustiça e a ilegalidade realmente geram a lei; com efeito, é claro que em vários momentos, novas leis são editadas, objetivando a regularização pelo menos formal de tais áreas, seja pela ação consciente dos movimentos sociais, seja pela ação político-paternalista de outros.

Lúcia Valle Figueiredo,13 ao comentar a Lei nº 13.558, de 14 de

abril de 2003, do Município de São Paulo, em certo grau evidencia que a ação estatal, nas questões elencadas anteriormente, é no sentido de tentar enquadrar uma ilegalidade ao ordenamento jurídico, como se observa:

“A lei 13.558, do Município de São Paulo, de 14.4.2003, sucedendo a outras,

mercê do seu art. 1º, deu ampla possibilidade de regularização de edificações desconformes.

Em seu art. 1º dispôs expressamente: ‘Art. 1º. Poderão ser regularizadas uma ou mais edificações do mesmo lote, concluídas até 13 de setembro de 2002, desde que tenham condições mínimas de higiene, segurança de uso, estabilidade e habitabilidade. (...). § 2º. A Prefeitura poderá exigir obras de adequação para garantir a estabilidade, a permeabilidade, a acessibilidade, a segurança, a higiene, a salubridade e a conformidade de uso’.

De conseguinte, verifica-se que a chamada conservação, ou a regularização, após a vigência da supra aludida lei, somente poderia ser obtida se a obra tivesse seguido as especificações legais ou a elas pudesse se conformar, por ter sido determinado o termo final.

Entretanto, no que concerne às conservações para as obras existentes à época da promulgação da Lei, seria necessário, apenas, consoante seus termos, tivessem as obras ‘condições mínimas de higiene, segurança de uso, estabilidade e habitabilidade’.

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Observe-se que tais disposições são absolutamente semelhantes a legislação anterior.

Mercê do elastério de dispositivos legais anteriores, absolutamente semelhantes, como já afirmado, foram efetuadas conservações, ou regularizações, em massa que, a rigor, não guardavam estrita compatibilidade

com as exigências legais.” (g.n.)

Ressalte-se, novamente, o que leciona o já mencionado James Holston:14

“O assentamento das periferias urbanas perpetua a grande agência histórica da

ocupação de terras no Brasil: é a ilegalidade que a torna possível. A própria ilegalidade dos lotes residenciais nas periferias torna a terra acessível aos que não podem pagar os altos preços de compra ou de aluguel das residências legais. De modo significativo, essa ilegalidade residencial acaba provocando um confronto com as autoridades legais em que os moradores em geral conseguem, depois de longa e árdua batalha, a legalização de suas precárias reivindicações. Assim, a moradia ilegal é uma forma comum e, em última análise, confiável de as classes trabalhadoras urbanas terem acesso à terra e à moradia e transformarem suas posses em propriedades. Por isso, as periferias urbanas de São Paulo e de outras cidades brasileiras normalmente se desenvolvem por meio de dois processos no que se refere à lei: um de ocupação ilegal, que as

abre aos assentamentos, e outro, concomitante, de legalização do ilegal.” (g.n.)

A regularização da propriedade e da edificação - muitas vezes realizada por meio da edição de leis, ou de outras ações, que objetivam efetuar, seja a efetiva transmissão da propriedade para o possuidor, seja para garantir a conformidade da edificação às normas urbanísticas relacionadas - não encerra a atuação do Poder Público de modificar o cenário urbano.

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De fato, antes mesmo da edição do Estatuto da Cidade, utilizou-se do instituto da Operação Urbana que tem como objetivo modificar determinadas áreas na zona urbana de forma a melhor atender ao interesse público. A denominada operação urbana foi e deve ser instituída por meio de lei municipal específica, com base no Plano Diretor, que define as áreas para a aplicação das citadas operações.

Após a promulgação do Estatuto da Cidade, foi instituído que a mencionada lei, que criaria a citada operação urbana, atendendo ao disposto no seu art. 33, definiria no mínimo: a área a ser atingida, o programa básico de ocupação da área, o programa de atendimento econômico e social destinado à população diretamente afetada pela referida operação, a finalidade da operação, a realização de estudo prévio de impacto de vizinhança, a contrapartida a ser exigida dos beneficiários das alterações anteriormente expostas, e as formas de controle da operação, devidamente compartilhadas com a representação da sociedade civil.

Ocorre que, como demonstra o estudo de Mariana Fix,15

devidamente apontado por Betânia de Moraes Alfonsin,16 as chamadas

operações urbanas, em alguns casos tiveram efeitos contrários àqueles que norteiam as diretrizes da Política Urbana, expressos no Estatuto da Cidade, em especial, as operações urbanas Faria Lima e Água Espraiada, levando a autora a chegar às seguintes conclusões:

O estudo realizado por Mariana Fix acerca dos efeitos perversos das operações urbanas Faria Lima e Água Espraiada, no município de São Paulo, revela que muitas vezes as operações urbanas acabam concentrando renda e benefícios dos processos peculiares de urbanização permitidos pela lei da operação e reforçando processos de segregação socioespacial e exclusão territorial dos pobres urbanos. Esse tipo de operação urbana em que a “parceria” público

privado beneficia tão somente empreendedores privados, sem lograr benefícios

15 Mariana Fix, arquiteta e urbanista. Professora no Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora

no Centro de Estudos de Desenvolvimento Econômico - CEDE/IE.UNICAMP.

16 Da igualdade e da diferença In Direito Urbanístico – estudos brasileiros e internacionais. Alfonsin,

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para o conjunto da população atingida pela operação urbana são, segundo nosso entendimento, terminantemente vedados pelo ordenamento jurídico contido no Estatuto da Cidade.” (g.n.)

Nota-se, portanto, que, em um determinado momento histórico, as normas urbanísticas serviram como um fator de exclusão de uma parcela considerável da população do usufruto de certas conveniências disponibilizadas pelas cidades. Na verdade, exclusão de conveniências que, efetivamente, agregariam uma saudável qualidade de vida aos moradores das áreas urbanas. Assim é que, apesar do constituinte de 1988 objetivar a modificação desse quadro, nem sempre as ações da Administração Pública corresponderam às intenções expostas na legislação que determinava a recuperação de áreas ditas degradas, para incorporá-las ao eixo principal da cidade, na qual, em certo grau se exerce o feixe de direitos que caracterizam o direito à cidade sustentável. Trata-se, pois, de uma modificação que redunda em mais exclusão.

De qualquer forma, o Texto Constitucional consagra a ideia de uma política urbana includente, que atenda aos interesses da camada mais desfavorecida da população. Isso decorre de uma demanda gigantesca dos moradores das áreas periféricas das cidades brasileiras, bem como daqueles excluídos – apesar de residentes em áreas centrais - do acesso à terra urbana, do direito à moradia, ao transporte, ao lazer, e tantos outros direitos aqui já elencados. Ou seja, uma modificação efetiva no quadro urbano brasileiro, que retire o conflito entre uma ordem legal excludente e a busca de uma grande parcela da população por uma cidadania plena, configurada pelo exercício efetivo de direitos.

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atingidos pelos problemas e mazelas da cidades brasileiras. O que reproduz a lição de Boaventura de Souza Santos,17 ressalvado o fato de que os problemas

por ele apontados já não se restringe a essa ou àquela classe social:

“Consequentemente, as contradições do espaço urbano – por exemplo, a discriminação no acesso aos consumos coletivos e a estratificação da segregação habitacional – são irresolúveis se separadas das condições de exploração classista no interior do processo produtivo, sem embargo de alguns dos problemas do consumo coletivo (tais como poluição e o congestionamento do tráfego urbano) virem a assumir uma dimensão transclassista, ou seja, virem a ser sentidos por todas as classes sociais ainda que com graus diversos de

vitimização.”

Ressalte-se o posicionamento de Betânia Moraes Alfonsin18 no

tocante à inserção na Constituição Federal de 1988 de dispositivos atinentes à política urbana e à sua necessidade desta de modificar o espaço urbano de forma que este deixasse de ser excludente parar tornar-se efetivamente um campo propício para o exercício de direitos, como se pode observar:

“A história é de domínio público e a correlação de forças na Assembleia

Constituinte não permitiu a aprovação de uma boa parte das propostas oriundas dos movimentos sociais e apresentadas via ‘emendas populares’. No caso da emenda da reforma urbana, após o embate com o ‘centrão’, restaram apenas os arts. 182 e 183, que deram corpo ao Capítulo ‘Da Política Urbana’ na Constituição Federal. Em que pese a aparente derrota, o fato é que pela primeira vez na história das Constituições brasileiras foi incluído um capítulo sobre a

17 Ob. cit. p. 39

18 Direito à Cidade Sustentável na Nova Ordem Jurídico-Urbanística Brasileira: Emergência,

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política urbana, e esses dois artigos foram importantíssimos para a história que se seguiria nos municípios brasileiros.

O art. 182 da Constituição Federal, além de delegar a execução da política de desenvolvimento urbano aos entes municipais, mencionou pela primeira vez na história do país as ‘funções sociais da cidade’ como objetivo da política urbana. O princípio da função social da propriedade tem previsão constitucional desde a Carta Magna de 1934, todavia, ao incluir a expressão ‘funções sociais da cidade’, o constituinte de 1988 além de ter demandado um esforço doutrinário de definição de sentido e do alcance dessa expressão, obviamente deu um salto de escala do bem individual ‘lote’ (cuja propriedade também deverá atender a sua função social) para o bem coletivo ‘cidade’, que, como totalidade, também deverá ser capaz de atender as suas funções sociais. A Constituição de 1988, portanto, rompe coma visão de urbanismo lote a lote, de responsabilidade do proprietário, para pensar a cidade como um todo, demonstrando a intenção de fazer com que o país passasse a tratar o urbanismo como uma função pública e a própria

cidade com um bem coletivo.” (g.n.)

A edição do Estatuto da Cidade estabeleceu as diretrizes gerais a serem observadas pela política de desenvolvimento urbano, do mesmo modo instituiu instrumentos jurídicos para permitir que o Poder Público municipal tivesse meios de, realmente, implementar um desenvolvimento urbano capaz de garantir as funções sociais das cidades e o bem-estar dos seus cidadãos. Objetivava, então, romper aquilo que o citado James Holston denominou de legalização do ilegal; ou seja, alterou substancialmente um quadro formado por imposições normativas que não atendiam às demandas da população e tampouco refletiam ou promoviam centros urbanos capazes de proporcionar uma saudável qualidade de vida aos seus habitantes.

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ecologicamente equilibrado (art. 46), estando em perfeita consonância com as diretrizes gerais dispostas no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001).

A regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda encontram-se dentre as diretrizes gerais estabelecidas pelo mencionado Estatuto. E que tais diretrizes impõem que a regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por essa população, ocorra mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais (inc. XIV, do art. 2º, da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001).

Destaque-se que a observância das normas ambientais deve compatibilizar-se com as disposições relativas à ordenação e ao controle do uso do solo, o que não pode significar, entretanto, uma nova maneira de, por meio de imposição de normas legais, excluir parcelas significativas da população da possibilidade de consecução de direitos.

De fato, ao atender ao princípio da prevenção - incorporado ao Direito Urbanístico quando o mencionado Estatuto da Cidade estabeleceu a referida compatibilização da ordenação e controle do uso do solo com as normas ambientais - o que pretendia o legislador era evitar a utilização inadequada dos imóveis urbanos, ou seja, evitando que se causasse a deterioração das áreas urbanizadas, a poluição e a degradação ambiental, dentre outras situações previstas nas alíneas do inc. VI do art. 2º do já mencionado Estatuto da Cidade.

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A Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, ao instituir o Programa Minha Casa Minha Vida, dispôs, como exposto anteriormente, sobre a regularização fundiária de interesse social, o que caracterizou o uso pela União de sua competência constitucional para legislar sobre normas gerais de Direito Urbanístico (inc. I, do art. 24 da Constituição Federal). Dentre as disposições contidas no diploma legal destacam-se aqueles referentes às ações do Estado, não apenas de cunho legal, mas no tocante às destinadas a realização de suas obrigações.

Isso decorre da constatação de que a regularização fundiária - como parte integrante e necessária de uma ampla reforma urbana, que tenha como objetivo concretizar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar dos cidadãos - demanda, ainda, uma ação efetiva do Estado para propiciar a realização dos direitos elencados como parte integrante do direito a cidades sustentáveis, o que pode servir de exemplo pela determinação de que o Poder Público diretamente, ou por meio de permissionários e concessionários de serviços públicos, faça as obras para implantação do sistema viário e da infraestrutura básica (art. 55 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009).

Lembre-se que a consecução do direito a cidade sustentáveis não se limita ou se restringe à regularização fundiária, pois é evidente que tal direito é voltado para todos os cidadãos das cidades brasileiras. O fato de que as condições existentes nos denominados aglomerados subnormais serem mais distantes do que efetivamente caracterizaria uma cidade sustentável, não nega a evidência de que todos os moradores de nossas cidades em maior ou menor grau não exercem em plenitude o direito a cidades sustentáveis, como já exposto anteriormente.

Na verdade, os problemas de tráfego, as dificuldades decorrentes da diminuição de áreas verdes, a contaminação do solo e da água, o transporte público deteriorado e insuficiente, e a poluição do ar, não se restringem a essa ou aquela classe social, afetam com certa gradação a todos, indistintamente.

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funções públicas. E essa atuação encontra-se vinculada às funções sociais da cidade, uma vez que essas funções são imbricadas com os direitos que compõem o direito a cidades sustentáveis.

Isso se evidencia pelo que leciona Liana Portilho Mattos:19

“Neste sentido, a cidade, como construção coletiva, tem um compromisso com a dignidade da pessoa humana e com a garantia dos direitos humanos fundamentais: moradia, trabalho, saúde, educação, lazer, acesso à justiça,

segurança, entre tantos outros.”

Ora, uma mera leitura do que estabelece o já mencionado inc. I, do art. 2º do Estatuto da Cidade, possibilita depreender a relação direta entre o feixe de direitos que compõe o direito a cidades sustentáveis e as funções sociais da cidade e, a relação dessas para com os direitos sociais. Isso porque, direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações, claramente englobam as funções sociais da cidade e, por consequência, impõem ao Estado o dever de que suas ações otimizem essas funções para tornar acessível tais direitos.

Para atender esse dever, o Poder Público, como visto, pode utilizar-se de vários instrumentos, desde o planejamento urbano até a gestão de bens públicos. Essa utilização vincula-se ao objetivo do desenvolvimento das funções sociais da cidade, e que esse desenvolvimento só é possível em um meio ambiente equilibrado, o que, por óbvio, não pode prescindir da observância das exigências ambientais.

Ganha significado, portanto, o que estabeleceu a Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, em consonância com os ditames do Estatuto da Cidade, reconhecendo que o Município é detentor da competência para licenciar projetos

19 Artigos 1º, 2º e 3º In: Estatuto da Cidade Comentado. Mattos, Liana Portilho (org.). Belo Horizonte:

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de regularização fundiária de interesse social, sendo que semelhante licenciamento englobará tanto o aspecto urbanístico quanto o ambiental.

Esse significado encontra-se no fato de que o licenciamento de atividades é uma das principais ações relacionadas com o exercício do poder de fiscalização do Estado em matéria ambiental e urbanística. E o reconhecimento da competência municipal nessa matéria é importante não apenas pelos projetos de regularização fundiária de interesse social em si, mas, principalmente, por incorporar o aspecto ambiental ao poder fiscalizatório estatal, no tocante à conformidade de edificações ou ações em áreas urbanas quanto a legislação urbanística.

O exercício da atividade de licenciamento pelo Município é fundamental, ainda, por ser ele o principal instrumento que o Poder Público detém para efetuar o controle do uso do solo, ligando-o às diretrizes insculpidas no Estatuto da Cidade. Controle esse que incide tanto nos bens de particulares, quanto bens públicos, e, portanto, quanto à gestão realizada pelo Estado, nos bens sob seu domínio. Não esquecendo que, por força de outros diplomas legais, o licenciamento poderá ser feito com a imposição de medidas mitigadoras, que poderão converter-se em acréscimo, modificação ou intervenção em bens públicos.

Destaque-se, ainda, que atividade de licenciamento, assim como a gestão de bens públicos, deverão atender aos ditames do planejamento urbano, guardando consonância com a legislação decorrente dele.

CAPÍTULO II - FUNÇÕES SOCIAIS DA CIDADE

A Constituição de 1988, como já exposto, inovou ao estabelecer no

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pelo Município. Posteriormente, em consonância com o disposto no Estatuto da Cidade, evidenciou-se que a dita política objetiva ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus cidadãos. A inovação não estava apenas em dispor sobre a política de desenvolvimento urbano, ou ter um capitulo para a política urbana, algo que não constava em nenhuma das nossas constituições anteriores, mas também, e em especial, estabeleceu o conceito de funções sociais da cidade.

A ideia de funções sociais da cidade, ou mesmo a existência de um capítulo referente à política de desenvolvimento urbano, como anteriormente visto das lições expostas de Betânia Alfonsin,20 não se encontrava em nenhum

outro Texto Constitucional brasileiro, ao contrário do conceito de função social da propriedade. O conceito de função social da propriedade já se encontrava no ordenamento jurídico pátrio desde a Constituição de 1934 que, no § 1º de seu art. 114 dispunha:

“§ 1º. A propriedade tem, antes de tudo, uma função social e não poderá ser exercida contra o interesse coletivo”. (g.n.)

Apesar de tal conceito ter sido utilizado também nos textos constitucionais posteriores, fato é que pouco ou nada se traduziu em algo concreto para ultrapassar a concepção clássica de direito de propriedade, que se consagrou na ideia de que o proprietário poderia usar, gozar e usufruir de sua propriedade, só encontrando limites nos espaços urbanos por meio de disposições de normas urbanísticas, ou convencionais, e pelo direito de vizinhança.

20 Direito à Cidade Sustentável na Nova Ordem Jurídico-urbanística Brasileira: Emergência,

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O Texto Constitucional ora vigente também prescreve que a propriedade deverá atender à sua função social; porém, acrescenta que essa função social será cumprida quando atender às exigências fundamentais expressas de ordenação da cidade estabelecidas no Plano Diretor (§ 2º do art. 182).

José Afonso da Silva,21 analisando esse ponto, preceitua:

“21. A Constituição, como acabamos de ver, acolheu a doutrina de que a propriedade urbana é um típico conceito do direito urbanístico, na medida em que a este cabe qualificar os bens urbanísticos e definir o seu regime jurídico. A qualificação do solo como urbano, porque destinado ao exercício das funções urbanísticas, dá a conotação essencial da propriedade urbana. Esta diferentemente da propriedade agrícola, é resultado já da projeção da atividade humana. Está, portanto, impregnada do valor cultural, no sentido de algo construído pela projeção do espírito do Homem. Pois, pelo visto, ela só passa a existir e a definir-se pela atuação das normas urbanísticas.

22. Por isso é que na observação justa de Pedro Escribano Collado,22 a função social da propriedade privada urbana repousa num pressuposto de primordial importância, qual seja: o de que a atividade urbanística constitui uma função pública da Administração, que, em consequência, ostenta o poder de determinar a ordenação urbanísticas das cidades, implicando, nisso, a iniciativa privada e

os direitos patrimoniais dos particulares.” (g.n.)

As lições de Lucia Valle Figueiredo23 deixam evidente a evolução

das disposições constitucionais relativas à função social da propriedade, como se depreende:

21Direito Urbanístico Brasileiro, 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 76.

22 La Propriedad Privada Urbana. Madrid: Montecorbo, 1979, p. 137.

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“O direito de propriedade continua assegurado. Entretanto, também o está, o direito coletivo e/ou difuso, que é atendido pela função social da propriedade (art. 5º, incisos XXII e XXIII). Não contém mais, a democrática Constituição de 1988,

breve referência à função social como se fora um “cala boca” às tensões político

-sociais.” (g.n.)

É importante ressaltar que a ordenação da cidade expressa no Plano Diretor, e que dá os contornos legais ao atendimento da função social da propriedade, deve, necessariamente, observar as diretrizes gerais fixadas no Estatuto da Cidade, como estabelece o mencionado caput do art. 182 da Constituição Federal de 1988.

O Estatuto da Cidade em seu art. 2º estabelece as referidas diretrizes gerais, como já exposto anteriormente, e que dentre essas diretrizes encontram-se várias que demandam do Poder Público não apenas uma ação no campo da normatização urbanística, mas, também, que sua atuação se dê por outros meios a sua disposição, em especial pelo disposto nos seus incisos IV, V, VI, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI e XVII.

Observa-se que, dentre as diretrizes gerais elencadas, encontra-se um balizamento para o ordenamento das funções sociais tanto da cidade quanto da propriedade urbana, o que leva, necessariamente, a busca pelo entendimento do significado do conceito de ambas as funções, ou seja, da função social da propriedade urbana e das funções sociais da cidade.

Entende Liana Portilho Mattos24 que o conceito de função social da

propriedade insculpido no Texto Constitucional traduz-se em algo intrinsicamente fluido, abstrato e indeterminado, posto que o seu conteúdo se constituirá pelas disposições contidas no Plano Diretor. Este, por seu lado, se instituirá em estrita observância com as diretrizes gerais expressas no referido art. 2º do Estatuto da Cidade, o que implica em uma certa abertura, uma vez que

24Nova Ordem Jurídico-Urbanística – Função Social da Propriedade na Prática dos Tribunais. Rio de

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para ser preenchido tal conteúdo fica na dependência do que for ditado no respectivo Plano Diretor.

De qualquer forma, o conteúdo da função social da propriedade urbana se vincula ao pleno atendimento, por parte do proprietário particular de imóveis urbanos, das ordenações da cidade expressas no Plano Diretor, bem como das legislações urbanísticas dele decorrentes.

Entretanto, surge a questão se a propriedade imóvel urbana integrante do patrimônio da Administração Pública também deve observar a função social da propriedade. Não restando dúvida, no entanto, de que os bens que integram o domínio público devem necessariamente observar e desenvolver as funções sociais da cidade.

2. 1Conceituação das funções sociais da cidade

O Texto Constitucional estabelece que a política de desenvolvimento urbano objetiva o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar dos seus habitantes. Assim o fez por meio da uma norma constitucional de eficácia limitada, posto que dependente de edição de uma lei que fixasse as diretrizes gerais para a consecução de tais objetivos.

Essa norma constitucional utilizou-se de conceitos que podem ser entendidos como indeterminados, já que, como aponta António Francisco de Souza25 sobre a caracterização desse tipo de conceitos, carregam um grande

grau de indeterminação.

Afinal, se a função social da propriedade imobiliária urbana já se encontra vinculada às proposições do Plano Diretor, por força do disposto no § 2º, do art. 182 da Constituição Federal, não se tem no Texto Constitucional uma determinação específica que delimite o entendimento do que seja função social

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