Diretrizes para o Controle Clínico da Talassemia
Federação Internacional de Talassemia (TIF)Índice
1: Introdução – As Talassemias: Visão Geral 2: Base Genética e Fisiopatologia
3: Terapia com Transfusão de Sangue na β-talassemia Major 4: Esplenectomia na Talassemia Major
5: A Sobrecarga de Ferro
6: Controle das Complicações Cardíacas da Talassemia Major 7: Complicações Endócrinas na Talassemia Major
8: Infecções na Talassemia Major 9: Transplante de Medula Óssea
10: Apoio Psicossocial na Talassemia 11: Talassemia Intermédia
12: β-talassemia/HbE
13: Abordagens Alternativas para Tratamento da Talassemia 14: Atendimento Geral à Saúde e Estilo de Vida na Talassemia Apêndice: Organização e Programação de Um Centro de
Talassemia Referências Índice
Lista das Figuras
Figura 1.1 Distribuição fundamental dos distúrbios da hemoglobina
Figura 2.1 Síntese da globina nas diversas etapas do desenvolvimento embrionário e fetal
Figura 2.2 Efeitos do excesso de produção das cadeias livres de α-globina
Figura 2.3 Tipos comuns de genes da β-talassemia, junto com sua gravidade e distribuição étnica
Figura 3.1 Diretrizes para escolha da quantidade de sangue a transfundir
Figura 3.2 Quantidade de sangue doado necessária para elevar a hemoglobina em 1 g/dl
Figura 5.1 Exemplos de aumento precoce das reservas de ferro na ausência de quelação
Figura 5.2 Probabilidade de sobrevivência de pacientes com talassemia sob terapia convencional
Figura 5.3 Aumento da probabilidade de sobrevivência sob terapia convencional da talassemia de pacientes nascidos entre 1970-74, 1975-79 e 1980-84
Figura 5.5 Índice terapêutico
Figura 5.6 Rodízio dos locais de infusão
Figura 5.7 Inserção de agulhas para infusão de desferrioxamina (desferal)
Figura 5.8 Exemplos de equipamentos de infusão Figura 5.9 Índice de aderência
Figura 5.10 Lesões radiológicas graves, similares às do raquitismo, em um menino com toxicidade por desferrioxamina
Figura 5.11 Radiografia da coluna lombar mostra corpos vertebrais achatados
Figura 7.1 Determinação puberal segundo Tanner Figura 7.2 Hipotireoidismo e seu tratamento
Figura 8.1 Possíveis interpretações dos resultados da triagem de hepatite B
Figura 9.1 Probabilidades de Kaplan e Meier para o resultado em receptores Classe I de transplante de medula óssea Figura 9.2 Probabilidades de Kaplan e Meier para o resultado em
receptores Classe II de transplante de medula óssea Figura 9.3 Probabilidades de Kaplan e Meier para o resultado em
receptores Classe III de transplante de medula óssea Figura 9.4 Probabilidades de Kaplan e Meier para o resultado em receptores de transplante de medula óssea com 16 anos de idade ou mais
Figura 11.1 Interações do gene da globina, resultando em talassemia intermédia
Figura 11.2 Mutações da β-globina em 298 alelos de talassemia intermédia e 254 alelos de talassemia major, em pacientes de origem Mediterrânea
Figura 11.3 Critérios que podem ajudar na diferenciação das talassemias major e intermédia na apresentação Figura 11.4 Diagnóstico diferencial entre talassemia major e
intermédia
1: As Talassemias: Visão Geral
As talassemias são um grupo heterogêneo de distúrbios
genéticos em que a produção de hemoglobina normal é parcial ou completamente suprimida devido à síntese incompleta de uma ou mais cadeias de globina. Conforme a cadeia defeituosa, foram descritos diversos tipos de talassemias; os tipos
comuns, graves e com importância clínica, são as talassemias β, δβ e α. Há estimativas de que provavelmente existam no mundo até 100.000 pacientes vivos portadores de β-talassemia. Uma visão geral da distribuição global das talassemias mostra que, além dos países Mediterrâneos nos quais foram pela
primeira vez reconhecidas, as talassemias e os distúrbios da β-globina são freqüentemente encontrados na Ásia e Extremo Oriente, onde as talassemias α são bastante prevalecentes. Devido à contínua migração de populações de uma área para outra, não há agora virtualmente nenhum país no mundo em que a talassemia não afete uma certa porcentagem de seus
Figura 1.1: Distribuição fundamental aproximada da talassemia e
dos distúrbios da β–globina em todo o mundo. Não é apresentada a distribuição migratória para o Novo Mundo, Norte da Europa e Austrália. Existe sobreposição.
Talassemia HbS
HbC HbE
Na ausência de diagnóstico e tratamento, a maioria dos
pacientes com talassemia grave morre antes dos cinco anos de idade. Com o tratamento recomendado, que será discutido
detalhadamente, as complicações acima mencionadas são evitáveis ou tratáveis e, como resultado, o prognóstico global está atualmente em aberto.
Como ocorre com todas as doenças crônicas e incuráveis, as quais constituem importantes problemas de saúde pública, a prevenção, se factível, tem importância primordial no
controle geral da doença. No momento, a prevenção da talassemia, embora trabalhosa e cara, é factível. A
realização da prevenção, entretanto, exige a detecção de todos os casais sob risco. É importante ter em mente que a prevenção somente será eficaz se for realizada uniformemente para toda a população, por unidades apropriadas e
autorizadas, com todos os equipamentos e utilidades necessários, e com uma equipe experiente em detectar as características da talassemia e em dar o aconselhamento genético.
É evidente que a triagem apropriada e extensa, a detecção acurada e o aconselhamento aos casais sob risco, em conexão com o diagnóstico pré-natal, são procedimentos promissores para a redução da mortalidade e da morbidade por talassemias nos países em que elas prevalecem. O objetivo final de uma completa erradicação da talassemia, entretanto, tem um longo caminho a percorrer até sua consecução. Esses problemas foram consideravelmente melhorados pela presente situação de
controle, inclusive o transplante de medula óssea, mas ainda estão longe de ser resolvidos. Por isso estão sendo
pesquisados novos caminhos para um tratamento mais eficaz e menos trabalhoso. Eles incluem a indução farmacológica da hemoglobina fetal, o uso de substitutos artificiais do sangue, e pesquisas em terapia genética.
Até ser atingido o objetivo final de uma cura completa da talassemia, devemos tentar oferecer a nossos pacientes o mais completo e atual sistema de tratamento disponível. Apesar das muitas dificuldades e despesas em que esse sistema pode
incorrer, desde que seja possível oferecer uma boa qualidade de vida aos talassêmicos é nossa obrigação fornecer os meios. Estas Diretrizes fornecem informações sobre qual é atualmente considerado o tratamento mais eficaz, devendo servir como uma meta para o controle de todos os pacientes com talassemia em todo o mundo.
2: Base Genética e Fisiopatologia Tipos de Hemoglobina
O transporte de oxigênio dos pulmões para os tecidos é efetuado por uma molécula altamente especializada, a hemoglobina, que está contida no interior dos glóbulos vermelhos circulantes. Cada glóbulo vermelho contém
aproximadamente 300 milhões de moléculas desta proteína, pesando cerca de 30 picogramas por glóbulo. Cada molécula de hemoglobina é formada por dois pares de sub-unidades
idênticas, as cadeias de globina. Estas são identificadas por letras do alfabeto grego e pertencem a dois grupos: o
aglomerado α-globina, compreendendo as cadeias ζ e α-globina, e o aglomerado β-globina, compreendendo as cadeias de
globinas ε, γ, β e δ. As cadeias de globina aparecem em
seqüência durante a ontogenia e, após formar pares, formam os seguintes quatro grandes tipos de hemoglobina: a) as
hemoglobinas “embrionárias”, são detectáveis a partir da 3a à 10a semana de gestação e representam os tetrâmeros ζ2ε2, α2ε2 e ζ2γ2, b) a hemoglobina “fetal” (HbF), que constitui o
principal transportador de oxigênio durante a gravidez, sendo uma molécula α2γ2, c) a “hemoglobina do adulto” (HbA α2β2), que substitui a HbF logo após o nascimento, e d) um
componente menor do adulto, rotulado como HbA2 (α2δ2). Em condições normais, os glóbulos vermelhos do humano adulto contêm aproximadamente 98% de HbA, traços de HbF e 2,0% de HbA2.
Figura 2.1: Síntese da globina nos diversos estágios do
desenvolvimento embrionário e fetal
Tipo de Megaloblasto Macrócito Normócito célula
--- Local da Fígado Baço Medula óssea eritropoiese
--- Porcentagem da Saco vitelino
síntese total de globina
--- Idade pós-conceptual Idade pós-natal (semanas) (semanas)
Genes da Globina e Síntese da Globina
As cadeias de globina possuem uma estrutura extremamente
precisa; isso assegura seu imediato carregamento com oxigênio nos alvéolos pulmonares e sua liberação gradual controlada na intimidade dos tecidos. Essa estrutura precisa é codificada pelos respectivos genes contidos no DNA dos cromossomas 16 (o aglomerado de genes α) e 11 (o aglomerado de genes β).
Flanqueando os genes estruturais, isto é, na frente (no lado 5’ da seqüência DNA, “a jusante”) e em seguida a eles (no lado 3’ da seqüência DNA, “a montante”), estão diversas
seqüências de nucleotídeos que exercem um papel “regulador”, isto é, eles determinam qual gene deve ser acionado e qual deve ser desligado, assim como quão eficiente será sua expressão. Na vida adulta, a maior parte da síntese da globina ocorre nos eritroblastos na medula óssea. A
hemoglobina deve ter a estrutura correta e estar disposta de tal maneira que o número de cadeias α corresponda
precisamente ao das cadeias β. Quando não são atendidas as condições acima, o resultado é um defeito completo ou parcial em um ou ambos os genes “alélicos” de globina.
As Talassemias: Definições e Distribuição Mundial
O termo “talassemia” se refere a um grupo de doenças do sangue caracterizadas pela diminuição da síntese de um dos dois tipos de cadeias de polipeptídeos (α ou β) que formam a molécula de hemoglobina humana normal no adulto (HbA, α2β2), o que resulta em um enchimento reduzido dos glóbulos vermelhos com hemoglobina, e anemia. Dependendo dos genes envolvidos, o
defeito é identificado como α-talassemia ou β-talassemia. O presente livro visa principalmente ao último grupo, que constitui um grande problema nos países em torno do Mar Mediterrâneo, no Oriente Médio e Trans-Cáucaso, Índia e Extremo Oriente (ver Figura 1.1), em contraste com as α-talassemias que são prevalentes principalmente no Oriente. ββββ-talassemia
Heterogeneidade fenotípica
Como regra, os transportadores heterozigotos da β-talassemia (um alelo afetado), apresentam baixa hemoglobina celular média (MCH), baixo volume celular médio (MCV), alterações morfológicas leves de seus glóbulos vermelhos, nível
aumentado de HbA2, e uma baixa relação da cadeia de globina β/α na biossíntese, a qual está ocasionalmente associada a níveis normais baixos ou ligeiramente sub-normais de
hemoglobina. Em circunstâncias normais, o traço de talassemia não apresenta efeitos clínicos importantes. O principal
motivo disso é que a atividade do gene β normal sobre o cromossoma alélico produz suficiente globina estável. Em contraste, a herança de dois genes defeituosos de β-globina resulta em um amplo espectro de condições clínicas. Elas vão desde a dependência de transfusão (talassemia major) até a anemia leve ou moderada (talassemia intermédia). Estudos
moleculares podem revelar uma ampla gama de anormalidades que estão subjacentes aos fenótipos acima e podem ajudar em sua identificação.
Fisiopatologia da β-talassemia
O controle da talassemia fica mais fácil quando é compreendida a fisiopatologia da doença. A Figura 2.2
delineia a fisiopatologia da β-talassemia. O esquema explica como a gravidade do desequilíbrio da cadeia de globina causa eritropoiese ineficaz, expansão da medula óssea, anemia e aumento de absorção do ferro.
O grau de desequilíbrio da cadeia de globina é determinado pela natureza da mutação do gene β. βo se refere à completa ausência de produção de β-globina sobre o alelo afetado. β+ se refere aos alelos com alguma produção residual de β-globina (cerca de 10%). Em β++ a redução de produção de β-globina é muito leve. Até o momento foram relatadas mais de 200 mutações talassêmicas.
Figura 2.2: Efeitos do excesso de produção de cadeias livres de α-globina
Excesso de cadeias livres de globina Cadeia se precipita
Dano da membrana celular
Glóbulos vermelhos Medula óssea
Hemólise Eritropoiese ineficaz Anemia
Aumento da Aumento da absorção Transfusão de sangue eritropietina de ferro
Expansão da Carga de ferro medula óssea
Alterações do esqueleto Morte cardíaca Estado hipermetabólico
A Figura 2.3 resume os tipos comuns de mutações da
β-talassemia conforme a distribuição étnica e a gravidade. Na Internet pode ser encontrada uma lista abrangente das
mutações β:
http://globin.cse.psu.edu/globin/html/huisman
Figura 2.3: Tipos comuns de genes da β-talassemia com sua gravidade e distribuição étnica
População Mutação do gene ββββ Gravidade
Tabela conforme o original
Variantes da hemoglobina estrutural beta relevantes para o controle da talassemia
O distúrbio da hemoglobina E é a variante estrutural mais comum com propriedades talassêmicas (ver Capítulo 11).
A HbE se caracteriza pela substituição da lisina pelo ácido glutâmico na posição 26 da cadeia da β-globina. A mutação G→A no códon 26 dos genes da β-globina não apenas produz a substituição do aminoácido como também ativa um local de união críptica no códon 24-25, levando a uma via alternativa de união. O resultado global é a produção de quantidades reduzidas da hemoglobina variante (HbE). Em outras palavras, a mutação do códon 26 G→A resulta em defeito tanto
Os heterozigotos para HbE são clinicamente normais e
manifestam apenas alterações mínimas nos índices de glóbulos vermelhos, com 25-30% de HbE na eletroforese. Os homozigotos para HbE são clinicamente silenciosos e podem ser apenas ligeiramente anêmicos. O exame do esfregaço de sangue
periférico mostra microcitose com 20-80% de glóbulos vermehos em alvo, enquanto que a eletroforese da Hb mostra 85-95% de HbE e 5-10% de HbF.
Os componentes genéticos da HbE e da β-talassemia, que também são comuns no sudeste asiático, apresentam manifestações
clínicas com gravidade variável – desde a talassemia intermédia até a grave talassemia major dependente de transfusão. Os motivos dessa variabilidade foram apenas parcialmente definidos, sendo que indivíduos com genótipos bastante idênticos podem apresentar manifestações clínicas com gravidades muito diferentes.
A Hb Lepore é outra variante estrutural β resultante de uma fusão de genes de globina δ eβ. O estado homozigoto da Hb Lepore pode resultar em síndromes de β-talassemia dependentes de transfusão, variando de moderadas a graves.
Distúrbios da Hemoglobina S: HbS, a variante mais comum da hemoglobina em todo o mundo, resulta de uma substituição da valina por ácido glutâmico na posição 6 da cadeia de
β-globina. A interação da β-talassemia com HbS resulta em uma síndrome que lembra bastante os distúrbios falciformes. Esta síndrome tipicamente não requer transfusões e não está
associada à sobrecarga de ferro. O controle da talassemia falciforme deve obedecer às diretrizes NIH existentes para o controle dos distúrbios das células falciformes:
http://www.nhlbi.nih.gov/health/prof/blood/sickle/sick-mt.htm
α αα
α-Talassemia [Higgs & Weatherall 1993]
As α-talassemias são distúrbios herdados, caracterizados pela produção reduzida ou suprimida de cadeias de α-globina. Os genes humanos de α-globina são duplicados e localizados na extremidade telomérica do ramo curto do cromossoma 16. A α-talassemia é causada, mais comumente, por anulação de grandes fragmentos de DNA que envolvem um ou ambos os genes da
α αα
α-Talassemia-2 (Estado de portador silencioso): a presença da anulação de um único gene da α-globina resulta no estado de portador silencioso.
α αα
α-Talassemia-2 homozigota / αααα-Talassemia-1 heterozigota (traço de ααα-Talassemia): Os indivíduos com dois genes α α funcionais residuais apresentam anemia e microcitose.
As anulações ou anormalidades de três genes globina resultam na doença HbH, geralmente caracterizada por anemia hemolítica moderada, esplenomegalia e crise hemolítica aguda em resposta a drogas oxidantes e infecções.
Outras variantes estruturais relevantes incluem a uma Hb rara (Hb Constant Spring), a qual é devida a um alongamento das cadeias de α-globina, que são assim ineficazmente
sintetisadas. Essa mutação é encontrada principalmente na Ásia. A herança conjunta de uma Hb rara ("Constant Spring") e da anulação de um ou mais genes resulta em uma forma grave de doença HbH.
Hidropsia fetal da Hb de Bart, a mais grave manifestação
clínica da α-talassemia, está geralmente associada à ausência de todos os 4 genes da α-globina e à morte in útero. A
ausência de genes da α-globina na posição “cis” no mesmo cromossoma (αo-talassemia, --/) é comum no sudeste da Ásia, enquanto que é rara na área do Mediterrâneo e muito rara na África. É disseminada a anulação de um único gene de
α-globina. Esta distribuição diferente explica porque a
síndrome da hidropsia fetal da Hb de Bart e a doença HbH são comuns nos países do sudeste da Ásia, raras nas populações mediterrâneas e quase ausentes na população africana.
3: Terapia com Transfusão de Sangue na ββββ-Talassemia Major Visão Geral
Uma quantidade adequada e uma alta qualidade do sangue,
transfundido de maneira apropriada, são os conceitos básicos no protocolo da administração rotineira de sangue aos
• Manutenção da viabilidade e função dos glóbulos vermelhos durante a estocagem, a fim de se garantir transporte suficiente de oxigênio
• Uso de eritrócitos doadores com recuperação e meia-vida normais no receptor
• Obtenção de um nível apropriado de hemoglobina
• Prevenção de reações adversas, inclusive a transmissão de agentes infecciosos.
Seleção do Doador
Os produtos do sangue para os pacientes com talassemia devem ser obtidos de doadores voluntários sadios cuidadosamente selecionados, submetidos a um extenso questionário e a triagem laboratorial para hepatite B, hepatite C, HIV e sífilis. As estratégias específicas para a seleção de doadores e triagem do produto serão influenciadas pela
prevalência de agentes infecciosos na população doadora. (Ver TIF Blood Kit para mais informações sobre a segurança do
sangue e a seleção de doadores). Produtos do Sangue para Transfusão
Produtos de sangue recomendados
Os pacientes com talassemia devem receber glóbulos vermelhos leucodepletados (com redução dos leucócitos). A redução dos leucócitos para 5 x 106 é considerada o limiar crítico para eliminação das reações adversas atribuídas aos glóbulos
brancos contaminantes e para a prevenção da aloimunização das plaquetas [Sprogoe-Jakobsen 1995]. Os métodos para redução leucocitária incluem:
• Filtração pré-estocagem do sangue total, para remoção dos glóbulos brancos, realizada com um filtro acoplado à bolsa da coleta ou utilizado dentro de oito horas após a coleta do sangue. O retardo da filtração pode permitir alguma fagocitose de bactérias (p.ex., Yersinia
enterocolitica)[Buchholz 1992]. Este método de remoção dos leucócitos oferece uma filtração de alta eficiência e provê leucócitos residuais consistentemente baixos nos glóbulos vermelhos processados e elevada recuperação dos glóbulos vermelhos. Os glóbulos vermelhos acondicionados são obtidos por centrifugação do sangue total reduzido de leucócitos.
• Filtração ao lado do leito: Os glóbulos vermelhos são obtidos do sangue total estocado por centrifugação, para separar o plasma e remover a “buffy coat”. No momento da transfusão, a unidade de glóbulos vermelhos é filtrada ao lado do leito. Este método pode não permitir um ótimo controle de qualidade, porque as técnicas usadas para filtração ao lado do leito podem ser altamente variáveis.
Produtos do sangue para populações especiais de pacientes
Glóbulos vermelhos lavados podem ser benéficos para os pacientes com talassemia que apresentam reações alérgicas graves à transfusão. A lavagem com solução fisiológica remove as proteínas do produto doado, as quais são o alvo dos
anticorpos do receptor. Outros estados clínicos que podem requerer produtos de glóbulos vermelhos lavados incluem a deficiência de imunoglobulina A (IgA), na qual o anticorpo à IgA pré-formado no receptor pode resultar em uma reação
anafilática. Usualmente a lavagem não resulta em redução adequada dos leucócitos e por isso deve ser usada
conjuntamente com a filtração. As unidades de lavagem de glóbulos vermelhos podem remover alguns eritrócitos do produto da transfusão.
Glóbulos vermelhos congelados são usados para manter um suprimento de unidades doadoras raras para determinados pacientes que apresentam anticorpos incomuns aos glóbulos vermelhos ou que estão perdendo os antígenos comuns dos glóbulos vermelhos. O Euroblood Bank em Amsterdã, Holanda, fornece uma ampla variedade de tipos especiais de sangue. Para mais informações, contatar Marijke Overbeeke:
Euroblood Bank Plesmanlaan 125 Amsterdã 1066 CX Holanda Fone: +31 20 512 9222 Fax: +31 20 512 3252
A transfusão de neócitos ou glóbulos vermelhos jovens pode reduzir modestamente as necessidades de sangue. Os pacientes, entretanto, são expostos a um número mais elevado de
doadores, com conseqüente aumento de custo, risco de transmissão de infecções, e risco de aloanticorpos.
Unidades de estocagem de glóbulos vermelhos doadores
A introdução de nutrientes aditivos como AS-1 e AS-3 tem permitido a estocagem de glóbulos vermelhos por até 42-48 dias. A recuperação pós-transfusão é de 73-83% após a
estocagem máxima. Níveis elevados de ATP são mantidos até o 28o dia de estocagem, mas os níveis de 2,3-DPG e P50 podem não ser satisfatórios. Pouco se sabe sobre a meia-vida do glóbulo vermelho no receptor após uma estocagem prolongada do sangue do doador. Uma recuperação diminuída e uma meia-vida
encurtada podem aumentar a necessidades de transfusões e a taxa da carga de ferro. A prática atual é tentar usar
glóbulos vermelhos estocados em soluções aditivas por menos de 2 semanas. Em pacientes com doença cardíaca e em crianças pequenas, deve ser dada atenção especial ao volume
acrescentado pelas soluções aditivas.
Testes de Compatibilidade
O desenvolvimento de um ou mais anticorpos específicos dos glóbulos vermelhos (aloimunização) é uma complicação comum da terapia de transfusão crônica [Spanos 1990]. Por isso é
importante monitorar cuidadosamente os pacientes quanto ao desenvolvimento de novos anticorpos, e eliminar os doadores com os antígenos correspondentes. Os anticorpos E, anti-C e anti-Kell são os mais comuns. Entretanto, 5-10% dos
pacientes apresentam aloanticorpos contra antígenos
eritrocitários raros ou com anticorpos quentes ou frios de especificidade não identificada.
Antes de iniciar um terapia por transfusão, deve ser feita uma ampla tipagem dos antígenos dos glóbulos vermelhos dos pacientes, incluindo pelo menos C, c, E, e, e Kell, a fim de ajudar a identificar e caracterizar os anticorpos em caso de imunização tardia. Todos os pacientes com talassemia devem ser transfundidos com sangue compatível ABO e Rh(D). Alguns clínicos recomendam o uso de sangue que seja compatível também com pelo menos os antígenos C, E e Kell, a fim de
evitar a aloimunização contra esses antígenos. Alguns centros usam uma compatibilização antigênica ainda mais ampla.
• Antes de cada transfusão é necessário realizar uma compatibilidade cruzada completa e triagem de novos anticorpos.
• Se aparecerem novos anticorpos, eles deverão ser
identificados para que possa ser usado sangue sem o(s) antígeno(s) correspondente(s).
• Deve ser mantido, para cada paciente, um registro
completo da tipagem dos antígenos, dos anticorpos anti glóbulos vermelhos e da reação à transfusão, o qual deve estar prontamente disponível para o caso do paciente ser transfundido em um centro diferente.
• Deve ser evitada a transfusão de sangue dos parentes de primeiro grau, devido ao risco de desenvolvimento de
anticorpos que poderia afetar adversamente o resultado de um futuro transplante de medula óssea.
Programas de Transfusão
O tratamento recomendado para a talassemia major envolve transfusões regulares de sangue, usualmente administradas cada duas a cinco semanas, a fim de manter o nível de
hemoglobina pré-transfusão acima de 9-10,5 g/dl. Esse regime de transfusão provoca o crescimento normal, permite
atividades físicas normais, suprime adequadamente a atividade da medula óssea, e minimiza o acúmulo de ferro transfusional [Cazzola 1995,1997]. Enquanto intervalos mais curtos entre as transfusões podem reduzir as necessidades globais de sangue, a escolha do intervalo deve levar em conta outros fatores como o trabalho do paciente ou a programação escolar. A decisão de iniciar uma terapia de transfusão por toda a vida deve ser baseada em um diagnóstico definitivo de
talassemia grave. Esse diagnóstico deve levar em consideração o defeito molecular, a gravidade da anemia em medições
repetidas, o nível de eritropoiese ineficaz, e critérios clínicos como a incapacidade de progredir ou as alterações ósseas.
O volume recomendado de glóbulos vermelhos transfundidos é complicado pelo uso de diferentes soluções anticoagulante-preservativas. Para as unidades CPD-A com hematócrito de aproximadamente 75%, o volume por transfusão é usualmente de 10-15 ml/kg, administrada durante 3-4 horas. As unidades com soluções aditivas podem ter hematócritos de 60-70%, sendo então necessários volumes maiores para administrar a mesma massa de glóbulos vermelhos fornecida por unidades CPD-A com hematócrito mais elevado. Na maioria dos pacientes, é
geralmente mais fácil evitar essas diferenças da concentração dos glóbulos vermelhos prescrevendo um certo número de
unidades (p.ex., 1 ou 2) em lugar de um volume particular de sangue. Crianças mais jovens podem requerer uma fração de unidade para se evitar sub ou super-transfusão. Os pacientes com insuficiência cardíaca ou níveis iniciais de hemoglobina
muito baixos, devem receber quantidades menores de glóbulos vermelhos, em taxas de infusão mais lentas.
Figura 3.1: Diretrizes para escolha da quantidade de sangue a
transfundir
Hematócrito dos Glóbulos Vermelhos do Doador Aumento do alvo
no Nível de Hemoglobina Tabela conforme original
Como exemplo, para elevar em 4 g/dl o nível de hemoglobina em um paciente pesando 40 kg e recebendo sangue AS-1 com um hematócrito de 60%, serão necessários 560 ml. Esse cálculo admite um volume sangüíneo de 70 ml/kg de peso corpóreo.
A Hb pós-transfusional não deve ser superior a 15 g/dl. É desnecessário a determinação regular do nível da hemoglobina após a transfusão. Determinações ocasionais, entretanto, permitem a avaliação do ritmo de queda do nível de
hemoglobina entre as transfusões e podem ser úteis na
avaliação dos efeitos das alterações do regime de transfusão, o grau de hiperesplenismo, ou alterações inexplicáveis da resposta à transfusão.
Foi demonstrado que a aferese eritrocitária, ou troca automática dos glóbulos vermelhos, reduz as necessidades líqüidas de sangue e a taxa da carga de ferro transfusional [Berdoukas 1986]. A utilização do sangue do doador,
entretanto, aumenta duas a três vezes, aumentando o custo e o risco de infecção ou aloimunização.
Deve ser mantido para cada paciente um registro cuidadoso do sangue transfundido. Esse registro inclui o volume ou peso das unidades administradas, o hematócrito das unidades ou o hematócrito médio das unidades com soluções anticoagulante-preservativas similares, e o peso do paciente. Com essas informações é possível calcular as necessidades anuais de sangue em ml de glóbulos vermelhos por kg de peso corpóreo. Uma alteração dessas necessidades pode ser uma evidência importante de hiperesplenismo ou de destruição acelerada dos glóbulos vermelhos do doador.
Figura 3.2: Quantidade de sangue do doador, dependendo do
hematócrito, necessária para elevar em 1 g/dl a hemoglobina do paciente
Gráfico conforme o original
Por exemplo, um paciente com talassemia e pesando 60 kg,
precisaria de aproximadamente 170 ml de glóbulos vermelhos com hematócrito 75% para elevar em 1 g/dl o nível de hemoglobina. Os cálculos assumem um volume sangüíneo de 170 ml/kg,
independentemente do tamanho do paciente.
Reações adversas
A transfusão de sangue expõe o paciente a diversos riscos. Por isso é vital continuar a melhorar a segurança do sangue e encontrar meios de se reduzir a necessidade de transfusões e o número de exposições de doadores. Os eventos adversos
associados à transfusão incluem:
• Reações febris não hemolíticas à transfusão: Elas eram comuns nas décadas passadas, mas foram dramaticamente reduzidas pela leuco-redução. Se não for possível a leuco-redução efetiva, os pacientes que apresentarem essas reações deverão receber antipiréticos antes das transfusões.
• Reações alérgicas, variando de leves a graves. Elas são devidas principalmente às proteínas plasmáticas. Foram acentuadamente reduzidas com a remoção do plasma. Um paciente propenso a reações alérgicas pode se beneficiar de glóbulos vermelhos lavados.
• Reações hemolíticas agudas, que são incomuns e mais freqüentemente surgem de erros na identificação do paciente ou da tipagem sangüínea e dos testes de
compatibilidade. O risco de receber sangue errado é maior para um paciente talassêmico que viaja para um outro
centro ou é internado em um hospital ao qual ele não é familiar. As reações hemolíticas ainda podem ser evitadas nesses pacientes se o banco de sangue estiver
familiarizado com o protocolo da OMS para triagem dos anticorpos e realização da necessária compatibilização cruzada das unidades doadoras.
• Anemia hemolítica autoimune, uma complicação muito séria da terapia de transfusão, usualmente combinada com
aloimunização subjacente. Mesmo glóbulos vermelhos de unidades aparentemente compatíveis podem apresentar
sobrevida acentuadamente reduzida, com a concentração de hemoglobina podendo cair abaixo do nível usual antes da transfusão. Ocorre a destruição dos glóbulos vermelhos, tanto do doador como do receptor. Para controle clínico dessa situação são usados esteróides, drogas
imunossupressoras e imunoglobulina endovenosa, embora todos possam trazer pouco benefício. Esta complicação pode ocorrer mais freqüentemente em pacientes que iniciam a terapia de transfusão num estágio mais tardio da vida [Rebulla 1991].
• Reações tardias à transfusão: Elas ocorrem 5-10 dias após a transfusão e se caracterizam por anemia, mal estar e icterícia. Essas reações podem ser devidas a um
aloanticorpo que não foi detectado por ocasião da
transfusão, ou ao desenvolvimento de um novo anticorpo. Deve ser enviada uma amostra ao banco de sangue para pesquisa de um novo anticorpo e para recompatibilização cruzada das últimas unidades administradas.
• Lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão (TRALI) e doença enxerto versus hospedeiro (GVHD), condições raras mas clinicamente muito graves. A TRALI, causada por
anticorpos específicos anti-neutrófilos ou anti-HLA, se caracteriza por diapnéia, taquicardia, febre e
hipotensão. O controle inclui oxigênio, administração de esteróides e diuréticos e, quando necessário, ventilação assistida. A GVHD é um risco particular quando o doador é um membro da família que compartilha haplótipos HLA com um receptor imunossuprimido. O sangue doado por um membro da família deve ser irradiado antes da transfusão.
• Transmissão de agentes infecciosos, inclusive vírus, bactérias e parasitas, um risco importante da transfusão de sangue (ver Capítulo 8). Novos problemas continuam a se materializar, como a descoberta de novos vírus (p.ex., HGV, TTV, SEN-V), assim como a reaparição de antigos e esquecidos agentes infecciosos, como a nova variante da Doença de Creutzfeldt-Jakob. A continuada transmissão de hepatite B, hepatite C e HIV enfatiza a importância de doações voluntárias de sangue, triagem cuidadosa dos doadores e, em caso de hepatite B, imunização.
4: Esplenectomia na Talassemia Major
Muitos pacientes com talassemia major necessitam de
esplenectomia. Entretanto, o controle clínico favorável desde o momento do diagnóstico pode retardar ou mesmo evitar o
hiperesplenismo, aumentando a eficiência da terapia de transfusão e reduzindo a necessidade de esplenectomia. Durante todo o atendimento ao paciente com talassemia, o tamanho do baço deverá ser cuidadosamente monitorado durante o exame físico e, se necessário, por ultra-sonografia.
A esplenectomia deve ser levada em consideração quando: • As necessidades anuais de sangue excedem em 1,5 vezes as
dos pacientes esplenectomizados, desde que eles estejam sob o mesmo esquema de transfusão e não apresentem outros
motivos para o aumento de consumo. Esses motivos incluem novos aloanticorpos, infecção, e alterações do hematócrito das unidades transfundidas. Para os pacientes que estão mantendo um nível pré-transfusional de Hb em torno de 10 g/dl, esse aumento de necessidade de transfusão
representa o consumo de mais de 200-220 ml de glóbulos vermelhos (se o hematócrito dos glóbulos transfundidos for 75%)/kg/ano [Modell 1977; Cohen 1980]. O estado de
sobrecarga de ferro também deve fazer parte dessa
consideração. A esplenectomia pode não ser necessária para os pacientes que mantêm uma eficaz terapia de quelação apesar das necessidades aumentadas de sangue. Para os pacientes com crescimento dos estoques de ferro apesar da boa terapia de quelação, a redução da taxa de carga de ferro transfusional pela esplenectomia pode ser um
importante componente do controle global da sobrecarga de ferro.
• O aumento do baço é acompanhado por sintomas como dor no quadrante superior esquerdo ou saciedade precoce, ou quando a esplenomegalia maciça causa preocupação quanto a uma
possível ruptura do baço.
• A leucopenia ou a trombocitopenia devido a hiperesplenismo, causam problemas clínicos (p.ex., infecção bacteriana
recorrente ou sangramento).
A esplenomegalia devido a períodos de sub-transfusão com
hemoglobina inadequadamente baixa, pode ser reversível. Antes de se considerar a esplenectomia nesta situação, o paciente
deve ser colocado durante diversos meses em um programa de transfusão adequado, sendo então reavaliado.
Geralmente é recomendável retardar a esplenectomia até que os pacientes tenham pelo menos cinco anos de idade, devido ao risco aumentado de uma sepsia fulminante antes dessa idade (ver abaixo).
Cirurgia
As duas técnicas cirúrgicas mais comumente empregadas para a esplenectomia total são as abordagens aberta e laparoscópica. A abordagem laparoscópica requer um tempo operatório mais longo e pode não ser prática em pacientes com baços muito grandes, mas o período de recuperação é mais curto e não há praticamente nenhuma cicatriz cirúrgica. Muitos cirurgiões têm agora uma ampla experiência nesta abordagem.
Em alguns centros é usada a esplenectomia parcial, com o objetivo de preservação de algumas funções imunológicas do baço ao mesmo tempo em que se reduz o grau de hiperesplenismo [De Montalembert 1990]. O sucesso a longo prazo desta
abordagem ainda está sendo avaliado. Duas questões não respondidas sobre esta técnica são a probabilidade de recrescimento esplênico e o volume de tecido esplênico
necessário para a preservação da função imunológica. Em todas as abordagens cirúrgicas deve ser feita uma busca cuidadosa de baços acessórios.
A redução do tecido esplênico por embolização é uma abordagem menos invasiva ao hiperesplenismo que a esplenectomia
completa ou parcial [Pringle 1982]]. Essa abordagem, entretanto, não ganhou ampla aceitação, podendo ser
complicada por febre, dor significativa, e pela possível necessidade de uma esplenectomia total posteriormente. A embolização não permite a busca de baços acessórios.
Antes da cirurgia, deve ser feita uma avaliação de possíveis cálculos biliares, especialmente se o paciente apresentou sintomas sugestivos de doença do trato biliar. Em alguns casos, os achados positivos levarão a uma colecistectomia ao mesmo tempo que a esplenectomia. A remoção do apêndice ao mesmo tempo que a esplenectomia pode evitar problemas
posteriores para distinção entre uma infecção por Yersinia enterocolitica e apendicite. A esplenectomia também
proporciona uma boa oportunidade para biópsia do fígado para fins de histologia hepática e concentração de ferro.
Pelo menos 2 semanas antes da esplenectomia, devem ser administradas as imunizações apropriadas (ver abaixo). Complicações da esplenectomia
As complicações peri-operatórias incluem sangramento,
atelectasia e abcesso subfrênico. É comum a trombocitose pós-operatória, com as contagens de plaquetas freqüentemente atingindo 1.000.000-2.000.000/mm3. Como os pacientes com talassemia podem apresentar uma tendência trombótica aumentada, deve ser dada consideração especial ao uso de baixas doses de aspirina (80 mg/kg/dia) pelos pacientes com contagens plaquetárias elevadas, ou o uso de anticoagulação em pacientes com uma história de trombose prévia ou outros fatores de risco.
O principal risco a longo prazo é a sepsia fulminante. Em estudos mais antigos, o risco de sepsia pós-esplenectomia na talassemia major está aumentado mais de 30 vezes em
comparação com a população normal [Singer 1973]. Medidas
preventivas modernas (ver abaixo) reduziram esse risco, mas o impacto global dessas medidas ainda não está claro. Os
patógenos mais comumente associados à sepsia
pós-esplenectomia são organismos encapsulados [Pedersen 1983], particularmente:
• Streptococcus pneumoniae (responsável por mais de 75% das infecções bacterianas documentadas em pacientes asplênicos) • Haemophilus influenzae
• Neisseria meningitidis
Com crescente freqüência ocorrem nos pacientes asplênicos infecções por gram negativos, bactérias em forma de
bastonete, notavelmente Escherichia coli, Klebsiella e Pseudomonas aeruginosa, freqüentemente associadas a alta mortalidade. Outros organismos gram negativos também foram implicados na sepsia pós-esplenectomia.
Infecções por protozoários, devidas a Babesia, foram implicadas em um fulminante estado hemolítico febril em pacientes esplenectomizados. A malária é relatada como mais grave nas pessoas asplênicas [Boone 1995], trazendo um maior risco de morte.
As características da sepsia fulminante pós-esplenectomia incluem o surgimento repentino de febre e calafrios, vômitos e cefaléia. A doença rapidamente progride para choque
hipotensivo, sendo freqüentemente acompanhada por hemorragia intravascular disseminada (síndrome de
Waterhouse-Friederichsen). A taxa de mortalidade dessas infeções é de aproximadamente 50%, independentemente das medidas intensivas de apoio. É crítica, portanto, a intervenção precoce baseada na suspeita clínica, mesmo na ausência de muitos dos achados acima descritos.
O risco de infecção fulminante pós-esplenectomia varia com: • Idade – o risco é muito alto em crianças <2 anos de
idade. Entretanto, tem sido relatada bacteremia fulminante em adultos, até 25-40 anos após a esplenectomia.
• Tempo decorrido desde a esplenectomia – o maior risco parece estar no período de 1-4 anos após a cirurgia • Estado imunológico do paciente
Medidas preventivas
Os três tipos de medidas protetoras que um médico pode utilizar para evitar a sepsia pós-esplenectomia incluem:
1. Imunoprofilaxia 2. Quimioprofilaxia 3. Educação do Paciente
Imunoprofilaxia
A vacinação contra o Streptococcus pneumoniae é um passo crítico na prevenção de uma infecção fulminante após uma esplenectomia. A vacina pneumocócica atualmente disponível é uma vacina de polissacarídeos 23-valente, a qual pode ser administrada por via subcutânea ou intramuscular. Brevemente estará disponível uma vacina conjugada. A taxa de proteção da vacina 23-valente é de 70-85%. A vacina pneumocócica deve ser administrada pelo menos 2 semanas antes da esplenectomia e, a seguir, em 3-5 anos. A resposta imunológica a essa vacina de polissacarídeos é fraca em crianças com menos de dois anos de idade. As crianças vacinadas com menos de dois anos devem ser revacinadas aos dois anos. Os pacientes esplenectomizados sem ter recebido a vacina pneumocócica, ainda podem se beneficiar com a vacinação.
Se não tiver sido administrada como parte da vacinação
rotineira na infância, a vacina contra Haemophilus influenzae deverá ser administrada antes dos pacientes serem submetidos
a esplenectomia, devendo ser administrada também aos já esplenectomizados.
Também deve ser administrada a vacina meningocócica de polissacarídeos aos pacientes que serão submetidos a esplenectomia, assim como aos pacientes previamente esplenectomizados mas não imunizados.
Essas vacinas podem ser administradas ao mesmo tempo, com diferentes seringas e em locais diferentes.
É recomendada a administração anual de vacina contra o vírus da influenza, a fim de se evitar essa doença febril que
poderia, caso contrário, requerer avaliação intensiva e
controle de um episódio febril no hospedeiro esplenectomizado portador de talassemia (ver abaixo).
Quimioprofilaxia
É recomendada a quimioprofilaxia com penicilina oral, 125 mg 2x/d para crianças com menos de dois anos e 250 mg 2x/d para crianças com dois anos ou mais, a fim de se reduzir o risco de sepsia pós-esplenectomia. Os antibióticos alternativos para pacientes incapazes de tomar penicilina incluem
amoxicilina, trimetoprim-sulfametoxazol e eritromicina. Todas as crianças esplenectomizadas com menos de cinco anos de
idade devem ser tratadas com antibióticos profiláticos. Não está comprovado o valor da quimioprofilaxia depois dessa idade. Alguns clínicos tratam continuamente todos os
pacientes esplenectomizados, independentemente de sua idade, enquanto que outros tratam os pacientes cujos baços foram removidos após a idade de cinco anos somente durante os primeiros dois anos após a esplenectomia. O uso de
antibióticos profiláticos precisa ser regularmente
reavaliado, conforme vacinas melhores ficam disponíveis e são desenvolvidos novos dados relativos a bactérias antibiótico-resistentes.
A importância da aderência à profilaxia com antibióticos deve ser repetidamente enfatizada aos pacientes e pais.
Entretanto, também devem ser enfatizadas as limitações da profilaxia com antibióticos. Pacientes e pais devem
reconhecer que a profilaxia com antibióticos não evita todos os casos de sepsia pós-esplenectomia e que a rápida avaliação das doenças febris (ver abaixo) é essencial na prevenção da morte por essa complicação.
Educação
A educação do paciente e seus pais pode ser altamente eficaz na prevenção da infecção pós-esplenectomia. Os médicos devem enfatizar aos pacientes e pais a importância de reconhecer e comunicar doenças febris, buscando imediata atenção médica. Em todos os episódios febris o médico deve levar fortemente em consideração:
1. A avaliação do paciente, inclusive exame físico completo 2. A obtenção de sangue e outras culturas, conforme
indicado
3. O início do tratamento com um regime antibiótico eficaz contra Streptococcus pneumoniae e Neisseria
meningitidis.
Se houver suspeita de bacteremia, o paciente deverá ser tratado com antibióticos por via parenteral e observado em uma unidade médica até terem sido avaliadas as culturas. Os pacientes também precisam ser alertados sobre o potencial de infecções relacionadas com viagens a uma área em que os cuidados médicos não sejam facilmente acessíveis. Neste caso, um antibiótico apropriado deve ser posto à disposição do
paciente para que ele o leve consigo.
Os pacientes devem ser sempre lembrados para alertar seus médicos quanto a seu estado de esplenectomizados.
5: Sobrecarga de Ferro
A sobrecarga de ferro ocorre quando a ingestão de ferro está aumentada durante um período de tempo sustentado, seja pela transfusão de glóbulos vermelhos ou porque existe absorção aumentada de ferro no trato digestório. Ambas as situações ocorrem na talassemia, com a transfusão de sangue sendo a principal causa na talassemia major e com a absorção
aumentada de ferro sendo mais importante na talassemia intermédia. Como não existem nos seres humanos mecanismos para excreção do excesso de ferro, este deve ser removido por meio da terapia de quelação.
A Taxa de Carga do Ferro
Transfusão de sangue
Cerca de 1,16 mg de ferro está contido na hemoglobina de 1 ml de glóbulos vermelhos puros (isto é, hematócrito 1,0). A
carga de ferro por ml de glóbulos transfundidos dependerá do hematócrito. Assim sendo, com os glóbulos vermelhos contidos em soluções aditivas como SAGM, o hematócrito é tipicamente 0,6, fornecendo 0,7 mg de ferro por ml transfundido. Se for transfundido sangue total (hematócrito típico 0,35), haverá 0,41 mg de ferro por ml do sangue total do doador. Para calcular a taxa de carga do ferro na transfusão, devem ser conhecidos o volume e o hematócrito do sangue a ser
transfundido, ou os mesmos devem ser razoavelmente estimados por meio do hematócrito médio conhecido do sangue fornecido pelo banco de sangue local.
Com o esquema de transfusão recomendado para a talassemia major, é transfundido por ano o equivalente a 100-200 ml de glóbulos vermelhos puros (equivalente a 116-232 mg de ferro por kg de peso corpóreo por ano ou 0,32-0,64 mg/kg/dia). Desse modo, com transfusões regulares de sangue os estoques de ferro aumentam para muitas vezes o normal, a menos que seja feito tratamento de quelação [por exemplo, um paciente que está recebendo 6.500 ml de glóbulos vermelhos puros retém 7,5 gramas de ferro por ano].
Figura 5.1: Exemplos do aumento anual dos estoques de ferro na
ausência de quelação
Peso do paciente 35 kg 50 kg 65 kg Volume de sangue total (ml)
transfundido (se hematócrito for 0,6)
5830-11700 8330-16600 10800-21700
Volume de glóbulos vermelhos puros (ml) transfundidos (se 100-200 ml/kg/ano)
3500-7000 5000-10000 6500-13000
Carga anual de ferro por transfusão (g)
4,1-8,1 5,8-11,6 7,5-15,1
Aumento da absorção gastrintestinal de ferro
A absorção intestinal normal de ferro é, aproximadamente, de 1-1,5 mg/dia mas, em pacientes talassêmicos que não recebem qualquer transfusão, a absorção de ferro aumenta várias vezes. Estima-se que a absorção de ferro exceda a perda de
ferro quando a expansão dos precursores do glóbulo vermelho na medula óssea excede em cinco vezes a dos indivíduos
sadios. Foi demonstrado que os regimes de transfusão que visam a manter a hemoglobina pré-transfusão acima de 9 mg/dl previnem essa expansão [Cazzola 1997]. Nos indivíduos mal transfundidos, a absorção sobe para 3-4 mg/dia ou mais. Isso representa uma carga suplementar de 1-2 g de ferro por ano. Toxicidade da Sobrecarga de Ferro
Mecanismo da toxicidade por ferro
O ferro é altamente reativo porque, sob condições
clinicamente relevantes, pode ser facilmente alternado entre Ferro(III) e Ferro(II). Isto resulta em ganho e perda de elétrons que podem gerar lesivos radicais livres. Eles possuem elétrons não pareados que podem lesar muitas
moléculas como as membranas lipídicas, as organelas e o DNA. O resultado pode ser a morte celular, assim como a geração de fibrose. Na saúde o ferro é “mantido seguro” pela ligação a moléculas como a transferrina, mas na sobrecarga de ferro a capacidade de ligação do ferro é excedida tanto dentro das células como no compartimento plasmático. Esse “ferro livre” causa danos em muitos tecidos do corpo e é fatal, a menos que tratado com terapia de quelação do ferro.
Complicações da sobrecarga de ferro
A sobrecarga de ferro transfusional na talassemia major é fatal na segunda década de vida, usualmente devido a
complicações cardíacas [Zurlo 1989]. A sobrecarga de ferro também causa lesão na pituitária, com hipogonadismo e mau crescimento. Também são observadas complicações endócrinas como diabetes, hipotireoidismo e hipoparatireoidismo. Outra complicação grave é a doença hepática com fibrose e eventual cirrose, particularmente se estiver presente hepatite crônica concomitante. Essas complicações são descritas com maiores detalhes nos capítulos seguintes.
Figura 5.2: Probabilidade de sobrevida de pacientes com talassemia
e sob terapia convencional [Borgna-Pignatti 1997] sobrevida (n = 820) --- sobrevida livre (n = 718) Probabilidade de
sobrevida
*Reproduzido com permissão da Academia de Ciências de Nova Iorque
Efeito da terapia de quelação sobre a toxicidade do ferro
Com a introdução da desferrioxamina nos anos 70, a morte por sobrecarga de ferro diminuiu dramaticamente nos pacientes que recebem tratamento regular [Zurlo 1989; Piga 1996; Brittenham 1994]. Grupos de pacientes nascidos entre os anos 60 e 90 mostram sobrevida progressivamente aumentada, principalmente em resultado da diminuição da toxicidade cardíaca pelo ferro.
Figura 5.3: Crescente probabilidade de sobrevida (% de vivos nas
idades apresentadas) com a terapia convencional da talassemia em pacientes nascidos entre 1970-74, 1975-79 e 1980-84 [Borgna-Pignatti 1997]
Idade(anos) 1970-1974 1975-1979 1980-1984 Tabela conforme original
*Reproduzido com permissão da Academia de Ciências de Nova Iorque
A desferrioximana deve ser tomada pelo menos cinco vezes por semana para poder otimizar a sobrevida [Piga 1996]. As
complicações fatais da sobrecarga de ferro também diminuem se o ferro corpóreo (medido pelo ferro hepático) for mantido abaixo de determinados níveis [Brittenham 1994](ver abaixo). A incapacidade para atingir as taxas de sobrevida acima
apresentadas pode ser devida a:
• indisponibilidade da necessária terapia de transfusão e quelação
• tratamento inadequado no início da vida, levando a dano tecidual irreversível
• prescrição insuficiente da terapia de quelação • má aderência à terapia de quelação
• consumo excessivo de sangue devido a hiperesplenismo ou transfusão inadequadamente elevada
Embora estejam caindo as taxas de complicação devido a
sobrecarga de ferro, uma porcentagem de pacientes até mesmo adequamente tratados ainda demonstra complicações por
sobrecarga de ferro. As complicações mais comumente observadas nesses pacientes, hoje em dia, são problemas
primários ou secundários quanto à fertilidade ou ao
desenvolvimento sexual (ver Capítulo 7). Além disso, uma
grande porcentagem de pacientes adultos apresenta osteoporose (ver Capítulo 7) secundária a hipogonadismo ou possivelmente secundária a fatores adicionais mal compreendidos resultantes da sobrecarga de ferro ou de seu tratamento. Isto sugere que os atuais regimes de quelação podem ser melhorados ainda mais. Isso deverá ser obtido sem aumento da toxicidade por excesso de quelação do ferro.
Tratamento da Sobrecarga de Ferro
Objetivos da terapia de quelação do ferro
O objetivo primário da terapia de quelação é atingir níveis seguros do ferro corpóreo. Infelizmente, esse é um processo lento, porque a qualquer momento apenas uma pequena proporção do ferro corpóreo está disponível para quelação. Isso
significa que, quando um quelador do ferro é administrado clínicamente, apenas uma pequena proporção da droga se liga ao ferro antes de ser excretada ou metabolizada. Isso
significa também que, se uma pessoa já tem sobrecarga de ferro, mesmo com o tratamento mais intensivo podem se passar meses antes que o ferro corpóreo diminua para níveis seguros. Com o aumento das doses de queladores, numa tentativa de
acelerar a remoção do ferro, há o risco de se aumentar a toxicidade dos quelantes do ferro, quelando ferro necessário para o metabolismo tecidual normal. Por isso, enquanto o lento processo de redução do ferro tecidual para níveis seguros está em andamento, um segundo objetivo é tornar o ferro tão seguro quanto possível, fazendo a ligação das coleções tóxicas de ferro responsáveis por causar danos nos tecidos.
Terapia com desferrioxamina
O mais amplamente acessível e testado agente quelante do ferro é a desferrioxamina (Desferal ou deferoxamina). Desde que seja administrada regularmente e em doses adequadas, está bem documentado seu impacto sobre a sobrevida e as
complicações da sobrecarga de ferro acima descritas
[Brittenham 1994; Piga 1996]. Suas principais desvantagens são que ela é cara e deve ser administrada por via
Mecanismo de ação e farmacologia
A desferrioxamina é um sideróforo (um transportador de ferro com ocorrência natural), sendo produzida e purificada a
partir do microorganismo Streptomyces pilosus. Uma molécula de desferrioxamina se liga a um átomo de ferro formando um complexo de ferro altamente estável nos valores fisiológicos do pH; portanto, 1 grama de desferrioxamina pode se ligar a quase 93 mg de ferro. No uso clínico padrão, entretanto, apenas uma pequena parte (cerca de 10%) da droga se liga ao ferro antes de ser eliminada do organismo. Devido ao seu tamanho, a desferrioxamina é mal absorvida no intestino. O ferro excretado pela desferrioxamina, o é de maneira quase igual na urina e nas fezes. Quanto maior a dose administrada, maior a proporção nas fezes. O ferro na urina é derivado do ferro liberado após a destruição dos glóbulos vermelhos nos macrófagos, enquanto que o ferro fecal é derivado do ferro quelado no fígado [Hershko 1979; Pippard 1982]. A
desferrioxamina tem uma meia-vida curta (meia-vida inicial de 0,3 h), sendo rapidamente eliminada na urina e bile. Assim que é interrompida uma infusão de desferrioxamina, a quelação de ferro cessa logo em seguida. Como em qualquer momento
apenas uma pequena proporção do ferro corpóreo está disponível para quelação, quanto maior for a duração da
infusão mais eficiente será o processo de quelação. Isso pode ser particularmente importante em pacientes com sobrecarga grave de ferro (ver abaixo).
A excreção de ferro com a desferrioxamina é afetada por: • Dose administrada: A excreção de ferro aumenta conforme
aumenta a dose (ver abaixo); essa relação, porém, não é linear, de modo que a proporção da droga que se liga ao ferro diminui conforme a dose aumenta.
• Via de administração e duração: Pelos motivos acima
apresentados, quanto maior for a duração da administração da desferrioxamina, maior sua eficiência (isto é, maior a proporção da droga que se liga ao ferro). Um “bolus”
intramuscular é menos eficiente que a infusão lenta
endovenosa ou subcutânea [Propper e col, 1977]. Evidências preliminares de que injeções de “bolus” subcutâneo duas vezes ao dia podem ser tão eficazes quanto a infusão
subcutânea precisam ser mais amplamente testadas durante um longo período [Borgna-Pignatti 1997].
• Estoques corpóreos de ferro: Quanto maior o estoque corpóreo de ferro, maior a excreção de ferro após uma determinada dose de desferrioxamina. A produção e
destruição aumentadas de glóbulos vermelhos aumentam a proporção de ferro disponível para excreção na urina.
• Estado da vitamina C no paciente: Na sobrecarga de ferro, a vitamina C (ascorbato) é rapidamente oxidada, resultando em deficiência de vitamina C. Isso reduz a excreção de ferro com a desferrioxamina.
Figura 5.4: Análise por Kaplan-Meier da sobrevida de pacientes com
talassemia, conforme a aderência média à terapia com desferrioxamina
Sobrevida %
0-75 infusões/ano 75-100 ... etc
Anos
Quando começar uma terapia de quelação
Na talassemia major, ela deve ser iniciada assim que as transfusões tenham depositado ferro suficiente para causar dano tecidual. Isso não está formalmente determinado, mas a prática atual é iniciá-la após as primeiras 10-20 transfusões ou quando o nível de ferritina subir acima de 1.000 µg/l. Se a terapia de quelação for iniciada antes dos 3 anos de idade, é preconizada uma monitoração particularmente cuidadosa do crescimento e do desenvolvimento ósseo, com dosagem reduzida da desferrioxamina. Na talassemia intermédia, a taxa de carga de ferro é altamente variável, e a relação entre a ferritina sérica e o ferro corpóreo pode ser diferente da ocorrida na talassemia major. Se possível, é recomendável uma estimativa do ferro hepático antes de ser iniciado o tratamento, para saber se o ferro excedeu os níveis de segurança (ver abaixo). Via de administração
O método padrão recomendado é a infusão subcutânea lenta de uma solução de desferrioxamina a 10% durante 8-12 horas, com o uso de uma bomba de infusão.
Dose de desferrioxamina
A dose de desferrioxamina deve ser ajustada de acordo com a carga de ferro corpóreo e a idade. Em geral as doses médias não excedem 40 mg/kg até ter cessado o crescimento. A dose padrão é de 20 – 40 mg/kg para crianças e até 50 mg/kg para adultos, como infusão subcutânea por 8-12 horas durante no mínimo 6 noites por semana.
O ajuste da dose pode ser feito com referência à ferritina sérica, usando-se o índice terapêutico [Porter 1989], o qual pode ser definido como a seguir:
Figura 5.5: Índice Terapêutico
Índice terapêutico = dose média diária (mg/kg)*/ferritina (µg/l) O objetivo é manter o índice < 0,025 em todos os momentos
dose real recebida em cada ocasião x doses por semana *dose média diária = --- 7
Isto reduzirá o risco de toxicidade por excesso de quelador, mas não é um substituto para a monitoração clínica cuidadosa. Recentemente tem sido preconizada a concentração de ferro hepático (por biópsia, SQUID ou MRI) como uma alternativa mais confiável à ferritina sérica (ver abaixo). Para que não seja desperdiçada uma droga cara, a dose pode ser ajustada à mais próxima garrafa integral, alternando entre o número de garrafas quando for necessário conseguir uma dose média diária.
Figura 5.6: Rotação dos locais de infusão
Uso da vitamina C: A vitamina C aumenta a excreção de ferro ao aumentar a disponibilidade do ferro que pode ser quelado, mas se dada em doses excessivas pode aumentar a toxicidade do ferro. Recomenda-se não dar mais que 2-3 mg/kg por dia na forma de suplementos; eles devem ser tomados no momento da infusão de desferrioxamina, de modo que o ferro liberado é rapidamente quelado. Quando um paciente estiver começando a tomar a desferrioxamina e for tomada a decisão de iniciar a vitamina C, a mesma deverá ser retardada por algumas semanas.
Uso da desferrioxamina durante a gravidez: Isto é discutido em detalhes no Capítulo 7, mas em geral não é recomendado.
Aspectos práticos da infusão subcutânea
Como o uso regular da desferioxamina é crítico para um bom resultado, todo esforço deve ser feito junto a cada indivíduo para ajudá-lo a encontrar o modo mais conveniente de infundir a droga.
Potência da infusão
Os fabricantes recomendam que cada frasco de 500 mg de desferioxamina seja dissolvido em pelo menos 5 ml de água, resultando em uma solução a 10%. Concentrações em excesso podem aumentar o risco de reações no local da infusão.
Figura 5.7: Inserção das agulhas para infusão da desferioxamina
Local da infusão
Deve-se tomar o cuidado de evitar inserir as agulhas perto de vasos, nervos ou orgãos importantes. O melhor lugar é
geralmente o abdome. Entretanto, devido a reações locais como eritema, inchaço e enduração, freqüentemente é necessário “fazer a rotação” dos locais usados para injeção (ver Figura 5.5). Alguns pacientes descobrem que a pele sobre o deltóide ou a face lateral das coxas são úteis locais adicionais ou alternativos.
Tipo de agulha
A melhor agulha a usar depende do indivíduo. Muitos pacientes ficam satisfeitos com agulhas “butterfly” com calibre 25 ou menos, que são inseridas num ângulo de aproximadamente 45 graus em relação à superfície da pele. A ponta da agulha pode mover-se livremente quando a agulha é balançada. Outros
pacientes preferem agulhas que são inseridas verticalmente através da pele, sendo fixadas com um esparadrapo preso às agulhas (ver Figura 5.6). A preferência do paciente é
bastante variável, e os médicos devem buscar o melhor tipo de agulha a fim de assegurar o máximo de aderência.
Tipo de dispositivo para infusão
Atualmente estão disponíveis muitos tipos de dispositivos para infusão. Os dispositivos mais recentes, inclusive bombas balão, são menores, mais leves e mais silenciosos que seus predecessores. Para os pacientes que consideram um problema a dissolução, mistura e retirada da desferrioxamina, podem ser úteis seringas ou balões pré-cheios. Algumas bombas estão projetadas para monitorar a aderência ao tratamento (ver Apêndice B).
Figura 5.8: Exemplos de dispositivos para infusão
Reações locais
As reações locais persistentes podem ser reduzidas variando os locais de injeção, reduzindo a potência da infusão ou, nos casos mais graves, acrescentando 5-10 mg de cortisona à
mistura para infusão.
Outros apoios para ajudar na aderência
Pelas discussões acima, fica claro que a aderência à terapia determina o prognóstico. O tratamento com a desferrioxamina, entretanto, é desagradável, consome tempo, e pode ser
doloroso. Acima foram discutidas abordagens práticas para maximizar a aderência ao reduzir as reações locais, assim como o mais conveniente sistema de bomba. Especialmente
importante é o apoio da família e da equipe de atendimento à saúde. A aderência requer um relacionamento constante e
seguro entre o médico, o paciente e os pais. A discussão regular e o apoio são as chaves para a aderência máxima. As razões de uma má aderência são variadas. Elas podem ser dos causadas pelos pais, já que alguns pais não conseguem
sancionar a “provação” diária da terapia de quelação em seus filhos. Em outras circunstâncias, a aderência pode se tornar um problema apenas quando a criança chega à adolescência. Algumas vezes um aderente anteriormente bom pode se tornar menos aderente quando outros eventos ou tensões da vida se tornam um peso (ver Capítulo 10).
Monitoração da aderência
Não existe um modo perfeito de se medir a aderência. Uma
no qual está anotada cada infusão de desferrioxamina durante o tratamento. Algumas bombas podem registrar o uso. Outra conduta tem sido manter um registro dos frascos vazios devolvidos ao fornecedor da desferrioxamina. Se for aceito que foi mantido um registro acurado, a aderência pode ser expressa como índice de aderência:
Figura 5.9: Índice de Aderência
No. de dias de tratamento/ano
Índice de aderência = --- No. de dias em que foi prescrito o tratamento
Infusão endovenosa contínua
Nos casos de alto risco, a infusão contínua de
desferrioxamina é potencialmente mais benéfica que as
infusões periódicas, porque ela reduz a exposição ao tóxico ferro livre (ferro não ligado à transferrina), o qual retorna aos níveis pré-tratamento dentro de minutos após a
interrupção de uma infusão endovenosa contínua [Porter 1996]. Quando é necessário uma quelação intensiva, pode ser usado um sistema de dispositivo endovenoso implantado (p.ex., Port-a-cath) para infusão endovenosa contínua em casa. Esses
sistemas são um tanto caros e exigem manutenção cuidadosa por uma equipe experiente, para que as complicações infecciosas sejam mantidas dentro de um mínimo. A inserção/implantação requer uma boa técnica cirúrgica, sendo em geral realizada sob anestesia geral, mas pode ser realizada também sob anestesia local.
A infusão endovenosa contínua deve ser levada em consideração em pacientes com sobrecarga grave de ferro ou com
complicações cardíacas. Os pacientes com risco significativo de complicações por sobrecarga de ferro, e para os quais é válido pensar em terapia endovenosa contínua, são os com: • grave sobrecarga de ferro:
♦ valores da ferritina persistentemente > 2500 µg/l [Olivieri 1994]
♦ ferro hepático > 15 mcg/g de peso seco [Olivieri 1995] • significativa doença cardíaca:
♦ significativas disritmias cardíacas [Davis & Porter 1994]
♦ evidência de queda da função ventricular [Davis & Porter 2000]
A indicação será reforçada se estiver presente uma ou mais das seguintes condições:
• incapacidade para usar a desferrioxamina subcutânea regularmente, ou persistente má aderência
• mulheres que planejam engravidar
• pacientes que planejam fazer transplante de medula óssea • pacientes com hepatite C ativa.
A infusão endovenosa contínua pode remover quantidades muito grandes de ferro. Ela pode também ser efetiva para melhorar a função cardíaca, sendo criticamente importante em pacientes com doença cardíaca induzida pelo ferro. Os pacientes com doença cardíaca assintomática devem ser persuadidos a iniciar o tratamento antes que os sintomas se desenvolvam.
A dose recomendada é de 50 mg/kg/dia. Doses mais elevadas têm sido usadas com sucesso em alguns pacientes com sobrecarga grave de ferro e doença cardíaca significativa, mas elas devem ser usadas com extremo cuidado. Idealmente, o
tratamento deve ser contínuo (isto é, 7 dias),
particularmente em presença de disfunção cardíaca. Pode ocorrer infecção e trombose do cateter, sendo que alguns centros adotam a anticoagulação profilática de rotina. Devem seu utilizados cuidadosos procedimentos assépticos a fim de se prevenir possíveis infecções por Staphylococcus
epidermidis e aureus, as quais são difíceis de erradicar e freqüentemente exigem a remoção do sistema de infusão. Resultado do tratamento endovenoso contínuo: Em um recente seguimento a longo prazo, foi conseguida uma sobrevida atuarial de 61% após 13 anos, em pacientes de alto risco (Davis & Porter 2000). Este método de terapia de quelação reduziu acentuadamente os estoques de ferro, reverteu as disritmias cardíacas e melhorou a fração de ejeção
ventricular esquerda.
Desferrioxamina endovenosa por ocasião da transfusão de sangue
A terapia endovenosa (p.ex., 1 g durante 4 horas “piggy-backed” na linha de infusão) por ocasião da transfusão de sangue tem sido usada como um suplemento à terapia
é limitada. Deve ser dada atenção especial para evitar “bolus” acidentais, devido à desferioxamina se coletar no espaço morto da linha de infusão. A administração
concomitante de desferrioxamina e sangue pode levar a erros na interpretação de efeitos colaterais como febre aguda, erupções cutâneas, anafilaxia e hipotensão durante a transfusão de sangue. A desferrioxamina nunca deve ser adicionada diretamente à unidade de sangue.
Monitoração da Sobrecarga de Ferro Durante o Tratamento com Desferrioxamina
A sobrecarga de ferro deve ser monitorada de perto durante a terapia de quelação, a fim de se avaliar a efetividade do tratamento e prevenir as complicações da excessiva terapia de quelação. Há diversas maneiras de monitorar a terapia de
quelação do ferro, cada uma delas apresentando vantagens e limitações:
Ferritina sérica
Este é um teste de execução relativamente fácil, sendo bem estabelecido. Os níveis de ferritina em geral refletem os estoques corpóreos de ferro, tendo sido demonstrado que têm significância prognóstica na talassemia major. Foi
demonstrado que um nível de ferritina consistentemente abaixo de 2500 µg/l reduz o risco de complicações cardíacas
[Olivieri 1994], mas é recomendada uma meta de aproximadamente 1000 µg/l ou menos.
Outros fatores (p.ex,. inflamação, estado do ascorbato, hepatite), entretanto, podem afetar o nível da ferritina sérica, sendo que as variações de um dia para o outro são particularmente acentuadas com altos graus de carga de ferro. Uma elevação repentina e inesperada do nível de ferritina deve inspirar uma pesquisa de hepatite, outras infecções, ou condições inflamatórias.
A ferritina deve ser idealmente monitorada a cada três meses pelo menos. É particularmente importante reduzir a dose de desferrioxamina e monitorar cuidadosamente as toxicidades relacionadas com a desferrioxamina quando os valores da ferritina estiverem baixos.
Embora exista uma ampla correlação entre o nível de ferritina e o nível de ferro, é má a previsão da carga de ferro a