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O banquete dos marginalizados: Reflexões sobre a dependência intelectual brasileira e o advento da antropofagia

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Academic year: 2021

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DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

ANA CAROLINA MATIAS COSTA ALDECI

O BANQUETE DOS MARGINALIZADOS: Reflexões sobre a dependência

intelectual brasileira e o advento da antropofagia.

Natal – RN 2015

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O BANQUETE DOS MARGINALIZADOS: Reflexões sobre a dependência

intelectual brasileira e o advento da antropofagia.

Monografia apresentada ao curso de graduação em filosofia, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em filosofia.

Orientadora: Prof.ª Dr. ª Monalisa Carrilho de Macedo.

Natal – RN 2015

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O BANQUETE DOS MARGINALIZADOS: Reflexões sobre a dependência

intelectual brasileira e o advento da antropofagia.

Monografia apresentada ao curso de graduação em filosofia, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em filosofia.

Orientadora: Prof.ª Dr. ª Monalisa Carrilho de Macedo.

COMISSÃO EXAMINADORA

Aprovada em: 05/12/2015

______________________________________ Prof.ª Dr. ª Monalisa Carrilho de Macedo. Universidade Federal do Rio Grande do Norte

______________________________________ Prof.ª Dr.ª Cinara Maria Leite Nahra

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

_______________________________________ Prof. Dr. Markus Figueira da Silva

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Agradeço aos meus familiares, amigos, amores e passantes; a todos os caminhos feitos, desfeitos e refeitos que garantem que a caminhada não cesse. Agradeço especialmente aos meus pais, Francisco das Chagas e Patrícia Kézia, pelo incentivo, pelo carinho e pela comida na mesa; a vovó Maria José, a vovô Aldeci,e a vovó Lúcia, por tudo; a Monalisa, por ter me adotado desde o segundo semestre para desorientar ainda mais os meus rumos, muito obrigada; a Eduardo Pellejero, pelo entusiasmo partilhado em relação à filosofia e à escrita; a Zira, companheira de todos os segundinhos; a Paula Mariana, preta, preta, pretinha; ao pessoal do “Lichfild prision” e ao número 3.

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O presente trabalho empreende uma reflexão acerca da dependência intelectual brasileira e da esterilidade das produções filosóficas realizadas no país, à luz do conceito da “antropofagia”, apresentado por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago de 1926, que propõe a assimilação das alteridades como urgência metodológica e existencial para o pensamento. Só então pensaremos o Brasil, os brasileiros, e a filosofia sem que isso implique em uma sujeição ou em uma negação do Outro, nem que recaia na busca por uma essência da “brasilidade” ou na produção de identidades estanques, que delimitam e imobilizam os nossos horizontes de possibilidade. O que é colocado em jogo é a necessidade da manutenção de uma interação e, ao passo, uma condição de estranhamento diante dos espaços e das imagens consensuais e cotidianas, a fim de que assim, a filosofia seja conduzida ao seu limite, não para se superar, mas para superar o próprio "limite" que baliza as fronteiras do pensamento, do não-pensamento e de Outro não-pensamento.

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Ce mémoire engage une réflexion sur la dépendance intellectuelle brésilienne supposée et la stérilité des productions philosophiques réalisées dans le pays, à la lumière du concept de "anthropophagie" d’Oswald de Andrade dans le Manifesto Antropofágico de 1926, qui proposera l'assimilation de l'altérité comme une urgence méthodologique et existentielle pour la pensée. Il est alors possible de penser le Brésil, les brésiliens, et la philosophie, sans encourir dans un sujet ou un déni de l'autre, ou qui tombe sur la recherche par une essence de «brasilidade» ou sur la production d'identités étanches qui délimitent et immobilisent nos horizons de possibilité. Ce qui est mis en jeu est la nécessité de maintenir d'une interaction, et en même temps, un état d'éloignement des espaces et des images consensuelles et du quotidien, afin que la philosophie soit portée à sa "limite", non pas pour la surmonter, mais pour surmonter la limite même qui jalonne les frontières de la pensée, de la non-pensée et une Autre pensée de la philosophie.

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PREFÁCIO DESINTERESSANTÍSSIMO ... 1

INTRODUÇÃO ... 3

1 Prenúncio da história das ideias no Brasil ... 6

1.1 Confluências culturais na formação colonial ... 6

1.2 A ascensão intelectual do Brasil no séc. XIX ... 9

1.3 As ideias do século XX ... 14

2 Mas então, onde está a Razão brasileira? ... 18

2.1 A pompa austera da máscara do chistoso ... 18

2.2 "Deixa estar... ": comodidade, juventude e jeito. ... 20

3 Inventando o Brasil que queremos... ... 27

3.1 Modernismo e filosofia? ... 27

3.2 Barbárie, antropofagia e pensamento ... 30

Y. Tópico errático ... 35

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 38

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 40

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PREFÁCIO DESINTERESSANTÍSSIMO

Caro leitor,

Todo este trabalho começou com uma inquietude boba: O que fazer com o aglomerado de ideias espalhadas pelos corredores da Universidade? É um tal de Aristóteles para lá, Platão para cá, Heidegger na clareira, Kant com o dedo indicador na minha cara e eu ali fazendo os trabalhos acadêmicos e contente por ter tirado um dez na cadeira de metafísica depois de ter reproduzido com detalhes conceituais o que a professora havia solicitado. Escrever bem é escrever para poucos? Pros iniciados? Cultos? Eu me importo com tudo o que estou estudando e reproduzindo? Eu tenho a chance de fazer o que me proponho? Filosofia? Daí se sucederam dúvidas em relação a algumas coisas que costumam identificar o povo brasileiro, sobre todas as caixinhas estereotípicas nas quais nos uniformizam e nos largam arrodeados ou por grandes desesperanças ou por mimos egocêntricos, dentre as quais, a já desmistificada cordialidade, o mito das três raças, a falta de aptidão para a filosofia, a preguiça... Pois bem, ainda que o conceito de uma identidade nacional, enrijecida e delimitada por generalizações ocas, já esteja ultrapassado; que a filosofia não esteja aqui para determinar divinamente a minha missão na terra; ou que os discursos patriotas e conformistas sejam histórias de mal gosto da carochinha para reafirmar a hierarquia das opressões. De onde devo partir e para onde ir? Que identidade é essa que não é minha? Que pátria mãe é essa que não me abriga? Onde estão os sete erros? Nome interessante para se referir às diferenças encontradas entre duas imagens semelhantes. Erros? Em nome da minha salvação ou desespero, cresci ouvindo que para tudo "dá -se um jeito", e, sabe? Eu até acredito no potencial dessa frase e em toda a contradição e improviso que ela abriga. Neste prefácio desinteressantíssimo, resolvi rir da minha própria desgraça, que, por sinal, é o jeito mais fácil também de rir da desgraça alheia. Por vezes penso que seria mais prudente da minha parte baixar completamente a guarda para os moldes acadêmicos e encher minhas suadas e gloriosas páginas com verborragias magistrais. Não que eu tenha capacidade intelectual para escrever com tanta maestria, mas sugerir que o faria me deixa com pinta de sábio. Calma, não esqueça que tudo isto faz parte de uma grande piada sobre as minhas inquietudes. Certamente em vários momentos, para comprovar a minha ignorância e caretice intelectual, travestida de “terno e gravata”, cairei "num escafandro greco-romano", como diria Roberto Gomes, para falar das coisas "culturais" que nos contam sobre o nosso país. Então, contraditoriamente, e isto não é novidade, ensaiarei seguir algumas regras do jogo acadêmico.

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Pelos trechos entediantes, que por ventura virão, principalmente referentes a remontagem histórica intentada no primeiro capítulo, peço desculpas.... Por este prefácio não. “ . Tenho preguiça de ser sério!", voou cantando o passarinho Manoel. Boa leitura.

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INTRODUÇÃO

Analisar as problemáticas da suposta dependência intelectual brasileira e discutir o enrijecimento das reflexões e produções filosóficas executadas no país é o cerne das discussões que serão empreendidas neste trabalho. No entanto, diferencialmente, todas as exposições e discussões realizadas aqui, pretenderão trazer à luz o conceito de “antropofagia” proposto por Oswald de Andrade, segundo o qual, as reflexões e os desdobramentos do pensamento devem existir e resistir na devoração da alteridade, isto é, na assimilação do Outro e não na produção de identidades inertes.

Apesar de todas as imposições ideológicas violentas e transformações realizadas pelos europeus, principalmente nos âmbitos religioso e linguístico dos indígenas, os modelos estabelecidos como guias espirituais e civilizatórios ao passo que eram bem recebidos eram, por estes, intuitivamente corrompidos. A cultura indígena foi tão rechaçada e constrangida pelos “civilizados” que paulatinamente começou a ser esquecida pelos já “inicializados na civilização ocidental", aos quais só restou a alternativa da imitação dos novos movimentos corporais e intelectuais apresentados. No entanto, inclusive através do fenômeno de duplicação, os indígenas ofereceram resistência, porque apesar de ouvirem todas as pregações sem questionarem ou replicarem tanto, e isso de acordo com o Sermão do Espírito Santo1 de Pe. Antônio Vieira, tudo o que era ouvido, aprendido e reproduzido sobre o evangelho e as formas ideais de uma civilização, era constantemente metamorfoseado.

Também costuma se discorrer sobre uma suposta inaptidão filosófica da nossa parte; sobre a pobreza da língua portuguesa; e sobre milhões de estereótipos nos quais tentaram nos encaixar de maneira definitiva: preguiçosos, corruptos, cordiais, tolerantes, etc. No entanto, todas essas generalizações apoucam o horizonte da problemática do pensamento para o qual devemos nos lançar e, além disso, nos mantem estagnados conformadamente em uma posição de “inferioridade intelectual”. Então só nos restam duas opções? Negar as influências europeias ou as seguir acriticamente? O conceito elaborado por Oswald nos oferece uma terceira alternativa e uma proposta de desestruturação do vigente: A introjeção do Outro, do Estrangeiro e do Outro de si mesmo. A devoração das alteridades aventada pela “antropofagia” sugere, portanto, que pensemos o Brasil e os Brasileiros não mais através da procura pela essência de uma “brasilidade”, mas através do questionamento dessa instauração de identidades fixas nos

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processos de constituição de um povo. É seguindo essa orientação de sentido que pretendemos oferecer uma perspectiva diversa em relação ao que consideramos, ao que não consideramos e ao que ainda urge ser considerado na filosofia e, sobretudo, na filosofia produzida na América Latina, onde os países possuem dilemas econômicos, políticos, estéticos e intelectuais semelhantes.

A princípio, para tentar contar um pouco da história que nos contaram sobre a história do Brasil, mais especificamente sobre a formação intelectual de Portugal e as possíveis influências operadas em nossa intelectualidade desde a colonização, seguirei o tracejo deixado pelo filósofo Cruz Costa em seu livro intitulado Contribuição à história das ideias no Brasil. Entretanto, realizarei essa digressão não com o intuito de a partir dela apontar os erros e os acertos da nossa história, mas para tentar compreender que não precisamos negá-la, mas desmascará-la e assimilá-la sem que a ela precisemos nos sujeitar completamente. No segundo momento discorreremos sobre a imobilidade do pensamento filosófico que vem sendo empreendido no Brasil, principalmente dentro do universo acadêmico, onde se concede às produções um reconhecimento institucional, e discorreremos também sobre os falsos estigmas destinados ao povo brasileiro no que desrespeito a infertilidade das nossas produções filosóficas, nesta parte seguiremos a sequência argumentativa sugerida por Roberto Gomes na Crítica da Razão Tupiniquim. Por fim, falaremos sobre as pretensões e a as falhas do movimento modernista no Brasil, e sobre as mudanças e a renovação de valores geradas por esse período de questionamento da Inteligência Nacional, que, segundo Roberto Gomes, esteve presente na poesia, nos romances, nos ensaios, na arquitetura, mas não na filosofia, que sempre foi utilizada aqui como instrumento afirmador do vigente.

Tendo isso em vista, apresentaremos o conceito oswaldiano de “antropofagia”, o qual rompe com a ideia de um tempo retilíneo e progressivo, que respalda a vantagem temporal das nações mais antigas estabelecendo a existência de uma hierarquia cultural e intelectual entre as nações, cujo traço evolutivo parte do “primitivo” e culmina no “civilizado”, das pequenas parcelas até a potência do Uno. Nesse aspecto, a antropofagia proposta por Oswald se espelha no rito antropofágico realizado pelos Tupinambás, que não possuem como critério para a devoração do outro os aspectos valorosos desse outro, na medida em que também comiam pessoas frágeis e medrosas. Eles ansiavam apenas a vingança e a transubstanciação do Outro. Assimilação e transformação, não o aprimoramento de valores. Além disso, a devoração antropofágica considera as dissemelhanças como dissemelhanças e não como parte da

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Dissemelhança, assim como as similitudes não estão contidas na Semelhança e a identidade não está contida no Mesmo.

Discorreremos também acerca do “bárbaro tecnizado” proposto por Oswald como síntese do “homem primitivo” e do “homem civilizado”, respectivamente tese e antítese. E nesse ínterim, pincelaremos outras definições que também propuseram a ruptura das vias únicas de acesso ao pensamento, como o conceito de “entre-lugar” de Silviano Santigo e as errâncias e flanagens de João do Rio, que tão belamente se apropriou do flâneur ensaiado por Baudelaire, e “prostituiu a sua alma” no envolvimento com a transformação das ruas, com o aumento das multidões e das solidões reunidas; que vivenciou todas essas mudanças empreendidas pela modernização das cidades, a medida em que as colocava em questão, “fazendo botânica no asfalto”, como diria Benjamin. O antropófago é, como o errante, convidado todos os dias a participar e a desconfiar dos espaços e imagens consensuais e ordinárias.

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1 Prenúncio da história das ideias no Brasil 1.1 Confluências culturais na formação colonial

“Quando esses homens fizeram o mundo novo e bem maior, por onde andavam nossos deuses

com seus Andes, seu condor?” (Belchior - Trecho da música Quinhentos anos de quê?)

Não se costuma procurar no Brasil uma tradição nativa para a filosofia e para a formação do pensamento, porque todas as imigrações ocorridas renderam a nós tradições repletas de inspiração estrangeira:

Franciscanos espanhóis, jesuítas franceses, puritanos ingleses, pietistas holandeses, calvinistas escoceses, filósofos cosmopolitas, transcendentalistas alemães, revolucionários russos e teósofos orientais, todos têm contribuído para dar, à assim chamada filosofia americana, continuidade e impulso [...] A América continuou intelectualmente colonial por muito tempo ainda depois de ter conseguido sua independência política e foi provincial ainda durante muito tempo, depois de ter deixado de ser intelectualmente colonial. Nós ainda vivemos intelectualmente na franja da cultura europeia (SCHNEIDER, H. apud Cruz, C, Contribuição a História das Ideias no Brasil, 1967, p.3.)

Após 190 anos de independência política reconhecida oficialmente por Portugal, a independência intelectual do Brasil ainda é algo bastante questionado entre estrangeiros e brasileiros, como veremos mais à frente na apresentação da obra "Crítica da razão tupiniquim" de Roberto Gomes. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, nos informa que fomos reconhecidos historicamente a partir da imposição de instituições e visões de mundo hostis e desfavoráveis ao nosso ambiente2. A imposição das línguas, da religião e das formas de vida europeias suprimiam, portanto, a existência de qualquer cultura e organização social anterior a civilização ocidental aqui instaurada. No entanto, “Muita ideia mudou e muita teoria nascida do outro lado do Atlântico tomou aqui expressões que não parecem perfeitamente condizentes

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com suas "premissas" originais. É que há um estilo próprio aos diferentes meios, estilo esse condicionado pelo próprio devir histórico”3.

Somos acusados de possuir o “dom” da imitação e de produzir reproduções, mas essa corrupção e modificação dos modelos originais europeus já não constitui uma originalidade? A tendência é acreditarmos que sim quando não tomamos por sinônimos os termos “original” e “novo”, quando relacionamos a originalidade, justamente, à transfiguração das “formas originais”.

Como se sabe, estudar filosofia nos tempos da colônia no Brasil era um privilégio de alguns senhores nobres que tinham acesso aos colégios jesuítas entre os séculos XVI e XVII. A filosofia era então considerada uma disciplina livresca. Ter na ponta da língua as novidades intelectivas provenientes da Europa e reproduzir essa tradição estrangeira já era um bom motivo para se exibir intelectualmente dentro de uma rodinha de letrados dispostos a aplaudir uns aos outros e a alimentar mutuamente as suas vaidades. Sinalizado assim por Cruz Costa, imaginamos que se trate de uma característica própria da elite intelectual brasileira. Uma característica nossa: os fadados à reprodução, os incapazes. Mas Michel de Montaigne em seus Ensaios destina as mesmas críticas aos próprios Europeus:

Trabalhamos apenas para encher a memória, e deixamos o entendimento e a consciência vazios. Assim como às vezes as aves vão em busca do grão e o trazem no bico sem o experimentar, para dar o bocado aos seus filhotes, assim nossos pedagogos vão catando a ciência nos livros e mal a acomodam na beira dos lábios, para simplesmente vomitá-la e lançá-la ao vento (MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios, 2002, p. 203)

Para tentar explicar um pouco das influências presentes na formação intelectual do Brasil e todas as suas contradições, Cruz Costa disserta sobre a formação intelectual de Portugal. Essa reconstrução que também ensaiarei fazer de acordo com o autor, não tem por finalidade extrair a definição da “alma brasileira” ou da identidade do povo brasileiro a partir da síntese das confluências estrangeiras em nosso país, mas contrariamente, a partir da exposição da história que nos contam, entender que o fato de o Brasil se assentar “numa língua, numa história e numa cultura que tem a sua origem, em partes, noutro lugar4”, é condição

3 COSTA, C. Contribuição à história das ideias no Brasil. 1967, p.4.

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suficiente para pensar o nosso país e o deles, não realizando analogias e formatando uma identidade bem demarcada, mas usufruindo dessa perspectiva exterior que possuímos na medida em que não nos identificamos por completo com nenhuma das definições estáticas nas quais nos enquadraram até hoje. O próprio Cruz Costa, por exemplo, na tentativa de assinalar todos os matizes da nossa diversidade, supõe rudemente, que nos resta dos nativos, talvez, o sentimento de rebeldia, de resignação no caboclo e o deslumbramento e a desconfiança frente ao estrangeiro; dos negros, a história da sensualidade e abnegação que marca a psicologia do nosso povo; e do conquistador branco e luso, a nossa “civilidade” e intelectualidade. Além de tentar destacar e classificar genericamente as características da nossa multiplicidade, todas as heranças dos negros e dos nativos, elencadas por ele, são características resultantes da interferência do branco em suas vidas, como se nenhuma intelectualidade, cultura e configurações sociais existissem antes da sua chegada. Até poderíamos ser uma maravilhosa “colcha de retalhos” constituídos por diversas etnias e, por isso, possuidores de uma complacência excepcional, como tentaram nos descrever, mas a cultura oficial assimila o outro, recalcando hierarquicamente “os valores autóctones ou negros que com ela entram em embate. No Brasil, o problema do índio e do negro, antes de ser a questão do silêncio, é a da hierarquização de valores”.5

Ainda discorrendo sobre a pluralidade das influências ocorridas no Brasil, Cruz Costa afirma que há um aspecto da interferência de Portugal na formação do nosso pensamento que ainda ecoa em nossos interesses filosóficos: a pouca inclinação do espírito para realizar elucubrações metafísicas que não estejam imediatamente relacionadas a nossa vida prática.:

Toda a atividade dos portugueses orienta-se para um sentido positivo, para uma forma concreta de pensamento que se afasta e diferencia dos moldes das culturas dos demais países da Europa medieval. Desde a idade média é fácil verificar no pensamento português a constância de uma posição empírica; pragmática. (COSTA, C. Contribuição a História das Ideias no Brasil, 1967, p.19)

O autor também nos conta que no século XVI, quando tudo fenecia economicamente em Portugal, o Brasil foi descoberto em uma das empreitadas marítimas portuguesas. Estes se

5 SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

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empenharam apenas em explorar e procurar novas terras, deixando de lado os investimentos internos do próprio país. Nesta época, ocorria também uma revolução filosófica na Europa, mas Portugal ficou estagnado na escolástica, combatendo a heterodoxia e cerceando os espíritos críticos do país, contentes com seu "formalismo", "gramaticismo" e sua "erudição livresca". Todo o sentido prático e humano começa, portanto, a se transformar em especulações sem substância e em observações ou notas de roda pé dos textos clássicos, mas Portugal também se viu, se não envolvido como as demais nações, profundamente afetado pelo frenesi de transformações que ocorria naquele momento em todo o continente:

A Europa, ao desvendar novas terras, vai seguir novas diretrizes na sua filosofia, na sua moral, na sua política, e na sua economia. O nosso aparecimento se faz num momento de crise para a consciência europeia. Os homens das caravelas já não temiam aventurar-se pelos oceanos, dilatando a terra, a fé e o comércio. Instruídos pela ciência, confiantes na experiência, os homens que chegaram às nossas praias no século XVI eram representantes de uma época de inquietação, de contradição. (Costa, C. Contribuição a História

das Ideias no Brasil, 1967, p.33)

1.2 A ascensão intelectual do Brasil no séc. XIX

A adaptação das formas de vida europeias em terras tropicais se desdobra em consonância com a história do comércio europeu. Enquanto as novas terras e a mão-de-obra dos “seres inferiores” eram indiscriminadamente exploradas, em 1533 é fundada na Bahia as primeiras classes de latim frequentadas pelos senhores de Engenho que compuseram na colônia a chamada "classe erudita", e que se ocupavam de conhecer a cultura europeia para firmá-la também entre nós. No entanto, quando as atenções dos estrangeiros se voltaram para nós porque éramos os maiores fornecedores de açúcar do mundo, os eruditos brasileiros também começam a perceber e a retratar um pouco mais do cenário no qual estavam inseridos e que há muito ignoravam, como se esperassem apenas o aval de uma “inteligência superior” para poderem legitimar suas próprias inteligências. É assim que os loureiros, os ciprestes e os sicômoros passam a ser substituídos lentamente por coqueiros, cajueiros e palmeiras na literatura. Nesta época o ensino da filosofia, teologia e artes também começa a ascender, mas através das escolas jesuítas, que tentavam coibir a disseminação de qualquer ideia filosófica e política que conflitasse com as deles, de tal forma que ainda em 1794 no Brasil as pessoas podiam ser presas

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e acusadas pelo crime de "enciclopedismo". Contudo, a censura portuguesa não conseguiu manter as rédeas curtas da população por muito tempo que logo entrou em contato com a cultura moderna proveniente da França e se contrapôs às ideias difundidas pelos jesuítas, pelo cartesianismo e pela revolução científica realizada no século XVII. No final do séc. XVIII, o Brasil estava em pleno desenvolvimento econômico e a medida em que caminhava rumo a sua autonomia, o antigo sistema colonial entra em decadência. Com o regime monárquico instaurado e a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro no séc. XIX, o Brasil deu uma guinada histórica e cultural em razão do investimento que passou a ser realizado aqui e não mais em Portugal, como a inauguração de colégios de cirurgia e medicina; da Biblioteca Nacional, que até hoje é a maior biblioteca da América Latina; da Academia de Belas-artes, a qual foi aberta, não surpreendentemente, mediante a contração de diversos artistas franceses; do jardim botânico, que foi criado com o intuito de estimular o aperfeiçoamento das técnicas agrícolas; a atividade industrial também foi estimulada; conferências filosóficas eram realizadas; e até uma reforma na Universidade fora proposta pelo Marquês de Pombal, por meio de métodos de estudo, disciplina, livros de ensino e sanções de atividade acadêmica, até perceberem que o seu projeto era tão limitante quanto as escolas jesuítas e divergia das propostas de liberdade e emancipação mental e política já influente na época. Pombal, por assim dizer, "quis um impossível político: quis civilizar a nação e ao mesmo tempo fazê-la escrava; quis espalhar a luz das ciências filosóficas e ao mesmo tempo elevar o poder real ao despotismo"6.

Um dos letrados que ficou a par das ideias que estavam sendo discutidas na Europa, enquanto ficou refugiado na Inglaterra, e as trouxe para o Brasil através das conferências filosóficas que ministrava, foi Silveira Pinheiro Ferreira, cujas apresentações eram realizadas por intermédio dos compêndios modernos de Antônio Genovesi , que abarrotados de empirismo causavam nos estudantes uma certa aversão às especulações e estimulava um ceticismo acentuado perante os sistemas filosóficos propagados pela Alemanha e França. Esse compêndio moderno fora bastante propagado porque era, inclusive, indicado pela direção oficial de ensino e trazia à tona a concepção de uma filosofia prática defendida outrora em Portugal. Na primeira metade do século XIX, com o infortúnio da proposta de Universidade sugerida por D. João VI, foram implantadas as escolas de preparação profissional no Convento de São Francisco, em São Paulo e no Mosteiro de São Bento, em Olinda, de forma que os debates filosóficos e

6 BRAGA, Teófilo. História da Universidade de Coimbra, vol. III, p.569. In: COSTA, Cruz. Contribuição

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literários passaram a ocorrer em escolas nascidas a sombra de dois conventos, e a nossa experiência intelectual a ser promovida pela classe culta que importava as transformações europeias e as adequavam de acordo com os seus interesses, mesmo porque eram os únicos que podiam atuar nas deliberações e decisões do Parlamento. Neste período, a influência da França foi determinante para a apresentação de uma perspectiva emancipadora e educadora, mas colocamos em prática esta emancipação apenas perseguindo de maneira subserviente os moldes literários, artísticos e filosóficos provenientes, principalmente de Paris.

Em 1822 o Brasil declara a sua independência, e segundo a História Geral difundida pelos livros didáticos, não através da ruptura com o velho mundo por meio de grandes revoluções, como ocorreu em outras colônias americanas, mas pacificamente através da concessão do próprio governo metropolitano. Porém, sabemos hoje que muito sangue foi derramado durante as revoltas brasileiras e que as rupturas não ocorreram de forma tão pacífica como se divulga, mas com bastante intransigência. De qualquer forma, uma aura de placidez foi forjada nas bases da autonomia brasileira. Não existiram maiores conflitos nem ao menos entre as correntes doutrinárias divergentes no Brasil, e apesar de termos sido inspirados pela Revolução Francesa, formamos uma monarquia constitucional e um império aparentemente repleto de passividade e disciplina, guiados pelos bacharéis entusiastas da mesmice. Mesmo assim, esta ruptura com Portugal foi recebida com bastante deleite e o século fora marcado pela importação das ideias românticas acerca do nacionalismo que empreenderam nosso rumo intelectual e político da época. Neste momento também, Mont'Alverne reitera o ecletismo sugerido por Genvense e Domingos Gonçalves de Magalhães, que defendia a conciliação de todos os sistemas filosóficos e diretrizes filosóficas das igrejas, alegando que era possível extrair o que havia de melhor em cada um deles e concordá-los. Teoria, inclusive, muito conveniente e útil para o momento histórico conturbado que ocorreu entre a abdicação de D. Pedro I até o chamado Golpe da maioridade. Quanto mais a população fosse convencida das bem feitorias da “ordem”, mais indiferente ficaria diante dos problemas da nação e então seria mais fácil também convencer a todos que aceitar a implantação de uma monarquia constitucionalista era muito mais razoável e vantajoso do que subverter o poder.

Na segunda metade do séc. XIX o ecletismo começa a ser tratado como uma corrente filosófica vaga e inconsistente, mas no Brasil, como disse Clóvis Beviláqua, foi a corrente "que mais extensas e profundas raízes encontrou na alma brasileira"7. O ecletismo atendia aos interesses da burguesia erudita contemplada por D. Pedro II e se tornou ainda mais vigoroso

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durante a chamada crise da renovação da inteligência brasileira, que se processou depois da abolição do tráfico dos escravos.

Até 1868 o catolicismo, o ecletismo e as instituições monárquicas não eram afrontadas ou questionadas significativamente, ou pelo menos assim nos historia Cruz Costa. De um lado as organizações servis agiam em prol dos grandes proprietários e do outro, alguns intelectuais corroboravam para o deslumbramento das pessoas ante o furor do espírito nacionalista emergente. Porém, as renovações econômicas acarretaram, como é de se esperar, renovações intelectuais. Agora, o espírito comercial e industrial do país não poderia se resumir à importação e venda de africanos e à manutenção das lavouras tradicionais de tabaco, algodão e cana-de-açúcar. É neste período que ocorre uma renovação dos estudos filosóficos católicos no país, que estavam em decadência, porque apesar de o clero nacional se mostrar sempre muito flexível e adaptável as condições da sociedade patriarcal em prol da manutenção das suas regalias, tinham perdido a credibilidade da população devido usufruto desmoderado dos bens que lhes eram oferecidos. Por volta de 1870, o Brasil tem acesso a todas as novidades trazidas pelo europeu do séc. XIX: positivismo; evolucionismo; naturalismo; darwinismo; crítica religiosa; cientificismo; novos processos de crítica da história literária, do direito e da política. Nesta época houve, portanto, uma ascensão do espírito crítico nacional, facilitada também pelo progresso do padrão de vida e da aparelhagem técnica do país com o surgimento de novas modalidades de comércio, indústria e da lavoura cafeeira. Em virtude dessas transformações, as discussões sobre a questão do trabalho servil e da abolição de um sistema escravocrata também entram em ebulição e começam a ser debatidas profundamente dentro dos aspectos econômicos, sociais e políticos. Diante dessa conjuntura social, a maioria dos intelectuais da época volta as suas atenções para a produção de folhetos, livros e artigos de imprensa sobre o tema e sobre os ideais republicanos que passam a ser novamente aclamados. Nesta segunda metade do século, o Império, apesar do seu conservadorismo, tenta se adaptar às modernizações do capitalismo, e em meio as influências de tantas correntes filosóficas, o positivismo ganha destaque entre a elite intelectual do país, representada agora por uma nova burguesia de profissionais liberais, constituída pelos filhos dos senhores de engenho e pelos herdeiros de burgueses comerciantes e burocratas que surgiram no burburinho dessa nova civilização.

Alguns dos que irão aderir ao movimento são homens desiludidos do ecletismo espiritualista que se ensinava entre nós e que se confundia com uma retórica palavrosa e inútil [...] São homens que se voltam para a ciência e que nela

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creem encontrar resposta satisfatória e soluções definitivas para todos os problemas. Em outros ajunta-se ainda o antagonismo que se estabeleceria entre as crenças religiosas tradicionais e as tendências republicanas às quais haviam dado a sua adesão (Costa, Cruz, Op. Cit.,1967 p.128)

Para Sérgio Buarque de Holanda, o sucesso do positivismo aqui, ocorreu devido a uma constante presente na construção do caráter brasileiro: a atração pelas formas fixas e leis genéricas. Ele diz: " Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental aturado e fatigante, as ideias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da inteligência, parecem-nos constituir a verdadeira essência da sabedoria"8. Resta-nos saber também quão cerceados foram os nossos espíritos incertos para se aterem a essas formas fixas e por quanto tempo ainda serão.

Apesar de a princípio o positivismo não ter influenciado muito a vida política do país, ele foi aceito e bastante difundido pela nova burguesia, que findou se assentando em uma idolatria acrítica pela ciência. Ao mesmo tempo, na Alemanha, desenvolvia-se um materialismo idealista e humanista que se opunha ao "dogmatismo eclesiástico" e que passa a exercer grande influência nesta época, sobretudo no Nordeste do País, tendo como representantes nomes como: Tobias Barreto, Sílvio Romero e Farias Brito. Tobias Barreto, por exemplo, recomendava da filosofia alemã: a crítica. E acreditava que a partir dela ainda conseguiríamos realizar uma reestruturação no Brasil, mas ele mesmo fora apontado pelos historiadores da filosofia como apenas mais um filosofante fascinado pelas ideias oriundas da Alemanha, as quais ele assimilava com primazia, mas “vulgarizava artisticamente”. Em relação a isso, Hermes Lima pronuncia: um dos motivos para mais uma vez o trabalho de um crítico conceituado no Brasil se resumir a registros e comentários dos ecos das escolas e correntes estrangeiras9 é a existência

de uma incompatibilidade entre as doutrinas intelectuais importadas e as nossas condições históricas, ou como definiu Sérgio Buarque: "trazendo de países distantes novas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em um ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra"10. Cruz Costa diz que a geração procedente logo abre mão do "germanismo" e dá preferência ao relativismo, ao ceticismo, ao diletantismo e ao estetismo filosófico de Anatole France.

8 HOLANDA, S. Raízes do Brasil, 2009, p.158.

9 LIMA, H. Tobias Barreto, p.106. In: COSTA, Cruz, Contribuição à história das ideias no Brasil. 1967,

p.291.

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Dentre os autores citados como seguidores do germanismo, o que ficou realmente conhecido por tentar pensar, interpretar e compreender o Brasil foi Sílvio Romero, que em seu livro intitulado Outros Estudos de Literatura Contemporânea, declara a diferença dele para Tobias Barreto: “Ele foi pelo alemanismo, como coisa a ser imitada pelos brasileiros; eu, do alemanismo só aceitava a influência histórica da raça e o seu espírito crítico, ele era em letras preferentemente pelos assuntos estrangeiros; eu pelos nacionais”11

Sílvio Romero foi criticado pela sua filosofia precipitada e cheia de desordem, mas ele não acreditava na eficiência da criação de sistemas filosóficos rígidos ou dogmáticos e criticava no positivismo justamente a sua inflexibilidade doutrinária, porque se para ele a experiência era um quesito indispensável para a produção filosófica, as contingências e incertezas também deveriam ser levadas em conta. Sílvio Romero, segundo nos conta Cruz Costa, exigia da filosofia um método, mas não um feixe de teses dogmáticas. Contrariamente, Farias Brito com o intento de restaurar a metafísica tão requisitada pela sua geração e tendo como eixo temático: a tragédia, a dor e a virtude enquanto potência transformadora, se dedicou à produção de um sistema filosófico sobre a regeneração moral da sociedade. Ele obteve bastante prestígio entre os intelectuais brasileiros, além de ter agradado também as instituições religiosas, porque defendia que os discípulos de Comte só negavam Deus, negando assim, a ordem moral e a razão do mundo, porque também eram vítimas da angústia causada pela "impiedade moderna"12. Tasso da Silveira, dizia que enquanto os brasileiros aspiravam pela metafísica e desejavam o infinito, Farias Brito foi o único pensador que acalantou estes ensejos, assimilando, repetindo, combinando e repensando as doutrinas que consumira do exterior, adaptando-as ao nosso espírito e a nossa consciência coletiva.

1.3 As ideias do século XX

"Sou um tupi tangendo um alaúde!" (Mario de Andrade - Trecho da poesia O Trovador)

Tanto a passagem do Brasil para o sistema monárquico como para o republicano ficaram conhecidos como sendo dois grandes improvisos nacionais. Todas essas ondas de improvisação

11 ROMERO, Silvio. apud COSTA, C, Contribuição a História das Ideias no Brasil, 1967, p.297. 12 BRITO, F, Finalidade do Mundo (2ª parte), p. 10 apud COSTA, C, p. 306.

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recorrentes no devir histórico do país exigiram a manutenção de um espírito pragmático que não possuía grandes pretensões ideológicas. Rui Barbosa, o corifeu dos ideais republicanos, porém, um liberalista clássico do século XIX e admirador das ideias do séc. XVIII, acreditava como os seus companheiros intelectuais da época, que as abstrações deveriam apenas auxiliar no âmbito da experiência humana e atuar enquanto instrumentos de ação.

Esse modo de ser pragmático, essa propensão em serem essencialmente

práticos os homens da República, compreendem-se – e talvez explica-se –

num ambiente como é o nosso, que ainda não conseguiu "erigir a sua disciplina e fazer refletirem-se nas suas constituições os princípios fundamentais da sua vida" (COSTA, C. Op.Cit.,p. 324)

Apesar de a renovação política proposta pela implementação da república não ter ocorrido tão efetivamente como desejávamos, a transição dos séculos é marcada por um período de adversidade e de transformação na filosofia, porque as questões de cunho social que estavam sendo levantadas na Europa, passaram também a exercer grande influência em todas as discussões geradas aqui. Essa inquietação diante dos problemas sociológicos encaminhada pelos positivistas no país, se agravou principalmente após a Primeira Guerra Mundial, mas antes disso os interesses pelo âmbito sociológico já apareciam na literatura. Em 1902, por exemplo, Euclides da Cunha evoca a imagem do sertão e dos sertanejos no cenário e no imaginário dos brasileiros que ainda se iludiam com a "fachada europeia" pintada pelos letrados litorâneos e direciona a estes as suas provocações contra o sibaritismo intelectual, denunciando a formação desastrosa de todos eles e chamando atenção para o recanto dos marginalizados pelas conjecturas do "além-mar". No capítulo o clima, Euclides descreve: "Escasseiam-nos as observações às coisas desta terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos. Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão sertanejo, em prazo suficiente para o definir."13

Inicialmente, as notícias da guerra perturbaram as relações comerciais, mas logo o vigor das negociações foi retomado e a guerra além de despertar ambições, suscitou a desconfiança daqueles que ainda acreditavam e dependiam cegamente dos acordos internacionais. O interesse pela autonomia econômica logo foi reiterado pelo desejo de emancipação intelectual. A

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indiferença civil para com os eventos nacionais estava sendo questionada e o otimismo provocado pelo sucesso econômico do pós-guerra, ofereceu um novo sentido para a vida intelectual, política e social do país. O clima era de insatisfação perante as teorias filosóficas, as práticas políticas, a literatura e a arte. Dessa vez não só o grupo de intelectuais envaidecidos pelo seu diletantismo e retórica apurada queriam participar da vida política, os marginalizados por esse grupo de intelectuais também passam a se envolver e a exigir o seu espaço de fala dentro das discussões e deliberações sobre os problemas e os rumos do Brasil. Em 1922, ocorrem manifestações contra a hegemonia da Oligarquia, e a tão aclamada e para alguns até superestimada, Semana de Arte Moderna, conhecida por simbolizar o marco do movimento modernista no país, que desde a exposição de Anita Mafaltti, em 1917, já estava sendo pensado e nutrido por aqueles que o promoveram e enxergaram que todos os progressos políticos, técnicos, econômicos e sociais que vinham ocorrendo, necessitavam também do aprimoramento de uma consciência brasileira a partir da remodelação das coisas que representavam a nossa nacionalidade. A renovação e o empoderamento estético propostos pelo movimento modernista, deveriam reverberar e transpor os muros antiquados da política conservadora, instaurada e mantida à custa de muita “obediência civil”. A Semana de Arte Moderna não foi a causa das mudanças posteriores que culminou em 1930 com o fim da República Velha, mas um sobreaviso das mudanças e compreensões que já estavam em curso. Sobre o intento modernista, Graça Aranha nos diz:

Toda a cultura nos veio dos fundadores europeus. Mas a civilização aqui se caldeou para esboçar um tipo de civilização, que não é exclusivamente europeia e sofreu as modificações do meio e da confluência das raças povoadoras do País. É um esboço apenas sem tipo definido. É um ponto de partida para a criação da verdadeira nacionalidade. A cultura europeia deve servir não para prolongar a Europa, não para obra de imitação, sim como instrumento para criar coisa nova com os elementos que vêm da terra, das gentes, da própria selvageria inicial e persistente. O desejo de libertação é um sinal de que ela já está em nós (ARANHA, G. O Espírito Moderno, 1925, p.49

apud COSTA, C. Op. Cit, p.388)

Contudo, mesmo Graça Aranha com a sua Estética da Vida, foi classificado posteriormente por Mario de Andrade como exegeta de um nacionalismo conformista por ter lançado uma frase “detestável”: “ Não somos a câmara mortuária de Portugal! ”. Mário de Andrade o responde dizendo que o que ficou dito, pelo contrário, foi que não incomodava nada ‘coincidir’ com

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Portugal, pois o importante era a desistência do confronto e das liberdades falsas 14. Na mesma conferência, em 1942, Mário também expressa o seu descontentamento em relação ao movimento, dizendo que mesmo a geração que se formaria depois de 1930, continuaria apenas a "namorar com as ideologias pelo telégrafo"15, sem escrever o que sente visceralmente e apenas se adequando aos moldes impostos para dar conta do seu complexo de inferioridade.

14 ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. Aspectos da Literatura Brasileira, 1978, p. 242. 15 COSTA, C. Op. Cit. p. 386.

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2 Mas então, onde está a Razão brasileira? 2.1 A pompa austera da máscara do chistoso

“Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês.”. (Noel Rosa, trecho da música Não tem Tradução)

Roberto Gomes na Crítica da razão Tupiniquim explora bem a questão da existência de uma “Razão brasileira” e por isso neste capítulo nos serviremos da sua exposição para discuti-la também. De pronto o autor revediscuti-la seu posicionamento: A Razão brasileira ou a Razão Tupiniquim, como o mesmo denomina, não existe e anda "adormecida ou pulverizada em mil manifestações". Para ele, a diversidade de influências que poderia nos ter proporcionado uma abertura das possibilidades intelectuais, nos deixou estáticos. E não nos apoderamos nem das coisas que nos gabamos de fazer bem, como as piadas, por exemplo. Falamos, denunciamos e reclamamos as nossas desgraças e descasos políticos e sociais muitas vezes através humor, mas não nos permitimos levar isso a sério porque "no momento de pensar, queremos a coisa séria. Frases na ordem inversa, palavras raras, citações latinas"16. Legitimamos o nosso pensamento e produção filosófica a partir do crivo desse outro, estrangeiro e supostamente superior intelectualmente, mas enquanto acharmos que a nossa produção intelectual só pode ser aprovada se carimbada com esse status de seriedade que importamos, não colocaremos no centro das nossas atenções o que realmente importa: não os problemas e a perspectiva de um outro, mas a nossa perspectiva em relação a isso tudo.

Quando Roberto Gomes sugere que deveríamos assumir a piada como uma possibilidade para a produção de conhecimento, não reforça o mito de que somos um povo feliz, vibrante e de bem com a vida, porque somos antes "descendentes tropicais, vítima da doença, da pálida indiferença e do vício da cachaça"17, como diria Paulo Prado, mas que deveríamos levar a sério as piadas que apresentam "uma investigação do avesso da seriedade vigente" e rompem com as posturas e máscaras sociais que são exigidas por essa seriedade, que apesar de não combinar muito conosco, abraçamos no momento de pensar e de expressar nossos pensamentos, pelo menos academicamente. Roberto Gomes ainda assinala que é

16 GOMES, Roberto. Op. Cit, p. 9.

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impressionante como damos credibilidade aos discursos pomposos, utilizados para tratarmos dos assuntos "sérios", mas os rechaçamos cotidianamente, como se realmente não tivéssemos intimidade com esse tipo de discurso e nos travestíssemos de um outro – no qual não queremos nos transformar por completo, mas ao qual nos submetemos – a cada vez que o utilizássemos. Erasmo de Rotterdam, realizando a sua Saudação a Morus nos lembra: "Nada é mais tolo do que tratar com seriedade coisas frívolas, nada mais espiritual do que fazer as frivolidades servirem às coisas sérias"18. Estamos importando acriticamente propostas inférteis para serem impostas em nossa realidade e parece, pois, que para pensarmos sobre as nossas condições de dependência intelectual, precisaremos refletir a partir de algo original, não de algo novo, mas que seja originado através do desnudamento da nossa cultura e do encontro inevitável com o diverso e que acima de tudo seja uma reflexão, ainda que errante, levada à sério por nós. Conduzida ao extremo da sua importância.

Para Roberto Gomes, essa descoberta de nós mesmos deve emergir de uma demanda urgente do tempo e do lugar nos quais estamos inseridos, porque descobrir-se é encontrar-se em algo e não encontrar-se com algo, já que encontrar-se com significa encontrar-se com algo externo a nós, mas para ele, “a descoberta é, pois, fenômeno primário: um reconhecimento".

Desde o início a questão a respeito do que eu sou remete-se à pergunta: "Onde estou?" E onde estou? Num tempo, num lugar, entre coisas que me rodeiam, pessoas com quem falo. A consciência é primariamente este contato com a proximidade, com os contornos que imediatamente me chocam, exigem e perturbam. Estou em determinado lugar e, a partir dele, principio a ser. Antes estou, depois sou. (GOMES, Roberto. Op. Cit, p..22)

Entretanto, mais do que nos reconhecermos no tempo e no lugar nos quais estamos inseridos, se faz necessário também que nos desconheçamos inseridos nesse tempo e lugar e, portanto, não nos reconheçamos completamente em “brasilidade” alguma, mas nos desconheçamos em toda e qualquer construção de “brasilidade” que pretenda homogeneizar e tornar comum as nossas diferenças, uniformizando-as.

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Vílem Flusser, tão criticado por Roberto Gomes, nos diz em seu diálogo Há filosofia no Brasil?, que quando queremos achar a resposta para esta questão, nos preocupamos mais com o Brasil e com os filósofos do que com a filosofia, e nisso, ele parece estar certo, mas realmente não conseguiremos pensar, brasileiramente ou não, se continuarmos a aplaudir acriticamente os modelos aos quais estão ancoradas as nossas reproduções filosóficas, e se continuarmos a propagá-los com a mesma comodidade e arrogância que até hoje condecoram com o status de seriedade as nossas produções acadêmicas. Por medo de não sermos aceitos e de arriscar pensar, permanecemos apenas sobrevivendo do aval intelectual das “nações superiores” e isto posto, fazemos sala para a filosofia, conversamos com ela e apertamos as mãos, mas a abandonamos em sua incumbência de "destruir o mundo", de questionar e transformar o vigente, as normas, os sistemas. Até quando reclamam um espaço para o ensino da filosofia, por exemplo, concedem muitas vezes a ela a utilidade e a missão de informar e formar pacificamente espíritos “cidadãos”, mas a filosofia não é inofensiva e nada que a envolve deve se tornar inofensivo.

Enquanto os pensamentos que restam pairando entre-nós não forem pensados por nós, continuaremos dando sempre a resposta que, segundo Silviano Santiago, o “imperialismo cultural” anseia: o silêncio.

Seja por excesso de pudor, por medo, o fato é que até hoje não nos despimos. Talvez temendo nada encontrar por debaixo de nossos trajes europeus, nosso infatigável terno e gravata. Ou talvez fosse para nós excessivamente dolorido descobrir-se em, enfrentando a radical solidão da nudez. Tiraríamos a roupa para descobrir, absurdamente, que estamos nus. Sem máscaras de aplausos ou punições, sem nossa imagem de homens sérios, cheios de certezas. O que, afinal, fazer de uma nudez que não aceitamos como nossa? (GOMES, Roberto.

Op. Cit.p.27)

2.2 "Deixa estar... ": comodidade, juventude e jeito.

Cruz Costa já retratou que principalmente em época de crise e transições intelectuais, políticas e sociais, as elites cultas brasileiras possuíram muitas vezes a incumbência de apaziguar os conflitos, dissolver os contrários e imobilizar os pensamentos críticos, porque afinal, eram os interesses políticos e econômicos delas que estavam em jogo. Por isso, a elas interessavam também, que os demais cidadãos permanecessem impassíveis, acomodados e

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justificando as suas misérias com frases como: "o brasileiro é assim mesmo" ou "deixa como está para ver como fica". Roberto Gomes se reporta a essa imobilidade do pensamento através do que ele chama de "mito da imparcialidade", o que resumidamente, sustenta a imagem do brasileiro como um sujeito capaz de conciliar oposições, e por isso, capaz de se conservar acima dessas oposições (atributo característico do ecletismo). Mas para ele, quando não assumimos posição alguma, reafirmando coisas já consolidadas, não negamos nada, mas também não dizemos nada, apenas dissolvemos as oposições, sem resolvê-las e sem ao menos refletir sobre elas. Para não adotar uma posição de “inferioridade intelectual” diante do pensamento europeu, alguns optam por adotar uma posição de “superioridade”, como se o fato de conseguirmos supostamente lidar com os choques ideológicos, nos posicionasse em um lugar de privilégio, quando, de outra maneira, apenas fugimos dessas dissidências, cedendo ao conforto, a comodidade e a irrelevância daqueles que optam pela neutralidade. O "mito da imparcialidade", em vista disso, é apontado como um produto da indefinição intelectual do brasileiro gerada por nossa dependência cultural, mas o que poderíamos se partíssemos dessa indefinição e a assumíssemos criticamente? Manoel de Barros na poesia "O livro sobre o nada"19 nos delicia

19 "Tem mais presença em mim o que me falta.

Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.

Sou muito preparado de conflitos.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhu-ma fique desamparada do ser que a revelou.

O meu amanhecer vai ser de noite.

Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.

O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.

Meu avesso é mais visível do que um poste. Sábio é o que adivinha.

Para ter mais certezas tenho que me saber de im-perfeições.

A inércia é meu ato principal. [...] Peixe não tem honras nem horizontes. As palavras me escondem sem cuidado. Aonde eu não estou as palavras me acham. [...] Por pudor sou impuro.

O branco me corrompe.

Não gosto de palavra acostumada. A minha diferença é sempre menos.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.

Não preciso do fim para chegar. Do lugar onde estou já fui embora."

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com a incorporação e o escancaramento das suas inconsistências, as apresentando como uma nova possibilidade para o pensamento. Nos diz delicada e drasticamente que pensar a partir daquilo que somos, que achamos que somos, ou que dizemos que somos, é menos farto do que pensar a partir do que não somos, do que não chegamos a ser e de onde ainda não nos encontramos.

Há uma preocupação recorrente entre nós acerca da desvantagem temporal que temos em relação à história dos países ocidentais mais antigos, como se estivéssemos fadados a correr contra o tempo para, ao menos, ficar a par de tudo o que já foi realizado e produzido antes de o Brasil existir. Na condição de país “recém-gerado” e além disso, inseridos em uma linha do tempo progressiva, nos acomodamos em admitir que nunca alcançaremos intelectualmente os demais, porque os “séculos de vantagem” não podem ser eliminados. Mas quais as vantagens da juventude? Por que fugimos do terreno das “posições imprecisas”, dizendo ‘sim’ para todas as coisas? Este terreno não deveria se afigurar como o mais favorável e potencialmente frutífero para nós? Roberto Gomes nos diz que enquanto decidirmos permanecer em uma zona de conforto, consumindo certezas sem digeri-las, não poderemos nem obter e desfrutar a experiência da velhice de um Outro, nem explorar a potencialidade da nossa juventude; potencialidade essa que se encontra no gosto descomedido pelo novo, próprio dos jovens, e consequentemente, na vitalidade das criações, já que supostamente os jovens também estão mais propensos e dispostos a assumir os riscos, as contradições e as contingências do pensamento. Mas esses riscos não estão sendo assumido por nós, e talvez porque Erasmo de Rotterdam ainda tenha razão em dizer que “os homens não querem ser perturbados em suas lendas e não gostam que lhe mudem sua verdade"20. Pensar as dicotomias, a partir delas e para além delas, portanto, significa encontra-las, confrontá-las, estranhá-las, absorve-las e não as ignorar. Sobre a dissolução das oposições, Sérgio Buarque declara:

É frequente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares. Basta que tais doutrinas e convicções se possam impor à imaginação por uma roupagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. A contradição que porventura possa existir entre elas parece-lhes tão pouco chocante, que alguns se alarmariam e se revoltariam sinceramente quando não achássemos legítima

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sua capacidade de aceitá-las com o mesmo entusiasmo (BUARQUE DE HOLANDA, S. Raizes do Brasil, 2009, p 155).

O tão famoso "jeitinho brasileiro", por exemplo, que deveria atuar também no pensamento como um burlador das convenções e “burocracias”, ainda é requisitado muitas vezes para "conciliar" as oposições apenas diluindo-as e não as assumindo criticamente; O ceticismo, que deveria preparar o terreno para trabalharmos todos os pontos de vista que nos chegam aos montes, nos tornou medíocres; e tanto o positivismo como o ecletismo findaram se adequando sempre aos interesses daqueles que os disseminavam. Afinal, a disseminação da imparcialidade e da produção de pensamentos infecundos não contagiam nem 'contaminam' ninguém. Tudo o que supostamente faria de nós pessoas de cabeça e coração abertos, tornaram-nos dogmáticos e tirânicos: a regra é, dessa maneira, afirmar algo acerca das oposições ou se desfazer delas, mas não tentar compreendê-las. Quando Roberto Gomes afirma que "existir é radicalizar" e que por isso precisamos ser radicais em nossas decisões, não significa que devamos considerá-las irrevogáveis, mas que precisamos abraçá-las com emergência, mesmo que depois se mostrem inconsistentes e pueris. "Esta indiferenciação existencial na qual nos encontramos talvez explique o tipo de vítimas dóceis que nos habituamos a ser dos colonizadores, dos senhores de engenho, dos coronéis, das potências estrangeiras, dos politiqueiros e dos regimes ditatoriais."21

A indiferença e a esterilidade das produções filosóficas da elite intelectual e dos doutos bacharéis ganharam espaço dentro das universidades, onde diversas vezes, intelectuais se agrupam não para divergir entre si e levantar questionamentos acerca do que está sendo discutido, mas para dividirem as mesmas opiniões e aplausos engessados. "Nesta prisão primária que é o grupo fanatizado, a visão mágica emerge. Divergir é crime. Discordar é subversão. Perguntar já é um ato de desobediência"22. A "mente aberta" cede lugar a censura e para suprimir as oposições vale tudo, até destinar críticas, não às ideias, mas a quem as defende, afinal, a camaradagem termina onde a objeção do “coleguinha” começa, e se restaura quando fazem as pazes a partir das semelhanças encontradas em seus pensamentos. A dissemelhança que anseia vir à tona para ser pensada é então abafada com alguns risos e tapinhas nas costas. Viciados na mesmice, caducamos procurando por "mais do mesmo".

21 GOMES. Roberto. Op. Cit. p.43, 1994. 22 _______. Roberto. Op. Cit. p.47, 1994.

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Ora! Todos os anos, bacharéis e licenciados em Filosofia são formados no país; artigos, revistas e livros são escritos; congressos são realizados; mas a existência de uma produção filosófica de boa qualidade, comentada e produzida no Brasil e por brasileiros, não esgota a problemática que foi levantada sobre a existência de uma filosofia nacional, porque o sucesso que obtivemos compreendendo e assimilando ideias estrangeiras, significou também o insucesso da nossa vida especulativa. A filosofia paira entre nós, mas nos importamos com ela? A tornamos urgente? Desdobramos ao máximo todas as questões que nos chegam? Já concluímos, ao que tudo indica, que não, porque a nossa indiferença e comodidade tem sido relevada e esquecida em nome da própria comodidade. Aliás, a questão de o pensamento ser ou não brasileiro, na medida em que é produzido aqui ou por um filho da nação, talvez também não deva ser o cerne de toda essa problemática. Isto é, se queremos esquadrinhar um pensamento que se situe aqui geográfica e historicamente; que emerja das nossas demandas existenciais e não que tenha sido apenas importado e acatado, nos parece mais significativo esquadrinhar os sinais do esquecimento desse pensamento entre nós, do que tentar o enquadrar dentro de uma noção imobilizadora de “nacionalidade” ou “identidade”, porque precisamos trazer à tona todos os objetos, perspectivas e conceitos que ainda urgem ser inventados por nós e imprescindivelmente pensados. " Só a partir de uma reflexão crítica a respeito de nosso modo de existir, de nossa linguagem, de nossas falsificações existenciais e históricas é que poderemos chegar aos limites de uma filosofia nossa". E enquanto procurarmos a causa da ausência de uma Filosofia brasileira na herança filosófica deixada por Portugal e por todas as influências europeias presentes em nossa formação, e além disso, tratarmos esse encontro com o Outro apenas como gerador de um patchwork cultural, avançaremos pouco nas reflexões acerca do que está sendo deixado a margem: o encontro com a multiculturalidade, o encontro com o diverso.

Levar em consideração o passado e observar os seus vestígios é diferente de se ancorar no passado e abandonar-se nele como alternativa de consolo. É como abrir mão da possibilidade de criação que existe em cada momento, em cada instante histórico, em cada piscar de olhos. " Não se herda uma Filosofia, cumpre apropriar-se dela, fazendo-a nossa"23, por isso nada o que foi e é forçosamente situado aqui encontrou ou encontra um terreno de cabeças férteis, mas um terreno de cabeças doutrinadas e infelizmente ainda perseverantes em continuar fazendo o que fazem: balançar de cima para baixo dizendo "Sim, senhor!" , sem que nada comprometa a sua tranquilidade. Isto posto, também não é prudente afirmar que a nossa tão evidenciada,

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dependência intelectual, se deve à falta de aptidão do nosso espírito para a filosofia ou à falta de propriedade da língua portuguesa. Seguir os modelos provenientes do estrangeiro mesmo sem criticá-los, nos eximiu de uma coisa dolorosa e arriscada: pensar. No entanto, também não podemos afirmar genericamente que não temos habilidade para o pensamento e concluir que a propagação dessa subserviência colonial significa falta de talento para a especulação, porque admitir tão facilmente que estamos destinados a cumprir pela eternidade o papel de assimiladores e reprodutores desse outro europeu, também é corroborar para que permaneçamos nessa zona de certezas inquestionadas por nós e que foi disseminada, no mais das vezes, por pessoas que se beneficiavam dessa passividade, renovando, através dela, seu status quo e seu poder de dominação.

Álvaro Lins é um dos que argumentam em favor da proposição de que os brasileiros não possuem pendor para a Filosofia, mesmo reconhecendo a originalidade da poesia produzida no Brasil. Em contrapartida, Roberto Gomes afirma:

Diz mais adiante que a Filosofia e poesias são afins, e que no caso da poesia contamos com grandes representantes e dom de originalidade. À vista disso, creio problemática a afirmação de que carecemos de espírito especulativo, de investigação do sentido do mundo, se poesia e Filosofia têm raízes comuns. Aconteceu não nos apropriarmos de uma "forma" de especulação, a filosófica. Por quê? Que fique sugerido: talvez porque a poesia sempre guardou seu potencial de rebeldia, seu caráter marginal, enquanto a Filosofia concedeu em servir de apoio ideológico ao estabelecido. O que fez com que entre - nós a Razão Dependente e Ornamental se tenham transformado em Razão Afirmativa do vigente. (GOMES, Roberto. Op. Cit.1994, p.64)

Assim como a declaração de que o brasileiro não tem vocação para a filosofia reafirma uma comodidade já instaurada e normalmente aceita entre nós, desmerecer a língua portuguesa e julgá-la inapropriada para a filosofia também nos deixa a mercê de um sentimento de inferioridade perante as demais nações, mas assim como existem expressões francesas, alemãs ou latinas que não podem ser traduzidas para o português porque não expressam com justeza os significados das suas versões originais, existem expressões no português que não podem ser bem traduzidas ou bem compreendidas em outras línguas, mas estas não são desmerecidas por isso. As expressões e conceitos são originados em tempos e lugares de acordo com as suas urgências, e se expressões e conceitos que são construídos em tempos e lugares distintos dos

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nossos, por ventura, não são bem compreendidos ou traduzidos por nós, provavelmente não fazem parte das nossas urgências comunicativas e existenciais, porque quando os problemas são apenas alheios, as expressões também são apenas alheias. Ser "assimilativo" e ter "sensibilidade espiritual" para os assuntos dos outros, como assinala Roberto Gomes, não parece ser a única possibilidade que temos de filosofar, porque palavras são significadas historicamente, conceitos são inventados e, por isso, não podemos determinar que existem linguagens que são desde sempre filosóficas e outras que não são. "Cabe a nós descobrir o que nos importa. Descoberto isso, teremos a palavra adequada. Adequada ao que é nosso. Dita à nossa maneira, com nossa preocupação específica. E perceberemos, então, que serão coisas talvez intraduzíveis para o alemão, o grego, o francês"24. Quando existimos, providenciamos a ordem da nossa existência aprendendo e inventando palavras e conceitos que são demandados por ela, alguns desses conceitos são mais importantes, outros menos e outros absolutamente urgentes. Para Roberto Gomes, a zona dos conceitos urgentes ainda precisa ser explorada por nós. E Mário de Andrade assevera: "ao invés de imaginarmos que não temos pensamento por falta de linguagem, por que não supomos que não temos linguagem por falta de pensamento?"25.

O status de intelectual dos seres cultos que aqui habitam é enaltecido pelo reconhecimento institucional das suas produções e seguir os modelos europeus nos concede este tipo de reconhecimento, mesmo que para o próprio autor, a sua obra signifique pouco para além de um trabalho "institucionalmente reconhecido". Diante disso, criamos um medo de fugir do padrão que nos foi ensinado com tanto esmero pelos nossos colonizadores e fincamos raízes em um plano de inferioridade e incapacidade intelectual que não existe:

Uma condição talvez nos leve a isso: o homem é um animal enraizado na insegurança, o que faz com que nada nos fascine mais do que a certeza. As certezas dos limites de nossas instalações, as quais acabam plasmando nosso mundo. É de agarrar-se a tais limites que extraímos nossa débil segurança. A dinâmica básica da existência oscila entre momentos de segura e insegurança, certeza e dúvida - sendo o ato criador aquele momento que fazer romper algumas certezas, desequilibrando um sistema. Ao contrário, a vitória de uma dada visão de mundo tenderá a se transformar em instituição, segura e sólida, vigente. Logo, morta. Um pensar ao limite só poderia nos atrapalhar. Se devo pensar, tudo está em jogo, sendo o pensar a sério um levar-se ao limite. Equivale a expor nossas instalações ao perigo da dissolução [...] (GOMES, Roberto. Op. Cit. 1994, p. 93)

24 GOMES. Roberto. Op. Cit. P.66, 1994.

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3 Inventando o Brasil que queremos... 3.1 Modernismo e filosofia?

Fora sempre um fragmentário. Em torsos quebrados, metades, estudos largados, concentrava numa predileção alegre e constante a força reveladora de sua arte. Era um criador de mutilações (ANDRADE, Oswald. Os Condenados: A trilogia do exílio, p. 180)

O Movimento modernista já citado no primeiro capítulo, reconhecido pelos seus integrantes como um movimento aristocrático e repleto de inspiração estrangeira, foi um movimento artístico e cultural que conteve em suas propostas de intervenção estética: o estranhamento, o questionamento do vigente e a emancipação intelectual e artística, não através da rejeição das exterioridades, mas da destruição das nossas condições de dependência em relação a elas. Todas as idealizações, experiências e pesquisas viabilizadas pela Europa e pela América do Norte deveriam também estar contidas nas tintas utilizadas por Tarsila de Amaral na tela "Antropofagia", não com o objetivo de serem nelas dissolvidas, mas incorporadas, transformadas. Pois bem, nem tudo é um mar de flores de realizações utópicas e as nossas condições de dependência não foram completamente destruídas, assim como ainda não tomamos consciência do mulato, do índio e da América Latina como propuseram os modernistas, porque ainda não incorporamos nem desincorporamos verdadeiramente tudo isso. No entanto, elementos comuns e ordinários foram colocados em condição de estranhamento, a saber, o formato da “ordem” social e política na qual estávamos inseridos e os modelos culturais, intelectuais e estrangeiros que eram consumidos e repetidos acriticamente. De toda forma, o que houve nesse período particularmente ambíguo, constituído simultaneamente por ideais nacionalistas e internacionalistas, foi um rompimento; A inauguração de um projeto de emancipação, que não tinha por finalidade a busca por uma autonomia, mas a busca por uma heterogênese do pensamento. Silviano Santiago, em Apesar de dependente, universal nos diz que a noção mal-intencionada da antropofagia cultural foi uma das noções inventadas durante o modernismo, que se apresentando como antídoto para o enciclopedismo “europeocêntrico”:

[...] não se faz de conta que a dependência não existe, pelo contrário frisa- se a sua inevitabilidade; não se escamoteia a dívida para com as culturas dominantes, pelo contrário, enfatiza-se a sua força coerciva; não se contenta com a visão gloriosa do autóctone e do negro, mas se busca a inserção

Referências

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