Aula 1 – No¸
c˜
oes elementares
Objetivos
• Criar os alicerces para que o aluno possa acompanhar todo o restante
da disciplina.
• Introduzir elementos primitivos e alguns axiomas b´asicos da Geometria
Euclidiana.
Introdu¸
c˜
ao
Geometria
Geometria significamedida da terra. A palavra
geometriavem do gregogeo, terra, emetrein, medir, que remonta `a origem da Geometria, nascida da necessidade pr´atica de medir o tamanho das propriedades agr´ıcolas. Desenvolveu-se, incialmente, no Egito, onde as cheias do rio Nilo cancelavam as divisas entre as glebas. As primeiras no¸c˜oes geom´etricas surgiram quando o homem teve necessidade de realizar medidas; como por exemplo, comparar distˆancias e determinar dimens˜oes de corpos que estavam `a sua volta. Mas o que se tem de mais interessante ao se estudar a hist´oria, ´e que os primeiros passos no estudo da Geometria foram dados com base numa hip´otese falsa: acreditava-se que a Terra era plana. Todas as pesquisas foram feitas segundo essa cren¸ca, mas isso n˜ao impediu o desenvolvimento da Geometria.
“O estudo profundo da natureza ´e a mais fecunda fonte de descobertas matem´aticas”
Joseph Fourier (1768-1830)
Os elementos b´asicos do estudo da Geometria s˜ao as id´eias de ponto,
retae plano. No nosso dia-a-dia usamos essas palavras em diversas ocasi˜oes, e com diversos significados diferentes, tais como:
- A que ponto chegamos!
- Estamos na reta final do trabalho.
- Eu tenho um plano!
Sob o ponto de vista da Geometria, no entanto, essas palavras tˆem sig-nificados muito espec´ıficos. Contudo, apesar de serem conceitos importantes e intuitivos, s˜ao dif´ıceis de definir. Tente dar uma defini¸c˜ao de um deles:
- O que ´e reta?
- ´E uma “coisa” que n˜ao ´e curva.
- O que ´e curva?
- Ah, ´e uma “coisa” que n˜ao ´e reta. Opa!
O ponto, a reta e o plano n˜ao existem no mundo real, s˜ao instrumentos que usamos para modelar a natureza. Um gr˜ao de areia, uma vareta ou um tampo de mesa nos d˜ao a id´eia de ponto, reta e plano, mas nunca vimos um gr˜ao de areia que n˜ao tenha volume (mesmo pequeno), uma vareta que n˜ao tenha espessura e se prolongue indefinidamente, ou um tampo de mesa que se prolongue em todas as dire¸c˜oes...
Podemos, por´em, imaginar esses elementos e estudar suas proprieda-des. Indo mais al´em, podemos imaginar partes desses elementos (semi-retas, segmentos, semiplanos, etc.), composi¸c˜oes dessas partes (ˆangulos, triˆangulos, circunferˆencias, etc.) e estudar suas propriedades.
Fig. 2: Elementos do mundo real na Geometria.
Em nosso estudo da Geometria, n˜ao definiremos ponto, reta e plano: esses ser˜ao elementos primitivos. Usaremos letras mai´usculas (A,B, C, etc.) para designar pontos, letras min´usculas (a, b, c, etc.) para designar retas, e letras do alfabeto grego (α, β, γ, etc.) para designar planos.
Veja na figura 3 como ser˜ao representados no papel os elementos pri-mitivos ponto, reta e plano.
A
r α
Fig. 3: Ponto, reta e plano representados no papel.
Para evoluir em nosso estudo da Geometria Euclidiana precisamos es-tabelecer algumas rela¸c˜oes entre os elementos primitivos, rela¸c˜oes que cha-maremos de axiomas. Axiomas s˜ao verdades primitivas, aceitas a priori, e que refletem propriedades observ´aveis dos objetos do mundo real que esta-mos modelando. Mais a frente vocˆe entender´a mais sobre o significado dos axiomas.
A partir dos elementos primitivos, ponto, reta e plano e das verda-des intuitivas, os axiomas, usamos argumentos logicamente consistentes para decidirmos se novas propriedades s˜ao verdadeiras ou falsas.
Justamente porque pontos, retas e planos s˜ao modelos abstratos do mundo real e os axiomas verdades auto-evidentes, ´e importante sermos ex-tremamente criteriosos na escolha dos axiomas. Eles devem, a princ´ıpio, serem de f´acil aceita¸c˜ao como verdades evidentes.
Felizmente, estamos estudando uma disciplina que tem mais de 2.400 anos de existˆencia. A fase criativa mais importante da Geometria Euclidiana ocorreu no s´eculo IV a.C., onde foram enunciados a quase totalidade dos axiomas na impressionante obra “Os Elementos” de Euclides.
Exemplo 1
Observe a figura 4 e responda se as linhas que ligam M a N e P a Q s˜ao linhas retas.
M N
P Q
Fig. 4: Ilus˜ao de ´otica?
Exemplo 2
Na figura 5, qual das linhas ´e maior: a horizontal ou a vertical ?
Confira as respostas com sua r´egua.
Fig. 5: Qual ´e a maior linha?
Bom, se por um lado n˜ao podemos confiar apenas no bom senso e na intui¸c˜ao, por outro lado eles s˜ao muito importantes.
Como j´a lhe contamos, o estudo da Geometria come¸ca por admitir como propriedades verdadeiras apenas algumas afirma¸c˜oes simples, chamadas
axiomas ou postulados, que s˜ao bastante intuitivas. A partir dos axiomas ´e poss´ıvel provar (ou demonstrar) outras afirma¸c˜oes. A essas afirma¸c˜oes, que ser˜ao provadas, daremos o nome de proposi¸c˜oes ou teoremas. O que entendemos por provarficar´a mais claro ao longo do curso.
Veja, a seguir, alguns dos axiomas da Geometria plana, chamados
axiomas de incidˆencia:
Axiomas de incidˆencia:
• Existem infinitos pontos no plano.
• Por dois pontos distintos (ou seja, diferentes) passa uma ´unica
reta.
• Dada uma reta, existem infinitos pontos pertencentes a ela, e
infinitos pontos fora dela.
´
E correto afirmar que o
plano´e constitu´ıdo de pontos e que as retas s˜ao subconjuntos de pontos do plano.
Axioma
Chama-seaxiomaou
postuladotoda afirma¸c˜ao aceita sem demonstra¸c˜ao.
Usando a forma de representar utilizada na figura 3, podemos repre-sentar esses axiomas no papel. ´E claro que n˜ao podemos desenhar infinitos pontos, mas, ao buscar colocar as id´eias no papel, desenvolvemos nossa vis˜ao geom´etrica.
Para indicar que um ponto est´a em uma reta, plano, etc., usaremos o s´ımbolo ∈ (pertence). Assim a express˜ao A ∈ r significa que o ponto A
pertence `a reta r, ou est´a na reta r. Nesse caso, diz-se tamb´em que r passa pelo pontoA. A reta que passa pelos pontosA e B ser´a denotada por ←AB→. Para indicar que uma reta est´a contida em um plano, usaremos o s´ımbolo⊂.
Assim a express˜aor ⊂α significa que a retar est´a contida no plano α.
B
A
C
Fig. 6: A,BeCs˜ao pontos n˜ao-colineares.
O segundo axioma acima diz que, dados dois pontos distintos A e B, sempre existe uma (´unica) reta que passa pelos dois. Se forem dados trˆes pontos, ao inv´es de dois, pode ser que n˜ao exista uma reta que passe pelos trˆes, como ´e o caso dos pontos A, B e C na figura 6. Pontos A, B, C como tais s˜ao chamados de pontos n˜ao-colineares.
M´etodo dedutivo
O m´etodo deprovar(ou demonstrar) resultados a partir de axiomas utilizando apenas o racioc´ınio l´ogico ´e chamadom´etodo dedutivoe ´
e atribu´ıdo aos gregos. Atrav´es dele, os gregos levaram a Geometria a um est´agio bem avan¸cado.
Geometria Euclidiana
Vocˆe deve ter observado que os axiomas anteriores parecem bastante razo´aveis, no sentido de que parecem verdadeiros e indiscut´ıveis. Justamente por causarem essa impress˜ao, foram escolhidos como axiomas. A busca de axiomas, no entanto, n˜ao foi sempre uma tarefa f´acil. Em diversos momentos da Hist´oria, os geˆometras (e tamb´em outros grupos de matem´aticos) tiveram discuss˜oes acaloradas sobre esse assunto.
Na leitura desta primeira aula, n˜ao se preocupe em fixar ou decorar axiomas. O mais importante, por enquanto, ´e formar uma boa id´eia de ponto, reta e plano e do que est´a sendo dito a respeito deles. Ao ler os axiomas, procure desenhar figuras, fazer imagens mentais, discutir com outras pessoas e se convencer de que fazem sentido.
Dadas duas retas no plano, h´a trˆes possibilidades: elas se intersectam em um ´unico ponto (retas concorrentes), elas n˜ao se intersectam (retas para-lelas) ou elas tˆem todos os pontos em comum (retas coincidentes). Observe na figura 7 esses trˆes casos.
r s r
s
r s
Fig. 7: Retas coincidentes, retas concorrentes e retas paralelas.
• Retas paralelas: Nenhum ponto em comum.
• Retas concorrentes: Apenas um ponto em comum.
• Retas coincidentes: Mais de um ponto em comum.
Segmentos de reta, semi-retas e semiplanos
Euclides de Alexandria
325-265 (?) a.C.
Matem´atico grego. ´E um dos mais famosos matem´aticos da antig¨uidade. N˜ao se sabe ao certo o local e nem as datas de seu nascimento e de sua morte, e quase nada se sabe sobre sua vida. ´E poss´ıvel que tenha recebido ensinamentos dos primeiros disc´ıpulos de Plat˜ao. A ´
unica certeza ´e que fundou em Alexandria, durante o reinado de Ptolomeu I (323 a.C.-285 a.C.), a primeira escola de Matem´atica. No tempo de Euclides (cerca de 300 a.C.), a Geometria alcan¸cou um est´agio bem avan¸cado. Do conhecimento acumulado, Euclides compilouOs elementos, um dos mais not´aveis livros j´a escritos. Al´em de ser uma exposi¸c˜ao sistem´atica da Geometria elementar,Os Elementostamb´em contˆem tudo que era conhecido na ´
epoca sobre Teoria dos N´umeros. Consulte: http://www-groups.dcs. st-nd.ac.uk/~history/ Mathematicians/Euclid. html
Defini¸c˜ao 1 (Pontos colineares)
Se um determinado conjunto de pontos est´a contido em uma mesma reta, dizemos que esses pontos s˜ao colineares.
Nosso objetivo, agora, ´e introduzir a no¸c˜ao de ordem para pontos de uma mesma reta. Para isso, considere uma reta r e sobre ela trˆes pontos distintosA, B eC (veja figura 8). Observe que o pontoB encontra-se entre
A e C. Al´em disso, existem outros pontos entre A e C (al´em de B); s´o n˜ao est˜ao destacados na figura e n˜ao designamos letras para eles. Existem tamb´em pontos que n˜ao est˜ao entreA e C.
A B
C r
Fig. 8: BentreAeC.
Esses fatos s˜ao bastante intuitivos e fazem parte do que chamamos
axiomas de ordem:
Axiomas de ordem:
• Dados trˆes pontos colineares e distintos dois a dois, um deles,
e apenas um, est´a entre os outros dois.
• Dados dois pontos distintos A e B, existe sempre um ponto C
que est´a entreAeB, e um pontoDtal queAest´a entreDeB.
Enfatizamos que a no¸c˜ao de ordem ´e para pontos que est˜ao sobre uma mesma reta. Assim, quando dizemos queB est´a entreA e C, em particular, estamos afirmando que A, B e C s˜ao colineares e diferentes. Al´em disso, dizer queB est´a entre A eC ´e o mesmo que dizer queB est´a entre C e A.
Defini¸c˜ao 2 (Segmento de reta)
Chamamos segmento de reta AB ao conjunto formado por A, B e todos os pontos que est˜ao entre A e B, ou seja, o “peda¸co” da reta que come¸ca em
A e termina em B (ou que come¸ca em B e termina em A). Veja a figura 9.
Dizer que os pontosA,Be
Cs˜ao distintos dois a dois
significa queA6=B,A6=C
eB6=C.
A
B
Fig. 9: Segmento de retaAB.
Com o intuito de definir outros elementos importantes para nosso es-tudo (semiplano e semi-reta), introduzimos mais um axioma:
• Uma retardo planoαsepara o conjunto dos pontos desse plano
que n˜ao pertencem a r em dois conjuntos, α′ e α′′
, tais que:
− α′ e α′′ s˜ao disjuntos (n˜ao tˆem elementos em comum).
− Se A ∈ α′ e B ∈ α′′, ent˜ao AB intersecta r (o segmento
AB e a retar tˆem um elemento em comum).
− SeAeB est˜ao ambos emα′ (ou emα′′), ent˜ao o segmento
AB n˜ao intersecta a retar.
Defini¸c˜ao 3 (Semiplano)
Os conjuntos α′ e α′′ referidos anteriormente s˜ao chamados semiplanos de-terminados pela retar.
Na figura 10,AeBpertencem a um mesmo semiplano, pois o segmento
AB n˜ao intersectar. Dizemos que Ae B est˜ao em um mesmo lado de r. Os pontos C e D est˜ao em semiplanos opostos, pois CD intersecta r. Dizemos queC e D est˜ao em lados opostos der.
A
B
C
D
r
Fig. 10:AeBpertecem a um mesmo semiplano. CeDest˜ao em semiplanos opostos.
Da mesma forma, um ponto pertencente a uma reta separa essa reta em dois conjuntos. Mais precisamente, se A est´a entre B e C e r ´e a reta que cont´em esses trˆes pontos, o pontoAsepara a retarem duas partes, uma contendo o pontoB e outra contendo o ponto C.
Defini¸c˜ao 4 (Semi-reta)
As partes da reta, referidas acima, s˜ao chamadas semi-retas determinadas pelo ponto A.
A semi-reta que cont´em o ponto B ´e denotada por −→AB (veja a figura 11), e a que cont´em o pontoC ´e denotada por −→AC. Dizemos que a semi-reta
−→
AC ´e oposta `a semi-reta −→AB (e vice-versa).
A
B
C
Fig. 11: Semi-retas
→
ABe→
AC.As nota¸c˜oes utilizadas para semi-reta e para reta s˜ao bastante sugestivas. A seta em apenas uma dire¸c˜ao em
−→
ABsignifica que a semi-reta tem come¸co e n˜ao tem fim. A seta nas duas dire¸c˜oes em
←→
ABsignifica que a reta n˜ao tem come¸co nem fim.
Defini¸c˜ao 5 (ˆAngulo) ˆ
Angulo ´e uma figura formada por duas semi-retas distintas e n˜ao-opostas com a mesma origem.
Se−→ABe−→AC s˜ao semi-retas definindo um ˆangulo, diz-se queA´e ov´ertice
do ˆangulo. Para designar esse ˆangulo, usa-se a nota¸c˜ao BACˆ , ou apenas ˆA, se n˜ao houver mais de um ˆangulo sendo considerado com v´ertice emA. As semi-retas −→AB e −→AC s˜ao os lados do ˆangulo.
A
B
C
Defini¸c˜ao 6 (Interior de um ˆangulo)
Dado um ˆangulo BACˆ , define-se o interior de BACˆ como o conjunto de todos os pontos que pertencem `a interse¸c˜ao entre o semiplano determinado por ←AB→ que cont´em C e o semiplano determinado por ←AC→ que cont´em B. (Veja a figura 13).
A
B
C
Fig. 13: Interior do ˆanguloBACˆ .
Resumo
Nessa aula vocˆe aprendeu...
• Que ponto, reta e plano s˜ao elementos primitivos da Geometria
Eucli-diana.
• Que axioma ou postulado ´e uma afirma¸c˜ao aceita sem prova.
• O enunciado de alguns axiomas.
• As defini¸c˜oes de ˆangulo, segmento de reta, semiplano, semi-reta e
inte-rior de um ˆangulo.
Exerc´ıcios
1. Retorne ao in´ıcio do texto da aula e releia apenas os axiomas.
2. Diga se cada uma das afirma¸c˜oes abaixo ´e verdadeira ou falsa.
• Por um ponto passam infinitas retas.
• Por trˆes pontos dados passa uma reta.
• Quatro pontos dados, todos distintos, determinam duas retas.
• Se dois pontos distintos A e B pertencem `as retas r e s, ent˜ao
r =s.
• Duas retas distintas que tˆem um ponto em comum s˜ao
concorren-tes.
• Quatro pontos distintos, sendo apenas trˆes deles colineares,
deter-minam quatro retas.
3. Dados trˆes pontos distintos de uma reta, quantos segmentos distintos eles determinam?
4. Dados dois pontos distintos A e B, quantos segmentos h´a com extre-midades A e B? Quantos segmentos h´a que passam pelos pontos A e
B?
5. Fa¸ca um desenho onde constem pontos A, B, C, D eE, e retas r e s, satisfazendo ao mesmo tempo os itens a seguir:
• r e s n˜ao s˜ao coincidentes,
• A∈r e A∈s,
• B ∈r eC ∈r,
• B e C est˜ao em semiplanos opostos com respeito as,
• D e E est˜ao em semiplanos opostos com respeito a r, e nenhum
dos dois pontos pertence a s.
Existem v´arios desenhos poss´ıveis com essas propriedades. Entretanto, todos tˆem algumas coisas em comum. Por exemplo, em todos os de-senhos poss´ıveis, r e s n˜ao s˜ao paralelas, e se vocˆe tra¸car a reta ←DE→, esta ser´a concorrente com r. Se←DE→ser´a concorrente ou n˜ao coms, vai depender do desenho que vocˆe fizer. Desenhe as duas possibilidades.
6. Desenhe dois segmentos ABe CD tais que a interse¸c˜ao deAB eCD ´e o conjunto vazio, mas ←AB→ e ←CD→tˆem um ponto em comum.
7. Desenhe dois segmentos ABe CD tais que a interse¸c˜ao deAB eCD ´e o conjunto vazio, mas ←AB→=←CD→.