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Desviar, silenciar e tatear: conversas sobre viver no curso de Pedagogia/UFF

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO

LUIS ALBERTO SILVA GONÇALVES

DESVIAR,SILENCIAR E TATEAR: CONVERSAS SOBRE VIVER NO CURSO DE PEDAGOGIA/UFF

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO

LUIS ALBERTO SILVA GONÇALVES

DESVIAR, SILENCIAR E TATEAR: CONVERSAS SOBRE VIVER NO CURSO DE PEDAGOGIA/UFF

Niterói/RJ 2020

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LUIS ALBERTO SILVA GONÇALVES

Exame de Qualificação Texto apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UFF, como requisito obrigatório no processo de Exame de Processo de Dissertação para obtenção de título de Mestre em Educação.

Linha de Pesquisa: Estudos dos Cotidianos da Educação Popular (ECEP).

Orientadora: Profª Drª. Nivea Andrade

Niterói-RJ 2020

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LUIS ALBERTO SILVA GONÇALVES

DESVIAR, SILENCIAR E TATEAR: CONVERSAS SOBRE VIVER NO CURSO DE PEDAGOGIA/UFF

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UFF, como requisito obrigatório para obtenção do título de Mestre em Educação. Aprovada em 29 de março de 2018.

Aprovada em 12 de fevereiro de 2019.

BANCA EXAMINADORA

Dra. Nivea Maria da Silva Andrade - UFF Orientadora

Dra. Carmen Lúcia Pérez Vidal - UFF Membro Interno

Dra. Adriana Lopes – UFRRJ Membro Externo

Dra. Conceição Soares – UERJ Membro Externo

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DEDICATÓRIA

À cada estudante que compõem e constrói esse trabalho.

À professora Dra. Nivea Andrade sem a qual não teria fôlego para cumprir tal desafio. Aos que me formam e me conformam e seguem na luta por um mundo menos

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AGRADECIMENTOS

À Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) representada por cada professora e funcinária.

À CAPES que possibilitou com que pudesse viabilizar esse trabalho. À Nivea Andrade que sempre paciente me (des)orientou,

À cada membro da banca que dedicou tempo na construção desse trabalho. Ao JICS e nossos encontros que muito me ensinaram.

À minha família que tanto me deu suporte.

Ao amigo Raphael Matta (Fosoca) que caminhou junto e me ajudou nas conversas sobre o mundo.

Ao amigo e “irmão de orientação” Dudu de Morro Agudo. Brabo demais. À cada estudante que sobrevive diariamente na universidade, na vida.

À Isabel Leite que sempre se faz amiga.

Ao amigo professor Dr. Denílson Oliveira porque não estaria aqui se não tivesse sido orientado por ele um dia.

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“A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?”.

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RESUMO

Esse texto busca, na escuta sensível das narrativas que expressam as sobrevivências das estudantes da Faculdade de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (FEUFF), as táticas que essas estudantes tecem para sobreviverem na/à universidade. Como produzem no - espaçotempo universitário - táticas para concluírem a graduação? Busco as sobrevivências dessas estudantes por meio de suas narrativas, de suas trajetórias temporaisespaciais de vida. Uma cartografia dessas sobrevivências. As conversas nos servirão como caminho e desvio com essas estudantes. No encontro com suas experiências vividas na universidade, minhas percepções, meus afetos estarão embolados. Em Eduardo Coutinho, Jorge Larrosa e Nilda Alves encontro as conversas como caminho. Em Michel de Certeau, dialogo com as táticas e estratégias. Ainda em Nilda Alves, a proposta de uma escrita acadêmica literaturizada. Para ideia de sobrevivência, trago Jacques Derrida, além de tentar produzir uma cartografia na perspectiva de Deleuze&Guatarri.

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ABSTRACT

This text seeks, in the sensitive listening of the narratives that express the survivals of the students of the Faculty of Pedagogy of the University Federal Fluminense (FEUFF), the tactics that these students weave to survive in / to the university. How do they produce in - university time - tactics to complete graduation? I look for the survivals of these students through their narratives, their temporal and spatial trajectories of life. A cartography of these survivors. The conversations will serve as a path and a diversion with these students. In the encounter with their experiences at the university, my perceptions, my affections will be tangled. In Eduardo Coutinho, Jorge Larrosa and Nilda Alves find conversations as the way. In Michel de Certeau, I dialogue with tactics and strategies. Still in Nilda Alves, the proposal for a literaturized academic writing. For the idea of survival, I bring Jacques Derrida, in addition to trying to produce a cartography from the perspective of Deleuze & Guatarri.

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SUMÁRIO

ENSAIO DE PLATÔ: LAMPEJOS DE SOBREVIVÊNCIAS? ... 6

ENSAIO DE PLATÔ: DESVIAR ... 31

ENSAIO DE PLATÔ: SILENCIAR ... 45

ENSAIO DE PLATÔ: TATEAR ... 55

CONCLUSÕES? PARA ONDE VÃO OS VAGA-LUMES? PLANOS VÔOS SOBREVIVENTES ... 66

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1º ENSAIO DE PLATÔ: LAMPEJOS DE SOBREVIVÊNCIAS?

Lampejos. Luzes intermitentes em meio à escuridão. A imagem do breu salpicada. A imagem dos vaga-lumes numa noite escura sempre me cativou. Nos grandes centros urbanos é difícil encontrá-los. No entanto, lembro de minha infância quando morava no interior do Rio de Janeiro e saía à caça de vaga-lumes na escuridão da noite. Hoje, andando pela mesma cidade onde os encontrava aos montes, voando e iluminando o céu intermitentemente, já não os vejo. Procuro, mas não encontro. O que aconteceu aos vaga-lumes? Morreram? Fugiram? Ainda permanecem, porém não brilham mais? Em A sobrevivência dos vaga-lumes, Didi- Huberman1 (2013) faz essas perguntas. Numa espécie de diálogo com o filósofo e

cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, Didi-Huberman vai trazendo na questão da sobrevivência uma imagem a partir dos vaga-lumes.

O discurso hegemônico desde a Grécia antiga até o capitalismo moderno, tem propositadamente, nos mostrado que tudo aquilo que é bom e agradável, vem da luz. Para isso o cristianismo desempenhou um papel protagonista. Luz é sinônimo de sabedoria, conhecimento. Assim, essa tradição traz na luz tudo o que é bom e remete à escuridão aquilo que é mau, obscuro, vazio. Em A sobrevivência dos vaga- lumes, a partir de Pasolini, encontramos outra perspectiva de enxergar a luz quando ele trata da questão do fascismo italiano.

O filósofo-cineasta representa os poderes do fascismo como refletores potentes que cegam devido a intensidade da luz que emitem. A Grande Luz - LUCE, como ele chama. E de fato, depois de me deparar com essa representação fiquei pensando e desconfio que aquilo que nos cega é a luz. A escuridão não nos cega, ela momentaneamente nos impede de ver, mas logo nossos olhos se adaptam e conseguimos enxergar. Diferentemente da luz. Quanto mais intensa, menos conseguimos ver. Essa é a Grande Luz. Do outro lado, oposto dessa luz que cega, há o que Pasolini vai chamar de pequenas luzes.

Eis que surge a imagem dos vaga-lumes. Pasolini escreve uma carta a seu amigo de adolescência, Franco Farolfi, sobre o aparecimento dos vagalumes. (DIDI- HUBERMAN, 2013, p.47). Cerca de 35 anos depois, sobretudo por conta do contexto político de seu tempo, ele escreve um artigo sobre o “desaparecimento dos vagalumes”. Se na analogia de Pasolini, o fascismo e sua força, era representado

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pela Grande luz dos holofotes, então os vaga-lumes eram a resistência contra essa Grande luz. Intermitente e com menor intensidade, os vaga-lumes iluminam sua sobrevivência. Desse modo pretendo trazer o diálogo entre Didi-huberman e Pasolini para pensar os estudantes que sobrevivem na/à universidade. Vaga-lumes que desviam, ora silenciam e por vezes tateam o espaço em que voam.

A questão do jogo das luzes, da grande luz e dos vaga-lumes, me remete ao texto em que o filósofo Silvio Gallo (2002) traz os também Filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari quando discutem a literatura escrita por Franz Kafka. Para uma

literatura menor (1997). Para Deleuze&Guattari (1997), a literatura de Kafka não se

estabelecia nos circuitos hegemônicos da língua alemã. Era uma escrita que dentro da língua alemã, encontrava outras possibilidades. Deleuze&Guattari(1997) chamam a literatura de Kafka de menor, porém “menor” não tem sentido de valor ou pelo menos não tem sentido de valor pejorativo. Não é como algo que é menor que alguma coisa. Nem tampouco uma literatura que vale menos que outra. Mas a palavra “menor”, aqui, indica uma posição menos privilegiada dentro de um sistema de enunciação que a literatura de Kafka ocupa em relação à literatura hegemônica. Gallo (2002), por sua vez, traz Deleuze&Guattari para pensar a Educação. Dialoga com os autores pensando uma “educação menor” de forma muito parecido com que Deleuze&Guattari pensaram a literatura de Kafka.

Assim, por aproximação, penso que o jogo de luzes entre a grande luz e os vaga-lumes atua numa lógica parecida. Assim como há segundo Deleuze&Guattari(1997), uma literatura maior e uma menor que se engendra dentro da literatura maior, ou como aponta Gallo (2002) uma “educação menor”, percebo que há também, me apropriando de Didi-Huberman e Pasolini, os lampejos dos vaga-lumes que não estão fora do alcance da Grande Luz, mas que dentro de seu domínio, emitem sua luminescência menor.

“Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à língua que uma minoria constrói numa língua maior”

...

“O mesmo será dizer que menor já não qualifica certas literaturas, mas as condições revolucionárias de qualquer literatura no seio daquela a que se chama grande” (DELEUZE&GUATTARI, 2003, p. 38;42)

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Portanto, “menor” não é a literatura de Kafka, nem de Sérgio Vaz1; não é a

música dos Racionais MC’s ou de Dudu de Morro Agudo2 ou muito menos, são

menores, os lampejos dos vaga-lumes. “Menor” a partir desse tempoespaço passa a designar, ao menos nesse trabalho, maneiras menores de fazer ou uma

marginalidade das práticas (CERTEAU, 2011), táticas que buscam sobrevivências.

A questão que me remete a Didi-Huberman e Pasolini nesse texto é a imagem. A imagem, que se constrói, de sobrevivência dos vaga-lumes que lutam contra a ofuscante luz dos projetos e poderes opressores. Cada vagalume que produz sua luz própria é um sobrevivente? Onde estão os vaga-lumes? Não os vemos na cidade, na universidade, por qual motivo? Morreram? Desapareceram? Ou apenas nos distanciamos demais deles? Sabemos que suas luzes são mais fracas e intermitentes se comparadas ao poder dos grandes holofotes. Será uma questão de “educar” olhar, para vermos os vaga-lumes que voam sobrevivendo na cidade, na universidade? Termos ouvidos sensíveis para ouví-los quando não brilham mas ainda voam? Essas são questões que me inquietam e me lançam na tessitura deste trabalho. Onde estão os vaga-lumes na universidade? Quem são esses vaga-lumes de quem tanto falo? Logo os apresentarei aqui, lampejando suas sobrevivências. Desviando, silenciando e tateando.

No dia em que escrevo esta frase, faz cerca de um ano que Marielle (presente!) Franco foi covardemente assassinada, Rafael Braga foi preso. O espectro do fascismo nos assombra e colegas professoras estão sendo perseguidas - uso no gênero feminino, mas incluo também os colegas – “Mas não se preocupe, meu amigo,

com os horrores que eu lhe digo. Isto é somente uma canção. A vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior (BELCHIOR, 1976).”

Procuro aqui fazer dois movimentos. O primeiro: Fugir do otimismo cego que nega a realidade perversa, injusta e violenta que estamos vivendo. O segundo: Cantar os movimentos de sobrevivência nessa mesma realidade perversa e assim cruel, injusta e por isso violenta. Refiro-me mais especificamente aos movimentos de sobrevivência dentro da universidade no curso de pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense3. Num jogo entre denúncia e anúncio

1 Poeta da periferia de São Paulo que utiliza a poesia, a palavra como arma na luta por uma sociedade menos

desigual e que toma pra si o fazer de uma poesia periférica. Talvez a proposição de Deleuze&Guattari tratando a escrita de Kafka, se aplique ao poeta Sérvio Vaz.

2 Rapper, Educador, fundador do quilombo urbano “Enraizados” em Morro Agudo, na baixada fluminense do

estado do Rio de Janeiro.

3 A partir desse momento, por uma questão prática, usarei a sigla FEUFF para me referir à Faculdade de

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vou tecer esse movimento com alguns estudantes. Como? Pretendo fazer isso conversando e percebendo como três estudantes4 do curso de pedagogia

sobreviveram na/à universidade. Como algumas estudantes, que precisam fazer um esforço demasiado para permanecerem na universidade, concluem o curso escolhido por elas? Que esforços precisam fazer para entrar na universidade? Que esforços precisam fazer para se manterem? E para concluírem? Será que concluem ou ficam pelo caminho? Será que a sobrevivência é apenas dor e sangue na universidade? Ou, há momentos de cooperação, de alegria, de bons encontros? Onde foram parar suas histórias? Suas geografias? Quem são estes estudantes? Suas experiências, onde estão narradas? Quem as ouviu? Alguém as leu?

Parece desanimador e muitas vezes realmente é, mas não o tempo todo. As narrativas que aparecem neste trabalho, são antes de tudo, prova de que há uma centelha que pulsa em cada uma das pessoas que aparecem aqui e que essa centelha as impulsiona num movimento de sobrevivência. Mas o que é sobreviver?

Para falar sobre viver, dito de outro modo, para falar de sobrevivências me apoio em Jacques Derrida e no diálogo que tecem com ele LOPES; FACINA; CALAZANS; SILVA; TAVARES (2018). Quando discutem sobre letramentos de sobrevivência num texto primoroso, apontam que:

Para nós, sobreviver, além de implicar movimento, é uma forma de criticar binarismos como viver e morrer. Derrida (1979, p. 89) argumenta que a sobrevivência está para além da dicotomia moderna viver/morrer: “o sobreviver transborda, ao mesmo tempo, o viver e o morrer, suplementando-os, um e outro, como um sobressalto e um alívio temporário, parando a vida e a morte e ao mesmo tempo”. (LOPES; FACINA; CALAZANS; SILVA; TAVARES; 2018 p.697)

Além do conceito de sobrevivência, aparece no trabalho das autoras o conceito de narrativa ao qual preciso dar alguma atenção antes de trabalhar o conceito de sobrevivência.

Há uma tradição sobretudo na moderno-colonialidade e seu modo de fazer ciência que estabelece a narrativa como reflexo, cópia fiel de uma realidade ou coisa narrada, como se narrar fosse descrever. De certo, isso acontece também com o conceito de representação, que muitas vezes é entendida como reflexo de algo ideal.

4 Falo estudantes para não usar egressos. De fato, nem todas as estudantes que conversei ainda estão

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Aqui me afasto da ideia de narrativa como espelho da realidade. Antes, entendo a narrativa assim como LOPES; FACINA; CALAZANS; SILVA; TAVARES; (2018). A narrativa enquanto performance. Assim dizem:

Compartilhamos a visão de alguns autores da antropologia (Bauman & Briggs, 1990) e da linguística (Moita Lopes, 2009; Silva, 2014) na qual narrativa é entendida como uma performance, ou seja, como o momento em que as pessoas que narram suas histórias estão relacionando “não só eventos de uma narrativa (os eventos narrados), mas também estão envolvidos na performance de quem são na experiência de contar a narrativa (o evento de narrar)” (Moita Lopes, 2009, p. 134-135). (LOPES; FACINA; CALAZANS; SILVA; TAVARES; 2018 p.682)

A proposta traz a ideia de que as pessoas ao narrarem suas histórias de vida, não apenas descrevem eventos, datas e acontecimentos de suas vidas, mas inventam, produzem, criam, ampliam, transbordam os limites de suas existências, de suas vidas. Assim, em cada narrativa, em cada performance narrativa nos embolamos naquilo que somos, junto com aquilo que pegamos do outro, do mundo. Com isso, as autoras dialogam com a ideia de entextualização e apontam que ao contarmos uma história, essa história é selecionada, recortada, moldada por tantas outras histórias. Isso me lembra um amigo e professor chamado Andrelino Campos que dizia sempre em tom de provocação filosófica: “Você não é você. Você é o produto de todas as pessoas que passaram na sua vida.” Ao contar-cantar as sobrevivências dessas estudantes conto a partir de todas as histórias e geografias que me recortaram.

Baseado também nas proposições de Deleuze&Guattari (1995, p.30) quando tratam do conceito de rizoma, entendo que, como o rizoma - falarei mais detidamente sobre rizoma quando apresentar a conversa com um estudante - a narrativa não é decalque, mas cartografia. Porque a partir das narrativas podemos mapear a realidade. Não como reflexo, mas como invenção-produção. A partir de seus

temposespaços, eventos, agenciamentos que não me importam enquanto reflexos

fiéis da realidade, mas que importam à medida que produzem sobrevivências. Assim: Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o decalque. A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. (DELEUZE&GUATTARI, 1995, p.30)

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O que me importa são as sobrevivências desses estudantes. Não busco o decalque desses estudantes, de suas experiências. Antes, pretendo mapear suas sobrevivências por meio do meu embolamento em suas narrativas até que haja um rizoma entre o que eu narro e suas histórias e geografias. Como vivem, ou onde vivem? Que trajetórias suas vidas tomaram e que trajetos tomavam para chegar à universidade? Quais percalços, quais encontros?

Se tenho tentado entender a narrativa, a partir de outras autoras e autores que me antecedem nesse intento como algo que foge à descrição da realidade, fugir da narrativa como a figura de um espelho que reflete o que mira, então preciso pensar o que esses mesmos autores e autoras apontam enquanto demandas narrativas. Em Living on/Border lines, o filósofo Jacques Derrida (1979) trata da questão da sobrevivência e da narrativa.

Para o filósofo, já que as narrativas não têm a propriedade de dizer tudo como aconteceu “à risca”, deveríamos nos perguntar: “qual é a demanda para a produção de uma determinada narrativa?” Por exemplo, a partir de qual demanda se produz uma narrativa? Uma demanda policial, escolar, amorosa etc.? Pensar qual é a demanda é compreender os efeitos de sentido que certa narrativa encena e provoca. (LOPES; FACINA; CALAZANS; SILVA; TAVARES; 2018 p.684)

Se em Derrida (1979) precisamos pensar os efeitos de sentido da narrativa, o que ela provoca, o que ela encena, trago Deleuze&Guattari (1995, p.19) quando dizem que “escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir”. Se entendermos a narrativa também como um tipo de escrita - não strictu sensu - sobretudo política, e pensarmos juntos, com Derrida, Deleuze&Guattari, podemos perceber que a narrativa é um operador que pode servir para produzir desejos, sobrevivências.

Mas quem pode falar de viver? Derrida (1979) pergunta algumas vezes.

Primeiro pergunta-se sobre a identidade de quem pergunta. Depois sobre quem

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viver? Do fluxo? Há quem esteja na outra borda da vida, na terceira margem4, pouco

vivo ou vivo o bastante? São todas perguntas que Jacques Derrida nos coloca. Mas isso ainda diz pouco sobre viver. O que é sobrevivência? Se alguém buscar uma definição exata do que é sobrevivência, já não será. Sobreviver é romper

com o binarismo morte/vida (DERRIDA, 1979, p. 89). Sobreviver é o triunfo da vida

sobre a morte que se manifesta em vida. É aquilo que se manifesta quando Belchior (1974) canta: “Ano passado morri, mas esse ano não morro.” Há aqueles que sobrevivem vivos a cada dia. Os ordinários, pessoas comuns que encontramos nos pontos de ônibus, aquelas pessoas que se dedicam a manter o ambiente da universidade limpo, aquelas “tias” que apesar da luta diária, se dedicam, muitas vezes invisíbilizadas, para ganhar o pão, “trabalhando de coração, em prol da sua

corporação, vivendo igual decoração, sua função é melhorar o ambiente pros outros”

como rima o rapper Shawlin em Afirmação de Vida (2007). Por outro lado, há aqueles que apesar de terem atravessado a terceira margem do rio, ainda se fazem presentes com suas ideias, força e luta. Não seria isso um tipo de sobrevivência? Não seria Marielle uma sobrevivente, quando todas gritam, Presente!?

Se sobreviver enquanto conceito não for uma cristalização, um conceito fixo, fechado, isso encerra toda possibilidade de conversa sobre viver? De modo algum. Isso, ao contrário, amplia a possibilidade de múltiplas concepções de sobrevivência. Para isso, pretendo trazer ao debate da sobrevivência, o que Deleuze&Guattari nos apresentam quando tratam do desejo em “O anti-Édipo”, livro de 1972.

Escrevemos o anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente (DELEUZE&GUATTARI, 1995, p.19). Este livro, como muitos das ciências

humanas, nasce como um produto (in)direto de maio de 685. Gilles Deleuze e Félix

Guattari escrevem juntos e tecem algumas críticas à psicanálise. Há toda uma tradição de estudos sobre a psicanálise e aquelas correntes que beberam nela e não cabe aqui investir tempo nessa seara. O que me seduz é a proposição de

4 Terceira margem do Rio – Conto de Guimarães Rosa conto de Guimarães Rosa (1994) que trata da

relação de um filho que vê o pai fazendo uma travessia que metaforicamente pode ser entendida como a travessia da vida para morte publicado em Primeiras Estórias.

5 O movimento de maio de 1968 foi um movimento na França que começa com a manifestação de

estudantes contra a separação entre sexo nos dormitórios de uma universidade. Soma-se a isso outros interesses e o movimento ganha proporções inimagináveis na busca de direitos contra uma espécie de conservadorismo nos costumes. Chega-se a pedir a renúncia do então presidente da França Charles Degaulle. O movimento repercutiu no Brasil. Dizem que o ano de 68 foi o ano que não acabou aludindo ao fato de ter alterado as estruturas sociais dos anos que viriam.

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Deleuze&Guattari (1972) acerca do desejo sobretudo quando ela diverge da tradição hegemônica do desejo como falta.

De certa maneira, a lógica do desejo não acerta seu objeto desde o primeiro passo, aquele da divisão platônica que nos faz escolher entre produção e aquisição. Assim que colocamos o desejo do lado da aquisição, fazemos dele uma concepção idealista (dialética, niilista) que o determina, em primeiro lugar, como falta, falta de objeto, falta do objeto real. (DELEUZE&GUATTARI, 1972, p.41)

Para o pensamento platônico, o mundo é uma cópia imperfeita de um mundo ideal. Temos aí o dualismo. Mundo real e mundo virtual. Assim o desejo em Platão é a busca por um mundo que não temos, é falta. Essa tradição não cessa de se perpetuar até que chega a Sigmund Freud. Freud chega à Édipo6 e este serve como

base para sua teoria psicanalítica. A castração, conceito fundamental para Freud e sua teoria Edipiana, aponta que a falta é um elemento central, seja por ausência de falo nas meninas ou por medo de perde-lo nos meninos. Assim, o desejo vai se instaurando numa política (do desejo) que o impõe como falta.

Por outro lado, há quem pense o desejo por de outro modo. Fora da negação, da falta. A partir de Baruch Spinoza e Friedrich Nietzsche, ambos filósofos, Deleuze &Guattari vão produzir outra forma de enxergar o desejo. Essa nova forma começa demolindo as proposições da psicanálise acerca do desejo.

Desejo: quem, a não ser os padres, gostaria de chamar isso [107] de "falta"? Nietzsche o chamava Vontade de potência. Podemos chamá- lo de outro modo. Por exemplo, graça. Desejar não é de modo algum uma coisa fácil, mas justamente porque ele dá, em vez de faltar, "virtude que dá". (DELEUZE&PARNET, 1998, p. 73)

Aqui a psicanálise é posta no divã. O que falta á psicanálise? Aqui a psicanálise passa a ser entendida como uma espécie de máquina que controla, normatiza o desejo. Assim, o desejo é sempre falta. Para Deleuze&Guattari (1972) o desejo é produção, revolução. Somos máquinas desejantes.

6 Édipo-Rei é uma história-mito grego escrito por Sófocles que narra a trajetória de um filho abandonado

devido a uma profecia de um oráculo que dizia que quando ele crescesse, mataria o pai e casaria com a própria mãe. A história se desdobra e a profecia se cumpre. Freud usa o mito para construir a base de sua teoria propondo um complexo que se estabelece no seio familiar envolvendo pai-mãe e filho.

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Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto. É o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo pela repressão. (DELEUZE&GUATTARI, 1995, p.43)

Virar a chave que aponta o desejo como falta é fundamental para entendermos como as sobrevivências se dão. Para falar sobre viver é preciso falar sobre desejo e sobreviver é muito mais que a própria vida como me disse um dia Adriana Lopes na ocasião da qualificação deste trabalho. Sobreviver é desejar e assim não posso acreditar que seja falta, castração. Antes, explosão, transbordamento. O desejo como veremos nas narrativas com os estudantes aqui, será um elemento fundamental para as sobrevivências. Desejo expresso em nossas conversas.

As conversas são ponto de partida. Conversas cotidianas mesmo. No corredor da faculdade, em um debate numa aula comum, no restaurante universitário, ou no bar. Todos, pontos de encontro, espaços de vida, onde fui percebendo elementos nas conversas - até então despretensiosas - que poderiam revelar sobrevivências nas narrativas desses estudantes.

Ah! Mas escolher os sujeitos da sua pesquisa assim é muito tendencioso! Disse

um colega geógrafo numa roda de conversa onde apresentamos nossas pesquisas. De fato, os critérios de escolha dos estudantes são subjetivos, estão no âmbito dos afetos, e isso não faz esta pesquisa menos comprometida com o rigor científico. Triste a tradição que arrancou do fazer científico, a possibilidade do afeto. Afeto aqui entendido como capacidade de afetar-se com o outro, de afastar-se de uma falsa neutralidade.

Gostaria de escrever este texto como quem conta histórias abertas, narrativas que não seguem necessariamente uma linearidade. Diferente das histórias infantis que após narradas diz se: Moral da história! Não! A intenção é produzir um texto que possa ser lido separadamente. O ocidente e a modernidade construíram para a escrita um lugar de privilegio e quase silenciaram as narrativas orais. “O progresso é do tipo escriturístico” (Certeau, 2011, p.204) para além disso, o progresso é para Walter Benjamin uma tempestade que acumula destroços. No entanto, ainda é

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preciso escrever. Portanto o caminho será diferente. Esse texto não terá capítulos propriamente ditos, mas buscando platôs. Assim pretendo produzir esse texto ensaiando os platôs de Deleuze&Guattari. Acredito ser pretencioso demais, por outro lado, por que não?

Um conceito muito caro a este trabalho é o conceito de rizoma. Como já foi explicado, investirei tempo nele mais a frente. Antes, para Deleuze&Guattari (1995) um rizoma é feito de platôs.

Um platô está sempre no meio, nem inicio nem fim. Um rizoma é feito de platôs. Gregory Bateson serve-se da palavra “platô” para designar algo muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior. (Deleuze&Guattari, 1995, p.44)

A ideia clássica de narrativa, inicio, meio e fim, com seus pontos de culminância cria uma espécie de linha reta, via de mão única na narrativa, de modo que somos obrigados a começar pelo início e terminar no final. Fora a redundância da frase anterior, o que quero dizer é que a tentativa desse trabalho é que o leitor possa lê-lo a partir de qualquer platô, exceto esta introdução. Chamamos de “platô”

toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma. (DELEUZE&GUATTARI, 1995, p.44).

Pretendo estruturar esse texto desse modo. O presente platô é onde aponto os caminhos que me trouxeram até aqui. Uma espécie de contextualização para que o leitor possa fazer suas conexões a partir daquilo que escolhi trilhar; no segundo platô, busco conversar com um dos estudantes, apresentando na figura de um personagem conceitual, o jogador de futebol que dribla, que desvia por meio de táticas e sobrevive na/à universidade; no terceiro platô, o silêncio. Quero apresentar neste momento, as conversas que tive com uma estudante e suas táticas. Silêncio faz parte do rizoma. Quem o pode apreender, fotografar ou escutar? No quarto platô, peço que feche os olhos. Não de fato, mas simbolicamente. Enxergue com as mãos ou os ouvidos. Neste platô, o tato - tatear – será o que nos guiará.

Algumas autoras e autores serão fundamentais para que eu possa seguir. Quero apresentar alguns e o que especificamente vou utilizar de cada uma e um. Basicamente, até agora tenho falado em movimentos de sobrevivência quando na verdade quero dizer táticas numa perspectiva de Michel de Certeau.

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Nas conversas, conto com o Eduardo Coutinho, Nilda Alves e Jorge Larrosa. Ainda em Nilda Alves, no movimento de produzir uma escrita acadêmica

literaturizada. Falarei mais sobre esse movimento. Gilles Deleuze, Félix Guattari,

Paulo Freire, Frantz Fanon, Angela Davis, bell hooks são referências muito caras também. Cada um com sua especificidade e suas diferenças e dissensos necessários. No entanto, nem sempre me apoiarei em fundamentos acadêmicos

stricto senso. Em um movimento de literaturização da escrita, como já deve ter sido

possível perceber, dou forma a este trabalho permitindo o atravessamento de músicas e poemas, perceptos e afectos (DELEUZE,1993), referências como Guimarães Rosa, Racionais MC's e Ferreira Gullar, Manoel de Barros.

No instante em que escrevo este trabalho, ou que ao menos aceito o desafio de enfrentar a página em branco, o Brasil passa por um momento, político-econômico- social conturbado. De repente fomos assaltados pelo fantasma vivo da “ditadura”. Desfiles com carros blindados em via pública. A verdade é que isso sempre existiu nas favelas e nas periferias do Rio de Janeiro. Lá o estado de exceção por parte do Estado nunca se deixou de fazer. Paira no ar uma espécie de bruma que carrega insegurança e medo. De repente do riso fez-se o pranto silencioso e branco como a

bruma. (Vinicius de Moraes, Soneto de separação, 1938) Por isso, uma pergunta me

persegue e inquieta: Qual é a contribuição possível que este trabalho pode se propor

nos dias atuais?

A Universidade Federal Fluminense (UFF) importante espaço de estudos, referência em muitas áreas no que diz respeito à produção de conhecimento científico, cresceu de forma expressiva, tanto em números de alunos matriculados quanto em estrutura física a partir da segunda metade dos anos 2000 até a primeira metade dos anos de 2010. Com o Reuni (BRASIL, 2007) que segundo dados do Ministério da Educação, foi um Programa de Apoio à planos de reestruturação e expansão das universidades federais, instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, a Universidade cresceu com a justificativa de ampliar o acesso e a permanência na educação superior. O Reuni foi uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). A UFF, assim como outras instituições de ensino superior, adotou uma política de expansão sendo pioneira na interiorização para outros municípios do estado do Rio de Janeiro, como Angra dos Reis, cidades do Noroeste fluminense e região dos lagos.

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Desse modo a Universidade, que possuía um quantitativo de aproximadamente 4 mil matrículas em 2005, saltou para mais de 9 mil em 2013. Dos 69 cursos em 2005, para 125 na graduação em 2013, além de um aumento 180 mil metros quadrados de área construída entre 2007 e 2014 (RELATÓRIO DE GESTÃO/UFF, 2014).

Sem dúvida, ampliou-se a estrutura da universidade, seus espaços físicos, números de matrículas, quantidade de estudantes com renda baixa, não sem o aumento da precarização de condições de trabalho e estudo, como tem sido denunciado frequentemente pela Associação de professores da UFF (ADUFF)7. Não

há como negar que a ampliação da universidade é considerável, sobretudo num país onde estudar é um privilégio, não um direito. Mas o que me inquieta é: como vivem esses estudantes que acessaram a universidade após essa política de expansão, sobretudo os estudantes do curso de pedagogia? Que o acesso, de alguma forma foi ampliado não há dúvida, porém como se deu e como se tem dado a permanência desses estudantes?8

A porta da universidade foi aberta e ampliada, logo houve uma grande entrada, sobretudo de estudantes da classe trabalhadora. No entanto, permanecem estes estudantes na universidade? Se sim, como permanecem?

Para EZCURRA (2011), há na universidade uma espécie de porta giratória. Sabe, como aquelas que encontramos nos bancos? A porta do banco, todos sabemos quem controla. Geralmente um segurança, com um controle remoto, permite ou não, a entrada no banco – claro, numa sociedade racista como a nossa, geralmente há um “tipo ideal” a ser barrado na porta da agência bancária. Mas na porta da universidade, o processo é um tanto mais complexo. Há quem não consiga entrar, por muitos motivos. Materiais e imateriais. Mas há também aqueles que não são barrados fisicamente, porém não conseguem entrar de fato e nem sair. Ficam girando na porta. Não estão dentro, nem fora. Estudantes que levam o dobro de tempo para concluir o curso, ou abandonam por não conseguirem conciliar estudo-trabalho. No fundo,

7 http://aduff.org.br/site/

8 Para um estudo aprofundado sobre a questão do acesso e permanência indico EZCURRA, A. M. Os

estudantes recém-ingressados: democratização e responsabilidades das instituições universitárias. In: PIMENTA & ALMEIDA (Orgs). Pedagogia Universitária. São Paulo, EDUSP, (2009). Masificación y ensenãnza superior: uma inclusión excluyente. Algunas hipótesis y conceptos clave.En: LAMARRA, Norberto Fernandez y Paula, Maria de Maria Costa (Compiladores). La democratización de La educación superior em América Latina. Argentina: EDUNTREF, 2011, pois não é intenção aqui fazer um debate vertical acerca dessa questão.

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penso que um dos debates centrais aqui, seja o da permanência universitária a partir das perspectivas dos estudantes, de suas sobrevivências.

No campo das pesquisas com os cotidianos, há um fazer próprio, como em qualquer outro campo. Assim, o debate sobre permanência a partir desse lugar se fará de uma maneira própria, reconhecendo, porém, que outros grupos de pesquisas já acumulam muitos debates nessa temática. Nomes como as professoras Hustana Vargas (2008), Ana Maria Ezcurra (2009), entre outras.

Neste sentido, não pretendo escrever o trabalho que irá revolucionar o mundo. Não sou dado a essas ideias. Por outro lado, se puder escolher uma serventia pra esse texto é que ele sirva como uma espécie de alerta e incentivo. Que de alguma forma, as pessoas que pegarem este trabalho possam perceber nos estudantes que aqui terão suas histórias e geografias narradas, movimentos de sobrevivência, táticas, e que isso sirva de alguma forma para nos fazer continuar a caminhada.

Este trabalho tenta servir para que o esforço que esses estudantes produzem para sobreviverem à/na universidade seja mais percebido. Não seria preciso considerar toda trajetória de vida e espacial desses estudantes? Quem ignora a singularidade de cada estudante, seus dilemas e sua odisseia diária na tentativa de conciliar, por exemplo, trabalho e estudo, não ignora também suas sobrevivências? Mas que estudantes são esses?

Escolhi estudantes do curso de pedagogia da Universidade Federal Fluminense porque criei afetos por esse espaço, por esses estudantes, quando cursei uma especialização em alfabetização e agora o mestrado em educação.

A universidade, ou melhor, uma parte hegemônica dentro dela, ainda tem se estabelecido como espaço da única versão acerca do mundo. Numa visão metonímica de mundo, tenta definir o todo pela parte. Assim, o mundo se reduz à uma caricatura malfeita daquilo que nos é apresentado como padrão. Tudo aquilo que não segue o padrão universalizante - estético - eurocentrado, moderno-colonial é negado ou possui valor secundário no espaço da universidade. E a modernidade, ou melhor, a moderno-colonialidade é um elemento central nesse debate.

Moderno-colonialidade é um padrão de poder e a partir do século XV, como nos explica Anibal Quijano (2005), dá-se o estopim da construção desse padrão. Nesse momento, inaugura-se um novo mundo, pois pela primeira vez na história, o mundo passa a ser visto como uma totalidade planetária. Quijano (2005) aponta que nasce neste momento uma história mundial com base na conquista e expropriação

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de outros povos. Há uma espécie de movimento visando a conquista e dominação de povos e acúmulo de suas riquezas naturais e simbólicos. Não só as riquezas materiais mas os saberes e práticas dos povos originários. Nomeiam o que é arte e o que é artesanato; o que é cultura e o que é mito/lenda; o que é religião e o que é seita; o que é povo/cidadão e o que é tribo.

Há toda uma geografia do conhecimento que descarta e invisibiliza saberes, hierarquizando culturas, criando assim uma epistemologia - um conjunto de conhecimento que constituem a cultura - marcada (o) por uma disputa de poder que é mascarada, fazendo com que o conhecimento hegemônico seja considerado “natural”. A ideia de geografia do conhecimento, proponho a partir da ideia de Walter Mignolo (2003) quando propõe que há na moderno-colonialidade uma “geopolítica do conhecimento”. Prefiro usar o termo “geografia do conhecimento” porque, antes de tudo, há uma divisão espacial, logo também política, mas sobretudo espacial do conhecimento, definindo qual conhecimento possui valor e qual não possui.

Desse modo, grupos historicamente subalternizados precisam produzir táticas para sobreviverem na/à universidade. Portanto, falo aqui de alguns séculos de epistemicídio e opressão que formaram os pilares da universidade. Ou seja:

Assistiu-se, assim, a uma espécie de epistemicídio, ou seja, à destruição de algumas formas de saber locais, à inferiorização de outros, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do colonialismo, a riqueza de perspectivas presente na diversidade cultural e nas multifacetadas visões do mundo por elas protagonizadas. (SANTOS, 2009, p.183)

Porém, a vida em sua potência criadora encontra maneiras de burlar esses mecanismos opressores e desiguais. Sendo assim, neste trabalho aparecerão mais os movimentos que os estudantes produzem para sobreviverem na/á universidade, os lampejos dos vaga-lumes. Trago a noção de tática proposta por Michel de Certeau (2011) em “A invenção do cotidiano” e a ideia de sobrevivência trabalhada por Jacques Derrida em “Living on/Border lines, Diário de bordo e a imagem dos vagalumes de Georges Didi-Huberman (2011) em “A sobrevivência dos Vagalumes” para trabalhar a questão das táticas e sobrevivência.

Gostaria de ter tido pernas para poder ter caminhado mais longe nesse intento, o de encontrar tantos estudantes que sobrevivem na/à universidade que me ajudasse a formar a imagem dos vaga-lumes. Não consegui. O mestrado impõe uma lógica

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ano do mestrado, total de dois, fiz 5 disciplinas sendo que ao final desse ano qualifiquei este trabalho. Como produzir uma pesquisa - artesanal - lutando contra o tempo-espaço? Como encontrar tantos estudantes, tantos vaga-lumes? Como ouvir tantas narrativas afetar-se e ainda correr? Pasolini um dia pensou terem desaparecidos os vaga-lumes. Que triste afirmação, negar a sobrevivência! Aqui, apesar de não ter tido tempo de encontra-los, aos montes estão na universidade. Voam, desviam, gritam, silenciam. Ora se escondem, ora se mostram. As vezes é preciso vê-los com os ouvidos voando. Aqui aparecerão apenas três desses vaga- lumes. Seus lampejos de luz ainda que fracos e intermitentes produzem sobrevivências.

Desse modo, minha intenção é perceber as táticas que esses estudantes tecem para sobreviver na/à universidade. De que maneira esses estudantes produzem movimentos em suas trajetórias para burlarem essa lógica opressora que muitas vezes se manifesta na universidade? Que caminhos tomam para chegarem e saírem da universidade? Portanto o que me instiga e me impele a investigar é:

De que maneira a vida escapa? De que maneira ela encontra rachaduras e estalos nas relações de poder para escancarar? De que maneira ela produz movimentos e deslocamentos? Quando parece que o poder se acercou de tudo que constitui a vida, que está tudo submetido, a vida se revela em sua potência indomável e em sua capacidade de luta, como um contraponto, como uma resposta – e esse “responder” não significa uma simples reação, “já que o que se vai constatando é que tal potência de vida já estava lá desde o início (PELBART, 2003, p. 21).

De que maneira a vida desses estudantes escapa dos mecanismos de opressão, do olhar panóptico, das pedradas e palavras que fazem desanimar a caminhada? O que há em cada estudante que os impele a espreitar e esperar a melhor oportunidade para que a sobrevivência se afirme? De que maneira a vida por meio do desejo se manifesta?

Essa pesquisa que será tecida no caminho e no desvio, a partir das conversas com os estudantes, talvez me aponte como a vida escapa ou como os estudantes sobrevivem. Se tecem redes de cooperação entre si e como as tecem. Ou seja, como se dão esses movimentos, ou não-movimentos porque as vezes ficar parado ou em silêncio (silenciar é agir) é um modo de sobreviver como veremos no relato de uma estudante. Para isso, em conversas com minha (des)orientadora Nivea Andrade - digo

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(des)orientadora para relativizar o trabalho de orientação pois muitas vezes saí e saio das nossas conversas com ideias e outros caminhos com os quais eu não havia percebido - encontramos essas duas perguntas que disparam a conversa sem que enclausure a narrativa. O que te trouxe aqui e como chegaste aqui? Quando pergunto: Há uma espécie de jogo entre o material e o simbólico, entre a prosa e a poesia quando faço essas perguntas. Como se a primeira parte da pergunta implicasse numa trajetória de vida e a segunda numa trajetória espacial. A esses movimentos que visam a sobrevivência eu quero, apoiado em Certeau, chamar de táticas. Mas o que são táticas? Michel de Certeau (2011) define tática como:

[...] um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base para capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias (CERTEAU, 2011, p.46)

Imaginemos uma pessoa perdida num deserto escaldante. Mas o que isso tem a ver com as táticas? Chegarei lá, peço só um pouco de paciência. Imagine que essa pessoa que vaga no deserto perdida, a esmo, esteja sedenta e delirante pela ação do sol até que acha um poço. Sim. Um poço em meio ao deserto. O poço não lhe pertence e nem ao menos ela sabe se há água nele. Mas no poço há uma bomba daquelas mecânicas que movimentamos para buscar água. A pessoa bombeia e nada sai do poço. Repete por horas esse movimento sem saber se uma hora sairá água, muitos menos quando sairá. Mas vigilante a pessoa se mantém, persevera na esperança que a água venha. Até que vigilante, percebe uma gota, duas gotas. Um fio bem fino de água sai da torneira. O fio aumenta até que sai água bastante para saciar a sede e se refrescar. Não há recipiente para acumular ou reter a água para usá-la depois. Só cabe o uso naquele momento sem saber quando e se terá água novamente. Depois de saciada a sede. Só cabe vigiar para que, se houver outra ocasião, ela seja aproveitada. Assim, se dão as táticas. É na vigilância do momento oportuno que as táticas se tecem, mas como a água que não pode ser reservada, as táticas também não podem guardar nada. Assim, o tempo oportuno é um elemento fundamental das táticas.

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Além das táticas, há segundo Certeau (2011) o que ele chama de estratégias. As estratégias são “ações que graças ao postulado de um lugar de poder elaboram lugares teóricos”, enquanto as táticas são “procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo” (CERTEAU, 2011, p.96). Essa suposta dicotomia entre espaço- tempo é algo que não terei tempo-espaço para me debruçar, mas desconfio que uma superação da dicotomia não prescinde de um debate sobre as relações de poder.

Minha intenção, neste trabalho, é além de identificar movimentos ou não- movimentos, essas táticas, é tentar mapeá-las. Tecer, a partir de cada ponto, uma malha que nos dê a possibilidade de visualizar um pouco de como cada estudante sai um pouco do anonimato e se apropria desse espaçotempo para chegar até a universidade e como vivem na/à universidade.

A cartografia aqui mais tem a ver com o campo das ciências humanas e sociais do que com as ciências cartográficas de mapeamento físico dos espaços. A ciência cartográfica tem seu lugar, sua importância. Traçar mapas, delimitar espaços, produzir fronteiras, planificar. No entanto, não farei isso aqui. O cartografar na perspectiva de Deleuze&Guattari é um método. “É um dos princípios do rizoma.

“Princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo.” (Deleuze&Guattari, 1995, p.29). O mapa da

cartografia de Deleuze&Guattari não é decalque, antes é produção, não é reflexo da realidade. A intenção aqui é fazer o mapa que produz o emaranhado e o desemaranhado das táticas desses estudantes na/à universidade.

Trata de movimentos, trajetórias de vida que se estabelecem em relações de poder. Essa territorialidade é o que interessa. As disputas entre forças, lutas por sobrevivência dos mais fracos contra os mais fortes. O que se busca cartografar são, táticas que buscam sobrevivência. A luta por sobrevivência não é linear, não possui hora marcada, nem inicio, meio ou fim. Sobreviver é rizoma. Assim, se a sobrevivência se dá numa perspectiva rizomática, a cartografia talvez possa seguir no sentido de perceber alguns desses desvios.

Desemaranhar as linhas de um dispositivo é, em cada caso, traçar um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que Foucault chama de ‘trabalho de terreno’. É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas, que não se contentam apenas em compor um dispositivo, mas atravessam-no, arrastam-no, de norte a sul, de leste a oeste ou em diagonal. (DELEUZE, 1996, p.1)

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Resumindo, para tentar cartografar - ou “desemaranhar as linhas” da sobrevivência - de alguma forma esses movimentos, essas táticas, pretendo narrar diferentes trajetórias. Espaciaistemporais. Trajetórias de vida. Práticas. Aquilo que Michel de Certeau vai chamar de maneiras de fazer (CERTEAU, 2011) de estudantes que tecem suas vidas e que lutam para sobreviverem na/à universidade. Para isso, vou ao encontro desses estudantes, desses personagens. Personagens conceituais. Mas o que são personagens conceituais?

Aprendi com Deleuze&Guattari (1993) que a filosofia, diferente da arte e da ciência, produz conceitos. Mas o que são conceitos? Entendo com Deleuze&Guattari (1993) que o conceito é um operador, algo que faz acontecer. Um dispositivo ou ainda, um agenciamento. Mas isso ainda elucida pouco sobre. O conceito não é uma definição sobre algo, mas uma ferramenta que serve para enfrentar questões- problemas da vida. A filosofia em Deleuze&Guattari foge a ideia grega clássica do filósofo como um contemplador, pensador estático. Aqui, o filósofo cria conceitos a partir de elementos predispostos em seu plano de imanência que permitem enfrentar questões da vida cotidiana. De fato, não sou filósofo, mas busco nessa perspectiva de filosofia elementos que me ajudem a pensar a produção de táticas pelos estudantes para sobreviverem.

A partir da criação de conceitos, aparece em Deleuze&Guattari, a figura do personagem conceitual. Se o filósofo cria conceitos que são ferramentas para enfrentar as questões que surgem no cotidiano, é por meio dos personagens conceituais que o filosofo elabora esses conceitos. Assim, o personagem conceitual é um heterônimo do filósofo e o nome do filósofo é um pseudônimo do personagem conceitual. Como assim? Os personagens conceituais são agentes de enunciação do filósofo (Deleuze&Guattari, 1993, p.86). É por meio dos personagens conceituais que o filósofo encontra forças e coragem para enfrentar os problemas. A filosofia não cessa de nos apresentar personagens conceituais: Zaratustra em Nietszche, Socrates em Platão, Sísifo em Camus.

Os personagens conceituais são os "heterônimos" do filósofo, e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens. Eu não sou mais eu, mas uma aptidão do pensamento para se ver e se desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares. O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificação abstrata, um símbolo ou uma alegoria, pois ele vive, ele insiste.

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Assim, os personagens conceituais são verdadeiros agentes de enunciação. Quem é Eu? É sempre uma terceira pessoa (Deleuze&Guattari, 1993, p 86).

Como operar conceitos e personagens conceituais fora da filosofia? Um desafio se instaura. A tentativa é dialogar com a filosofia e por meio das conversas, no campo dos estudos-pesquisas com os cotidianos, nesse caso, com as estudantes. Assim, cada estudante que aparece nesse trabalho é também um personagem conceitual pois manifestam territorializações, desterritorializações e reterritorializações. Táticas. De fato, os estudantes são pessoas reais, mas aqui assumem o lugar de personagens conceituais. Há muitos efeitos de suas trajetórias, mas procuro embolar-me com eles e não analisar esses efeitos, mas a partir das conversas, busco narrar a partir de minhas percepções. Aqui, me aproprio de alguma forma das narrativas desses estudantes, com o compromisso ético com suas trajetórias, mas sem a necessidade de analisar, descrever e transfigurar suas sobrevivências.

Como? De que maneira a vida em sua cotidianidade, em seu espaço banal, encontra as rachaduras na carapaça do poder? Que tipos de trajetórias, de práticas apontam essa sobrevivência? Quando toda circunstância diz que não, o que (im)pulsiona - pulsão de vida - esses estudantes a sobreviverem? Que potência?

Há quem possa dizer que sobreviver não basta. De fato, sobreviver para muitos é menos do que a potência máxima do humano pode vislumbrar. No entanto, "[...]enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescente, fazem o carnaval” como diz Caetano Veloso (1984). Aqui começo a me distanciar da ideia que percebe a sobrevivência como um “sub viver”.

Pela experiência nesses poucos anos de vida que carrego comigo, tenho percebido que há algo de indestrutível na vida. Há um núcleo, um movimento para

ser mais (FREIRE, 1983, p.42), para ocupar o que o que o médico e pensador

martinicano Frantz Fanon (1952) vai chamar de “zona do ser”9 em seu livro clássico

“Peles negras, máscaras brancas”.

É importante apontar o que FANON (1952) propõe enquanto zona do ser e zona do não ser. É uma espécie de mecanismo que separa, em cada zona, os que

9 Para um debate acerca da “zona do ser e não ser” podemos buscar Ramón Grosfóguel. La

descolonización del conocimiento: diálogo crítico entre la vision descolonial de Frantz Fanon y la sociologia descolonial de Boaventura de Sousa Santos. 2012 (23 set. 2016).

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são considerados humanos e os que são considerados não-humanos segundo esse padrão de poder que é o racismo no processo de colonização do continente africano e americano. Segundo essa lógica, os que ocupam a zona do ser, possuem humanidade, privilégios devido a sua raça, cor, origem, religião, orientação sexual, gênero, classe. Mas os que ocupam a zona do não ser, não são. Não possuem direitos, muito menos privilégios devido a raça, cor, origem, religião, orientação sexual, gênero, classe. Ainda, essas zonas não são fixas, cristalizadas. Há uma certa fluidez e transição entre as zonas. Hora pode-se estar na zona do ser, Hora na zona do não ser.

Então, lhes digo: A minha intenção aqui, é a partir do encontro com esses estudantes e suas narrativas, expor o tecido, retalhos costurados desse encontro. Tentarei decifrar ou interpretar a complexidade das trajetórias e sobrevivências das estudantes? De modo algum. A partir de suas narrativas, de nossos encontros, vou narrar aquilo que vi, escutei. Será o real? Não! Mas busco com todo compromisso ético ser o mais fiel possível, não como transfiguração da realidade deles, mas como diálogo entre mim e eles. Haverá fatos, mas também percepções que se tecem no jogo dos encontros, das conversas. Assim, penso que as sobrevivências podem ser intercambiáveis, narradas e pela narrativa podemos tentar apreender algo do outro, mas sempre mediado pelos nossos sentidos, nossa posição no mundo. Do contrário, não acredito que as experiências possam ser transferidas e captadas inequivocamente. Como diria Fernando Pessoa: “Nada sabemos da alma senão da nossa; as dos outros são olhares, são gestos, são palavras, com a suposição de qualquer semelhança no fundo.” (FERNANDO PESSOA, 1995).

Mas como vou buscar essas narrativas? A partir de que lugar? Não sei se existe, de fato, uma forma melhor, mas a escolha que faço é pela conversa. Para CERTEAU (2011, p. 47) “a conversa é uma prática cotidiana que produz sem capitalizar”, assim uso a conversa aqui como tática.

Desse modo, por que as conversas e não as entrevistas? Porque penso que as conversas possibilitam que as sobrevivências, por meio das narrativas, se intercambiem de forma menos estruturada, rígida. As entrevistas, por seu caráter mais estruturado, podem direcionar para uma espécie de busca pela “minha verdade” ou “aquilo que quero comprovar”. Além disso, nas pesquisas com os cotidianos não há a afirmação da suposta separação entre sujeito/objeto, antes, nas pesquisas com os

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devemos cair na objetificação de pessoas sobretudo nas pesquisas acadêmicas. Assim, a conversa segundo Larrosa (1999) não é algo que você faz, mas algo em que você entra, se insere, mergulha.

Além disso, nunca se sabe aonde uma conversa pode levar...uma conversa não é algo que se faça, mas algo no que se entra...e, ao entrar nela, pode-se ir aonde não havia sido previsto...e essa é a maravilha da conversa...que, nela, pode-se chegar a dizer o que não se queria dizer, o que não sabia dizer, o que não podia dizer... ...

E, mais ainda, o valor de uma conversa não está no fato de que ao final se chegue ou não a um acordo....pelo contrário, uma conversa está cheia de diferenças e a arte da conversa consiste em sustentar a tensão entre as diferenças...mantendo-as e não as dissolvendo...e mantendo também as dúvidas, as perplexidades, as interrogações...e isso é o que a faz interessante...por isso, em uma conversa, não existe nunca a última palavra...por isso uma conversa pode manter as dúvidas até o final, porém cada vez mais precisas, mais elaboradas, mais inteligentes...por isso uma conversa pode manter as diferenças até o final, porém cada vez mais afinadas, mais sensíveis, mais conscientes de si mesmas....por isso uma conversa não termina, simplesmente se interrompe...e muda para outra coisa...(LARROSA, 2003, p.212/213).

De fato, há entrevistas menos ou mais estruturadas. Mas as perguntas que faríamos caso entrasse pela vereda da entrevista, poderiam servir para sustentar uma premissa já definida na pesquisa. Isso seria muito prejudicial para aquilo que quero tecer. A conversa abre uma possibilidade de disputa acerca da realidade como aponta Jorge Larrosa (2003). Há uma espécie de imprevisibilidade que a lógica da conversa traz consigo. Isso não quer dizer que não haverá sistematização alguma, mas que o espaço estará aberto para aquilo que queremos e aquilo que não queremos ouvir.

Melhor dizendo, o caminho estará aberto para ouvirmos aquilo que nem desconfiamos que possa vir à tona. Numa conversa sem perguntas fechadas, há possibilidades de linhas de fuga. Compreendo com Deleuze&Guattari (1995), que estas são aquelas linhas que escapam da tentativa totalizadora e produzem outras possibilidades. Busco as conversas como caminho porque não quero a “verdade” – o real, mas a verdade desses estudantes embolada com a minha.

Nas conversas com esses estudantes, suas trajetórias de vida, suas experiências vão aparecendo. Nas conversas aparecem as famílias desses

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estudantes, suas histórias, medos e angústias. Suas potências, seus afetos. Como por consequência, assim se manifestam aquilo que é meu também. Em um estilo inspirado nas conversas de Eduardo Coutinho,10 busco essas experiências.

Em seus filmes, Coutinho, por meio de conversas buscava as histórias das pessoas comuns. Foi um dos integrantes do movimento do Cinema Novo - movimento brasileiro crítico de vanguarda - e dentre muitos títulos de suas obras destaco “Cabra marcado para morrer”(1984), “Edifício Master” (2002) e “Jogo de cena” (2007)

Eu acho que, simplesmente, as pessoas contam as coisas, não só memórias, para dar sentido à vida. Tem até filósofos e sociólogos que dizem isso, que a pessoa tem que ser justificada, legitimada e falar ao outro é se legitimar enquanto destino, enquanto singularidade (COUTINHO, Sangue Latino, 2015).

Coutinho dizia que narrar é dar sentido à vida, que as personagens de seus filmes se justificam e legitimam-se a partir de suas narrativas. Os temas dos filmes de Eduardo Coutinho sempre visavam as histórias das pessoas comuns: metalúrgicos do ABC paulista, moradores de um prédio localizado em Copacabana, bairro da cidade do Rio de Janeiro entre outros.

“Sobreviver é, por conseguinte, fugir ou romper o anonimato do qual a linguagem é apenas sintoma; é restaurar a luta sobre a qual se articula uma ordem.” (CERTEAU, 1995, p.92) Se para CERTEAU sobreviver é ruir, quebrar o anonimato, entendo que talvez narrar-se, representar o mundo - o próprio mundo - seja uma maneira de produzir táticas e sobrevivências, ao narrarem suas experiências, os estudantes ou os personagens dos filmes de Eduardo Coutinho saem do anonimato, rompem ainda que momentaneamente com essa invisibilização. Se sobreviver é quebrar com o anonimato, seja na vida, seja nos filmes, seja na universidade, ao narrarem suas experiências essas pessoas tecem táticas para sobreviverem, na universidade, nos filmes de Coutinho, na vida.

A conversa tem sido cara para meu movimento enquanto pesquisador, como canta Gal Costa: “pois é preciso estar atento e forte” (VELOSO & GIL,1968). Atento porque a conversa como caminho-desvio exige uma escuta sensível (BARBIER, 1997) e forte pois cada experiência narrada por esses estudantes me afeta e nem sempre são afetos alegres. Às vezes, as afetações são duras, são tristes. Mostram

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uma realidade dura que expõe a desigualdade desse mundo. Por isso, é preciso também ser forte. Por meio dela, da conversa, me embolo e teço a rede de encontros que me ensinam. Conversa como caminho e como desvio desse caminho, assim tenho aprendido com Eduardo Coutinho, Nilda Alves e Jorge Larrosa.

A tradição hegemônica da pesquisa acadêmica tem nos mostrado certa hierarquia entre pesquisador e objeto de pesquisa como se o pesquisador, de alguma forma, tivesse o objetivo, a capacidade de desvendar o universo complexo daquilo ou daquele que é pesquisa (do). Há dentro dessa lógica, movimentos horizontais. Há movimentos que buscam, dentro da limitação que a pesquisa acadêmica impõe, apontar que não há objetos de pesquisa, sobretudo quando esses supostos “objetos” são pessoas.

Assim, entendo que a nossa pesquisa - digo nossa, não como fuga a uma primeira pessoa na escrita, mas porque ela - a pesquisa - não se faz em monólogo, antes em colaboração no diálogo e na escuta do/com o outro - que nossa posição de pesquisador não pode construir ou reproduzir hierarquias desiguais de poder. Sobretudo no campo de pesquisa de onde falamos, Estudos Dos Cotidianos Da Educação Popular - Cotidiano e Educação, optamos preferencialmente por buscar romper a dicotomia entre sujeito/objeto. Isso nos levanta uma perspectiva política do fazer pesquisa. O movimento deve ser tecido numa perspectiva rizomática. E novamente busco o rizoma.

Para DELEUZE & GAUTTARI, (1995) rizoma é um conceito proposto que contrapõe a perspectiva arbórea na concepção de mundo. Verticalizada, Raiz, tronco e copa. Numa perspectiva rizomática não há linha reta. Não podemos mais apostar em compartimentos, o rizoma se espalha. Não há motivos para seguir uma linha reta, um método cartesiano. As linhas tortas se ligam, se confundem, se espalham, alastram. As conexões se multiplicam, logo, a intensidade também. Aí sim temos a chance de criar novos sentidos, micro-conexões se difundindo, se diluindo, se confundindo, se disseminando. “A questão é produzir inconsciente e, com ele, novos

enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo

(DELEUZE & GAUTTARI, 1995, p.27).

Para Deleuze&Guattari(1995) escrever, pouco ou nada tem a ver com significar, mas, antes, escrever é cartografar, agrimensar regiões ainda por vir. Por isso a perspectiva rizomática nos é importante. Há no rizoma alguns princípios: “1º e 2º princípios de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode

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ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo”; “3º princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade. Que ele não tem mais relação com o uno...” “4º princípio de ruptura assignificante e 5º e 6º princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural gerativo.”

Quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se move e produz. Toda vez que o desejo segue uma árvore, acontecem as quedas internas que o fazem declinar e o conduzem à morte; mas o rizoma opera sobre o desejo por impulsões exteriores e produtivas (DEULEUZE&GUATTARI, 1995, p. 32)

Rizoma é possibilidade infinita. Explode em desejo de ser mais. Não há raiz que fixe. Se um rizoma se enraíza, acaba. Não há mais desejo. Isso pressupõe que não haja disputas e conflitos na construção da pesquisa? De modo algum. Pessoas são complexas e tecem suas trajetórias de formas particulares, de modo que não poderíamos, ainda que quiséssemos desvendá-las, por isso, vocês verão aqui, muitas vezes que aquilo que os estudantes dizem será o extremo oposto do que eu queria “provar”. Fugas das linhas. Rizoma. Se entendo que a pesquisa é um movimento político e pretendo construir esse movimento de forma rizomática, os desvios devem fazer parte.

Depois de apontar alguns caminhos da pesquisa, apontar alguns movimentos, quero agora apresentar alguns dos estudantes do curso de pedagogia que escolhi conversar. João, Maria e Rita. Cada uma delas e ele possui uma trajetória distinta e singular, nos aspectos privados da vida cotidiana e no cotidiano da universidade, porém há algo que costura todas as trajetórias. A sobrevivência é um elemento central na vida de cada estudante que aqui se apresenta.

Dito isso, escolhi três estudantes do curso de pedagogia da FEUFF. João, Maria e Rita. De fato, são nomes escolhidos por mim para chama-los pois há questões aqui tratadas que implicam certa cautela. Vou chamá-los de estudantes, porque todas são professoras e nós professores somos sempre estudantes. Por outro lado, quero dizer que cada um está num momento de sua trajetória acadêmica e que não necessariamente ainda são estudantes de graduação, do curso de pedagogia. Mas chamá-los de estudantes expõe uma questão política de afirmar o professor enquanto pesquisador que não cessa de estudar e outra questão prática para escrita

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desse texto. Agora, necessito contar um pouco como os conheci e como viraram colaboradores centrais neste trabalho.

Primeiro tive contato com João e Maria. Algum tempo mais tarde, encontrei Rita. Os dois primeiros foram estudantes do curso de pedagogia da UFF e após concluírem o curso, seguiram estudos na própria faculdade. Rita ainda cursa a graduação em pedagogia enquanto esse trabalho é construído. Pelas três, adquiri um carinho e ao conhecer um pouco de suas sobrevivências, respeitei ainda mais cada uma. Cada uma possui uma trajetória singular, complexa, rica e densa como fica exposto nas narrativas que virão.

Vou seguir a ordem dos encontros. Como foi com João que fiz o primeiro contato, logo a primeira conversa, vou começar narrando o nosso encontro, em seguida conto melhor como conheci a Maria e Rita e o que se deu dos nossos encontros também.

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