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Os espelhos do jaguar e o que seus olhos viram na outra margem do rio : repensando o discurso científico sobre as línguas indígenas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA

LAÍSA FERNANDES TOSSIN

OS ESPELHOS DO JAGUAR

e o que seus olhos viram na outra margem do rio.

Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas

Campinas 2017

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OS ESPELHOS DO JAGUAR

e o que seus olhos viram na outra margem do rio.

Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística, do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito para a obtenção do Título de Doutora em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela

aluna Laísa Fernandes Tossin e orientada pelo Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães.

Campinas 2017

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Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem

Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The jaguar's mirror and what his eyes saw on the other bank of the river : rethinking the scientific discourse on indigenous languages

Palavras-chave em inglês:

Indian languages - Discourse analysis Linguistic ideas - History

Designation (Linguistics) Semantics of the event Linguistics - Research Public archives - Brazil

Universities and colleges - Brazil Área de concentração: Linguística Titulação: Doutora em Linguística Banca examinadora:

Eduardo Roberto Junqueira Guimarães [Orientador] Lauro Baldini

José Horta Nunes

Gersem José dos Santos Luciano Isadora Machado

Data de defesa: 20-06-2017

Programa de Pós-Graduação: Linguística Tossin, Laísa Fernandes, 1972-

T639e TosOs espelhos do jaguar e o que seus olhos viram na outra margem do rio. repensando o discurso científico sobre as línguas indígenas / Laísa

Fernandes Tossin. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

T Orientador: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães. Tos

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Línguas indígenas - Análise do discurso. 2. Ideias linguísticas - História. 3. Designação (Linguística). 4. Semântica do acontecimento. 5.

Linguística - Pesquisa. 6. Arquivos públicos - Brasil. 7. Universidades e faculdades - Brasil. I. Guimarães, Eduardo,1948-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

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Comissão Examinadora

Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

Orientador (Presidente)

Dra. Isadora Lima Machado – Universidade Federal da Bahia

Dr. Gersem José dos Santos Luciano – Universidade Federal do

Amazonas

Dr. José Horta Nunes – Universidade Estadual de Campinas

Dr. Lauro José Siqueira Baldini – Universidade Estadual de Campinas

Suplentes

Dr. Eduardo Alves Vasconcelos – Universidade Federal do Amapá

Dr. Claudia Freitas Reis – Instituto Federal de São Paulo – Araraquara

Dra. Alcida Rita Ramos – Universidade de Brasília

A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora,

consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Portanto, usei o procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck. Para o corpus, foram escolhidas fontes primárias e textos clássicos. Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um cenário histórico concreto. Para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do Discurso, como proposta por Eni Orlandi. Para entender as relações entre o acontecimento histórico e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães. O que este tipo de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao mesmo conjunto de categorias e conceitos. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, e proponho que deste convívio teria surgido uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não havia uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção lexical.

Palavras-chave: História das ideias linguísticas; História dos conceitos; Discurso científico sobre Línguas Indígenas.

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this work is positioned in the History of Linguistic Ideas, as a History of Concepts. Therefore, I used the methodological procedure provided by Reinhart Koselleck. For the corpus were chosen primary sources and classic texts. For each linguistic assertion present in the sources, a concrete historical scenario was presented. For the interpretation of the texts, I used Discourse Analysis, as proposed by Eni Orlandi. In order to understand the relations between the historical event and the descriptions that are established as discursive memories later, I have used categories of the Semantics of the Event as elaborated by Eduardo Guimarães. What this type of interpretation demonstrated was an imperious rigidity of accommodating reality to the same set of categories and concepts. I examine the Tupi language, or General Language, from the point of view of the multiethnic and multilingual coexistence favored by the settlements and the simultaneous slavery of blacks and indians, and I propose that from this coexistence have arisen a Cryola language, influenced by Quimbundo, Angola language, and indigenous languages, but where there was no indigenous language previously existing on the Brazilian coast. This is an argument against the establishment of language families based on lexical retention.

Keywords: History of Linguistics ideas; History of concepts; Cientific discourse about Indigenous languages.

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1.1 Objetivo da tese ...17 1.2 Coleta de dados ...18 1.2.1 Os acervos ...19 1.3 Metodologia ...21 1.4 Estrutura da tese ...23 2. Palimpsestos caribenhos ...27

2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição ………30

2.2 A história de Colombo, uma narrativa fundadora ……….…….34

2.3 De olhos bem fechados, a narrativa da descoberta ………..…..40

3. Caribes de Colombo, caraíbas de Cabral ...53

3.1 Caribes e aruacos ...53

3.2 Caraíbas ou canibais? ...58

3.3 Caraíbas, os falsos profetas ………...………….61

3.4 O branco caraíba ………....……....64

3.5 Um problema conceitual ...67

3.6 A origem da humanidade, uma narrativa inacabada ...68

4. Tapuya de tembetá é tupinambá?...73

4.1 Hic et ubique...76

4.2 Narrativas da construção do Brasil, a miscigenação ………...….. 82

4.3 Língua geral ... 88

4.4 Jês e Tupis ………... 92

4.5 Gramática Tupi ………...…….98

5. Cientificismo canibal ...103

5.1 Scientia et sapientia ...103

5.2 Uma história social do sujeito gramatical...106

5.3 A voz que serve a Deus ………..……...120

6. A natureza pelo avesso...123

6.1 As regras da natureza ………..………...132

6.2 O dom da linguagem ………..………….128

6.3 O dom da palavra ...133

6.4 Natureza e linguagem ...138

6.5 A origem da humanidade, uma narrativa ainda inacabada ...140

7. A voz dos esquecidos...143

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9. Bibliografia ...172 10. Anexo I ...187

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1. INTRODUÇÃO

A história das palavras científicas não passa unicamente pelos cientistas autênticos que as utilizaram cientemente. Esta história passa também por aqueles que herdaram o vocabulário sem o método, buscando nele inspiração barata, ou um meio de impressionar o público pouco apto a discernir as diferenças.

(Starobinski, 2002, p. 43)

Conta a história1que, em um dia de muito calor, o jaguar encontrou o jacaré na beira do rio divertindo-se em mandar seus olhos passearem na outra margem e ficou fascinado com aquela possibilidade. Pediu, então, ao jacaré que mandasse seus olhos à outra margem também. O jacaré concordou e mandou os olhos do jaguar passearem do outro lado do rio, depois chamou-os de volta e os devolveu ao jaguar, mas o jaguar queria mais. O jacaré explicou que era muito perigoso, pois o peixe-monstro poderia comer os olhos dele, mas o jaguar insistiu e o jacaré, a contra gosto, enviou-lhe os olhos de novo à outra margem. O peixe-monstro estava à espreita e comeu os olhos do jaguar. Cego e triste o jaguar perambulou pela floresta até que o gavião real decidiu ajudá-lo a recuperar a visão, derramando leite de jatobá no vazio dos olhos do jaguar. O jaguar recuperou a visão e ganhou um par de olhos mais claros do que os anteriores e os dois se tornaram amigos. Por isso, ainda hoje, o jaguar deixa uma parte de sua caça para o gavião real.

O jaguar evoca o animal xamânico por excelência. Com a pele do jaguar, o xamã cruza os limites humanos e entra no mundo metafísico, em sua jornada solitária na busca da cura e da manutenção do mundo, iluminada pelos espelhos2 do jaguar, como faróis na escuridão. Tomei emprestadas as lentes do jaguar para poder ver o que havia na outra margem do rio e vesti a pele do jaguar para poder transitar entre realidades, as várias que acompanham o desenrolar deste trabalho. Assim, protegida sob a pele do jaguar e com seus espelhos a iluminar meu caminho, empreendi minha jornada de cura e transformação.

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1 História do folclore amazônico compilada em Os animais e a psique, de Denise Gimenez Ramos, Summus

Editorial, vol. 1, p. 212, 2005.

2 Os olhos dos felinos possuem uma estrutura refletora, localizada atrás da retina que espelha a luz que entra em

seus olhos, seja o brilho de uma estrela ou um raio de luar, ajudando-os a enxergar com mais nitidez. Por isso, são os espelhos e não os olhos do jaguar a mostrar o caminho.!

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Inicialmente, no mestrado, a jornada me levou ao Cerrado. Foi o contato com a descrição da língua Apinajé que me submergiu na realidade das sociedades rituais, das metades cerimoniais, das cerimônias de nomeação e dos desacertos com o trabalho descritivo da língua. Embora o trabalho tenha se configurado como exclusivamente bibliográfico, os desencontros com as descrições propostas por outras linguistas foram inevitáveis. Eu procurava entender se eram pertinentes as distinções sujeito e verbo, sujeito e objeto, como categorias gramaticais das línguas indígenas a priori, ou se estas eram apenas projeções de nossas categorias gramaticais ocidentais, construídas ao longo de um processo histórico de elaboração conceitual que se estabeleceu como científico e, portanto, universal.

Foi com a segunda etapa da jornada sob a pele do jaguar já iniciada que ouvi de um jovem Tukano, estudante de pós-graduação em Antropologia, a pergunta mais difícil de ser respondida: “por que os índios? Por que não ajudar os teus parentes?” Havia na contestação dele uma raiva mal-dissimulada, ele estava inconformado com o arrepio que o exótico provoca, profundamente chateado com a imagem de selvagem que ele mesmo carrega. Eu não sabia o que dizer. Exausta pelo cansativo trabalho intelectual de redação da tese me perguntei se realmente não teria sido melhor ajudar meus parentes, mas eu escolhi estudar línguas indígenas, por quê? Para me forçar a lidar com a alteridade de maneira maximizada. Nesta empreitada, me deparei com uma realidade bifurcada: ou existe uma única verdade humana e a estamos revelando constantemente ou esbarramos, ininterruptamente, na redoma de vidro de nossas convicções conceituais. Optei pela perspectiva da redoma de vidro conceitual.

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Primeiramente, pensei em começar a pesquisa com a fundação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Conta Lucy Seki (1999, p. 236) que, no ano seguinte à sua criação, foi incluída, nos cursos de História e Geografia, a cadeira de Língua Tupi-Guarani e Tupinologia, ministrada por Plínio Ayrosa, com estudos de caráter filológico, etimológico e histórico, inaugurando assim o estudo superior dedicado ao índio. De acordo com Maria Cristina Altman (1998, p. 46-60), que estudou a pesquisa linguística no Brasil, a princípio, a implantação dos estudos de línguas indígenas esteve associada aos departamentos de Antropologia, ao longo do tempo, foi deslocada aos cursos de Letras, passando a integrar a cadeia de disciplinas de formação de professores de língua portuguesa para o ensino fundamental e médio. Assim, tanto a Linguística quanto os estudos de línguas indígenas entraram no currículo previsto para a formação profissionalizante do professor, não visando o desenvolvimento de reflexões propriamente linguísticas, mas servindo como uma ferramenta para o entendimento da complexidade da formação e do estabelecimento da língua nacional, entendida aqui como a língua portuguesa do Brasil. Bruna Franchetto e Ionne Leite (1983, p. 15-30), que historiografaram a pesquisa em Línguas Indígenas no Brasil, divulgaram que, com um programa financiado pela Fundação Ford que visava à melhoria do ensino da língua portuguesa e entendia as línguas indígenas como um “subproduto nacional”, a pesquisa em Línguas Indígenas, então sediada no Museu Nacional, se deslocou para o curso de Letras da UFRJ, com o intuito de formar professores.

Ao longo da leitura de textos como Sobre a necessidade do estudo e ensino das línguas indígenas do Brazil, de Adolfo Varnhagen e Do método de estudo das línguas sul-americanas, de José Oiticica, de 1933, onde já vigoravam as ideias apresentadas por Aryon Rodrigues na reunião da Associação Brasileira de Antropologia, em 1966, em seu discurso Tarefas da Linguística no Brasil, percebi que havia consenso sobre a extinção das línguas e a necessidade de sua documentação e estudo. Percebi também que havia um nó no discurso científico sobre as línguas indígenas, um conjunto de categorias linguísticas que serviam como referências identitárias e de pertencimento. Estas categorias estavam cristalizadas como famílias linguísticas, são elas: tupi, guarani, arawak e caribe, e representam uma geografia nacional da nomeação do índio, intrinsecamente política, desde o descobrimento, e que foram transpostas para o estudo científico do índio como categorias linguísticas

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específicas. O uso destas categorias se dá em decorrência do discurso gerado e compartilhado sobre as línguas indígenas, suas origens e suas relações históricas.

Alexandra Aikhenvald e Robert Dixon (1999, p. xxvi), editores do grande manual The Amazonian Languages, garantiram que as contribuições publicadas em seu livro estão de acordo com a Teoria Linguística Básica (Basic Linguistic Theory), desenvolvida a partir das descrições linguísticas acumuladas em uma única tradição que já perdura 2.000 anos, evidenciando este arcabouço fidedigno com o exemplo da tradição das gramáticas que foram elaboradas exatamente sob esses parâmetros. Era exatamente este o problema que eu percebia. Se a tradição de descrição linguística acumula dados há 2.000 anos, então ela se desenvolveu junto ao processo histórico de elaboração conceitual científico ocidental, amalgamando os dois. Os conceitos elaborados pelo pensamento científico se solidificaram em conceitos linguísticos e gramaticais quase inseparáveis: sujeito, objeto, verbo, palavra, fonema e todas as suas subformas e variações. Como isso aconteceu? Bom... escrevi esta tese para entender o caminho histórico de elaboração conceitual científica, principalmente, sobre as línguas indígenas faladas no Brasil.

Além da tradição da ciência e da filosofia desenvolvidas em torno das descrições linguísticas, há a tradição de descrição linguística acumulada ao longo do trabalho desenvolvido no Brasil que remonta ao descobrimento e passa inevitavelmente pelas descrições e gramáticas elaboradas pelos missionários e pelos naturalistas que estiveram aqui. Foi nestas fontes que decidi mergulhar e foi por meio delas que refiz o trajeto de constituição do discurso científico sobre as línguas indígenas faladas na América e suas implicações para a descrição linguística dessas línguas. Algumas reflexões já começaram a ser divulgadas. Refiro-me precisamente à minha dissertação de mestrado que, após os estudos iniciais do doutorado, passou por uma revisão, da qual surgiram dois artigos, um sobre os pronomes pessoais e a noção de pessoa Apinajé3, em que questiono a noção pronominal centrada no ‘eu’. E o outro sobre o termo kra, recentemente publicado, em que questiono o porquê de os classificadores em línguas indígenas sempre remeterem à esfera do concreto, da realidade imediata, do natural.

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3 Segundo Mansur Guérios (1948, p. 9), os etnômios “são dados pelas mesmas tribos, pelas vizinhas, e pelos

europeus.” O autor ressaltou a consideração de Trombetti que observou que os etnômios em geral significam “humano verdadeiro”, mas no entanto a origem ou a história deste etnômio é frequentemente desconhecida. Adotei o termo Apinajé por ser a referência bibliográfica mais comum sobre o povo e a língua falada por este povo, exatamente por se tratar de um trabalho de compilação bibliográfica sem visita a campo.

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Para o artigo sobre o termo kra, resgatei a discussão apontada por Christiane Oliveira (2005, p. 61), em sua tese de doutorado. Ela argumentou a impossibilidade de comprovar em campo a existência da vogal nasal [ã] em apinajé, rechaçando o proposto por Pamela Ham (1961, p. 4), portanto, não a incluiu em seu quadro de fonemas vogais da língua. Os pares krá/krã ou krá/kra, se usados como pares opositores, testam a presença dos fonemas da vogal ‘a’ aberta e nasal na língua. Tanto Pamela Ham quanto Christiane Oliveira trataram-nos como dois itens lexicais diferentes e consideraram que krá (vogal ‘a’ aberta) significa ‘filho/criança’. Pamela Ham (1961, p. 19) considerou que krã (vogal ‘a’ nasal) significa ‘cabeça’, e Christiane Oliveira (2005, p. 145) que kra (vogal ‘a’ média) também significa ‘cabeça’. Em ambos os casos, a distinção lexical é definida pela existência de oposição fonológica entre estas vogais. Talvez, krã/kra sequer signifique ‘cabeça’, mas sim conduza ao entendimento mais amplo da compreensão de corpo e de pessoa apinajé, assim como do mundo que os cerca. Porém, as concepções expressas por estas palavras representam algo bem maior e mais extenso do que sua limitada tradução para o português pôde abranger. Ao fazer uma pequena lista de palavras relacionadas a termos de parentesco, pude perceber que o termo krã ou kra, embora traduzido literalmente como ‘cabeça’, aparece diretamente relacionado à ‘criança’. Um homem chamará de ikrá aos seus filhos e aos filhos de suas cunhadas, embora faça distinção entre sua esposa e suas cunhadas em um relacionamento regido por piam (respeito). Da mesma forma, a mulher chamará de ikrá seus filhos e os filhos de suas irmãs, portanto, krá não é exclusivamente o filho gerado pela união sexual dos genitores, se aproxima mais de um termo de parentesco que estabelece lugares sociais para cada ente dentro do grupo. No sistema de nomeação apinajé, como explicitado por Roberto da Matta (1976, p. 85-112), os genitores escolhem, entre seus amigos formais, aquele que dará nomes à criança. Após estabelecida a formalidade, o nomeador e o nomeado passam a se tratar pelos seguintes termos:

krã-geti ‘nomeador’ (literalmente, ‘cabeça velha’) pakrã ‘nomeado’ (literalmente, ‘cabeça nova’)

Embora, literalmente seja ‘cabeça’, semanticamente, remete à ‘criança/filho’. Se visualizarmos que, ao nascer, a primeira parte do corpo do bebê que desponta no canal vaginal é a cabeça teríamos uma unidade semântica que se estende de krá/kra alcançando krã. Jean Starobinski (2002, p. 13) nos propôs que a história de cada

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palavra seria criada no devir histórico de cada língua, tendo seus desenvolvimentos fortemente alicerçados em sua própria história. A questão colocada aqui seria como perceber essa história de construção de sentido, incluídas suas mudanças de sentido que seriam tão significativas quanto o sentido original, em línguas das quais não conhecemos a trajetória histórica de construção do sentido. Haveria possibilidade de acessar este conhecimento? Haveria possibilidade de transpor os nossos limites conceituais para compreender outros sentidos, construídos sob outra memória discursiva? Tentarei, tomando algumas considerações etnográficas elaboradas por Roberto da Matta, estabelecer uma relação de sentidos que possa apontar uma direção histórica de construção dos sentidos implicados no conjunto semântico krá/kra/ krã. Para Roberto da Matta (1976, p. 134), a cabeça é, das partes do corpo, a mais significativa para os Apinajé, visto o cuidado e a relevância do corte de cabelo e dos adornos cerimoniais identificadores de cada metade amarrados sobre o sulco criado pelo corte de cabelo. A cabeça e o corte de cabelo em muito se assemelham ao formato tradicional das casas que são arredondadas. Poderíamos supor, então, a existência de um categorizador da forma “redondo”, como descrito em Kaingang por Wilmar D’Angelis (2002, p. 215-242), aludindo à forma arredondada da cabeça e à esfericidade de alguns frutos. A questão seria, então, interpelar sobre a escolha da forma “redondo” como determinante do categorizador. Por que privilegiar o formato em detrimento das relações sociais?

A resposta para esta pergunta é longa, passa inevitavelmente pelo labirinto teórico e conceitual desenvolvido pela ciência ocidental ao longo dos últimos 2.500 anos aproximadamente. A ideia por trás da análise linguística convencional, que percebe um classificador de forma “redondo” como explicação, baseia-se no entendimento estruturalista de que o pensamento selvagem atua sobre o concreto e não sobre o abstrato. Esta consideração nos remete imediatamente às origens da linguística como disciplina científica, a Wilhelm von Humboldt, para quem povos de pouca complexidade social desenvolveriam línguas relativas ao prático com pouca ou nenhuma abstração, evocando a cadeia do ser do século XVI, na qual os povos seriam classificados por seu desenvolvimento espiritual em termos de maior ou menor humanidade, conceitos religiosos que remetem ao século XIII, e assim por diante. Há uma longa caminhada a ser feita por esse labirinto a partir de agora. Para mim, a descrição de línguas indígenas é uma das abordagens que se vale de conceitos

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ocidentais para operar como ferramenta de análise com pressupostos universais sobre o funcionamento das línguas.

Nesta tese faço uma extensa pesquisa documental e bibliográfica. Grande parte do trabalho foi fazer uma compilação com o intuito de mostrar o caminho da construção conceitual de termos e de ideias ainda hoje adotados pela Linguística Histórica, pela Linguística Comparada e pela Tipologia Linguística como verdadeiros sobre as línguas indígenas. Por isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Procuro investigar a elaboração dos termos de maneira ampla, abrangente, porque o fermento intelectual e criativo de uma época não se encontra encerrado em um único texto. Em qualquer momento há debate, questionamentos e contribuições de diversas áreas. Pois as pessoas vivem embebidas no momento histórico ao qual pertencem.

Parto do princípio, já bastante discutido por vários historiadores, entre eles, Jack Goody e Eric Wolf, de que a Europa era conectada por meio de rotas e alianças comerciais que se expandiam para a África e a Ásia. Para Eric Wolf (2005, p. 40), as redes estabelecidas entre Europa, Ásia e África são cruciais para compreender as relações entre o mundo conhecido e o mundo desconhecido: o Novo Mundo. Pois foi do encontro entre estes dois mundos diferentes que se estabeleceu um mundo de relações unificadas pelas atividades humanas, geograficamente estabelecido e acima de tudo um mundo que se relacionava entre si por meio de trocas comerciais. Entendo porém que não eram apenas as trocas comerciais que uniam o mundo ou faziam-no relacionar-se. As ideias científicas eram também fruto de um debate que se estendia não apenas territorialmente, mas distendia-se no tempo.

A revitalização da produção intelectual grega funcionou como uma mão dupla na história da Europa. Estabeleceu uma nova fronteira, chegando agora até a Grécia, e concedeu profundidade histórica ao pensamento produzido na Europa, sugerindo uma continuidade do saber e do poder político que justificava a ascenção comercial europeia e sua separação territorial do restante da Eurásia. Tema já debatido e especulado por vários gregos, eles mesmos dando-se uma posição nem cá nem lá. Jack Goody (2008, p. 117-121) resgatou as ideias de Aristóteles sobre o tema, que localizou a Grécia em um ponto intermediário entre Europa e Ásia, e identificou os gregos como agregadores das qualidades de ambos os lados, acrescentando que o clima contribuía para a falta de inteligência e indústria na Europa, e que a falta de ânimo dos asiáticos os subjugava à escravidão perpétua em que viviam. Aristóteles

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acreditava que a situação privilegiada dos gregos lhes permitia perceber elementos de sua própria cultura em outras culturas, como a etíope, a germânica e a persa.

De alguma forma, os europeus se apropriaram tanto da produção intelectual quanto da visão “helenocêntrica”, fundando seus novos limites territoriais e epistemológicos. As grandes perguntas com densa profundidade histórica precisam ser feitas em algum momento. Dediquei-me a escavar as camadas fossilizadas das categorias linguísticas e do pensamento ocidental. As respostas, apresento-as nesta tese.

1.1 Objetivo da tese

Considerando a Teoria da Monogênese, seria necessário traçar a história linguística do continente americano, em marcha ré, até a separação do grupo asiático que empreendeu a migração pelo estreito de Behring4, para podermos estabelecer sua posição na árvore genealógica das línguas da humanidade. Por enquanto, os troncos e as famílias linguísticas americanas permanecem separadas do conjunto indo-euro-asiático e africano. Embora este modelo de linguística busque as relações históricas entre os diferentes grupos humanos e suas línguas por meio de migrações e de contato entre os povos, entende as relações linguísticas como um dado supra-histórico. A ideia de que a linguagem funciona como um processo mental universal de representação do mundo subjaz à teoria da monogênese e aos métodos genealógico e tipológico. Assim, criamos um humano genérico, uma língua genérica e uma representação genérica da realidade que tem por base exclusivamente o pensamento ocidental e suas teorias sobre a linguagem amparadas na ciência de base cristã desenvolvida ao longo de séculos. Uma das representações ocidentais que discuto nesta tese é o sujeito gramatical como categoria linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.

Outro objetivo desta tese, é identificar como a classificação das línguas indígenas em troncos e famílias linguísticas foi estabelecida. Não pretendo discutir o método em si, mas apontar as premissas ideológicas presentes nas teorias que o amparam. Como descreveu Otto Jespersen (1964, p. 367-395), em Language, o método que classifica as línguas em categorias chamadas de famílias linguísticas é a identificação de membros por retenção lexical semelhante, ou seja, línguas com palavras semelhantes pertenceriam à mesma família linguística. A mútua

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compreensão entre línguas aparentemente diferentes indicaria a existência de dialetos que deveriam ser considerados como uma única língua. Este método se desenvolveu paralelamente aos estudos do indo-europeu e tem como premissa a Teoria da Monogênese da Linguagem. Então, se todas as línguas têm uma origem comum, por meio da comparação entre as línguas seria possível traçar seus parentescos e especular sobre sua origem. Por isso, a comparação entre as línguas resultou na elaboração da gênese das línguas como uma árvore genealógica com uma língua-mãe sendo o tronco comum do qual partem ramos que vão se dividindo uns a partir dos outros.

No que diz respeito às línguas indígenas existentes no Brasil, a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, poderia ter surgido como uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de outras línguas indígenas, transportando sentidos através do oceano e ancorando uma nova língua no litoral do Brasil. Uma perspectiva com este viés, o do sentido, serve de questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção lexical.

Paralelamente à classificação genealógica, se desenvolveu a classificação tipológica moderna das línguas, que distingue as línguas de acordo com suas caraterísticas estruturais morfológicas, com línguas isolantes, aglutinantes ou flexionais. Para esta teoria, a presença de radicais morfológicos nas palavras é uma forma de rastreamento da retenção lexical. Como nos exemplos retirados de Aryon Rodrigues (2002, p. 55), em Apinajé, ‘meu’ significa i-; em Xavante, ii-; em Kaingang, iñ-; em Yatê, i-; em Boróro, i-, e em Rikbaktsá, ik-. Todas estas línguas pertencem ao tronco Macro-Jê e, em todas elas, o prefixo possessivo vem acoplado aos nomes, como em ikrá, ‘meu filho’, em Apinajé. Nesta lógica, nomear o mundo define uma língua e a classifica.

1.2 Coleta de dados

Como não dispunha de financiamento para deslocar-me até as instituições que guardam os acervos, enviei meus olhos em um longo passeio pelos acervos digitais de grandes universidades e arquivos públicos, em sua maioria, disponíveis no Internet Archive <https://archive.org>, da empresa Google, que gerencia as bibliotecas virtuais de Library of Congress, Harvard Library, Boston College entre outras grandes bibliotecas que compõem o catálogo de acervos americanos, com aproximadamente

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dois milhões de itens disponíveis para download. O sistema gerencia também mais de 500.000 acervos digitalizados de universidades europeias, que disponibilizam mapas, livros e documentos diversos. Muitas gramáticas e dicionários históricos, assim como livros raros e edições esgotadas foram encontrados neste sistema.

1.2.1 Os acervos

No acervo digital da Universidade de Madrid, procurei por informações sobre as colônias espanholas na América, mapas e relatos de viagens, e acabei me embrenhando pela resistência basca e pelo acervo escassamente digitalizado referente à produção intelectual moçárabe da Andaluzia. Meus olhos irremediavelmente se prenderam aí. Qual seria a influência moçárabe e islâmica na escolástica produzida nos monastérios espanhóis do século XII? Infelizmente meus inexperientes espelhos não possuem ainda capacidade de dissipar tão densa escuridão.

Na Universidade de Lisboa, que gerencia o arquivo digitalizado da Torre do Tombo, procurei mapas, relatos de viagem e documentos sobre as viagens marítimas para o Brasil, os chamados regimentos que cada navio era obrigado a fazer, neles constam o nome de cada tripulante embarcado, idade, endereço, função e remuneração, além do valor estimado da carga transportada e a descrição de toda a mercadoria e dos suprimentos para a tripulação, assim como o cálculo do imposto devido. Grande parte dos documentos digitalizados são informações mercantis, embora muitos papéis tenham se perdido durante o terremoto de Lisboa, em 1773, e nos incêndios que assolaram a cidade após o terremoto. Foi em um dos regimentos, que encontrei o nome da família Anes, um dos primeiros línguas que se estabeleceu no Brasil, mas embora exista uma infinidade de informações mercantis disponíveis nos acervos, as documentações relativas às famílias não estão digitalizadas. É difícil rastreá-las para entender suas relações e comprometimentos, pois são cartas guardadas em caixas de arquivos pessoais. Este me parece ser o caso dos línguas, dos quais é praticamente impossível saber a origem e o treinamento que receberam. Afinal, por que se tornaram línguas? Recentemente estes arquivos vêm recebendo a atenção de pesquisadores e historiadores que procuram outros vieses para suas pesquisas e algumas informações sobre arquivos pessoais já podem ser encontradas em teses e publicações. Este é o caso das relações familiares da casa de Martim Afonso Chichorro, extensamente descritas pela historiadora Alexandra Maria Pinheiro Pelúcia em sua tese de doutorado.

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No arquivo digital do Vaticano, após horas de pesquisa, encontrei os manuscritos originais de Santo Tomás de Aquino da Summa Theologiae. Como não disponho de conhecimento de leitura paleográfica do latim escrito no século XIII, me contentei, emocionada, em admirar essa impressionante descoberta. O material pesquisado foi uma impressão espanhola, em latim, gentilmente emprestada pelo professor João Miguel Sautchuk, e as traduções das províncias beneditina para o português e dominicana para o inglês.

No acervo digital do Banco da República da Colombia, gerenciadora do arquivo da extinta Gran Colombia que abrangia os territórios atuais da Colômbia, da Venezuela, do Equador e do Panamá, incluindo a documentação sobre o Caribe e o porto mais disputado da América, Cartagena de Índias, encontrei cinco volumes das Noticias Historiales de Fray Pedro Simón e a Recompilación de Leyes de Índias.

No acervo digital da Biblioteca da Câmara dos Deputados, busquei por documentos jurídicos, regulamentações e decretos sobre os índios. Encontrei o Diretório dos Índios e inúmeras obras raras inteiramente digitalizadas, como o De Orbis Novo e a Corografia Brasília de Aires do Casal, além de publicações brasileiras do século XIX.

O Arquivo Jesuítico em Roma não possui acervo digitalizado, por isso, toda a documentação a respeito da Companhia de Jesus foi investigada na extensa compilação do Padre Serafim Leite, História da Companhia de Jesus.

No acervo digital da Universidade de Berlim, encontrei para download todos os livros dos irmãos Humboldt, em alemão, e algumas versões em francês.

A seção de Obras Raras da Biblioteca Central da Universidade de Brasília me ofereceu a possibilidade de folhear o Glossaria Linguarum Brasiliensium de Martius e Spix. Demais documentos foram encontrados em compilações editadas e publicadas no Brasil, como História dos Índios do Brasil, Os primeiros documentos sobre a história natural do Brasil, Brasil 1500 – quarenta documentos, e o Catálogo da Biblioteca Nacional.

Além dos acervos digitalizados, foram muito úteis dicionários online, aplicativos de tradução e de busca por palavras, dos quais tirei excelente proveito, embora tenha sido educada em tempos analógicos em que imperavam a máquina de escrever e o caderno. A web tem sido considerada uma fonte enganosa de informação, no entanto, me demonstrou que a fase de descrédito foi superada. O que se apresenta a

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nós é uma biblioteca de letras imensurável, labiríntica e fenomenal. Me perguntei diversas vezes se Jorge Luis Borges não a teria vislumbrado ao escrever O Aleph.

1.3 Metodologia

Esta tese se encontra no domínio da História das Ideias Linguísticas, mais especificamente, no domínio da História dos Conceitos. Portanto, foi usado o procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck (1992, p. 134-146), em Uma História dos Conceitos. Primeiramente, procedi à seleção do corpus, ou seja, a escolha do material textual a ser utilizado como fonte de pesquisa para verificar em que textos o termo escolhido ocorre, ampliando depois para um contexto mais abrangente em que se articulam os termos para além do texto escrito. Este procedimento exige a comparação entre diversas fontes textuais, o mais abrangentes possíveis, pois a partir de um único texto não é possível uma visão tão ampla. Então, foram escolhidas fontes primárias, chamadas de primárias, porque se articulam ao cotidiano e são únicas.

Em um primeiro momento, as fontes escolhidas eram dedicadas à história da colônia e do relacionamento entre brancos e índios. Para este trabalho, em que foram historiografados os conceitos carib, arawak, caraíba e tupi, selecionei cartas dos missionários à Ordem e cartas dos senhores das capitanias ao Rei; alvarás e regimentos referentes à colônia e regimentos relativos às embarcações saídas de Portugal; cartas de autores-referência para os estudos sobre as línguas indígenas, como Karl von den Steinen e Theodor Koch-Grünberg.

Outro conjunto de textos foi o dos livros impressos que retém um tipo de texto menos suscetível à mudança que as fontes primárias, os chamados textos clássicos do descobrimento, que mantêm uma estrutura repetitiva e praticamente inalterada ao longo de suas reimpressões e reedições. Este é o caso dos diários dos navegadores: Novus Mundus, De Orbis Novo; Arte de grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil; e os livros escritos pelos cronistas do século XVI, entre eles: Yves D’Evreux, Claude D’Abbeville, Fernão Cardim e Pero Gândavo.

Entre as categorias estabelecidas por Reinhart Koselleck, não há a previsão dos depoimentos diretos dos indígenas que foram pinçados da documentação oficial da colônia e dos textos clássicos como forma de dar voz aos índios, demonstrando a

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resistência5 e a interferência dos índios que, embora silenciados, contribuíram para o estabelecimentos dos sentidos postos em circulação durante a colonização.

Em um segundo momento, as fontes escolhidas foram aquelas dedicadas aos estudos da linguagem, nas quais investiguei os termos: sujeito gramatical e objeto gramatical; e linguagem e língua. As fontes primárias foram cartas trocadas entre os irmãos Alexander e Wilhelm von Humboldt. Assim como as obras clássicas: Die Sprache de Wilhelm von Humboldt e a Summa Theologiae de Tomás de Aquino.

Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um cenário histórico concreto no qual é possível interpelar às fontes o que elas indiciam sobre a coprodução da história enquanto textos. Neste ponto, a semântica e a história dos conceitos se aproximam, por isso, usei a metodologia dos domínios semânticos de determinação, como proposto por Eduardo Guimarães (2010, p. 9-24), em O sentido de ‘história’ em dois estruturalistas brasileiros, para determinar os predicados de reescrituração dos termos língua e linguagem ao longo dos textos, buscando fazer uma relação entre os termos e os textos em que foram reescriturados de forma a acompanhar as variações ao longo do tempo. As variações não significam exatamente mudança, mas sim, a repetição do mesmo, por meio da reescrituração. O que este tipo de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao mesmo conjunto de categorias e conceitos.

Como metodologia para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do Discurso, como proposta por Eni Orlandi (1999), em Análise de discurso. Princípios e procedimentos, e de sua forma de entender o controle dos sentidos por meio de uma força social que se reproduz pela memória discursiva que administra os sentidos. Tendo em vista que tratei de textos de obras clássicas, portanto consolidados discursivamente na história da linguística, foi profícuo entender que tanto as gramáticas quanto as obras clássicas são discursos sobre a língua e, portanto, passíveis de representarem, em seus discursos, sentidos, alimentados por uma memória institucional e discursiva sobre aquele saber.

Também da Análise do Discurso acatei o princípio de que a memória discursiva especifica as condições nas quais um acontecimento histórico é suscetível de tornar-se uma memória. Para entender as relações entre o acontecimento histórico e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

5 A Professora Isadora Machado, em sua atenciosa leitura, propôs a inclusão da resistência dos silenciados no

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categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães (2014, p. 49-68), em Espaço de enunciação, cena enunciativa, designação, ao tratar das relações entre espaço de enunciação e cena enunciativa em episódios da história da colonização brasileira.

Esta forma de análise semântica é feita levando-se em conta a distinção entre os processos enunciativos de reescrituração e articulação. O processo de reescrituração apresenta uma relação não reflexiva. É por meio da não reflexividade do processo que se atribui sentido, ou seja, se uma expressão é repetida no decorrer do texto, o que mais interessa não é a repetição em si, mas como esta repetição, em certa medida, se torna uma outra expressão. É este aspecto que dá sentido à expressão. Saber o que uma expressão significa num enunciado envolve saber como esta expressão se integra num enunciado que integra um texto. Deste modo, não é possível pensar o que é um enunciado, e o que ele significa, sem que esta unidade seja tratada enquanto integra um texto. Isto pode ocorrer de dois modos: retomando ou reescrevendo outra expressão, ou analisando como a expressão se articula localmente num sintagma específico. Quanto às operações de articulação, as mais comumente consideradas são: determinação, predicação, argumentação, narratividade, referência etc.

A tradução exigiu também uma abordagem específica. Dada minha pouca competência no alemão e no latim, tomei muito tempo pesquisando traduções para outras línguas que não o português como forma de evitar equívocos e como estratégia para desenvolver uma perspectiva própria sobre cada autor. Em geral, comparei versões em duas ou mais línguas com o original para, depois de chegar à compreensão do texto, elaborar minha própria tradução dos trechos que considerei mais relevantes. 1.4 Estrutura da tese

No primeiro capítulo, faço um levantamento das narrativas que territorializam os índios e suas línguas na América, gerando uma geografia do simbólico. Há uma vasta bibliografia escrita por cronistas dos séculos XVI e XVII que descreveram os habitantes do Novo Mundo, levantando as bases do conhecimento sobre os índios e suas formas de vida. Os primeiros documentos escritos sobre as viagens marítimas de europeus para a América foram os diários de bordo de Colombo e de Pinzón, o último redigido pelo escrivão a bordo da caravela Niña, Pedro Martire d’Anghiera. Colombo supostamente escreveu seu próprio diário, um livro controverso cuja autoria ainda

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hoje é discutida, mas que se legitimou como o primeiro documento escrito sobre a terra e sobre os índios que viviam nela. Durante a leitura do diário de Colombo e de textos de seus contemporâneos, identifiquei o uso de narrativas e imagens similares. Sorrateiramente, Marco Polo se revelou uma leitura obrigatória, dadas as coincidências estruturais narrativas presentes no Livro das Maravilhas e as narrativas da descoberta. Comecei a pensar que essas semelhanças pouco tinham a ver com os nativos, mas com os europeus e sua forma de ver o mundo. Ficou claro para mim, que as categorias usadas para entender o outro são e foram projeções que os europeus fizeram sobre os outros povos.

No segundo capítulo, trato também do estabelecimento dos grupos étnicos caribenhos, mais especificamente os caribes e os arawaks, cuja distinção e existência partiram da experiência de Colombo e se calcificaram como categorias étnicas e famílias linguísticas inquestionáveis. Também traço a trajetória histórica do termo caraíba e suas implicações canibais tanto para portugueses quanto para indígenas. Para isso, analiso os textos dos primeiros cronistas sobre o Brasil e averiguo os termos que designam o branco, como caraíba. Como decorrência das implicações de caraíba como pajé, faço reflexões sobre o canibalismo tupi e a migração messiânica guarani. A descoberta de um novo continente trouxe a necessidade de reelaborar o mito de origem dos brancos cristãos, neste capítulo, apresento a primeira parte desta história que ainda não chegou ao fim.

No terceiro capítulo, discuto a geografia da nomeação étnica como estritamente política, significando quase uma delimitação territorial de concessões portuguesas que se projetaram no discurso científico como famílias linguísticas que partilham semelhanças lexicais. Uso, para esta discussão, as narrativas de Caramuru e João Ramalho para estabelecer a geografia linguística e política que se desenrola a partir delas. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e brancos, onde teria surgido uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não existiria a presença de uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção lexical. Procuro trazer evidências linguísticas da dispersão ideológica causada pelos contatos históricos entre grupos indígenas na América, em período pré-colombiano, em vez de justificar o contato histórico por

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meio da presença de retenção lexical. O pressuposto inicial é a existência de uma conexão entre os grupos que perpassava, pelo menos, toda a parte sul do continente americano, por onde circulavam bens, pessoas, tecnologia e, principalmente, no que diz respeito a esta pesquisa, sentidos. A existência pré-colombiana de complexos sistemas de integração pode ser percebida nos textos da arqueologia e da etnologia que descrevem ritos e rituais cujos significados são partilhados por grupos que não pertencem necessariamente à mesma família nem habitam territórios vizinhos.

No quarto capítulo, analiso o método de descrição de línguas que pressupõe a existência de categorias universais e investigo as bases ideológicas destas categorias, revisitando as premissas estabelecidas por Tomás de Aquino, no século XIII. Apresento uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.

No quinto capítulo, abordo a passagem dos naturalistas pela América, mais especificamente Alexander von Humboldt, e sua necessidade de classificar o mundo de acordo com uma estrutura orgânica e natural que desvendasse seu funcionamento. Para os naturalistas, a natureza era entendida como um caos que necessitava ser ordenado pela ciência, a partir desta ideia o modelo científico de produzir conhecimento se estabeleceu. O modelo científico era amplamente baseado na classificação botânica elaborada por Linneu. Da lógica naturalista de classificação, surgiram as listas de palavras a partir das quais as línguas dos grupos étnicos visitados por missionários e aventureiros do século XVI foram organizadas em famílias, consolidando assim o discurso científico sobre as línguas e suas filiações genéticas. Discorro sobre as ideias linguísticas de Wilhelm von Humboldt e suas concepções, resgatando discussões a respeito da natureza divina encarnada no corpo humano que foi debatida no Concílio de Niceia realizado no século IV. Desta discussão, contemplo a possibilidade de dar continuidade à narrativa da origem da humanidade iniciada no segundo capítulo.

No sexto capítulo, discuto a ideia de abstração existente nas teorias sobre a língua e a linguagem. Resgato a discussão religiosa do século IV sobre a encarnação de Deus em Jesus Cristo e suas duas naturezas, uma divina e uma humana, presentes no mesmo corpo, e traço comparações, ao longo do processo histórico de construção das teorias linguísticas e dos termos, relacionados à língua e à linguagem. Discuto as implicações desta perspectiva sobre os estudos de línguas indígenas no Brasil,

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apresentando uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.

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2. PALIMPSESTOS CARIBENHOS

[…] são dados tão particulares, e todos coincidentes, que não é crível possa uma mentira ter-se difundido em tantas línguas, e em tantas nações, com tantas cores de verdade.

(Acuña, 1994, p. 153)

Içadas as velas, a epopeia inicia. Perambulando silenciosamente pela cabine do Almirante, meus olhos passeiam por entre os instrumentos de bordo. Uma bússola sempre apontando para o norte, a Bíblia e o diário de um navegador que passa a eternidade em tumultuado sono. Folheio seu diário curiosa. Desentendimentos com Pinzón, insurreições da tripulação, a constante frustração de não saber onde estava exatamente, cálculos e projeções. Todos os elementos necessários para um poema estavam ali. Navegar em alto mar é um poema épico. Naveguemos, pois!

Ernest Curtius (2013, p. 175) nos ensinou que as metáforas náuticas eram recursos muito usados na literatura romana, de Ovídio a Estácio, portanto nada mais épico que iniciar um capítulo sobre o descobrimento da América, epopeia de grandeza igualável à de Homero, com uma bela metáfora de navegação. Para Ernest Curtius (2013, p. 71), a educação era a portadora da tradição literária e a continuidade da literatura europeia estava ligada à escola. Ernest Curtius entendeu que a tradição literária começou com os gregos que viram em Homero “o reflexo ideal de seu passado, de sua existência e do mundo de seus deuses.” Por isso, discursivamente, a tradição grega se tornou Homero e o que os gregos fizeram os romanos replicaram. A Odisseia foi traduzida por Lívio Andrônico para as escolas romanas, mas foi somente com Virgílio e sua Eneida que os autores romanos conseguiram atingir o lugar de epopeia nacional e filiar-se à tradição de Homero. A escolástica da Idade Média teria adotado de gregos e romanos a ligação entre epopeia e escola e transformado a Eneida no pilar do ensino de latim.

Ernest Curtius fez exatamente esse trajeto argumentativo, passou de gregos a romanos e depois à Idade Média. Os saltos temporais ainda são facilmente naturalizados por nós, pois à Antiguidade se sucede a Idade Média, e a Antiguidade é o apogeu de Grécia e Roma. Dada a lacuna temporal entre os períodos, percebo que a estratégia educativa medieval funcionou. Para Ernest Curtius (2013, p. 71), a estratégia medieval de fundar seu método no passado áureo das grandes civilizações resgatou os princípios gregos da educação baseada nas sete artes liberais, descritas por

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Marciano Capela no De Nuptiis Philogiae et Mercur6, do século V, e entronizou o latim como língua de conhecimento fomentada pela literatura clássica. A Europa velejava.

Tendo em vista o período das navegações ibéricas que me proponho a estudar, cabe lembrar que Portugal produziu sua epopeia nacional. Luis de Camões cantou em Os Lusíadas a saga das viagens em busca do caminho para a Índia, mas não as viagens à América. Os espanhóis sequer fizeram-na. Uma epopeia nacional significava a fundação de uma tradição, assim como a tradição fundada por Homero representava um ideal de vida e um método escolar. Para os portugueses, esse ideal estava associado à Índia, mas não à América. As narrativas da descoberta da América não foram poemas épicos destinados à grandeza nacional, em geral, foram relatos de navegadores e de navegações. Apesar de serem temas clássicos das epopeias e de terem se convertido em compêndios do conhecimento da época sob o qual as novidades do Novo Mundo eram discutidas, não alcançaram o status literário concedido às viagens à Índia. Mais do que narrativas aventurescas para noticiar o Novo Mundo, os diários dos navegadores serviram para fazer o conhecimento circular na Europa. A língua escrita7 estabeleceu, então, um modo de gerar conhecimento e verdades por meio dos livros, que assim cumpriam sua função didática e intelectual.

Navegando pelos diários dos viajantes e pelas narrativas criadas por eles para hospedar os seres encontrados no Novo Mundo pude perceber a formação de uma intrincada rede de espaços de enunciação8 que uniam a Europa ao Novo Mundo e vice-versa. Havia um espaço de enunciação escolar, em que predominava o latim como língua de circulação do conhecimento. Este espaço estava centrado nas universidades e voltado para os escolásticos que produziam textos de alto nível intelectual para o pensamento cristão. Nesse espaço de enunciação, estão as gramáticas das línguas indígenas e os diários dos primeiros viajantes. Havia também um espaço de enunciação literário em que predominava a língua portuguesa. Nesse espaço de enunciação, estão a gramática do Português, Os Lusíadas, os diários dos viajantes, as cartas de Caminha e dos jesuítas que estiveram no Brasil. Em muitos sentidos, o corpus é o mesmo, havia um Novus Mundus, de Américo Vespúcio em !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

6 O casamento de Filologia e Mercúrio (o deus do conhecimento), quando Filologia ganhou de presente de

casamento sete servas, as sete artes liberais, entre elas a Gramática.

7 Sobre a hierarquia entre língua falada e língua escrita ver: GUIMARÃES, Eduardo. “Enunciação e política de

línguas do Brasil.” Santa Maria, Revista Letras, n. 27, p. 47-53, dez. 2003.

8 Entendo o espaço de enunciação como proposto por Eduardo Guimarães em Semântica do acontecimento: um

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latim e uma versão posterior para o português. A diferença estava no meio de circulação. A literatura produzida em latim se destinava ao meio escolar, possuía um valor de civilização e tinha um caráter predominantemente científico, gerava portanto, um discurso científico9 de base cristã. Santo Tomás de Aquino (1951, p. 16) já havia debatido com Santo Agostinho essa questão na Suma Teológica quando afirmou que “a santa doutrina é uma ciência10” em contraposição à ideia de Santo Agostinho de que a ciência deveria servir para o estudo e o conhecimento das escrituras sagradas. Assim, o latim era politicamente dominante na produção de conhecimento, mesmo sendo uma língua exclusivamente escrita.

Historicamente reconhecida, a tradição escolástica se fundamentava em seus autores, no entanto, tomo a liberdade de observar esse fato histórico pelas lentes da teoria da enunciação e me atrevo a dizer que, da perspectiva das cenas enunciativas como elaborado por Eduardo Guimarães (2002, p. 23), temos um lugar constituído pelos dizeres sucessivos de uma linhagem de pensadores associados à escola de Alexandria que se prolongou no tempo e se dispersou no espaço. Segundo o autor, “na cena enunciativa ‘aquele que fala’ ou ‘para quem se fala’ não são pessoas mas uma configuração do agenciamento enunciativo. São lugares constituídos pelos dizeres e não pessoas donas de seu dizer.” Então, não eram os autores escolásticos donos de seus dizeres, eles ocupavam lugares constituídos pelos dizeres de uma linhagem de pensadores associados a uma escola. Da escola de Alexandria11, que propagava a didática alegórica de interpretação das escrituras sagradas em oposição à literalidade dos textos sagrados, falam Aristóteles, Orígenes, Santo Agostinho, Pico de la Mirândola, Tomás de Aquino, Francisco de Vitória e Lutero. Nas escolas catedrais fundadas em torno de alguns desses autores, se estabeleceram lugares cristãos e europeus constituídos pelos seus dizeres, a exemplo das universidades de Paris, de Salamanca e de Bolonha, lugares dos quais falam Nebrija, Vespúcio e Tomás de Aquino. Desta perspectiva, a cronologia estabelecida pelos escolásticos e desvendada por Ernest Curtius mostra-se perfeitamente conectada. Não exatamente por ser um continuum no tempo, mas porque as condições de produção do discurso científico ocidental, ou como eu prefiro dizer, de base cristã, produziram seus sentidos, que vem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

9 Uso a definição de discurso de acordo com Eni Orlandi em Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 12

ed. Campinas: Pontes, 1999.

10 Sacram doctrinam unam scientiam esse.

11 MALATY, Fr. Trados. The school of Alexandria. Livros I e II. St. Mark’s Coptic Orthodox Church: Jersey City,

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sendo replicados ao longo dos séculos, desde a escola de Alexandria, antes mesmo do surgimento mítico do cristianismo.

Se os autores fundavam escolas que se constituíam como cenas de enunciação, as narrativas da descoberta de um novo mundo faziam circular o conhecimento elaborado de acordo com o ponto de vista dessas escolas. Dando ao conhecimento do Novo Mundo um lugar constituído pelos dizeres fundados mais remotamente na escola de Alexandria e propagados até o novo continente. Ao fazer circular o conhecimento, as narrativas geravam verdades. Uma das formas de gerar verdades por meio das narrativas é localizar geograficamente os lugares onde os fatos ou as histórias narradas aconteceram. Ao serem localizadas, as narrativas dão lugar e concedem veracidade ao espaço enunciativo no qual palavras, conceitos e categorias significarão. Jacques Rancière (2014, p. 101), ao traçar as relações entre o solo e os reis sepultados em Os nomes da História, se referiu à relação entre eles como a de “corpos territorializados e, ao mesmo tempo, enterrados, de corpos moldados pelo caráter de uma terra.” Foram esses corpos moldados pelo caráter europeu, corpos europeus territorializados na Europa que, por meio de suas narrativas, territorializaram outros corpos e suas vozes. Territorializaram os corpos ameríndios e suas línguas. É nesse espaço narrado e geografizado que se desenrolaram as relações simbólicas a respeito dos povos e das línguas indígenas, onde se estabeleceu uma geografia do simbólico. O mesmo espaço simbólico que deu às línguas indígenas um lugar, deu aos povos indígenas um lugar, deu a seus corpos um lugar e um significado.

2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição

Antes de embarcarmos no estudo das narrativas sobre o Novo Mundo é preciso fazer uma breve apreciação do lugar das narrativas sobre a alteridade no espaço de enunciação europeu do século XVI. A trajetória dessas narrativas é longa e constituiu um lugar em terra firme para “aquele que fala” a partir delas, pois elas significam uma história de enunciações sobre a alteridade. Por isso remontamos a Plínio, o Velho12, e sua Naturalis Historia, um enorme “inventário do mundo”, segundo suas próprias palavras, que inaugurou o gênero enciclopédico ao compilar mais de dois mil autores da época, elaborando verbetes sobre cosmologia, zoologia e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

12 Francesco Maspero (Org.) Storie naturali (libri VIII-XI). Milão: Biblioteca Universitaria Rizzoli, 2011. Coleção

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mineralogia nos quais sereias, gigantes e centauros receberam igual tratamento descritivo que as pedras valiosas e a arte que a partir delas surgia.

De acordo com Francesco Maspero (2011, p. 16), curador da obra reeditada em italiano, Plínio, supondo que o universo era governado por uma lei divina natural, fruto de seu pensamento estoico, entendia que a natureza era a derivação direta e inalienável do homem. Para ele, o progresso, que inevitavelmente afastaria o homem da natureza, aumentaria o desequilíbrio, gerando “o montruoso”. Roger Bartra (2011, p. 81), em El mito del salvaje, discorreu sobre a ideia de progresso para os gregos (que, no século XVIII, foi atualizada para a ideia de civilização), que se expressava por meio da polis, que significa ‘cidade’, ou seja, urbanidade e civilidade andam juntas. A palavra hemeros, que significa domesticado, era usada com o sentido de urbanizado. A ideia grega então era que os seres ditos naturais, centauros, amazonas, cíclopes e agrios, viviam o equilíbrio divino que regia o universo e, ao mesmo tempo, eram aqueles que não haviam sido domesticados nem urbanizados, portanto não obedeciam às leis humanas. Os homens que ainda viviam na natureza eram os agrios que existiam em oposição aos hemeros, selvagens em oposição a domesticados. Para os gregos, a ideia de selvagem não se aplicava aos bárbaros, pois os bárbaros eram os estrangeiros, aqueles que não falavam grego. Os selvagens tiveram que ser inventados como construto cultural interior, grego, antes de serem encontrados os bárbaros fora dos limites da sociedade grega.

Jean Starobinski (2001, p. 56), em As máscaras da civilização, tomou o sentido atual de barbárie que designa “a crueldade e a agressividade” como oposto de civilização. Civilização, termo cunhado no século XVIII, teria assumido um sentido de processo de progresso da humanidade, não somente de adequação aos modos urbanos, como em ‘domesticado’ hemeros. Em ‘civilizado’, a origem da humanidade, sua infância por assim dizer, seria a barbárie e sua etapa polida (ou educada nos termos nacionais atuais) assumiria o significado de ‘domesticado’. Ambas valeriam como definidoras de uma mesma história, a história do passado, quando civilizados e selvagens se construíram um ao outro nas eras míticas que só existe em nossa memória literária; e a história do presente, a da humanidade civilizada.

Para Roger Bartra (2011, p. 83), o selvagem legitimou a posição do civilizado, sendo central na construção da identidade do civilizado e criou fundamentalmente a noção ocidental de alteridade inseparável de sua contraparte, a de civilidade. Eduardo Guimarães (2004, p. 128) apontou que civilização e barbárie são opostos inseparáveis

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e mutuamente significantes. Philippe Descola (2013, p. 61) referiu-se à natureza como um produto inventado pela cultura, para estabelecer uma rede de significados supostamente externos e opostos à sociedade. A natureza teria se tornado então o espaço simbólico e artificial onde centauros, amazonas, cíclopes e homens selvagens significariam em contraposição à cidade, espaço simbólico e social, onde significaria o civilizado. Para ele, não foi a ciência que explicou o mito, mas o contrário, o mito nos forneceu as pistas da maneira como a ciência moderna tem constituído suas bases conceituais mais profundas, a lógica que oferece o modelo para pensar a oposição entre natureza e cultura. Embora os conceitos selvagem e bárbaro não fossem similares, o selvagem e o bárbaro, por fim, perfilaram-se juntos em oposição a civilizado, tornando-se um no outro e assumindo sentidos iguais. A partir desta confluência de sentidos, podemos dizer que “todo selvagem é um bárbaro”, que funciona também na outra via, “todo bárbaro é um selvagem”. Os sentidos, por meio dos quais os conceitos de civilizado e de bárbaro/selvagem foram historicamente construídos, carregam um saber discursivo acumulado que determina uma oposição entre eles. Uma oposição determinante e classificatória ou se é civilizado ou se é selvagem/bárbaro.

As ideias historicamente replicadas a respeito do selvagem, do índio, nos colocam a pertinente questão de quem somos nós neste jogo de papéis. Se os índios são os selvagens, nós somos os civilizados. Só é possível ser civilizado em oposição ao selvagem. Estabelecer papéis é também atribuir um espaço e um lugar social, no caso tratado nesta tese, ao determinar aos habitantes da América o papel de selvagens, os europeus validaram para si mesmos um espaço de enunciação e um lugar social, o mesmo que já ocupavam na Europa, recriando, assim, a oposição sobre a qual foram construídas as identidades do selvagem e do civilizado europeus. Para Norbert Elias (1994, p. 36), o binômio selvagem/civilizado permeou a colonização europeia no mundo, sustentou a elaboração dos modos e das maneiras de comportamento que diferenciaram os nobres dos plebeus na Europa, organizando as classes sociais dentro dos Estados. Para validá-la, adotou-se a massificação, todo não-europeu é selvagem, porque ser europeu pressupõe comportar-se de determinada forma, aprender de determinada forma, comer de determinada forma, ser limpo de determinada forma.

Segundo Alcida Rita Ramos (1988, p. 93), atribuir uma identidade de massa a todos os povos considerados selvagens, negando suas configurações políticas preexistentes e suas diferenças étnicas, conduziu à hegemonia do ‘humano genérico’

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que é o pressuposto básico para o universalismo. O universalismo alcançado às custas da existência de um humano genérico estabeleceu uma série de abordagens analíticas que, em grande medida, respaldam o entendimento que os ocidentais têm sobre si mesmos. Só é possível existir uma língua com conceitos abstratos em comparação com outra língua de conceitos concretos. Evidentemente o que atribui concretude ou abstração a um conceito é determinado mediante uma escolha legitimada teoricamente por premissas claramente hierárquicas de quem detêm o conhecimento e as ferramentas para usá-lo.

Roger Bartra (2011, p. 18) considerou que o fio condutor da história do homem selvagem ocidental permeia toda a mitologia greco-latina, a judaico-cristã-islâmica e a celta. Ao fazer o resgate histórico do surgimento dos mitos do homem selvagem, encontrou-os em tempos babilônicos. Enkidu foi personagem lendário e literário da mitologia mesopotâmica, uma das figuras centrais da Epopeia de Gilgamesh, compilada no segundo milênio antes de Cristo. Ele era um homem selvagem, tinha o corpo coberto de pelos, foi modelado por Aruru a partir do barro e cresceu longe da humanidade. Criado por animais, permaneceu ignorante dos costumeshumanos até o dia em que foi levado para lutar contra Gilgamesh. Enkidu evoca a imagem do homem peludo, vivendo na natureza, lascivo, sem fogo, sem lei nem governo, sem alma nem razão, que povoou a imaginação da sociedade ocidental antiga e medieval. Roger Bartra (2011, p. 93) contou que esse selvagem peludo chegou ao medievo com características visivelmente europeias, pele clara, nariz alongado, lábios estreitos, com uma espessa pelagem por todo o corpo. Para as mulheres selvagens, a presença de uma vasta cabeleira muito longa e encaracolada era marcante.

Sem dúvida, o selvagem medieval não era um reflexo etnocêntrico diante das características físicas de povos exóticos do Oriente. Afinal, antes mesmo do início das navegações portuguesas, no final da segunda metade do século XIII, os comerciantes europeus já empreendiam longas viagens terrestres com o intuito de estabelecer relações políticas e identificar rotas mercantis. As rotas estabelecidas durante estas viagens conectaram a Europa a Pequim, Mali e Delhi, por terra. Surgiram neste período as fantásticas narrativas de Marco Polo. Afonso Arinos (2004, p. 32), ao recompilar a produção bibliográfica sobre o imaginário medieval, resgatou o Imago Mundi de Pierre d’Ailly, escritor medieval que elaborou a cosmografia mais completa das terras desconhecidas, apoiado nas informações de Plínio, Homero, Plutão,

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