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A história imprecisa e tumultuada da vida de Colombo possui inúmeros episódios pitorescos narrados por seus vários biógrafos. Um deles é a história de seu sogro, Bartolomeu Perestrelo, que participou da conquista de Ceuta, em 1415, e por seus serviços recebeu a ilha de Porto Santo, a segunda maior ilha do arquipélago da Madeira. Na perspectiva de Alfred Crosby (2011, p. 86), em Imperialismo ecológico, a guerra contra os mouros e sua consequente expulsão do território português gerou um sistema de benesses reais que implicava a doação de feudos (terras) e títulos nobiliárquicos aos cavaleiros que lutassem e vencessem a favor do rei. Com o prolongamento das Cruzadas, já não havia feudos disponíveis para doação e o caminho encontrado pela casa Real portuguesa para cumprir com suas obrigações foi destinar, às fidalguias de segunda linha, terras nas ilhas próximas ao continente. Perestrelo, então, foi um dos primeiros portugueses a colonizar as novas terras de Portugal. Ao tornar-se proprietário de um feudo, Perestrelo poderia tornar-se nobre, mas para fundar uma casa nobiliárquica na Europa medieval exigia-se, além da propriedade rural ou feudo, uma relíquia13 em posse da família, um brasão conferido pelo rei e uma linhagem sucessória, como explicou Alexandra Maria Pelúcia (2007, p. 117) em sua tese de doutorado. Perestrelo possuía, como relíquia de sua recém- fundada casa nobiliárquica, os mapas de navegação de Toscanelli14 que, mais tarde, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

13 Para compreender o papel das relíquias na sociedade medieval ver: BLOCH, Marc. Los reyes taumaturgos.

México: Fondo de Cultura Economica, 1988. Trad. Marcos Lara

14 Quanto à história, verídica ou não, sobre a morte de um marinheiro que deixou o misterioso mapa do Novo

foram entregues a Colombo pela viúva de Perestrelo. Mapas com os quais ele começou sua empreeitada pelo financiamento da viagem à Índia. Como contou Marcos Faerman (1998, p. 23), com a morte de Perestrelo, a família perdeu a ilha de Porto Santo, e tanto a viúva quanto sua filha (com quem Colombo se casou) foram viver em um convento. Colombo teve apenas um filho desta união e o chamou Diego. A família só conseguiu recuperar a ilha quando Fernando, filho ilegítimo de Colombo, após a morte do pai, escreveu sua biografia para recuperar-lhe a honra e moveu, com a ajuda da casa Real portuguesa, ações para reaver as terras do avô de seu meio- irmão, recuperando assim seu título nobiliárquico e a ilha de Porto Santo. A relíquia familiar passou a ser o testamento de Colombo, o legado histórico deste estrangeiro que se intrometeu na nobiliarquia portuguesa com uma única finalidade, conseguir os mapas de Toscanelli.

Existem diversas suposições a respeito da origem de Colombo. Há os que creem que ele era galego e que escreveu seu diário em galego. Há os que creem em sua origem genovesa, porque seu castelhano era sofrível. O dominicano Bartolomeo de las Casas comentou esse detalhe várias vezes em seus escritos. O diário original se perdeu e possivelmente só retornou a público, quase cinquenta anos depois do descobrimento, pelas mãos de Bartolomeo de las Casas, que além de traduzi-lo do latim também inseriu algumas anotações e inclusive julgamentos morais ao texto original. De qualquer forma, o próprio Bartolomeo de las Casas advertiu em sua curta introdução15 que não se tratava da tradução do original, nem de uma cópia, mas de um resumo, uma seleção de trechos. A impossibilidade de recuperar a versão original do diário e a intromissão de Bartolomeo de las Casas deixaram perguntas inevitáveis e sem resposta. Se o diário foi escrito pelo próprio Colombo porque ele se referiria e si mesmo como “o Almirante”? Por que o diário de bordo de Pinzón, escrito por Pietro Martire d'Anghiera, em latim, permaneceu restrito à Coroa espanhola por três séculos até ser divulgado por Alexander von Humboldt, em 1832, quando esteve visitando a América? A origem das informações divulgadas na carta de Humboldt, segundo Nelson Papavero e Dante Teixeira (2002, p. I), seriam provenientes do diário d’Anghiera, mas como Humboldt obteve acesso ao diário é um mistério. Haveria um diário de Colombo? Ou o diário d’Anghiera fora resumido, com as informações consideradas “interessantes” divulgadas e as “importantes” guardadas em sigilo? !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, a viagem de Colombo e seu diário fomentaram a imaginação europeia a respeito da existência de selvagens, de animais exóticos e de terras paradisíacas. Sua narrativa seguia uma tradição havia muito consolidada como literatura sobre o desconhecido. Seguia a ordem cronológica de um diário, o que dava veracidade e profundidade temporal à narrativa. Também alimentava as expectativas medievais de encontrar, nos novos territórios, os monstros previamente elencadas no bestário de Pierre d’Ailly. E traçava uma inegável relação com o diário de viagem de Marco Polo, que embora tenha sido escrito três séculos antes, fazia parte do arcabouço da tradição descritiva da alteridade. A distância temporal entre os dois livros não impede a aproximação gerada por uma rede complexa de ordem linguística, socio-cognitiva e interacional entre o texto e seus leitores16. O Livro das Maravilhas, de Marco Polo, era considerado uma grande referência narrativa, uma espécie de inconsciente coletivo que fornecia informações sobre as terras distantes, em especial, sobre as terras onde Colombo queria chegar. A Índia já havia sido descrita por Marco Polo que também discorreu sobre os ventos e a localização de algumas ilhas, entre elas Cipango.

As dúvidas a respeito da autenticidade do trabalho de Marco Polo são tão instigantes quanto as de Colombo. Marco Polo (1985, p. 35) ditou suas memórias de viagem a Rusticiano de Pisa, na prisão em que ambos se encontravam em Gênova, no ano de 1298, não relatou tudo o que viu, a propósito, “algumas não viu, mas escutou- as de outros homens sinceros e verdadeiros.” Por isso, alertou aos leitores que deveriam acreditar em tudo o que leriam, pois se tratava da verdade contada por um cidadão de espírito justo e bom. Rusticiano lembrou ao leitor que Marco Polo, por conhecer tão bem o Grande Khan, a quem serviu como embaixador durante sua permanência no Oriente, e saber de seu gosto por novidades, não relatou apenas o resultado das missões que o rei confiara a ele, mas sim todo o tipo de coisas estranhas, novidades e curiosidades que, no decorrer de sua viagem, havia visto. O peculiar, então, se tornou mais importante que os resultados da missão? Certamente não para Gengis Khan, mas para o leitor europeu, sim.

Colombo se preocupou mais com o impacto que seu relato causaria nos reis de Espanha e em seus financiadores, por isso se empenhou muito em conferir resultados para a expedição, que são sempre as notícias sobre o ouro. As semelhanças existentes !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

entre as narrativas de ambos os autores em seus livros não costumam ser mencionadas pelos críticos de Colombo. Há um silenciamento sobre isso, em parte, porque Colombo costuma ser considerado um autor renascentista. Apesar de cronologicamente assentado no período ilustrado europeu, o texto de Colombo remete constantemente às crenças e ao contexto medieval. Não apenas por tomar Marco Polo como referência da rota para as ilha de Cipango, afinal, supostamente, ele tinha o mapa de Toscanelli com as rotas traçadas, mas por estar imerso no mundo medieval. Colombo, em uma de suas cartas anteriores à viagem para o Novo Mundo, extraídas do livro História do medo no Ocidente de Jean Delumeau (1989, p. 233), demonstrava-se seguro da proximidade do fim dos tempos:

Desde a criação do mundo ou de Adão até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo houve 5.343 anos com 318 dias, segundo o cálculo do rei dom Afonso que parece ser o mais seguro (...) se a isso se acrescentarem 1.501, com um pouco menos, isso dá 6.845 anos menos alguns meses. Por essa conta não faltam mais que 155 anos até o cumprimento dos 7 mil anos, no curso dos quais (...) o mundo deverá acabar.

Além de explorar as imagens de paraíso terrestre e do homem selvagem, usou também os recentes conflitos com os mouros, na Andaluzia, para ilustrar sua narrativa, fazendo um apelo às imagens evocadas pelas Cruzadas em busca do reino cristão do Oriente, do fim do mundo17 evocado pela existência dos homens selvagens e da redenção eterna por meio do juízo final.

Stéphane Yerasimos (1985, p. 21), historiador que escreveu a Introdução à versão brasileira do Livro das Maravilhas explicou-nos que, nos tempos de Marco Polo, surgiu na Terra Santa, a história de que um rei vindo do Oriente, descendente de um dos reis magos, havia lutado e derrotado o rei dos Persas e dos Medas. Esse rei vitorioso era Prestes João. Marco Polo, em suas andanças não procurou recontar o mito, mas tentou sim encontrar as posições geográficas mais pertinentes que respaldassem o mito. As conquistas de Prestes João na Ásia estavam associadas às de Alexandre, o Grande, que deixou várias “ilhas ocidentais” perdidas no Oriente, as

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17 Klaas Woortman (2004, p. 123), em O selvagem e o Novo Mundo, relembrou a profecia de Santo Agostinho, que

pregava insistentemente o fim do mundo como estratégia de conversão de fiéis para a sua fé. Suas homilias eram permeadas de imagens e de premonissões apocalípticas. A existência de um ser nem humano nem animal, como o homem selvagem, profetizava, nas palavras de Santo Agostinho, o destino que Deus havia planejado para o fim dos tempos. Johan Huizinga (2013, p. 33-34), em O outono da Idade Média, assinalou que a crença no fim dos tempos e os sinais de sua iminente chegada empurravam as pessoas para a vertigem do apelo apocalíptico propulsor das catarses coletivas que impulsionavam a coesão religiosa europeia.

quais Marco Polo se empenhou em encontrar e registrar. A principal delas era o túmulo do apóstolo São Tomé.

Para Charles Boxer (2002, p. 36), em O império marítimo português, havia um embate entre as políticas seculares e os conceitos filosóficos medievais que conduziam a elaboração das estratégias de ação do Estado português. No afã de encontrar o Prestes João na África ou algum de seus descendentes, e por meio deste reino cristão lutar contra os mouros e construir uma rota comercial para as Índias, os reis portugueses converteram ao cristianismo e coroaram, em 1485, o líder bantu Manikongo, como primeiro rei do Congo, batizado sob o nome de Afonso I. Segundo Peter Forbath (1978, p. 86), em The river Congo, em vez de uma narrativa romanceada e fictícia como a história de Prestes João, foi utilizada uma política concreta do reino português para conseguir aliados na África que era reduto muçulmano. José Tinhorão, renomado crítico de música popular, em Rei do Congo. A mentira histórica que virou folclore, traçou um percurso da busca por um aliado cristão na retaguarda do império muçulmano desde o século XII até o final do século XVII quando a festa da congada surgiu no Brasil. Este tema, aparentemente desconexo do estudo proposto nesta tese, reconstroi na longue durée da história, a figura do rei do Congo, desde a criação artificial de um reino cristão nos moldes europeus entre as tribos da costa africana atlântica que não estavam sob o império islâmico até o surgimento da congada como a evocação simbólica da aliança entre Portugal e o Congo. A congada foi a forma com que os súditos cristãos do reino do Congo escravizados pelos portugueses encontraram para se defender da opressão e exigirem, mediante sua inserção nas atividades católicas, seu reconhecimento como aliados de Portugal. José Tinhorão (2016, p. 119) alegou que a criação da narrativa de origem do Império Português foi acompanhada pela criação de narrativas específicas nos países em que foram estabelecidas suas colônias. Da perspectiva da teoria da enunciação, o acontecimento de enunciação entendido como as narrativas da formação do Império Português criadas especificamente em cada um dos países onde foram estabelecidas colônias é uma história de enunciações sobre a criação do Império Português.

Segundo Stéphane Yerasimos (1985, p. 28), no livro de Marco Polo, o tema mais antigo seria o mito da Árvore Só-Árvore Seca, exatamente com um nome duplo, que implica uma origem partilhada e amalgamada de camadas míticas sobrepostas ao longo dos séculos, cujos arquétipos mais longínquos podem ser encontrados em mitos

mesopotâmicos que reverberaram até o livro de Daniel, o último do Antigo Testamento, escrito nos tempos em que os Macabeus lutavam contra os sucessores de Alexandre, o Grande. Neste livro, de acordo com Roger Bartra (2011, p. 58), a Árvore Seca apareceu no sonho do rei Nabucodonosor, o último rei “selvagem” da Babilônia. A princípio, uma árvore frondosa, de bela e verdejante folhagem e abundantes frutos que alimentavam os pássaros nela aninhados, que sofreu a fúria do Anjo do Senhor e se tornou seca pela cólera divina. Aqui a Árvore Seca, símbolo do pecado e do arrependimento se uniu à Árvore Só que simboliza o fim do mundo conhecido, o limite entre o humano e o além, o desconhecido. Ambas enlaçadas em uma só simbolizariam o fim do mundo cristão e do mundo conhecido. A localização da Árvore Seca é imprecisa, miticamente ocupou a fronteira com a Pérsia, mas deslocou- se para Oriente sempre em direção a terras mais longínquas e desconhecidas que se tornariam, segundo a profecia, o palco da luta final entre o Ocidente e o Oriente, quando o Ocidente cristão triunfaria. O triunfo cristão faria então a Árvore Seca revigorar, pois o arrependimento revigoraria e libertaria do pecado e alí seria o Paraíso Terrestre. Marco Polo não conseguiu identificar o local preciso da Árvore Só- Árvore Seca nem encontrou o túmulo de São Tomé.

Marco Polo iniciou o Livro da Índia, descrevendo a ilha de Cipango (atual Japão). Havia na ilha um costume estranho. Se, por alguma razão, um homem fosse capturado por outro homem que não fosse seu amigo, caso não tivesse dinheiro para pagar sua soltura, o capturador mataria o homem preso e o comeria, guisado, na companhia de seus parentes, e diziam que esta era a melhor carne que havia. Marco Polo discorreu sobre a localização do mar da China e informou que existiriam, a oeste de Cipango, mais de 7.448 ilhas, algumas habitadas outras não. Ele passou por várias ilhas nas quais se deparou com atropófagos completamente selvagens, vivendo como animais. Homens com cauda de cão, outros com cabeça e dentes de cão, que devoram outros homens das tribos inimigas. Homens e mulheres que andavam nus, sem cobrir parte alguma do corpo, elencando belos exemplares de selvagens dignos das mais bestiais histórias europeias, eram definitivamente os confins da terra.

Na cabine do Almirante, bem ao lado dos mapas de Toscanelli estava o Livro das Maravilhas de Marco Polo. As narrativas sobre os confins do mundo e sobre os selvagens já estavam todas prontas bastou apenas transportá-las para o Novo Mundo.