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3. Caribes de Colombo, caraíbas de Cabral

3.2 Caraíbas ou canibais?

Desde a publicacão do dicionário de Friederici, em 1917, a relação entre os termos caraíba, canibal e caribe não é avaliada do ponto de vista linguístico. Então, chegou a hora de fazermos uma análise das relações semânticas e históricas entre elas. A história da palavra caraíba remonta ao diário de Colombo, e assim como a narrativa da descoberta, é também paradoxal. Seu sentido cruzou a fronteira entre brancos e índios e se estabeleceu em ambos os lados com sentidos semelhantes sem nunca ter pertencido anteriormente a nenhuma das línguas, pois é filha legítima do contato. No diário de Colombo (1998, p. 74, grifo meu), a primeira aparição de caraíba se deu quando os índios de uma aldeia fugiram de medo ao verem os homens de Colombo, bem armados, desembarcando na praia, “o índio que os cristãos levavam correu atrás deles, aos brados, pedindo que não tivessem medo, que os cristãos não eram caraíbas, antes, pelo contrário, vinham do céu”.

Vespúcio (1984, p. 59) narrou, na carta de 1497, que, ao percorrer um trecho da costa onde a população vivia sobre paliçadas que lembraram-lhe Veneza, nomeou- a Venezuela32. Ao tentar aproximar-se da costa, Vespúcio foi recebido de maneira belicosa. Decidiu seguir adiante e ainda no continente encontrou outra população onde foi bem-recebido. Após dias de festa e de um batismo coletivo, Vespúcio (1984, p. 117) foi designado carabi que, segundo seu relato, significava “homem de grande sabedoria”. O povo que o recebeu pediu que ele e seus homens os acompanhassem em uma vingança contra os canibais que os subjugavam e que viviam em uma das ilhas. Vespúcio (1984, p. 118), então, comandou um ataque contra a ilhota chamada Iti, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

32 Para Tzvetan Todorov (2003, p. 38), esta forma de nomear, por semelhança direta, é uma das formas adotadas

por Colombo quando nomeava cada monte, remanso ou rio “com um ímpeto compulsivo, algo que se aproxima ao tomar posse da terra nomeando-a”.

capturou 250 escravos, queimou a aldeia, entregou sete escravos aos caraíbas (população que estava sendo vingada) e voltou à Espanha. Mais uma vez, nos deparamos com as reescriturações de textos anteriores. O ataque à ilha, a captura de escravos e o incêndio remetem às guerras da conquista nas Canárias, quando incendiaram a ilha de Tenerife, registradas por Colombo em seu diário. Além da peripécia épica de guerrar contra índios ferozes e canibais, há outro fato interessante nessa carta, caraíba recebeu dois sentidos diferentes no relato de uma única história. Carabi é o título de “homem de grande sabedoria” recebido por Vespúcio e, ao mesmo tempo, caraíba é o nome do povo que conferiu o título a ele, mas não é sinônimo de antropófago, pois os antropófagos eram os habitantes da ilha Iti. No diário de Colombo, caraíba possuía um sentido agressivo, significando caribe ou canibal, mas na narrativa de Vespúcio tinha sentido de ancião, visto que “homem de grande sabedoria” evoca o tempo vivido para a aquisição da sabedoria.

Uma vez mais retornamos a Marco Polo, afinal já entendemos que os discursos narrativos tanto de Colombo quanto de Vespúcio retomam constantemente o de Marco Polo, não somente por se tratar das ilhas que Marco Polo mencionou, mas porque ainda pulsavam (e pulsam) no inconsciente ocidental, os mitos e as lendas contados por Marco Polo (2015, p. 158). Este é o caso da Província de Caraiã, ou melhor, sobre o reino de Caraiã, onde matavam os hóspedes que pernoitassem na cidade, para que “sua figura e sua graça, a sua inteligência, assim como as suas armas, ficassem na casa.” Marco Polo apenas ouviu essas histórias, pois isso acontecia antes, muito tempo antes de o Grande Khan os ter conquistado. Caraiã era uma província que ficava a cinco jornadas em direção ao Levante, após o reino de Cogatim, atualmente de difícil localização geográfica e muito provavelmente inexistente também na época de Marco Polo. Caraiã foi um dos lugares mais exóticos visitado por ele, habitados por seres maléficos, cobras enormes e com habitantes que matavam por uma causa obscura, dissimulada, que visava à aquisição de armas, mais especificamente, as armas de seus hóspedes.

Ao transpor a Caraiã de Marco Polo para as Antilhas, Vespúcio identificou um lugar e uma intenção e as nomeou caraíba. A partir de Vespúcio, caraíba ganhou também o sentido de ancião e de assassino, remetendo ao Velho da Montanha e às suas práticas de consumo de entorpecentes antes das batalhas e de assassinatos premeditados envolvendo disputas políticas e vinganças. Temas bastante recorrentes entre os cronistas que descreveram os karaíwas Tupi das terras brasileiras. Vespúcio

(1984, p. 72), em sua carta sobre a viagem de 1502, quando chegou até a Bahia, descreveu os antropófagos como seres extremamente belicosos e movidos por uma fúria diabólica que os levava à guerra por vingança. Vingança herdada de seus ancestrais, pois matavam para vingar a morte de seus antepassados. Vespúcio não mencionou nem ancião nem feiticeiro que incitasse a guerra, mas contou que, após matar os inimigos, os prisioneiros eram escravizados, mortos a flechadas e comidos posteriormente junto com os filhos e as esposas que porventura tivessem tido durante o cativeiro. Tudo isso presenciou Vespúcio durante os 27 dias em que esteve navegando pela costa norte do novo continente. Na Lettera, Vespúcio narrou o mesmo episódio, dessa vez, incluindo “o parente mais velho que vai arengando pelos caminhos para que vão com ele vingar a morte daquele parente seu.” A razão da vingança que Vespúcio usou como explicação para a guerra se deu diante do fato de que, por serem povo sem lei nem rei, não guerreavam para expandir seus territórios ou sobrepujar seus vizinhos, restando apenas a vigança como explicação, amparada na concepção médica de Hipócrates33 de que em terras quentes o excesso de produção de bile negra geraria uma raiva incontrolável, motivadora de vinganças violentas. Ele descreveu os humores humanos que determinavam os caráteres das populações. O frio seco existente no norte provocaria irracionalidade e o calor úmido existente no sul produziria excesso de bile negra.

Jean Starobinski (2016, p. 23) em A tinta da melancolia, fez um resgate da literatura médica que tratou da existência da bile negra e dos humores associados a ela. Ele compreendeu que os quatro humores determinantes da saúde ou da doença: a bile negra, o sangue, a bile amarela e a pituíta possuíam uma relação com os quatro elementos: água, fogo, terra e ar; com as quatro qualidades: seco, úmido, quente e frio; com as quatro idades da vida; com as quatro estações; e as quatro direções de onde sopram os quatro ventos. Assim, se construiria um cosmo coerente e quadriporcionado no qual se encontraria e viveria o corpo humano em acordo com as quatro partes, relacionando-se de maneira equânime com elas ao longo de sua existência, em um ciclo regular de tempo expresso pelas quatro estações. Conta o autor que Galeno conferiu diferenças marcantes na localização do humor provocado pela bile negra. Se localizado no corpo se manifestava em epilepsia. Se localizado na inteligência, melancolia. A existência da selvageria poderia ser explicada, então, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

33 LOPES, Octacílio de Carvalho. A medicina no tempo. Notas de História da Medicina. São Paulo:

utilizando-se a oposição clássica da geografia entre norte e sul, e a oposição usada por Hipócrates e Herôdoto entre frio e quente.

Caraíba se tornou uma palavra-chave para os cronistas do século XVI que fizeram as descrições dos índios com os quais travaram conhecimento no Brasil. Para Nóbrega (2015, p. 111) e para Anchieta (1964, p. 49), caraíbas eram os feiticeiros que enganavam os índios seus compatriotas e os incitavam à guerra contra seus inimigos, persuadindo-os por influência do demônio. André Thevet (1978, p. 116- 131) nomeou de caraíba aos profetas ou pajés que curavam doenças, faziam feitiços de vingança e previam eventos importantes para a aldeia durante rituais elaborados especificamente para isso. No entanto, nas assembleias, nas quais eram decididas as guerras, as arengas eram feitas por anciãos não por pajés nem caraíbas. Ao narrar a prática antropófaga dos índios de devorarem seus inimigos, André Thevet recuperou o tema da antropofagia na Cítia34, discutindo o fato de a antropofagia não ser uma exclusividade dos índios do Brasil. Também lembrou que, durante a invasão dos romanos a Jerusalém, as mães tiveram que matar os filhos e comê-los devido à fome. Deste modo, a raiva canina do canibalismo Cita seria fruto da irracionalidade, e o canibalismo “de honra” Tupinambá fruto das paixões incontroláveis geradas pelo excesso de produção da bile negra, resultando no espírito de vingança que alimentava o ciclo de guerra e antropofagia.