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6. A natureza pelo avesso

6.1 As regras da natureza

Em seus relatos de viagem, Alexander von Humboldt replicou a supremacia europeia e a hierarquia racial, visto que são comuns, em seu texto, expressões como: “são esses índios, pela maior parte, selvagens a quem repugna toda a cultura.”71; “submergidos em completa selvageria, não distinguem estes povos por nomes geográficos senão os objetos que possam ser confundidos.” e “em sítio selvagem, cujos habitantes foram sempre tão grosseiros como hoje”. Inicialmente considerarei a presença dos conceitos índio e selvagem, apresentados e bem discutidos nos capítulos anteriores. A presença desses predicados para determinar e descrever as populações indígenas ainda no século XVIII nos dá a percepção do quão atávicas e imemoriais são essas atribuições de sentido ao Outro.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 71 Quadros da Natureza, 1965, p. 165, 213 e 171.

No primeiro exemplo, destaco o uso de cultura, conceito alemão que “alude a fatos intelectuais, artísticos e religiosos”, como explicou Norbert Elias (1994, p. 24- 25), uma forma de fazer produtos humanos como obras de arte, livros, sistemas filosóficos e religiosos, sempre impulsionados, sempre com movimento, em um constante desenvolvimento “para frente” que expressaria a individualidade de um povo, enfatizando as diferenças nacionais e a identidade particular de grupos, em oposição à civilização, outro conceito trabalhado em capítulos anteriores, que se referia basicamente ao comportamento e às atitudes das pessoas, com conotações morais, mas sem a exigência de uma realização concreta. A antítese entre cultura e civilização teve suas origens literárias fundadas no frutífero período do século XVIII em que viveram e produziram os irmãos Humboldt, no entanto, foi Kant quem primeiro elaborou esta dicotomia, em seu Idéias de uma história universal, do Ponto de vista de um Cidadão do mundo, de 1784. Segundo Norbert Elias (1994, p. 28), a construção desta dicotomia conceitual se fundamentava, na Alemanha, em uma dicotomia social: a nobreza que falava francês e era civilizada, obedecendo às regras de etiqueta cortesã e que não produzia; e a nova burguesia alemã, a intelligentsia de classe média, que falava alemão e que se legitimava em termos de suas realizações artísticas, intelectuais ou científicas. A partir de 1792, a França entrou em guerra contra várias partes do Sacro Império Romano Germânico, ininterruptamente, até derrotá-lo, em 1806, sob o comando de Napoleão Bonaparte. Derrotados por seu opositor mimético, o francês que detestavam em sua própria corte, os intelectuais e artistas burgueses alemães utilizaram todo o seu potencial criativo de trabalho para fazer oposição política contra os franceses. Embora não tenha sido um movimento político, como em geral se descrevem os movimentos políticos, pois não havia manifestos, nem encontros, não havia local de reunião dos militantes que estavam espalhados por todo o território subjugado a Napoleão. Os sentimentos expressos nos livros escritos por esta vanguarda foram se tornando cada vez mais correntes entre a intelligentsia. A nova geração manifestava ódio violento a príncipes, cortes, aristocracias, afrancesadores, e desabrochava em sonhos de uma nação unida, sem o freio da “razão fria”, como nos esclareceu Norbert Elias (1997, p. 130), pois a razão era a marca civilizatória francesa, o controle dos sentimentos individuais por meio da razão. A razão francesa era mal vista nos círculos da intelligentsia. Em uma carta dirigida a Gentz, em 1791, Wilhelm von Humboldt (1943, p. 78, tradução minha, grifo meu) mencionou que nenhum regime de Estado estabelecido pela razão poderia

realizar seus propósitos. Em sua Teoria Geral do Estado, escrita entre 1791 e 1792, mencionou que “o supremo e último fim de todo homem é o desenvolvimento mais elevado e proporcionado de suas forças, dentro de sua particularidade individual.”72

havia em seus escritos políticos a semente que conduziu a elaboração de seus estudos linguísticos. Foi neste contexto, em que a auto-imagem de uma nação ainda abstrata, uma die deutsche kultur, se estabelecia e se propagava, que os trabalhos de Goethe, Schiller, Kant e dos irmãos Humboldt progrediram. Por isso, a repugnância à cultura manifestada pelos povos americanos, expressa no primeiro exemplo, foi entendida como uma forma de deterioração humana, afinal a ausência de desenvolvimento em nível individual provocaria a degradação social. A recusa em aprender e dominar a linguagem científica era pior do que a própria falta de cultura.

No segundo exemplo, não conhecer o mundo da maneira proposta pelo cientificismo, que implicava conhecer nomes geográficos para o relevo da região em que viviam, justificava a pouca capacidade intelectual desses homens. A inteligência do selvagem já havia passado por diversas avaliações anteriores, como vimos nos capítulos anteriores, sua melancolia se devia ao fato de que a bile negra produzida em excesso nas regiões de clima quente atingia sua inteligência e não seu corpo. Assim, justificava-se a exclusão do humano das regiões visitadas e mapeadas, o apagamento das relações históricas entre os diferentes grupos, afinal, como está bastante claro no terceiro exemplo, esta situação era permanente, eles teriam sido sempre selvagens. Estavam reafirmadas as bases da hierarquia das raças, que mais tarde se desencadearia na Eugenia e na supremacia dos arianos, alavancados pelo positivismo do início do século XX e pela força política do nacional-socialismo alemão.

Andrea Wulf (2016, p. 150), em A invenção da natureza, fez um apanhado das cartas de Alexander von Humboldt e delineou que, embora sua posição política contra a escravidão e a favor do liberalismo, apoiando as revoluções francesa e americana, fosse largamente conhecida, Alexander naturalizou as relações sociais das colônias e a hierarquia racial e, acima de tudo, descreveu os americanos em termos de sua disponibilidade para o trabalho. As fortes concepções políticas de ambos os irmãos (Alexander e Wilhelm) Humboldt estiveram presentes nas elaborações de seus trabalhos científicos tanto quanto as ideias religiosas protestantes. Ao privilegiar a capacidade mental de alguns indivíduos como propulsores do desenvolvimento de um !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

povo, replicou o discurso a respeito da auto-imagem da intelligentsia alemã do século XVIII, indivíduos solitários em sua empreitada científica para melhorar as condições morais de seus compatriotas. Na última frase do capítulo 2 de On language, transparece toda a preocupação de Wilhelm von Humboldt (1999, p. 26) de fomentar nos indivíduos “perdidos na massa da população” o “poder intelectualmente criativo”, tema antes já discutido em Sobre a Organização Interna e Externa das Instituições Científicas Superiores em Berlim73, em que argumentou a respeito da responsabilidade das instituições de ensino pelo “enriquecimento da cultura moral da Nação.” A educação, então, se destinava a moldar a massa para que correspondesse às expectativas de desenvolvimento cultural almejado pela intelligentsia. Exatamente no que acreditava seu irmão Alexander von Humboldt (WULF, 2016, p. 277) que lhe escreveu uma carta na qual dizia que “a educação seria o alicerce para uma sociedade livre e feliz”.

O conceito indivíduo é um dos pontos fundamentais de seus trabalhos e remete fortemente ao protestantismo, pois esse indivíduo é europeu por excelência, no entanto, europeu do norte, afinal, na península ibérica imperara a contra-reforma. A reforma protestante impulsionou a força expressiva do indivíduo, gerando um sujeito descolado do mundo e relativamente autônomo em relação a seu comprometimento cultural. Louis Dumont (2000, p. 12-65), em O individualismo, traçou uma linha de construção do individualismo que remonta às origens do cristianismo como ideia constituinte e fundadora do próprio cristianismo. O autor fez uma revisão das exegeses que trataram do tema e concluiu que o individualismo foi uma maneira, nos primórdios do cristianismo, de individualizar o humano para Deus, porque embora na vida terrena alguns fossem servos e outros reis, perante os olhos de Deus todos eram seus filhos. A reforma, para Louis Dumont (2000, p. 91-129) trouxe a individualização do humano para o mundo, colocando na vontade humana a obediência à vontade de Deus, transformada em vontade individual. A vontade ou a ordem divina era a lei que se tornou a vontade do legislador ou do rei. Essa lei baseada na vontade divina, teve implicações na formação e no funcionamento dos Estados, pois era o reconhecimento do poder do indivíduo, emanado de um Deus que simbolizava a cristandade. Assim a subjetividade do homem teria suplantado a ideia de comunidade e se transformado na ideia de societas, conceito elaborado por !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Ockham, que significa um grupo de indivíduos vivendo juntos, e que é a base do Estado moderno.

Para Louis Dumont (2000, p. 126), foi Herder, em 1774, quem afirmou a diversidade das culturas, a individualidade de cada cultura composta por sua comunidade específica de indivíduos em oposição à ideia de universalismo cristão. As ideias de Herder sobre as culturas específicas de cada povo reforçaram o sentimento de que a humanidade seria representada pelo “nós” em oposição ao Outro. Herder procurava argumentos para exaltar a nação alemã e justificar sua ascenção e domínio sobre os demais povos. As mudanças promovidas pela Reforma operavam com a oposição entre o selvagem e o civilizado, desta vez expresso por um povo, de cultura superior, e um outro povo, de cultura inferior. Por isso, nascer culturalmente civilizado traz implicações para o desenvolvimento de uma perspectiva analítica das demais culturas ou nações. No caso, a elaboração da teoria étnica das nacionalidades que os sucessores de Herder transformaram em hierarquia das culturas ou das nações. Outra implicação da teoria étnica das nacionalidades foi a super importância das culturas para o estabelecimento de diferenças entre povos. Esta foi amplamente adotada pelos naturalistas do século XIX no estabelecimento dos grupos étnicos e línguas sulamericanos. Era preciso ser um povo, com um nome, um território, uma língua, e uma cultura específica para servir ao propósito científico de catalogação da natureza, entre os seres da natureza estavam, é claro, os selvagens.

Um bom exemplo da europeização do indivíduo foi a construção científica do homo sapiens. Conceito elaborado por Lineu, em 1758, após inúmeros debates em que foi considerada a necessidade de classificar o ser humano como tal no sistema natural proposto por ele alguns anos antes. A elaboração sistemática de Lineu, que tomou vulto internacional e que ainda está vigente nos estudos de botânica, previa uma classificação a partir dos órgãos reprodutores das plantas. A dificuldade então era identificar os diferentes tipos de humanos, afinal os órgãos reprodutores eram os mesmos. A especulação sobre os elos naturais entre primatas, selvagens e civilizados já estavam em debate desde o período clássico, como vimos no primeiro capítulo. Segundo Gustav Jahoda (1999, p. 63-65), em seu Images of savages, foi Monboddo, em 1773, quem dedicou-se a estabelecer uma relação teórica entre o surgimento da linguagem e o progresso da humanidade, valendo-se das ideias herderianas do desenvolvimento das potencialidades individuais como propulsores do desenvolvimento cultural, para concluir que, no princípio, haviam nações de primatas,

cujo desenvolvimento das habilidades teria se disseminado hereditariamente. Ele teria sido o primeiro a usar o termo ‘raça’ para referir-se a espécies diferentes de homens, mas foi com Blumenbach e sua proposta de medida craniana, o chamado índice cefálico, que a determinação das raças começou, embora, para ele, a humanidade fosse composta de uma única espécie, o que demonstrava de que lado do debate ele estava e expressava suas ideias monogenistas da criação. A proposta de Blumenbach pressupunha a divisão da humanidade em cinco grandes raças: caucasiana, mongólica, etíope, americana e malásia. A raça caucasiana era a mais elevada e as demais seriam degenerações dela. As ideias de Monboddo e de Blumenbach levaram à hipótese de que haveria uma língua primeva, a original, ou pelo menos a língua primeva e original da raça caucasiana, da qual todas as demais teriam se originado, ou degenerado, como preferiria Blumenbach.