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3. Caribes de Colombo, caraíbas de Cabral

3.1 Caribes e aruacos

A associação dos caribe ao canibalismo decorreu, principalmente, das expectativas medievais de Colombo de encontrar monstruosidades, que assim formulou a imagem canibal e violenta dos caribe. Ser caribe implicava ser canibal. De acordo com Nancy E. van Deusen, (2015, p. 3), em Global indios. The indigenous struggle for Justice in Sixteenth-Century Spain, ao longo do contato com os espanhóis, a ambiguidade do status entre caribe (nativo resistente às ordens da Coroa) e canibal (comedor de gente) foi alterada, muito em razão da lei da Rainha Isabel que proclamava que se fizesse escravo de todo canibal que resistisse às ordens espanholas, mostrando que havia uma confusão entre os dois status que os nivelava. Como já havia antecipado o Almirante, em nome dos reis de Castela, aniquilaria os caribe. Neil Whitehead (2002, p. 52-59) considerou que pouco se tem analisado os textos de Colombo a respeito das categorias linguísticas, políticas e antropológicas sobre o novo continente ali formuladas, em especial, sobre a história da classificação linguística arawak e carib, construídas uma em oposição à outra. Ele considerou que os modelos de evolução histórica des-historizam as relações linguísticas, que são assumidas como supra-históricas, sendo portanto um dado e não um problema a ser investigado. A diferença em sua análise está em tratar as mudanças glotocronológicas como um processo histórico que produz a mudança ao invés de tratar a mudança

como a evidência histórica de um relacionamento linguístico prévio.

Para exemplificar seu pressuposto, ele retomou os textos de Colombo e seus contemporâneos, visto que foi exatamente nas categorias elaboradas nestes textos que a supremacia da diferença linguística sobre a relação histórica dos povos do novo continente começou. O trabalho de identificar uma língua na terra recentemente colonizada era altamente político. Em primeiro lugar, porque dialogar com os habitantes era necessário para o propósito colonizador, por isso o trabalho dos missionários foi fundamentalmente relevante para o projeto colonial. Em segundo, porque simultaneamente ao identificar uma nova língua, descobria-se uma nova cultura e portanto, um novo povo a ser agregado à colônia. Colombo foi o primeiro a fazer distinções político-linguísticas entre a população destas terras que, sem a necessária reavaliação de nossos próprios preconceitos culturais sobre as ideias do que são língua e cultura, se perpetuaram nas teorias glotocronológicas e de linguística histórica, produzindo um cenário confuso do que realmente foram as identidades étnicas e as relações culturais naquele momento. A mais contundente das confusões é a atribuição étnica dos povos que habitavam as ilhas caribenhas no momento do desembarque. Ao fazer uma revisão das descrições de Colombo e dos primeiros relatos feitos por missionários espanhóis e franceses, Neil Whitehead (2002, p. 53- 55), em Comparative arawakan histories. Rethinking language family and culture area in amazonia, resgatou a evidência de que haviam dois grupos diferentes divididos por Colombo como “tratáveis” (guatiao, aruaca) e “selvagens” (caribe, caniba). Embora esta não fosse uma distinção linguística, informou a política colonial a ser adotada e induziu mudanças nas sociedades existentes como resposta à discriminação inicial. O autor interpreta que o dualismo poderia não ser apenas projeção colonial nem mera distinção linguística, mas como funcionava política, linguística e culturalmente é ainda ponto de controvérsia entre inúmeros estudiosos. Durante a ocupação colonial das ilhas a partir do século XVI, os habitantes das ilhas (guatiao) foram dispersos ou exterminados e posteriormente substituídos pelos aruacos continentais, atualmente conhecidos como Lokono28. Havia então o binômio caribe/aruaco além de outra distinção que operava como categoria classificatória na colônia: ilha/continente. Embora este último binômio não tenha sido muito bem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

28 Historicamente o termo aruaca refere-se aos Lokono, habitantes do norte amazônico, do rio Essequibo

ocupando a costa do Atlântico até a foz dos rios Demerara, Berbice e Corentyn, região hoje conhecida como Guianas.

percebido pelos espanhóis que se ativeram mais ao caráter caribe ou aruaco da população, foi bem documentado pelos missionários franceses que acrescentaram mais uma distinção ao grupo de categorias: os Galibi (Kaliña), caribe das ilhas; e os caraïbe, caribe do continente.

Segundo o Frei Raymond Breton (1900, p. 61), o primeiro a descrever a língua dos caribe das ilhas, os Galibi (Kaliña). Nesta língua29, os homens chamam a si mesmos de Kalinago e as mulheres de Kalipuna. O mito de origem desse grupo, como descrito pelo Frei Raymond Breton, conta que antes dos Kalinago chegarem, haviam homens e mulheres Iñeri (supostamente um grupo aruaco das ilhas). Os Kalinago (supostamente caribe do continente) exterminaram os homens Iñeri, casaram-se com as mulheres Iñeri e estabeleceram famílias. Assim, as crianças nascidas destas uniões teriam aprendido a língua Iñeri com suas mães e, no caso de serem meninos, ao crescerem, para acompanhar seus pais nas tarefas masculinas, teriam aprendido a língua Kaliña. Um ponto interessante aparece aqui. Apesar de ser considerado o mito de origem desse grupo ainda hoje, a história contada por Frei Breton lembra inquietantemente as histórias de Marco Polo sobre Rosmochoram e de Colombo sobre Matinino.

Ainda hoje, o debate sobre o que ou quem é caribe ou aruaco ocupa a cena científica. Praticamente toda a produção de literatura posterior ao contato esteve empenhada em formular esta diferença com inúmeras descrições da morfologia cultural e do caráter de cada um dos povos, tentando estabelecer áreas culturais e determinar suas relações linguísticas. Caribe, segundo Dieter Heinen (1983, p. 4), assim como canibal, deriva do Lokono caniba que significa “povo da mandioca”, e fazia referência àqueles que viviam ao sul, na costa. Para Tzvetan Todorov (2013, p. 44), não haveria dúvidas de que, no entendimento de Colombo, caniba era o povo do Grande Khan, que subjugava e escravizava a todos eles. Qual das suposições é a mais correta é difícil julgar, mas o que posso perceber facilmente é que caniba em muito se assemelha a maniva, a estaca da qual se faz o plantio da mandioca e que tem seu significado fortemente associado a este tipo de agricultura que não usa sementes, mantendo-se inalterado até os dias de hoje. Em direção oposta, Karl von den Steinen, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

29 Segundo Anthony Pagden (1988, p. 241), em 1580, Miguel Cabello Valboa registrou o fenômeno espantoso dos

grupos caribe (Kalinago/Kalipuna) em que homens e mulheres falavam línguas diferentes, e considerou que tamanha desordem linguística indicava o estado de desordem do mundo índio. Mais tarde, em 1724, o padre jesuíta Joseph-François Lafitau reconheu estas duas línguas diferentes como formas rituais de tratamento. De acordo com Hoff (1995, p. 37-59), a língua Kaliña é considerada um jargão comercial usado pelos homens em seus negócios com os habitantes de outras ilhas ou do continente.!

em uma carta destinada a Nordeskiöld e Frödin, em 191230, percebia os caribe como os “senhores” do algodão e do fuso em oposição aos aruaco que não possuíam o fuso nem o conhecimento de fiar, assumindo o algodão fiado como a especialidade tribal. Assim, o relato de Colombo (1998, p. 45) a respeito da quantidade de papagaios e novelos de algodão fiado que lhe eram oferecidos “querendo trocar por qualquer coisa que a gente desse”, assumiria um sentido muito mais significativo da identidade étnica do grupo. Estabelecer uma troca era a forma de estabelecer uma relação com os europeus que haviam chegado, de incorporá-los à dinâmica local. De acordo com David Graeber (2011, p. 134), produzir objetos específicos para a troca faz parte de um roteiro de estabelecimento de relações, de um processo de interação em que as partes buscam um resultado satisfatório de suas trocas e de suas relações.

Aruaco31 seria um derivado de aru que, em Lokono, significa ‘farinha de mandioca’, a principal mercadoria de suas transações comerciais com os espanhóis. Aruaco seria então, para Neil Whitehead (2002, p. 73), ‘o povo da farinha de mandioca’, em um idioma que só fazia sentido na relação comercial entre espanhóis e Lokonos. Aparentemente, caribe e aruaco eram “comedores de mandioca”. Aliás um fato que se extende por quase todo o continente. Se todos comem então esta não seria uma característica étnica definidora do grupo, talvez de uma identidade comum, partilhada e atribuída, como a de americano, por exemplo, mas não seria suficiente para definir as diferenças entre caribe e aruaco. Boomert (1984, p. 123-188) sugeriu que o nome teria surgido de Aruacay um lugar situado na margem esquerda do baixo Orinoco, ao norte de Barrancas, na Venezuela e que daí teria se espalhado, passando a referir-se não somente aos habitantes de Aruacay, mas também aos indivíduos que falavam a mesma língua. Para Colombo, alguns termos bastante semelhantes tinham significados um pouco diferentes, nucay (1998, p. 58) significava ouro, e Carcay (1998, p. 85) era o nome de uma ilha. Posso então supor que Colombo construiu este termo para se referir ao conjunto de povos que comercializavam farinha de mandioca com os espanhóis, tendo suas expectativas e convicções comerciais e pessoais unicamente envolvidas nesta formulação. Em depoimento dado à linguista Marie- France Patte (2010, p. 10), uma liderança guianesa da Organização Guianesa de Povos Indígenas (GOIP) disse que eles consideravam arawak uma atribuição externa: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

30 COELHO, Vera Penteado. Karl von den Steinen: um século de antropologia no Xingu. São Paulo: Edusp, 1993.

p. 32

31 Segundo Payne (1991, p. 355-499), atualmente a forma de se referir aos Arawak é o uso do termo Maipure, que

“nós não dizemos arawak na GOIP, pois esta palavra só passou a existir depois de Colombo, em 1492.”

Segundo Neil Whitehead (2002, p. 57), caribe e aruaco estavam em oposição, principalmente no que diz respeito aos negócios e aos projetos coloniais que precisavam mobilizar forças de aliados e inimigos para serem implantados. Os Lokono foram aliados da Coroa espanhola e eram os guardiões das plantações de tabaco implantadas pelos espanhóis, cuidando eles próprios do abastecimento de escravos para o cultivo. Os caribe eram os inimigos passíveis de serem escravizados. Assim, o trabalho dos missionários linguistas, durante o século XVI, se constituiu basicamente em demonstrar as diferenças linguísticas e culturais existentes entre aruacos e caribes que persistem ainda hoje como categorias analíticas do trabalho científico da descrição linguística.

O rol de características elaborado para a distinção entre os dois grupos apresenta a morfologia das aldeias, com um pátio circular no centro, atribuída aos aruaco; o canibalismo, atribuído aos caribe; e os mitos de origem serviriam como delimitadores culturais. Entretanto Guahayona é o ancestral mítico tanto de grupos aruaco quanto de grupos caribe. André Prous (1992, p. 425) apontou as evidências de grandes aldeias com pátio circular, inclusive, em ocupações no recôncavo baiano e no centro-oeste do Brasil desde 400 anos antes da chegada dos europeus, sendo estes territórios associados aos Tupi e aos Jê. Segundo Eduardo Viveiros de Castro (1986, p. 287), o formato das aldeias Araweté, grupo Tupi-guarani, são assemelhadas às dos Caribe e às de outros grupos do norte-amazônico. O uso do fuso de fiar, como apontado por Karl von den Steinen também se mostrou frágil. Jose Gómez (2016, p. 184) discorreu, em sua tese de doutorado, sobre a prática e a importância de fiar como estabelecedor da diferença entre masculino e feminino, em um grupo de língua chibcha, de Sierra Nevada, para quem a construção do mundo se daria no movimento espiral do fuso de fiar.

As características apontadas como definidoras da identidade étnica dos grupos parece mais relacionada aos projetos coloniais do que de fato aos grupos aos quais se referem, refletindo uma pontinha do sistema produtivo europeu e de sua estrutura de classes. Outra reflexão importante que tais comparações suscitam é o fato de que aruaco e caribe seriam duas categorias sociais que estabeleceram e descreveram as relações dos povos contatados com os europeus, mas que não significavam necessariamente populações culturalmente e linguisticamente diferentes.

Posteriormente, tornaram-se categorias científicas de análise e de descrição linguística, chegando a serem estabelecidas famílias linguísticas com relações genéticas e culturais implicadas. Estabelecer uma diferença linguística entre esses dois grupos era necessário. Para haver um povo “tratável”, de língua compreensível, era necessário um outro povo “selvagem”, de língua rude. Os critérios que levavam em conta a diferença linguística não eram exatamente linguísticos, eram mais propriamente critérios comerciais ou coloniais. O critério de selvageria precisava existir, pois esta era uma das premissas para a escravidão: ser selvagem justificava a escravidão.